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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.47 no.2 Rio de Janeiro dez. 2015
ARTIGOS
Saber, verdade e gozo - da função da fala à escritura
Know, truth and enjoyment - the function of speech to writing
Leonardo José Barreira Danziato*
Universidade de Fortaleza - UNIFOR - Brasil
RESUMO
Articulando o saber, a verdade e o gozo o autor discute a problemática da significação e da função clínica da interpretação a partir das impossibilidades lógicas da estrutura da linguagem. Para tanto, revisita o percurso da obra de Lacan, desde suas formulações sobre a função e o campo da fala e da linguagem até o momento no qual, a partir da topologia dos quatro discursos, estabelece outra concepção da linguagem assim como outra função, para além da significação, ou seja, uma função de escrita e de demonstração. Utiliza-se de um cotejamento das topologias do "grafo do desejo" e dos quatro discursos, ambas construídas por Lacan, como uma forma de demonstrar que a ultrapassagem dessa lógica da significação implica como condição uma falta estrutural e, como consequência, uma escritura do corpo e uma grafia do gozo do corpo.
Palavras-chave: saber, verdade, gozo, escritura, significação.
ABSTRACT
Articulating knowledge, truth and enjoyment the author discusses the problem of signification and clinical role of interpretation, from the logical impossibilities of the structure of language. Therefore, revisits the course of Lacan's work, from his formulations on the function and field of speech and language, from the topology of the four discourses, provides another view of language as well as other function, beyond the signification, namely, a function of write function and demonstration. We use a mutual comparison of the topologies of the "graph of desire" and the four discourses, both built by Lacan, as a way to demonstrate that exceeding this meaning of logic implies a structural failure as a condition and as a consequence, a writing of the body and a graph enjoyment of the body.
Keywords: knowledge, truth, enjoyment, scripture, meaning.
Se pudéssemos renomear o seminário O avesso da psicanálise (Lacan, 1969-1970/ 1992), o título bem que poderia ser esse mesmo que estou propondo como título do meu trabalho: "O saber, a verdade e o gozo". Porque esse "tema-conexão" habita os meandros de todas as discussões que Lacan propõe nesse momento. Diria que é o ponto crucial e mais noduloso que está a desenvolver, até porque funciona como pano de fundo das suas proposições.
Articular o saber, a verdade e o gozo é um dos momentos de conclusão em sua obra, porque congrega uma série de movimentos proposicionais anteriores e produz uma abertura para os que vêm a seguir. Daí a importância de referência que esses seminários encarnam, especialmente De um Outro ao outro (Lacan, 1968-1969/2008 ) e O avesso da psicanálise (Lacan, 1969-1970/ 1992). A topologia dos discursos que funda nesses seminários está abalizada por essa correlação, já que, de acordo como se articulam o saber, a verdade e o real do gozo, temos um tipo de discurso.
Vou dizer algo sobre essa conexão situando-a em certos desdobramentos e passagens específicas da obra de Lacan, de maneira que possa esclarecer o deslocamento que sua obra faz desde a consideração da "função da fala" no campo da linguagem inserido na lógica da significação, até o esvaziamento semântico que produz quando propõe que a "essência da psicanálise é um discurso sem palavras" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 14).
Se inicialmente Lacan opôs a linguagem à fala, agora essa oposição se apresenta entre a linguagem e o discurso. Considero que o grande operador desse deslocamento foi o desenvolvimento do campo do gozo, que demonstrou a insuficiência do campo da significação para o trabalho na clínica, determinando uma convocação para se dizer algo sobre como operar com o Simbólico diante do Real. Entendo que daí chegamos ao "dizer" como uma escritura possível do Real e do gozo.
Para desenvolver o que me interessa, vou priorizar um ponto de articulação entre esses dois momentos de sua obra que o próprio Lacan indica, quando retoma seu "grafo do desejo" na aula de 27 de novembro de 1968, do seminário De um Outro ao outro (Lacan, 1968-1969/2008 ). Nesse percurso do grafo aos discursos, poderemos discutir um pouco sobre as causas e consequências desse deslocamento.
Da função da fala ao discurso sem palavras
Como se sabe, no início de sua obra, demarcado pelo texto "Função e campo da fala e da linguagem" (Lacan, 1998), Lacan empreendeu sua primeira abordagem do projeto freudiano, por ele denominado de "Retorno a Freud...". Nesse momento buscava recuperar os efeitos da "experiência integral" (Lacan, 1998, p. 240) de Freud, resgatando os conceitos de uma vulgarização perpetrada pelo processo de difusão e deformação dos movimentos pós-freudianos. Considerava como causa maior dessa alteração um afastamento dos fundamentos da fala e da linguagem, e buscou, então, formalizar uma prática que se sustentasse nessa oposição entre a função da fala e o campo da linguagem.
Com esse projeto, Lacan pôde desenvolver toda uma teoria da linguagem, estabelecendo os parâmetros dos movimentos vetoriais do significante nos processos de significação, subdividindo esses eixos entre enunciado e enunciação. Diria que esse período tem como ponto culminante a elaboração do "grafo do desejo", operada nos seminários As formações do inconsciente (Lacan, 1957-1958/ 1999) e O desejo e sua interpretação (Lacan, 1958-1959/s/d), assim como no escrito "A subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano" (Lacan, 1998a).
Trata-se de um momento no qual, apoiado na sua concepção de simbólico, ainda dentro do projeto freudiano, buscava retirar as consequências das relações de significação, que sempre foi uma questão a ser elucidada no campo da psicanálise, porque inevitavelmente atrelada ao problema da interpretação e do sentido.
Em escritos como "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" (Lacan, 1998c) realiza a subversão do algoritmo de Saussure, reduzindo-o à lógica do significante, como uma forma de esclarecer que não se trata de buscar um sentido, ou um significado oculto na estrutura, mas de acompanhar sua movimentação significante. Isso permite um primeiro esvaziamento semântico e ontológico da psicanálise, introduzindo explicações "materiais" - no sentido da materialidade do significante - para o que se transmite nessa relação entre o sujeito e o outro.
Em "Subversão do sujeito...", com o rebuscado "grafo do desejo" ele apresenta de forma gráfica a lógica desses movimentos e sua relação com o inconsciente, o saber e a demanda do Outro. Como disse, vou priorizar neste momento uma discussão do grafo, já que considero que se trata de um antecedente dos discursos, pois, mesmo que em seu início ainda esteja atrelado à logica da significação, Lacan nos apresenta de uma maneira admirável a correlação entre as movimentações significantes e o drama ontológico do sujeito na sua relação com o Outro. Não por acaso ele o retoma exatamente no seminário De um Outro ao outro (Lacan, 1968-1969/2008 ) para demonstrar a implicação do sujeito para além do "nível" da significação.
Agrada-me essa retomada do grafo porque ela permite ilustrar de maneira privilegiada essa passagem de sua obra, formalizando a diferença e uma passagem de uma primeira concepção do Outro como o tesouro dos significantes para a construção do significante da falta no Outro - S(%). No grafo, portanto, apresentam-se esses dois momentos. Lacan ( 1968-1969/2008, p. 52) declara diretamente que está retomando essa estrutura por dois motivos: para sublinhar que desde essa aproximação inicial da função do sujeito já distinguia o "círculo do discurso", e para novamente interrogar o grafo, a partir do que nesse momento está propondo, ou seja, a inconsistência do Outro (A). Ele assegura com muita clareza que já havia formulado, "desde a origem desse discurso, a distinção entre discurso e fala" (Lacan 1968-1969/2008, p. 54). Encontro aí a confirmação dessa minha leitura, de que o grafo já apresenta na forma dos seus patamares uma distinção que viria sustentar a topologia dos discursos, entre fala e discurso.
Observem o grafo. Mesmo que Lacan ainda não tenha proferido a ideia de que a linguagem seria um "aparelho de gozo" (Lacan, 1969-1970/ 1992) - o que vem fazer nos seminários 16 e 17 -, não podemos ver nessa "grelha significante" uma aparelhagem de grafia da pulsão? Lembro que na célula elementar do grafo, sua primeira versão (Figura 2), Lacan dispõe na sua origem (onde na figura 1 consta o ), um símbolo delta "▲" que representa uma intenção mítica pré-simbólica (Lacan, 1998a, p. 820), que esboça a pulsão. Estamos diante do momento mítico no qual o campo da linguagem, campo do Outro (A), é penetrado pelo gozo do corpo, essa substância pré-simbólica (Zizek, 1992, p. 119), causando uma série de perfurações, mas também uma apreensão significante. Então, o grafo é o desenho dos "trilhamentos" (Freud, 1950 [1895]/1977), significantes que a pulsão e o gozo sulcam no corpo. Quanto a isso, Lacan chega a afirmar que o significante encontra-se tatuado no corpo como uma heráldica, um "brasão do corpo" (Lacan, 1998a, p. 818).
Figura 1: Grafo completo
Figura 2: Célula elementar do grafo
Tudo isso vem demonstrar a grande descoberta da psicanálise desde "A interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/2012): que com a linguagem não apenas se comunica, mas com ela se goza. Não por acaso o sonho foi seu primeiro modelo: uma cena de onde se retira um desejo e um gozo. E que, mesmo com toda tentativa de interpretá-lo, ele nunca se reduzia a uma "relação entre significações heteróclitas" (Fierens, 2012, p. 49). Sempre um "umbigo" resistia à significação. Ou seja, desde sempre o campo da significação esteve atrelado as suas possibilidades e impossibilidades de sentido, mas fundamentalmente à sua incompletude e aos efeitos de gozo que daí decorrem. Em psicanálise, o campo da significação, portanto, sempre esteve atrelado ao campo do gozo na forma de uma heterogeneidade. O gozo está sempre a demonstrar a impossibilidade de um acordo significante ou mesmo semântico.
Por isso mesmo Lacan vai afirmar que Freud reintroduz a verdade no campo da ciência (Lacan, 1998a, p. 812), ou seja, essa verdade Real do gozo. O grafo, então, vem apresentar pela primeira vez essa relação fundamental do sujeito com o saber, a verdade e o gozo, na sua condição estrutural de submissão ao significante e ao Outro (A), e como essas relações fundamentais se movimentam não unicamente no campo da significação, mas submetidas a uma lógica que implica a demanda e o gozo do Outro, assim como a falta de um significante no campo do Outro (A).
Quando apresenta a distinção entre os dois patamares do grafo Lacan confirma tanto essa heterogeneidade entre o campo da significação e o campo do gozo como o processo de perfuração e penetração do gozo no campo da linguagem, e ainda, o desconhecimento do sujeito quanto a esses movimentos. Como podem ver, o grafo se compõe de dois eixos definidos pelos vetores s(A) →A e S (%) → <>D.
No primeiro andar estamos no suposto nível da significação, onde o progresso contingente da fala encontra seus pontos de ancoragem. Falamos numa direção, mas a significação só se dá a posteriori, nesse efeito de retroação que se conclui em s(A), lugar do sentido e "onde a significação se constitui como produto acabado" (Lacan, 1998a, p. 820). Esse é o lugar onde o sujeito acha que sabe, porque suas certezas se situam nesse ponto. O que ele não sabe é que tais certezas são o efeito de uma antecipação a posteriori, de uma suposição retroativa. Essa é uma explicação para a comum situação clínica quando o sujeito demanda uma certeza para suas escolhas: "Será que vai dar certo?". Só se saberá a posteriori. Entretanto, é condição para que dê certo que o sujeito já tenha uma certeza antecipada. É claro que sempre nos deparamos também com o fracasso antecipado. Aliás, demonstra-se também aqui o fato de que para que o sujeito se constitua é necessário que se o suponha desde o início. O Outro (A) precisa ter, desde o começo, uma imagem e uma certeza antecipada do sujeito. Por isso o sujeito () situa-se no início da cadeia.
Figura 3: Grafo 1
Este nível do grafo, onde vemos o atravessamento do eixo significante sobre o eixo retroativo da cadeia, representa, como disse, o primeiro momento de apreensão do sujeito no campo significante, mas também o processo funcional da significação, no qual o sujeito encontra-se alienado ao campo do A, campo de mestria e dominação, lugar por excelência onde se situa o que Lacan ( 1969-1970/ 1992) virá denominar de discurso do mestre, naquilo que possibilita uma significação. Trata-se da entrada do sujeito no campo da linguagem que precisa obter uma diferença, pois o sujeito só se constitui ao se subtrair dessa submissão, ao descompletá-la, fazendo uma função de falta (Lacan, 1998a, p. 821). Por sorte, essa primeira apreensão do corpo pela linguagem, por conta de inconsistência do Outro (A), produz um "traço unário", assim como uma identificação primeira que forma este "Ideal do Eu" - I(A) - que aparece no fim do eixo retroativo. Daqui deduzimos que o sujeito nesse ponto acha que sabe, mas desconhece a trama da sua submissão ao Outro (A), que, como veremos, não se resume a esse jogo de significações. Ora, não poderíamos fazer um exercício de antecipação e interrogar se isso que o sujeito desconhece e o ultrapassa não equivaleria a essa estrutura sem palavras, que Lacan viria a estabelecer como os quatro discursos?
Antes de ir adiante, gostaria de sinalizar um aspecto importante no grafo, para o que nos interessa. Observem que nesse patamar da significação o que resta do eixo diacrônico é a voz. Podemos ler assim: quando o eixo significante recorta o eixo da intenção mítica produzindo um efeito de significação e de sujeito, algo resta sem significação: a voz. A voz não passa de um "dejeto objetal" (Zizek, 1992, p. 103) que fica desconhecido na operação de significação. Um real que fica rejeitado pela significação. Daí o efeito de estranhamento que experimentamos diante da própria voz.
Por isso considero o grafo um dos momentos de conclusão na obra de Lacan porque, tal como os discursos, ele conclui um tempo, mas fazendo uma passagem para o que virá. A voz não é a fala. Por isso, na condição do que resta dessa operação de significação, anuncia a necessidade de ir além da função da fala.
O grafo ainda exibe outro patamar, que apresenta a parte real dessa trama e o confronto com o Outro (A) para além da significação simbólica. Se o eixo inferior implica o significante e a voz, o superior indica a apreensão do gozo no campo significante e seu resultado, a castração. Como não nos cabe aqui uma explicação exaustiva do grafo, vou apenas assinalar essa distinção que Lacan opera entre o campo da significação e o campo do desejo e do gozo.
Nesse momento isso quer dizer que o laço entre o sujeito e o Outro não se resume ao campo da significação. Pelo contrário, nesse nível estamos nos discursos de mestria, e numa lógica ingênua da comunicação. Aqui comprovamos o contraponto da máxima popular, constatando que "quem se comunica também se trumbica", porque desconhece exatamente o patamar onde a interrogação ao desejo do Outro e a demanda do Outro se apresentam. Ora, o que desconhecemos é que quando abrimos a boca toda essa trama se movimenta. É claro que quando estamos calados também, porque, na verdade, esse funcionamento - pelo menos no andar superior - não depende da fala, é uma estrutura que funciona "sem palavras". Mais ainda, desconhecemos o fato de que o que faz toda essa estrutura em grelha funcionar é uma falta, a falta de um significante do Outro (A), S(%).
O desdobramento do grafo implica que o sujeito, na condição de ser representado por um significante para outro significante, não se dirige ao Outro (A) apenas por sua função de código - tesouro dos significantes - na lógica comunicacional, mas lhe dirige e articula uma demanda (<>D). É essa demanda que desdobra o grafo em sua lógica da enunciação. O Sujeito lança-se nesta empreitada de saber sua verdade e se depara com o fato de que ele só é a partir do desejo do Outro. Imediatamente esse desejo se configura como um enigma: "o que este outro quer de mim?"; "Que queres?". O fato é que para essa pergunta, "Che vuoi?", o Outro (A) não tem resposta. Essa inconsistência do Outro será representada pelo matema S(%): falta um significante no Outro, que possa representar o sujeito e fornecer a ele um saber.
Figura 4: "Che vuoi?"
Observem que essa inconsistência do Outro (A) - S(%) - estabelece exatamente a impossibilidade de fazer uma junção entre o saber e a verdade, ou mesmo de executar uma totalização dos discursos. "Não há universo do discurso", dizia Lacan ( 1968-1969/2008, p. 58), já que nos deparamos com sua inconsistência. Estamos diante do que denomina de uma "falha do saber", pois, considerando a submissão do sujeito ao significante e ao Outro (A), é no lugar do Outro (A) que o sujeito pode encontrar suas garantias. Mas, de fato, o que encontra é uma falha. A resposta à demanda dirigida ao Outro (A) de um significante que fecharia a cadeia de significação sempre falha, e o que daí advém é da ordem do gozo.
O sujeito aí se depara com uma estrutura que o ultrapassa e o convoca a constituir sua verdade como uma ficção, já que do Outro não obtém nenhuma garantia. Ao Outro (A) falta um significante que dê ao sujeito uma resposta sobre seu "ser". Diz Lacan: "Sou no lugar de onde se vocifera que o universo é uma falha na pureza no não-ser" (Lacan, 1998a, p. 834). Estabelecido nessa pureza do não-ser, o sujeito fica sem saber a verdade toda. Saberá apenas daquilo que puder "ficcionar". Não encontrando esse significante vê-se convocado a produzir sua ficção sobre o desejo do Outro, o que faz na forma de um fantasma (<>a). Esse fantasma fundamental visa preencher o vazio do desejo do Outro, já que esse enigma resta insuportável para sujeito.
Eis o ponto de articulação entre o saber, a verdade e o gozo. Pois se consideramos que o campo significante e o campo do gozo são heterogêneos, esse é o ponto de interseção entre o gozo e o significante S(Ⱥ), no ponto da inconsistência do Outro (A). O campo significante subsiste perfurado, poroso, inconsistente, quando invadido pelo gozo, já que o gozo não pode ser simbolizado. Se não há significante no Outro que simbolize o gozo, o que resta desse cruzamento pela cadeia significante é a castração (ver o eixo superior). A castração, portanto, indica que um gozo está vedado a quem fala.
Neste ponto, estamos diante de uma questão clínica crucial que implica saber o que fazer na prática. Se falar já não é suficiente, porque na verdade nunca foi, e se o gozo só pode ser detectado pelos furos e faltas do campo simbólico, em suma, se o campo da significação não é suficiente para operar com as formações do inconsciente, então, como situar a interpretação diante dessa aporia do "não-sentido" (Fierens, 2012, p. 47)? Como disse, estamos diante de um desafio clínico fundamental com o qual Lacan vai trabalhar daqui por diante e vai determinar não só a produção dos quatro discursos, mas de toda uma construção que gira em torno de formalizar uma prática para escriturar o Real, que implicaria não a lógica do sentido, mas mesmo sua impossibilidade, indo em direção ao "não-sentido", pas de sens1. Se o trabalho da análise já não é mais o de fazer funcionar relações de significação, tampouco de estabelecer os sentidos da castração e do Édipo - direção que seguiram os pós-freudianos -, então como operar na clínica? Se não se pode dizer toda verdade, se não há um saber que complemente o buraco onde insinua a verdade, para que serve o saber? "Como saber sem saber?" (Lacan, 1969-1970/ 1992, p. 33).
Os discursos como escritura do Real
Foi exatamente por se deparar com essa questão de uma práxis com o Real que Lacan promoveu o segundo projeto em sua obra, não mais dedicado a um "retorno a Freud...", mas, pelo contrário, como um anúncio, se não de um abandono, mas de uma virada no projeto freudiano, como "uma retomada pelo avesso" (Lacan, 1969-1970/ 1992, p. 10). Tomar a psicanálise pelo avesso implicaria, então, em ultrapassar certa prática freudiana ancorada no campo da significação fálica estabelecido pela castração e o Édipo. Constituir os discursos como escrituras foi uma forma de ultrapassar a lógica freudiana edípica, pela qual o lugar do pai simbólico seria o operador do gozo. Transforma, então, esses operadores em discursos, suplantando assim a centralidade topológica do pai. Com isso denuncia uma aderência de Freud aos ideais religiosos do pai, transpondo o mito em nome de uma estrutura topológica dos discursos.
Lacan, então se lança numa empreitada para situar formulações freudianas não mais numa "mito-lógica", mas em estruturas lógicas e algébricas que esvaziassem o resto de religiosidade, soberania e transcendência que perpassava a psicanalise.
Descolonizar o Real habitado pelo pai simbólico exigia a formalização de outro tratamento a ser dado ao Real, mas desta feita considerando a impossibilidade da significação e do sentido, revelado no dizer "não há relação sexual" (Lacan, 2003). A redução lógica do Outro, operada no seminário De um Outro ao outro (Lacan, 1968-1969/2008 ) e a consequente produção dos quatro discursos foi sua resposta nesse período.
Trabalhando com a impossibilidade de capturar ou colonizar o Real, Lacan parte de um artifício lógico para propor o discurso como uma escritura dessa impossibilidade. Então, que fique claro: um discurso é uma escritura do impossível da relação entre o sujeito e o outro, mas que, paradoxalmente, estabelece um laço social entre esses parceiros díspares.
Lacan vai situar o discurso como uma estrutura que ultrapassa a palavra e as relações de significação, porque estas estão diretamente atreladas à falta de significante no Outro (S(%)). Os discursos giram em torno dessa impossibilidade de tudo saber, de tudo gozar, porque a própria estrutura de linguagem já não é considerada como uma estrutura de significação, mas em sua função de grafar o real e o gozo. As relações fundamentais da linguagem vão orbitar em torno desse problema da correlação entre o saber, a verdade e o gozo. A falta do significante no Outro - S(%) - estabelece a lógica dos discursos, porque eles são a tentativa de dizer algo apesar da impossibilidade da significação. Por isso mesmo estabelece as duas impossibilidades nos discursos: uma impossibilidade entre o agente do discurso e o outro, e uma impotência entre a produção e a verdade.
Se no grafo o S(%) é o ponto onde se encontram o gozo e o significante apresentando essa falha no saber, nos discursos é o lugar da verdade que encarna essa impossibilidade de produção de um significante que possa dizer toda a verdade. Observem que no discurso do mestre, a relação S1 → S2 localiza-se na parte superior, o que indica que estamos no campo das relações de significação, o que equivaleria à parte inferior do grafo (A → s(A)). Entretanto, no discurso do analista, S1 → S2 localiza-se na parte inferior, especificamente no lugar da produção e da verdade, entre as quais há um obstáculo. Quer dizer, o discurso do mestre se justifica na relação de significação entre S1 → S2, enquanto o discurso do analista corta com o sentido e com as relações de significação, demonstrando a incompatibilidade entre a produção e a verdade (S1 // S2). Isso demonstra que a psicanálise não opera através das relações de significação, mas na "ausência despejada de significações" (Fierens, 2012, p. 84), ou seja, considerando o sem-sentido do sexo e a impossibilidade da relação sexual. Tudo o que o mestre desconhece.
Se existe um obstáculo entre a produção e a verdade, então o que fazer na clínica? Não recairíamos num niilismo, ou numa impotência absoluta para lidar com o Real?
Essa é a impotência do discurso do analista: a interrupção das relações de significação. Enquanto os outros discursos se estabelecem em função de suas significações, o discurso do analista é exatamente aquele que leva os outros discursos ao ponto de suas impotências. Entretanto, não ficamos aí. Lacan leva a psicanálise para além das relações de significação em direção ao "não sentido" (Fierens, 2014); da impotência à impossibilidade. E utiliza-se da matemática e da lógica para fundar uma prática com a verdade.
A lógica fornece o modelo de como produzir uma escrita do impossível e permite a Lacan avançar na conceituação do impossível não mais como contrário do possível, mas como oposto do possível, ou seja, o Real (Darmon, 1994, p. 174). Diante da falta do significante no Outro (A), vai lançar mão de uma escrita matemática para dizer como se pode escrever uma inexistência. Utiliza-se do número imaginário i = √-1, ou seja, um número que não existe, para esclarecer a operatividade dessa falta no Outro (A). Trata-se de um número que não existe, mas que, paradoxalmente, tem uma função na demonstração matemática. Pois bem, S(%) também não existe, mas tem a função de ancorar uma verdade no real, porque confirma que a falha é estrutural.
É exatamente esse tratamento dado ao Real pela lógica que interessa a Lacan. Claro que ele nunca cairia na armadilha da proposta lógica de constituir uma "língua perfeita" (Darmon, 1994), sem equívocos, como uma tentativa de solucionar essa falha da linguagem. Porque seu intuito era demonstrar o fato paradoxal de que o sujeito se representa pela falta, por isso mesmo a lógica falha em seu projeto e os paradoxos abundam. A lógica busca excluir o sujeito da enunciação, mas, como diz Darmon (1994, p. 170), ele "permanece como o correlato antinômico da lógica, em exclusão interna". Portanto, o que interessa a Lacan é essa prática da letra, como uma tentativa de escrever o Real, para além de toda significação.
O saber e a verdade
Diria que um dos principais efeitos do deslocamento do campo da significação ao campo do não-sentido foi uma nova concepção do saber, não mais entendido como uma articulação significante, mas como um modo de encaminhamento da satisfação pulsional (Luterau, 2014, p. 37), portanto diretamente atrelado à repetição e entendido como um aparelho de grafia do gozo. Ou seja, o saber passa a ter que lidar com aquilo que resta da articulação significante: o objeto a. Daí por que Lacan o define como um "meio de gozo" (Lacan, 1969-1970/ 1992, p. 48). Passa a ter a função de estabelecer uma escritura do Real, de grafar o gozo e funcionar como verdade, mas não mais como uma enunciação, mas como uma demonstração. Em "Radiofonia" ele afirma: "É o saber que circunscreve o real, tanto possível como impossível" (Lacan, 2003, p. 406). E acrescenta que não se pode compreender o real, mas apenas demonstrar (Lacan, 2003, p. 406). O saber passa a ser o instrumento para bordejar o real e a escritura para demonstrá-lo.
Como podem observar, essa articulação entre o saber, a verdade e o gozo torna-se, então, decisiva, porque convoca uma posição na operatividade da clínica. Por isso Lacan define a estrutura da interpretação como a construção de um saber como verdade (Lacan, 1969-1970/ 1992, p. 34) e chega a afirmar que "o que se espera de um psicanalista é [...] que faça funcionar seu saber em termos de verdade" (Lacan, 1969-1970/ 1992, p. 50). Porque, apesar de não poder capturá-la, "não somos sem uma relação com a verdade" (Lacan, 1969-1970/ 1992, p. 55).
Para concluir, gostaria de indicar para vocês o caráter radicalmente ético e político dessa disjunção entre o saber e a verdade operada pelo gozo, assim como de suas consequências para a prática clínica. No seminário O avesso da psicanálise Lacan profere uma de suas incisivas frases que cinge de forma contundente ao mesmo tempo a clínica e a política. Diz ele: "Não esperem, portanto, do meu discurso nada mais subversivo do que não pretender a solução" (Lacan, 1969-1970/ 1992, p. 66). Espero que também escutem a sutileza escandalosa dessa proposição, muito especialmente nos dias atuais.
Como não esperar uma solução de uma prática que tem consequências? Enquanto todos os outros discursos buscam e até prometem uma solução, nada mais subversivo do que indicar a disjunção entre o saber e a verdade, operada pelo gozo. A clínica, portanto, deve avançar para além do campo das relações de significação de forma a fazer o saber funcionar como verdade não mais na forma de uma enunciação, mas como uma demonstração da impossibilidade, ou seja, como um savoir-y-faire (Lacan, 2003) da "não relação sexual". Trata-se, portanto, de uma direção ética e política que considere que não há saber que obture a falha onde se desconserta a verdade e, por isso, não se pode tomá-lo como uma totalidade, nem manipulá-lo como "vontade de dominação" (Lacan, 1969-1970/ 1992, p. 66).
Referências
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Artigo recebido em: 01/02/2015
Aprovado para publicação em: 24/03/2015
*Prof. Doutor Titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza UNIFOR). Coeditor da Revista Subjetividades do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Psicanalista, Analista-Membro da Invenção Freudiana - Transmissão da Psicanálise.
1Na língua francesa há uma homofonia para a tradução de pas de sens, já que pode significar tanto "não sentido", como "passo de sentido".