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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.46 no.2 Rio de Janeiro dez. 2014
ARTIGOS
A psicanálise, o Estado e as grandes manifestações de rua
Psychoanalysis, the State and the major street demonstrations
Oswaldo França Neto*
Universidade Federal de Minas Gerais - Brasil
RESUMO
Este texto se propõe a fazer uma leitura psicanalítica possível das grandes manifestações de rua que agitaram o país em 2013. Ele propõe correlacionar o funcionamento do Estado, sua forma de se organizar como aparelho representativo e seus mecanismos de manutenção do status quo, com a lógica da consciência. Já as insurgências, fazendo uso de ferramentas conceituais oferecidas por Freud, Lacan e Alain Badiou, propõe aproximá-las com a forma de funcionamento do inconsciente. No final, a partir das considerações feitas, resgata a noção de comunidade, contrapondo-a ao capitalismo.
Palavras-chave: manifestações de rua; representatividade; política; comunidade; capitalismo.
ABSTRACT
This paper aims to make a possible psychoanalytic reading of large street protests that marked the country in 2013. It proposes to correlate the State functioning, its manner of organizing itself as a representative structure and its mechanisms of maintaining the status quo, with the logic of awareness. As for the insurgencies, using conceptual tools offered by Freud, Lacan and Alain Badiou, it proposes to approach them using the functioning of the unconscious. Finally, from the considerations made, it rescues the notion of community, in opposition to capitalism.
Keywords: street protest; representativeness; policy; community; capitalism.
A medicina, poderíamos dizer, lida com o possível. Frente ao disfuncionamento orgânico, o médico utiliza o conhecimento científico de que dispõe para tentar, senão curar, pelo menos amenizar o sofrimento. Poderíamos, em contraposição, propor que Freud, ainda um relativamente jovem neurologista do final do século XIX, deu o primeiro passo para essa ciência que ele veio a nomear por psicanálise, a partir da categoria do impossível. Ao se defrontar com as histéricas que desconcertavam Charcot, Freud se deparou com algo que era impossível aos olhos do saber de sua época. Algo que, em relação à razão (que clama por objetividade), se mostrava impossível de ser apreendido.
A razão clama por objetividade. Mesmo quando trabalha com temas que seriam abstratos (como é o caso da psicologia ou da filosofia), a razão busca apreendê-los concedendo-lhes consistência, ou seja, concedendo-lhes o estatuto da unificação. Já as histéricas que fascinaram Charcot resistiam a qualquer tipo de definição. A qualquer tentativa de constrangê-las em uma classificação elas respondiam por meio da exclusão.
O interessante do saber é a evidente necessidade que dele temos para viver. Trata-se do solo seguro que nos protege do caos que insiste em nos invadir, seja oriundo de nossos próprios anseios, seja oriundo de fora, daquilo que chamamos de natureza. Nossa própria concepção de natureza pressupõe uma totalidade, uma unificação, mesmo que inalcançável para nós em virtude de nossas limitações.
A consciência da vigília, quando estamos despertos, é o campo do saber. É o campo da segurança. Ao trabalhar os sonhos, Freud nos diz que, ao sonharmos, quando nos aproximamos do horror, o que fazemos é acordar, restaurando o seguro campo da realidade consciente, onde cada coisa tem seu lugar, e a racionalidade impera. Trata-se, dessa forma, no sonho e na vigília, de cenas diferentes, uma outra localidade, um outro espaço (Lacan, 1964/1985, p. 58). E o que diferenciaria essas duas cenas seria a entrada em função do problemático sistema perceptivo – quando está ativado, trata-se da cena da vigília, quando está desligado, trata-se do sonho. O despertar é o rearranjo da cena, a nossa apreensão em um outro campo de representação.
Porém a afirmação pura e simples de que a percepção provoca o despertar não responde a todas as questões. A cena do sonho permite que apreendamos o que chega como som externo, como percepção, sem que para isso necessariamente tenhamos que acordar. Os sons, uma campainha que toca, nossos sensores corporais internos reclamando por fome ou sede, tudo pode ser assumido e utilizado pela cena do sonho sem que este tenha que ser interrompido. Se podemos dizer que o despertar, aquele momento intermediário, o entre duas cenas, se impõe e nos faz acordar, se esse despertar tem a ver com a percepção, certamente é de uma outra percepção que se trata. É a percepção de algo que ultrapassa os limites do sonho – ou os limites de onde se tem franquia ir – da qual a cena do sonho não foi capaz de nos proteger.
A criança, dormindo, ao sentir vontade de urinar, faz suas necessidades sem que para isso seja preciso despertar. Ela se molha enquanto dorme. Em certos momentos durante o sono, e podemos utilizar como exemplo o sonho da injeção de Irma (Freud, 1900a/1972), a percepção daquilo que transborda o tranquilo movimento do sonho pode ser contornado e o sonho preservado. No caso desse sonho, nesse momento limite que Freud nomeou por umbigo do sonho, apareceu a palavra Trimetilamina. Palavra sem sentido, sem deslizamento ou associação, que se impôs de forma onipotente, conseguindo, com seu ato, fixar a cena e evitar o despertar.
Quando acordamos de sobressalto, como, por exemplo, no conhecido sonho descrito por Freud, no qual o pai desperta quando seu filho, que está sendo velado na peça ao lado, vem lhe dizer que está queimando (Freud, 1900b/1972), não é a percepção "externa" que causa o despertar, mas a percepção de algo que torna impossível a cena do sonho e que então nos desperta em outra mais segura, a cena da vigília.
Podemos dizer que o princípio de realidade, que reina na vigília, é mais seguro que seu superior, o princípio do prazer. Ele nos pontua, em geral com alguma antecedência, onde o seu senhor pode falhar, e nos mantém a uma distância segura desse ponto perigoso. Impede que o horror irrompa, pontuando que aquilo que, factualmente, ao nos chegar como percepção, se apresenta como insuportável deve ser rearranjado e preservado como pertencente ao campo da representação. O despertar de um sonho traumático protege-nos da pura presentificação do real, na qual um impossível ameaça se impor de forma devastadora.
Sonho e vigília são, dessa forma, dois campos de representação ou duas cenas diferentes. No sonho, comandados unicamente pelo princípio do prazer, partimos, sem negociação ou concessões, ao encontro daquele suposto objeto que daria finalmente vazão ao excesso pulsional que não se cansa em buscar satisfação. Enquanto o sonho consegue nos manter a salvo da pura irrupção do excesso, continuamos a dormir. No momento em que, no sonho, o excesso irrompe de forma plena, é essa percepção que nos desperta na vigília e no princípio de realidade.
Se a consciência na vigília se operacionaliza na lógica da segurança, da consistência, isso significa que seu principal motor é o medo do desamparo, da falta de referências. Frente ao excesso irredutível da existência, só nos resta constituir uma pretensa consistência em que esse excesso inassimilável seria colocado como impotência momentânea de nossa capacidade de compreender e não como impossível a compreender.
Na entrada do século XXI, em uma série de conferências proferidas em Paris, posteriormente publicadas na forma de livro, Alain Badiou (2007) propõe que o século que nos precede, o século XX, foi marcado pela crença na possibilidade de criação do Estado absoluto, totalitário, capaz de se tornar, ele próprio, o exercício deste excesso que insiste em transbordar. Como consequência, tivemos guerras monstruosas, tivemos Stalin, tivemos o holocausto. Foi um século marcado, acima de tudo, pela crença na capacidade do controle institucionalizado do excesso, em uma tentativa messiânica de totalização do exercício estatal. Essa ilusão na capacidade do Estado em fazer Um com aquilo que o excede seria reflexo da paixão que teria governado o século XX, nomeada por Alain Badiou como paixão pelo real. Esse Estado poderoso, capaz de fazer Um com seu próprio excesso, seria a corporificação finalmente conseguida da totalidade sempre almejada, mas jamais alcançada pelo homem.
Nos seus últimos 30 ou 40 anos, frente às atrocidades que essa paixão pelo real nos legou, o século XX se voltou para o sentido oposto. No lugar de se fundir com seu próprio excesso, vemos nossa sociedade ocidental se direcionar no intuito de resguardar-se de todas as formas possíveis de seu aparecimento. Vamos agora buscar a totalidade, o Um, por meio da criminalização de tudo aquilo que insista transbordar em relação à tão desejada unificação. O excesso, então, passa a ser chamado por vários nomes, como terrorismo, vandalismo, favelado, jovem em conflito com a lei, dentre uma série de outras adjetivações excludentes. Ao Estado, agora, caberia a missão de buscar a inclusão dos excluídos, tentando, ao máximo, fazer com que o excesso deixe de existir como tal. Da paixão pelo excesso que marcou principalmente a primeira metade do século XX passamos agora para o medo incondicional a qualquer manifestação dele. A ordem do dia passou a ser incluir na norma tudo aquilo que, perigosamente, mostra-se marcado pela indiscernibilidade. Busca-se, a todo custo, a aniquilação do excesso, seja normalizando-o ou, quando isso não é possível, criminalizando-o e preservando-o fora do Estado. Passamos a existir na era do medo, na qual o que importa é se sentir seguro. Não é por menos que um dos mecanismos que mais se desenvolveu foi a proliferação infindável de seguros, que se multiplicam (seguro de vida, de automóvel, de residência, de aposentadoria, etc, etc..). E qualquer pessoa que, tendo condições financeiras, se mostre negligente com esses seguros que ficticiamente nos manteriam a salvo das incontroláveis contingências da existência é considerada ingênua, inconsequente, leviana.
Retornando à nossa correlação com o campo psicanalítico, poderíamos dizer que o campo da consciência é o campo do medo. Tentamos tudo controlar, e tudo que escape a esse controle é criminalizado ou considerado insano. Mas, se existe algo que Freud soube nos ensinar, é que o excesso, por mais que recalcado ou rejeitado pela consciência, retorna sob o que Lacan (1958-1959/1999) nomeou por formações do inconsciente (sonhos, chistes, atos falhos, sintomas). O mesmo pode ser dito com relação ao mundo que habitamos. Em nosso pretensamente seguro e globalizado planeta, apesar de toda a rede de controle e exclusões que construímos, sintomas começaram a aparecer. Como todo excesso, por não se deixar cernir por nenhuma totalização, eles se representificam no território, localmente, resistentes a qualquer racionalidade que os queira apreender em uma explicação única. Onde surgem, essas manifestações não são marcadas pelo Um, ou pela unificação de uma explicação única e convincente. Elas não podem ser apreendidas pelo seguro campo da consciência, que no caso da sociedade corresponderiam às estruturas partidárias e ao Estado. Estes últimos ficam atônitos frente aos acontecimentos, sem saber o que responder.
O Estado, que por definição é conservador, no sentido de tentar ao máximo preservar o status quo, na sua forma democrática moderna, se coloca como o representante da razão consciente, do ponderado. Mas essa afirmação não se restringe apenas ao Estado contemporâneo. Poderíamos dizer que, em qualquer época, não importa qual Estado sempre vai sentir grandes dificuldades em dar conta daquilo que se apresenta alheio ao que ele acredita controlar, estando condenado à administração do necessário e à eliminação do impossível. Essa característica, porém, foi aprimorada ao máximo em nossa civilização democrática capitalista ocidental, organizada cuidadosamente de tal forma a se proteger e a se preservar, por meio de uma complexa e bem estruturada dinâmica eleitoral, de qualquer manifestação renitente deste excesso que não se cansa em retornar. Nesse movimento dialético entre o necessário e o impossível, cabe a essas insurgências públicas, marcadas pelo imponderável, presentificar o excesso constitutivo que, a duras penas, o Estado, com sua bem organizada estrutura (instituições públicas, partidos, aparatos policiais, etc), se esmera em tentar fazer inexistir.
As manifestações públicas que agitaram nosso país recentemente são um exemplo dessa localização do disfuncionamento do Um estatal. A ameaça que elas representavam para o Estado rapidamente foi percebida. Os meios de comunicação oficiais, frente ao primeiro surgimento da tomada das vias públicas pela população, não tiveram dúvidas de se posicionar no sentido de deslegitimá-las e criminalizá-las. As manifestações, no entanto, no lugar de arrefecer, cresceram, forçando esses mesmos meios, agora atônitos, a tentarem dar a elas alguma inteligibilidade que permitisse cercá-las pela razão e, assim, iniciar o processo de neutralização. Procurou-se, a todo custo, descobrir "o" ou "os" enunciados que as definiriam, para que uma resposta equilibrada pudesse ser formulada e a insurreição tivesse um fim. Mas os enunciados não cansavam de proliferar, resistindo a qualquer tipo de redução de sentidos.
De forma similar com os desejos que coabitam o inconsciente, conviviam, lado a lado, enunciados contraditórios que não faziam nem permitiam qualquer possibilidade de unificação. O movimento seguinte do Estado e dos meios de comunicação, ainda na tentativa de classificar, entender, controlar, foi dividir aquele movimento não totalizável em partes, chamando aqueles mais inabordáveis de vândalos, e criminalizando-os. Mas essa criminalização de parte do movimento, apesar de aparentemente efetiva em alguns momentos, também se mostrou difícil, pois, a rigor, todo o movimento, e não apenas alguma de suas partes, estava em conflito com a lei, estava em conflito com a razão, estava em conflito com a consciência.
Frente às formações do inconsciente, temos, como nos ensinou Freud ao trabalhar os lapsos e os atos falhos (1901/1969), duas opções: ou considerá-las como fenômenos insanos, merecedores apenas de riso e esquecimento, ou então colocá-las no divã e vermos o que, a partir do que elas suscitam, se desdobra como consequência. O que as histéricas ensinaram a Freud é que, se optarmos pelo primeiro caminho, que é a opção por excelência da consciência, os desejos inconscientes resistem, retornando de outra forma, em outros lugares. Frente ao incontrolável das manifestações que ocuparam as ruas, o Estado, em consonância com o modo de funcionamento da consciência, foi célere em nomeá-las fora-da-lei ou vandalismo. Este excesso, porém, que insiste em transbordar, mesmo que criminalizado, retorna sempre, de uma forma ou de outra, forçando o Estado a um dispêndio imenso de energia na tentativa de neutralizá-lo. A segunda opção, uma outra forma de enunciá-la, seria por meio de uma expressão que, segundo Badiou (Badiou & Rocha, 1995, p. 126), se tornou cara a Lacan: faire avec. Uma tradução possível para ela seria fazer uso, ou pegar leve. Trata-se, nesse pegar leve, de manejar a situação. De forma alguma significa não fazer nada, mas possibilitar que desse excesso algo se produza, que será diferente conforme a pessoa, o contexto, o território. Esse manejo permite singularidades, pois cada um vai pegar leve a sua maneira.
Esse pegar leve pode também ser pensado em seu sentido inverso, ou seja, em nossa relação com o Estado. Seria pararmos de pensar o Estado como um opositor frontal, contra quem tem que se lutar e destruir. Se formos colocar o Estado no lugar do Outro (grafado como A por Lacan), ainda segundo Badiou (Badiou & Rocha, 1995, p. 126), jamais ocorreria a Lacan dizer que devemos nos apoderar do Outro, instalar-nos nele ou destruí-lo. Devemos abandonar a ideia de que o Estado ocupa uma posição central, pois esta ideia nos condena ao imperativo de destruí-lo. O Outro, para Lacan, atravessado em sua grafia por uma barra oblíqua (%), assim como o Estado, "está em posição ex-centrada com relação ao subjetivo político, e não em posição frontal" (Badiou & Rocha, 1995, p. 126). Não é tarefa primária de quem se nega a abandonar as cercanias do excesso confrontar o Estado, mesmo que isso em vários momentos acabe por acontecer, como pudemos observar nos "vândalos" das manifestações. O excesso se manifesta por si, sendo seu próprio processo a única razão de seu movimento, à revelia dos interesses e necessidades do Estado e suas instituições. Não se trata, portanto, de cair na já gasta lógica do par de opostos, na qual o que importa é a destruição do inimigo e a tomada do poder, mas de subverter essa mesma lógica, colocando em questão a existência necessária de polos que, por meio de sucessivas negações, manteriam a estabilidade do sistema.
O indivíduo e a comunidade
As manifestações que agitaram o país trouxeram à cena um termo que estava pouco em pauta, que é a noção de comunidade. Essa ideia, a de comunidade, teria sido deixada de lado junto com o fracasso do comunismo estatal. Centrarmos nossas concepções no indivíduo ou na comunidade leva-nos a caminhos distintos nas discussões sobre o que seria política. Nessa oposição, as últimas décadas fizeram sua escolha, determinados que nos tornamos pelo pensamento liberal, sempre "interessado em entronizar o indivíduo, afastando de vez, a ideia de comunidade" (Garcia, 1994, p. 64).
Resgatarmos esse termo, porém, não nos exime de buscar evitar os engodos que seu uso propiciou no passado, como a ideia de que na concepção de comunidade tratar-se-ia de uma "realização em alguma fusão coletiva" (Garcia, 1994, p. 64) na qual as singularidades se perderiam. Não se trata da simples oposição entre o indivíduo e a sociedade, binômio que nos coloca à deriva no instante mesmo em que o formulamos.
Ao trabalhar o coletivo, em "Psicologia de grupo e a análise do ego", Freud (1921/1969) lança mão do conceito de identificação. Essa via utilizada por Freud, como ele bem pontua, ao lançar mão dos ideais, possibilita alguns engodos, incorrendo na concepção de que haveria uma identidade a si que possibilitaria a constituição de conjuntos uniformes, base da intersubjetividade e do laço social. A identificação em Freud, porém, não se produz entre dois semelhantes, mas no espaço psíquico de um único indivíduo, entre o sujeito e uma marca ou traço resultante de uma alteração de outrem (e não de outro, como comumente diríamos, "pois em psicanálise encontramos, em vez do habitual objeto, uma marca inconsciente que não permite a objetificação" (Garcia, 1994, p. 66). Nesse jogo, para Freud o que essa marca faz é barrar o ser do sujeito, fazendo-o falta a ser, ou "fazendo desse ser o que falta à marca para completar o Um do sujeito" (Garcia, 1994, p. 66). Na identificação, em Freud, não produzimos elementos idênticos a si, capazes de produzir comunidades fechadas ou completas, mas tão somente sujeitos divididos em si mesmos quanto a sua identidade. Para resgatar o Um, somente por meio de ideais. A idealização salva a relação do sujeito com um suposto outro, ocultando o que antes era divisão "graças a uma sutura operada ao nível de uma prática política a partir de então comprometida" (Garcia, 1994, p. 68). A divisão, nesse caso, longe de desaparecer, "é deslocada para um lugar limítrofe, fronteira entre o que por direito pertence ao grupo e o que já não faz parte do grupo" (Garcia, 1994, p. 67).
Miller (1993), ao trabalhar o que nomeou por foraclusão generalizada, propõe esse termo para falar da impossibilidade de comunicação. Para a psicanálise, a comunicação reside no fato de que "o emissor recebe sua própria mensagem invertida" (Garcia, 1994, p. 66). A comunicação não é o laço, nem nada tem a ver com a suposta existência de uma intersubjetividade entre os seres falantes. Mas isso não impede que laço e comunicação tenham algo em comum, mesmo que, para isso, tenhamos que repensar o que esses termos significam. Alain Badiou (Badiou & Rocha, 1995) nos dá uma pista possível ao trabalhar o que seria, aos seus olhos, o sujeito na política. Para este filósofo, devemos nos abster de nos referirmos ao subjetivo político como sendo da ordem de um sujeito especificável, mas sim da ordem de um processo pelo qual a autonomia e independência de cada militante possa ser pensada sem cairmos no risco de objetivações.
De forma similar, tomando como referência a famosa frase de Freud Wo Es war, soll ich werden (Freud, 1932/1976, p. 102), poderíamos propor que o sujeito freudiano adviria como efeito (e não como algo idêntico a si) a partir do Isso, pronome neutro, indeterminado, que remete a um "si" proposto por Freud para designar uma das instâncias da segunda tópica. O sujeito contemporâneo, ao contrário do indivíduo, é não apenas cindido, mas a-substancial e irreflexivo. Para escaparmos da dialética hegeliana do sujeito em si/sujeito para si na política, Badiou propõe pensarmos, especificamente na política, em uma subjetividade sem sujeito (Badiou & Rocha, 1995, p. 121), abrindo assim mão da tentativa de objetivá-lo e pensando o subjetivo como sendo da ordem do processo. Seria um sujeito não mais marcado pela falta ou pela carência, que foi aquele que aprendemos a pensar com o sucesso das teorias freudianas, mas um sujeito que adviria como resposta do real, "determinado por forças que não estão sob seu controle, longe de se realizar graças a suas obras" (Garcia, 1994, p. 63). Esse sujeito seria solidário com a ideia de comunidade, desde que não façamos do "em-comum" ou do próprio sujeito uma substância e tentemos "compreender a comunidade como a práxis do que se partilha" (Garcia, 1994, p. 63-64). Seria essa uma boa possibilidade para escaparmos do engodo do laço social e das particularidades. Pensaríamos então em termos de processo, lançamento, ou em algo que, mais do que cercar, se projeta. Se a metáfora do laço leva-nos a inferir uma intersubjetividade capaz de fazer grupo, ligando os objetos uns aos outros, poderíamos pensar agora em um laço que, por não se assentar em ideias, leva em conta a incompletude, funcionando como um movimento coletivo, não atrelado necessariamente à concepção de um grupo unificado.
Assim, nos libertaríamos de difíceis dicotomias, como indivíduo/sociedade ou dentro/fora, nas quais limites estabelecidos sempre determinam objetivações, para passarmos a trabalhar com o que chamaríamos de "‘extimidade (onde encontraríamos ‘ext’ acrescido de (int)’midade’)" (Garcia, 1994, p. 65). Essa noção, cunhada por Lacan, seria uma boa forma para abandonarmos a atualmente já gasta oposição entre o sujeito e o Outro.
Considerações finais
Para Badiou, a civilização democrática capitalista que se tornou hegemônica no ocidente teria como ideologia a máxima "Viva sem Ideia" (Badiou, 2010). Após o fracasso das ideologias comunistas do século que passou, a onda reacionária que se formou posicionou-se no sentido de estabelecer uma barreira a qualquer possibilidade de que uma ideia que visasse ao para todos se tornasse a diretriz de não importa qual política. Em sintonia com a forma de funcionar do sistema capitalista, protagonizou-se um exacerbamento do individualismo pelo qual o termo progresso passou a ser entendido como sendo a consequência natural da busca desenfreada, e a qualquer preço, da satisfação individual. Frente à inequívoca superioridade tecnológica que a sociedade de consumo conseguiu alcançar em comparação com os países que buscaram a possibilidade comunista, o capitalismo tornou-se o exemplo maior a ser seguido, sendo tratada como ingênua e ilusória qualquer ideia que tivesse como norte primeiro a busca por um bem comum. A palavra comunidade, ou a concepção de um movimento pautado em uma subjetividade coletiva, foi relegado ao segundo plano. O casamento perfeito entre a democracia e o capitalismo tornou-se o paradigma a ser seguido. E o vocabulário desse sistema que se tornou hegemônico em um mundo agora globalizado sob sua ideologia passou a ser assumido por todos, inclusive por aqueles que continuavam a se chamar de esquerda. Termos como "resto" e "excluídos", rapidamente encampados pela esquerda, estão na verdade bem incorporados ao discurso hegemônico que nos é contemporâneo, compatíveis que são com o regime do Um. Esse sistema que atualmente se apresenta como a solução capaz de garantir a melhor concepção possível de sociedade propõe que o ideal a ser alcançado já foi atingido, restando-nos como única tarefa buscarmos a inclusão daqueles que não conseguiram se capacitar para usufruir de suas benesses. Se quisermos construir uma outra lógica, em que o Um não é, talvez tenhamos que buscar outros termos que resto ou excluídos; em vez de falta, talvez passemos mais a falar em excesso; em vez de inconsistência, passemos mais a falar em incompletude.
Em termos lógicos, no registro da inconsistência, no qual encontraríamos o paradoxo, "prevê-se que uma proposição externa ao enunciado venha a decidir a questão" (Garcia, 1994, p. 91). Já no caso da incompletude, na qual a concepção de paradoxo é substituída pela de indecidibilidade, "a pretensão da lógica, já ao enunciar o problema previa que a proposição que decide fosse encontrada no interior do sistema" (Garcia, 1994, p. 91). Passamos de uma solução externa, oriunda do Um que regularia todo o excesso, para um lançamento que, de forma imanente, colocaria o excesso em movimento. O termo indecidibilidade, que nos é tão caro no momento, coloca em cena, na política, o que não se deixa classificar pelo regime do Um.
Após um acontecimento subversivo, se dele uma afirmação se sustentar, a subjetividade política que se colocará em movimento não necessariamente se apresentará como paradoxal à situação, nem se revestirá obrigatoriamente com o caráter de uma negatividade. Ela pode ser simplesmente a afirmação de uma novidade inexistente anteriormente, posto que não decidível nas condições preexistentes. E sua decisão não implica necessariamente uma negação do que existia anteriormente, mas a prévia situação acrescida de uma verdade que antes não se apresentava. Ela não nega a situação, mesmo que negações localizadas se apresentem. O que define uma política é "a agregação do que ela afirma e propõe, e não do que ela nega ou rejeita" (Badiou, 2013, p. 45)1.
Para que algo novo surja, é necessário, de começo, que esse imperativo que nos governa atualmente, "viva sem ideia", se esvazie em sua potência. As manifestações que tomaram o país, assim como todas aquelas que ao redor do planeta deixaram atônitos os governantes, formularam suas palavras de ordem. Esses enunciados, em geral genéricos e meio enigmáticos, mostraram-se, em alguns momentos, e em alguns lugares, eficazes o suficiente para colocar em movimento um coletivo e produzir consequências interessantes, chegando inclusive a derrubar alguns governos, como no caso da primavera árabe. Enquanto conseguirem manter seu caráter de verdade, assim como sua capacidade de manter um processo em andamento, processo este que chamaríamos de político, eles se preservarão como norte a ser buscado por um coletivo, em detrimento de interesses particulares. Nesse sentido, essas manifestações e as ideias que veiculam se mostrarão sempre perigosas ao status quo, por proporem algo diferente do que a pura satisfação individual. E ao sistema jamais faltarão esforços no sentido de descaracterizá-las enquanto ideias portadoras de verdades, jogando-as na vala comum das opiniões.
Referências bibliográficas
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Outras fontes
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Artigo recebido em: 05/08/2013
Aprovado para publicação em: 10/11/2013
* Professor Associado do Programa de Pós-graduação strito sensu do Departamento de Psicologia da UFMG.
1 For every politics becomes the regimentation of what it affirms and proposes, and not of what it negates or rejects (Badiou, 2013).