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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.46 no.2 Rio de Janeiro dez. 2014
RESENHAS
Navegando além do escuro: superações do pós-moderno
Sailing beyond the dark: Surpassing postmodernity
João José de Melo Franco*
Universidade de São Paulo - Brasil
Resenha de:
Resenha de: Dunley, G. Superações do pós-moderno - crítica e clínica da cultura - Pensamentos e ações: Rio de Janeiro: Estação Utopia, 2013. 264 páginas.
Introdução
Caro leitor, não é simples escrever uma resenha sobre o livro Superações do pós-moderno - crítica e clínica da cultura - pensamentos e ações, livro da psicanalista Glaucia Dunley, tecido por encontros entre psicanálise, filosofia e arte, tendo a poesia como matriz do pensamento. Sendo eu poeta, e não psicanalista, seus textos me levam a visões extremamente fortes e plásticas da psicanálise como prática argumentada do pensar e do sentir com o outro, tendo sido este o motivo pelo qual eu, como autor do projeto gráfico do livro, tenha ilustrado com pinturas o início de cada ensaio, que funcionam como exertos do que ali será dito com profundidade.
São inúmeras as questões levantadas e encaminhadas em seu livro, questões essenciais não só para a psicanálise como também para o pensamento contemporâneo no seu desejo, aventado pela autora, de superar o ceticismo pós-moderno, decorrente das heranças malditas da modernidade - o individualismo, a pulsão de poder e a indiferença. Em vez de ceticismo, ou niilismo, no qual ainda vivemos, e que nos exila da vida que merece ser vivida, a autora vem nos falar do entendimento trágico da existência, como o entendiam os gregos, e Nietzsche, pela afirmação da vida, com todos seus pesares.
Glaucia Dunley nos convoca para uma reflexão sobre a psicanálise no contemporâneo, para além de seu rastro científico e autoritário, que nos cumulou de faltas e ausências, pois de forma explícita o desenvolvimento da psicanálise nestes 150 anos desde sua criação por Freud não favoreceu seu outro pilar de fundação, o da estética trágica, fundada por Freud no saber desmesurado de Édipo que o levou ao incesto e à perdição. Este pilar estético é responsável pelos paradoxos fecundos da psicanálise, pela finitude ou pela castração de seu saber, e por uma certa redenção pela arte, inclusive a de psicanalisar de corpo presente.
A autora pede à psicanálise uma visão mais ampla do sentido do existir, assumindo que somos seres imersos num mundo ainda despreparado para pensar o saber e a vida em geral como participativos das novas formas de produção de conhecimento e de convivência, como parte do dia-a-dia dos humanos que atravessam ainda a franja da pós-modernidade. Nela, segundo a autora, apoiando-se em Nietzsche e em Freud, vem sendo realizado o luto de uma modernidade marcada pela "morte de Deus" e pela correlativa dissolução do eu, e que se expressou pelas várias temáticas niilistas do fim da história, da poesia, do pensamento. Entretanto o fim desse luto pós-moderno já se confronta com o contemporâneo, tempo cheio de possibilidades, mas também de indiferenciações que podem nos manter indefinidamente na repetição do mesmo.
O texto de Glaucia se atém sempre à teoria psicanalítica, mas a ultrapassa, na medida em que a autora a transcria, tomando como fonte imaginativa de suas reflexões o pensamento poético, sempre formador de imagens, metáforas, novos sentidos, ao ir especialmente ao encontro da poética de Hölderlin e de Sófocles, para descobrir, digamos, uma poética freudiana sob as vestes pesadas da psicanálise como ciência do inconsciente. Nessas poéticas ainda encontramos a anterioridade da relação dos homens com os seus deuses iluminadores e suas convivências, que forjaram ou deram à luz a espécie de pensamento que manteve a cultura grega no mais alto patamar das experiências vividas e formadoras da inteligência ocidental. Esta matriz poética da linguagem e do pensamento empregada por Glaucia Dunley traz a profundeza ou a ressonância do trágico no seu dizer psicanalítico, lugar literário dos mais inspiradores entre os dizeres da nossa História Ocidental, mais trágica do que a Tragédia.
O pensamento e a fonte
O pensamento emana das fontes! Mas que fontes são essas que atravessam os tempos e as palavras com as quais criamos o que aprendemos? É simples: aprender o que antes foi escrito, e fazê-lo ressoar no contemporâneo! Talvez, em uma vaidade intelectual ou apenas afetiva, nos pensemos melhores agora, cheios de possibilidades de futuro, mesmo num presente esfumaçado pelo consumo tecnológico em escalas inacreditáveis que nos dá a ilusão de alguma abundância de teres e haveres, de poder e de imortalidade. Lembro aqui que a Grécia de Sófocles era um país pobre, mas foi berço do pensamento e da arte.
Assim, se olharmos atentamente para a linha do tempo, talvez se possa ver algo que nos ilumine e nos faça pensar através dele, do mesmo tempo criador de outros que pensaram e fizeram com arte. Isto é o que vem dizer o livro de Glaucia Dunley, Superações do pós-moderno, em uma era de controvérsias ideológicas e de hiperconsumismo, na qual as fontes foram esquecidas ou até mesmo abandonadas em nome de uma tecnologia desenfreada, de um consumo fácil e imediato, do saber e das artes, inclusive, de um mundo aparentemente religioso no qual o divino é invocado como forma de inserção na respeitabilidade social, que é agora financeira. Portanto, o culto à pessoalidade, à irresponsabilidade social, à não participação tornou-se nossa impossível identidade com o outro, o ser humano que conosco compartilha a mesma origem, ainda que doente de seu autoabandono. É tardia a forma como lidamos socialmente com um dos maiores esclarecimentos sobre nossa psique: o pensamento emana das fontes, e as fontes são nossa psique, habitada por nossas pulsões, nossos daimons, tal como Freud intuiu e nomeou nossos deuses íntimos, criadores de pensamento, de loucura e de arte, e nosso imenso desejo de ainda com eles estar, tornando-os outra vez muito próximos de nós numa dilacerante convivência.
O pensamento criador leva a escolhas éticas
Faz-se aqui, com a psicanálise, a escolha por viver a vida que vale a pena ser vivida, num sentido ético, em que o reconhecimento do outro e da dívida em relação a ele e à linguagem poderão nos fazer sair da pura imanência e ir à procura de alguma transcendência não mais referida a valores divinizados, mas a essa eterna estranheza diante da qual o outro sempre nos coloca (Dunley, 2013, p. 11).
O livro é, na verdade, um forno de onde saem, mais que pães que alimentam estômagos, perguntas quentes dirigidas aos psicanalistas, indagando sobre a importância da psicanálise no mundo contemporâneo e sobre as formas que ela poderá ter de alargamento de sua ação. A autora aponta direções:
A psicanálise afirma-se aqui como práxis transformadora, ou mesmo despetrificadora de saberes e sensibilidades, do individualismo e da indiferença contemporâneas - legado pesado da modernidade -, como também dos efeitos subjetivos dos usos e abusos da hipertecnologia atual, entre os quais a oferta sem fim para o consumo, o isolamento decorrente dos sujeitos, seus sintomas de mal-estar, de aniquilamento físico e psíquico. Ela relança neste escrito a escolha possível a ser feita entre a busca do bem-viver em que o outro existe, mas é sempre desconhecido, incontrolável, e, portanto, fonte possível de sofrimento, e a do bem-estar com o outro-prótese, o outro-mercadoria, sobre quem imaginariamente detemos algum poder (Dunley, 2013, p. 120).
Glaucia trabalha o pensamento filosófico e o psicanalítico, tornando-os atuais para o diagnóstico do presente e sua transformação, ao nos trazer as ideias de próteses, justiça, arte, educação, participação social, na segunda parte do livro, na sua "Clínica da Cultura", quando ela sugere que a psicanálise pode e deve contribuir para revolver esta imensa massa de indiferenciação que nos define como seres de uma sociedade global sem frutos, senão os tecnológicos, ao contribuir para a criação de formas ou subjetividades mais complexas, leves e solidárias de existir com o outro, pelas quais o laço social poderá ser tranvalorado. Para começar, é preciso que os psicanalistas jamais percam de vista o legado crítico freudiano - como ela diz no cap. 1. "Deus - este objeto perdido - trauma e luto na modernidade":
Temos um instrumento poderoso, que é clínico, mas que é também um pensamento revolucionário na passagem do século XIX para o XX, efetuando um corte no saber do homem sobre si mesmo e sobre sua relação paradoxal com o outro. Pensamento que se mantém vivo, impregnando em proporções diferentes todo o campo do conhecimento. Este corte efetuado por Freud situou a psicanálise como pensamento crítico na charneira entre modernidade e uma contemporaneidade avant la lettre, ou seja, no início do século XX. Resta saber se ainda é desejo dos psicanalistas retomar este eixo originário do pensamento freudiano e com isso constituir um foco de resistência à indiferenciação reinante (Dunley, 2013, p. 20).
A autora de Superações do pós-moderno coloca-nos diante do impossível afirmado por Freud dentro dos parâmetros históricos em que compôs a sua opus, valorizando o retorno ao pensamento original da psicanálise como coisa realizável dentro da própria sociedade e, portanto, na relação de cada homem com o mundo onde se produz e surge sua diferença. De certa forma, ela exorta os psicanalistas, como fez Freud, a usarem seu pensamento criador para ir mais além, fazendo da psicanálise uma obra sempre em construção.
Seu trabalho [de Freud] consistiu também em promover ligações efetuadas, a partir de então, com novos objetos para o pensamento, como a ideia de um desamparo constitutivo, ou realizar transformações radicais em torno de antigos pontos de fixação do pensamento, como o real freudiano das pulsões, criando uma nova referência para os fundamentos sustentados outrora pela ideia de Deus ou por seus equivalentes. Com estes cortes efetuados na episteme ocidental, ele fez emergir, de forma surpreendente, uma nova subjetividade em um mundo sem Deus (Dunley, 2013, p. 41).
Conclusão
Os pensamentos que se avolumam na leitura de Superações do pós-moderno são, para o poeta, os mesmos talvez que se avolumaram na mente de Hölderlin ao compor seu verso de denúncia: "A noite de luto moderna não nos inebria". Quase enigmática expressão, mas que conhecemos bem de perto, porque, de fato, a modernidade nos aproximou muito do deus que abandonamos, ao lançar-nos no escuro deste luto pós-moderno que procuramos escamotear sob nossas próteses maravilhosas. Como demiurgos de ocasião, que elegem a ciência e a técnica como seus novos ideais de cultura, perdemos a sensibilidade para o comum, para o bem comum, se é que um dia existiu. Entretanto, com este homem tecnológico coexiste o homem trágico de outrora, diz a autora, escondido sob seus sintomas, seus aparatos, seus blefes. Esta é a hipótese corajosa da autora que confere positividade ao homem contemporâneo, capaz de anunciar a vinda de um novo homem, mais comunitário, mais responsável pelo homem no mundo e por seus desatinos. Mais alegre também!
Glaucia Dunley vem alertar que há outros caminhos para este entendimento tão complexo e tão caro ao homem de hoje. Ela própria, atirada sobre as favelas do Rio de Janeiro, particularmente a Maré, com seu Museu da Maré, clímax da práxis emancipatória incalculável realizada pela Ong Ceasm (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré) durante mais de 20 anos naquela região, viu nascer e crescer através de seu trabalho participativo o entendimento sobre o que de fato fazem seus participantes, informando-os na medida do seu querer saber sobre seu próprio desejo de transformação do território, assim como sobre em que se baseia este desejo, ou seja, situando-o na problemática do reconhecimento da dívida que se tem estruturalmente com o outro. Deste modo Glaucia expõe, com frutos, o reconhecimento da dívida que o próprio saber psicanalítico tem com o social, tirando-o da sua zona de conforto dos consultórios e das sociedades de psicanálise, para não falar de sua petrificação na Academia, desterritorializando-o para navegar ao sabor de outras marés, construindo enfim novas formas de navegar no escuro.
Assim, ela aponta não para um fim, mas para uma conversa viva com a linguagem como dom do homem, que o permite compartir sua trágica experiência do viver sem ser escravo da solidão da morte, nem assassino ou vítima de sua própria linguagem - para onde pode nos conduzir a nossa pulsão mais extrema. Restando afirmar, num mundo sem deuses, mas com nossos daimons, que somos todos em parte responsáveis pela linguagem e por sua hybris quando elas nos conduzem à perdição ou a alguma redenção, como nos dizem a arte, a poesia e a literatura, mas também o fazer transformador e o estar com o outro como destino sublimatório valorizável do excesso pulsional no mundo contemporâneo.
Entretanto, é preciso ter cuidado ao ler Superações do pós-moderno, pois pode parecer que a autora se debruça sobre questões díspares ou desconectadas de um contexto psicanalítico formal, como tem sido interpretada a ação mais propulsora de ideias desde seu surgimento no final do século XIX. Mas é preciso se ater ao fato de que quem pensa o agora também está sujeito aos efeitos desse tempo, que todos nós, por tradição ou por experiência direta, atravessamos, seja guiados pelo desejo de ser pós pós-modernos, cheios e enfastiados dos efeitos do que já não mais somos, e por defeito do nosso pensar estreito, sempre vinculados a alguma "episteme" (quando a psicanálise foi a quebra de epistemologias!), ou guiados pelo desejo de viver um outro tempo, contemporâneo, aberto ao desconhecido, ao communitas - como aquele que se expõe a fazer o dom compulsório, estrutural, reconhecendo a dívida em relação ao outro e à linguagem.
Como disse no início desta resenha, não é fácil, nem muito menos simples e direto o entendimento que Glaucia Dunley traz à mesa dessa matéria, a psicanálise, vista a partir daqui como aquilo que de fato é, desde os seus primórdios, um teatro trágico onde se encena a vida, em ato, e onde a psicanálise se entranha produzindo efeitos incalculáveis num tempo indeterminado, seja em palcos públicos ou privados. É preciso lembrar que a Tragédia pressupunha a interação de seu público, e que ela era palco dos questionamentos mais vitais para o homem do século V a.C, atualíssimos para nós. Como vê a autora, a poética trágica da antiguidade e a filosofia do trágico da modernidade, onde se situa o trágico de Hölderlin, e posteriormente o de Freud, ainda é a porta de entrada da psicanálise no mundo contemporâneo, e sobre a qual se deve insistir para que ela nos inebrie novamente das intensidades. Concluindo, lembrando um velho mestre, que não desdenhava nenhuma forma de conhecimento, como Freud também fez: "O conhecimento é uma tentativa de nos conhecermos. Porque nada há além de nós e do mundo que nos cerca. E se o que nos cerca é o mundo e nós mesmos, somos essa linguagem, que nos une, ou que deveria nos unir"1.
Superações do pós-moderno é uma obra essencialmente poética em sua linguagem mais extrema, séria e reveladora em sua abordagem da obra de Freud, ampla em sua conexão com pensadores da alma humana e sua senda sobre a Terra. Mas é essencialmente uma declaração de amor à luta do homem que precisa se erguer diante do sol, ainda que esse sol, esse sol antigo e imorredouro dos gregos, quase mais não nos ilumine além da pele. Como disse certa vez Sócrates a Críton, um de seus discípulos: "Críton, um galo a Esculápio, já estamos curados da vida!".
Já estamos? Ou precisaremos de mais cicuta? Ou, dito de outro modo, precisamos afirmar mais ainda esta "peste" que Freud estaria trazendo ao mundo?
Endereço para correspondência
João José de Melo Franco
E-mail: João.jose.de.melo.franco@gmail.com
* João José de Melo Franco é filósofo da linguagem, doutor em Semiótica, professor de literatura grega e latina (USP), poeta e editor.
1 Eugenio Coseriu, citado por João José de Melo Franco - in Conversas com o mestre Coseriu - obra em construção.