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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.50 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018
ARTIGOS
Psicanálise e religião: o deslocamento da problemática filosófica, de Freud a Lacan
Psychoanalysis and religion: the displacement of the philosophical problematic, from Freud to Lacan
Psicoanálisis y religión: el desplazamiento de la problemática filosófica, de Freud a Lacan
Carlos Roberto DrawinI*; Fuad Kyrillos NetoII**
IFaculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE - Brasil
IIUniversidade Federal de São João del-Rei - UFSJ - Brasil
RESUMO
O intuito deste manuscrito é indicar o deslocamento da problemática filosófica acerca da religião no interior do campo psicanalítico, tomando como referência alguns textos de Freud e de Lacan. O eixo norteador do argumento é a questão da interpretação tomada como algo privado e pessoal, em um mundo completamente naturalizado. Para tanto, se apresenta de forma breve e esquemática a concepção freudiana de religião, ressalvando que, nessa perspectiva, as elaborações teóricas sobre o psiquismo surgem imbricadas em suas teorias culturais. Posteriormente, elencam-se as objeções à posição freudiana em seus aspectos epistemológico e antropológico. Tais razões convidam a uma revisão da concepção freudiana de religião, que é discutida na visada lacaniana, ressaltando a riqueza das perspectivas de desenvolvimento de diálogo inauguradas pelo criador da psicanálise. Discute-se como o retorno a Freud, proposto por Lacan, impacta no cerne da problemática religiosa com o afastamento da psicanálise dos pressupostos epistemológicos e antropológicos freudianos de conceber a religião. Nesses termos, destaca-se na abordagem lacaniana o problema epistemológico, ou seja, a questão da ciência e a sua referência à verdade. O problema antropológico, por sua vez, nos remete à questão do sujeito em sua referência ao real. A título de conclusão, sublinha-se a impossibilidade de preencher o vazio reiterado pelo real. A psicanálise deixa para o sujeito, nas possibilidades de sua singularidade, o encargo de atribuir um sentido ao Nome que se esquiva a todo ato determinante de nominação.
Palavras-chave: Psicanálise, religião, filosofia.
ABSTRACT
The purpose of this manuscript is to indicate the displacement of the philosophical problematic about religion in the psychoanalytic field, taking as reference some texts of Freud and Lacan. The guiding axis of argument is the question of interpretation taken as private and personal in a completely naturalized world. So, the Freudian conception of religion is presented in a brief and schematic way, observing that, in this perspective, the theoretical elaborations on the psychism appear articulated of its cultural theories. Afterwards, the objections of Freudian position are listed the in its epistemological and anthropological aspects. Such reasons invite a revision of the Freudian conception of religion that is discussed in the Lacanian view, emphasizing the abundance of development perspectives of dialogue inaugurated by psychoanalysis creator. It discusses how the return to Freud, proposed by Lacan, impacts at the religious problematic core, with the distancing from the Freudian epistemological and anthropological presuppositions psychoanalysis of conceiving the religion. In these terms, the Lacanian approach highlights the epistemological problem, it means, the question of science and its reference to truth. The anthropological problem, in turn, refers us to the question of the subject in his/her reference to the real. As a conclusion, it underlines that it is impossibility to fill the gap reiterated by the real. Psychoanalysis leaves to the subject, in his/her singularity possibilities, the charge of assigning a meaning to the Name that evades every decisive act of nomination.
Keywords: Psychoanalysis, religión, philosophy.
RESUMEN
El propósito de este manuscrito es indicar el desplazamiento de la problemática filosófica acerca de la religión en el interior del campo psicoanalítico, teniendo como referencia algunos textos de Freud y de Lacan. El eje orientador del argumento es la cuestión de la interpretación entendido como algo privado y personal, en un mundo completamente naturalizado. Para tanto, se presenta de forma breve y esquemática la concepción freudiana de la religión, observando que, en esta perspectiva, las elaboraciones teóricas sobre el psiquismo surgen articuladas de sus teorías culturales. Posteriormente, se relacionan las objeciones a la posición freudiana en sus aspectos epistemológico y antropológico. Tales razones convidan a una revisión de la concepción freudiana de religión. Se discute como el retorno a Freud, propuesto por Lacan, impacta en el cerne de la problemática religiosa, con el aparcamiento del psicoanálisis, de los presupuestos epistemológicos y antropológicos freudianos de concebir la religión. En estos termos, se destaca el abordaje de Lacan el problema epistemológico, es decir, la cuestión de la ciencia y sus referencias a la verdad. El problema antropológico, por su vez, nos remete a la cuestión del sujeto en su referencia al real. A título de conclusión, se subraya la imposibilidad de rellenar el hueco reiterado por el real. El psicoanálisis deja para el sujeto, en las posibilidades de su singularidad, el encargo de atribuir un sentido al Nombre que se esquiva a todo acto determinante de nombramiento.
Palabras claves: Psicoanálisis, religión, filosofía.
Introdução: a religião como problema
A palavra religião constitui um campo semântico muito abrangente e seus significados se inserem em contextos históricos e sociais diversificados. Para o objetivo por nós proposto, é especialmente importante distinguir a vertente objetiva do fenômeno religioso, que é a religião em sentido institucional, com seus ritos, normas e dogmas, e a vertente subjetiva do fenômeno religioso, como uma experiência afetiva e pessoal em relação ao sagrado. Embora possam existir atravessamentos entre as duas vertentes, nos interessa mais de perto a dimensão da religiosidade. Esta, todavia, pode se limitar a um sentimento vago de matiz exclusivamente emocional e psicológico, ou pode se adensar numa experiência muito mais consistente que poderia ser designada como espiritualidade. Esta também pode estar ou não vinculada a religiões institucionalizadas ou a tradições religiosas bem delimitadas, mas sempre vai além dos elementos mais imediatos e afetivos e se traduz em escolhas axiológicas fundamentais e em compromissos existenciais, profissionais e sociais bem mais duradouros. O fato de vivermos em uma cultura predominantemente cristã nos faz perceber que a passagem de uma religiosidade vaga para uma espiritualidade mais consistente geralmente está associada a uma resposta acerca da Revelação Bíblica, nem sempre acompanhada de alguma revelação teológica (Libânio, 2001).
O refluxo da presença pública da religião como fonte de legitimação da vida social e política e a sua interdição epistemológica como modelo de explicação do mundo têm profundo impacto na experiência religiosa, pois esta passa a ser considerada como sobrevivência meramente emocional de crenças arcaicas e pueris racionalmente insustentáveis. Esse processo de transformação cultural, normalmente descrito como o surgimento de uma era secular exige uma ampla e complexa reconstrução histórica impossível de ser aqui resumida (Taylor, 2010). A questão de fundo a se ressaltar é a seguinte: a experiência religiosa num mundo inteiramente naturalizado pode ser considerada como algo da ordem da privacidade individual ou de alguma vivência psíquica, porém como devemos interpretá-la? Ou em termos filosóficos: quais seriam o lugar e o estatuto da mente num universo explicado nos termos das ciências da natureza e, por conseguinte, completamente desprovido de algo como mente? Ou deveríamos eliminar não somente a experiência religiosa, mas também todas outras experiências consideradas como mentais, como a fruição estética ou o enlevo amoroso, por considerá-las como incompatíveis com o atual desenvolvimento científico? Ou, pelo contrário, deveríamos recusar a cisão mente e mundo repensando o mundo como cultura e a mente como sujeito? (Mc Dowell, 2005; Drawin, & Moreira, 2016). Nesse caso uma teoria do sujeito implica necessariamente uma teoria da cultura e esta não pode ser concebida senão pela pressuposição de um secularismo irrefletido, sem levarmos em consideração a originária e multissecular experiência religiosa da humanidade. Freud bem o viu e, por isso, as suas elaborações teóricas sobre o psiquismo, mesmo não usando o termo sujeito, não podem ser desvinculadas de suas teorias culturais e de seu persistente interesse pela experiência religiosa. Não obstante, o interesse teórico desse tipo de problemática pode ser obscurecido tanto pela apologética religiosa e a reação de repulsa por ela provocada, quanto pela reiteração da posição crítica freudiana a testemunhar a hostilidade insanável entre psicanálise e religião. Os representantes das comunidades religiosas sempre rechaçaram o suposto pansexualismo freudiano, enquanto os psicanalistas quase sempre desconheceram soberanamente a longa tradição filosófica e teológica vinculada à religião (Morano, 2003; Araújo, 2014).
Freud e a religião
A visão corrente dos psicanalistas se apoiou muitas vezes na concepção do criador da psicanálise, segundo a qual existe um conflito insuperável entre razão e fé, conflito ainda mais evidente com o avanço das ciências da natureza apoiadas no rigor metodológico e no ideal da comprovação intersubjetiva. Alguns textos de Freud parecem bem claros a esse respeito, como na célebre passagem de "O futuro de uma ilusão", quando, após louvar a modéstia realista do "nosso Deus logos", ele define a religião como ilusão e afirma enfaticamente, com base nos numerosos resultados obtidos pela ciência: "não, nossa ciência não é uma ilusão" (Freud, 1927/1999, p. 380). Certamente a compreensão freudiana da religião não pode se liminar nem a essa obra e nem a essa passagem. Aqui visamos tão simplesmente recortar, sem generalizar, um elemento filosófico significativo: o de legitimar epistemologicamente o novo empreendimento teórico, mostrando o seu alinhamento com establishment científico da época. Por outro lado, a psicanálise, considerada como uma "nova disciplina científica" de caráter empírico (als empirische Wissenschaft), semelhante à Física e à Química, se singulariza por estudar a dinâmica e o desenvolvimento dos processos psíquicos inconscientes e não poderia deixar de lado a investigação da gênese das crenças religiosas (Freud, 1923/1999).
Desse modo a Psicanálise enquanto ciência do psiquismo deve abordar a experiência, a crença e a prática religiosas como aspectos não negligenciáveis de seu objeto de estudo. De fato, de 1907 a 1939, Freud publica uma série de textos sobre o assunto: desde "Atos obsessivos e práticas religiosas" (1907), passando por "Totem e tabu" (1913), "O futuro de uma ilusão" (1927), "Sobre uma visão de mundo" (1933), até "O homem Moisés e a religião monoteísta" (1939). Neles, como mostram os autores acima citados (Morano, 2003; Araújo, 2014), emergem dois modelos hermenêuticos na análise crítica da religião: o primeiro é o da neurose, cuja referência exemplar é a neurose obsessiva e o sentimento de culpa em relação ao pai, sentimento exorcizado por seus cerimoniais de expiação, e o segundo é o do sonho ou da ilusão acerca da proteção e do consolo proporcionados pelo pai onipotente. Em ambos os casos, a gênese da religião, assim como a sua natureza e a sua função, se enraízam no complexo paterno (Araújo, 2014).
Não é nosso objetivo retomar por extenso a interpretação freudiana da religião, trabalho já feito por outros e com a devida competência. Retomamos tão somente alguns pontos apenas para integrá-los no desenvolvimento do nosso argumento. Relembramos os seguintes:
1º. Em sua natureza, a religião é uma defesa inconsciente, coletivamente vivida, cuja compreensão pode ser feita por analogia com a neurose obsessiva. Os inúmeros escrúpulos e obsessões, bem como os rituais compulsivos dos neuróticos visando afastar a angústia e a culpa, reaparecem nas práticas religiosas realizadas num empenho sempre reiterado de exorcizar o desamparo humano. O segredo da analogia entre a religião privada do neurótico e a religião pública do crente não se encontra em seu conteúdo, mas em sua forma, ou seja, no modo como em ambos os casos os sujeitos se empenham na solução do conflito psíquico em torno da figura paterna atravessada pela sexualidade infantil e pelo desejo de morte (Morano, 1991).
2º. Em sua origem, e aqui a analogia pode ser reiterada como indica o subtítulo de "Totem e tabu", a religião deriva do assassinato do pai originário e violento (der gewalttätige Urvater) e a identificação dos irmãos assassinos com ele por meio do banquete totêmico: eventos míticos a compor o quadro da tragédia e da celebração fundadoras, a serem para sempre rememoradas como o início da organização social, das restrições morais e da religião (Freud, 1913/1999). Assim, como enfatiza a fenomenologia da religião, Deus e o sagrado suscitam fascínio e temor, conjunção afetiva a expressar a ambivalência estrutural suscitada pelo pai originário, pois, como nos lembra um comentador, "não é o medo de morrer que dá início à religião, é o medo de matar a quem se odeia e ama ao mesmo tempo, o pai" (Costa, 1988, p. 88).
3º. Em sua função, a religião protege e consola o ser humano continuamente acossado pela morte, pela doença, pela fragilidade do corpo, pela hostilidade dos outros e pelo peso da civilização. Porém, assim como a proteção e o consolo do pai são ilusórios, pois não resolvem, mas apenas mitigam e encobrem o desamparo da criança, também a religião simplesmente engana e oculta os males do mundo. A visão religiosa do mundo, qualificada por Freud como "visão de mundo totalmente não científica" (ganz unwissenschaftliche Weltanschauung), pretende ser exaustiva e completa, enquanto a visão científica do mundo (wissenschaftliche Weltanschauung), à qual a psicanálise adere e da qual faz parte, se caracteriza por ser sempre passível de revisão e estruturalmente incompleta. A distinção entre ambas não se limita à questão da utilidade embora a religião apenas compense nossa impotência recorrendo ilusoriamente à onipotência divina, enquanto a tecnociência avança de modo lento e seguro na dominação da natureza mas também diz respeito à questão da verdade. Afinal de contas, a realização (Erfüllung) de nossos desejos só é possível se eles puderem convergir com a realidade, e somente a ciência, independentemente de sua aplicação, pode apreender a realidade que "subsiste fora e independente de nós", e a verdade consiste justamente nessa concordância com a realidade. Nesse sentido, como afirma Freud de modo um tanto taxativo, "nós acreditamos que o conteúdo de verdade da religião em geral pode ser desprezado" (Freud, 1932/1999, p. 181).
A retomada desses três pontos acerca da natureza, da origem e da função da religião não visa esgotar a abordagem freudiana e muito menos simplificá-la para mais comodamente refutá-la. Assim, no pós-escrito de 1935 à sua exposição autobiográfica de 1925, Freud quis assinalar o entrelaçamento entre o seu destino de vida e a história da psicanálise. Ao fazê-lo ele afirmou "ter julgado a religião de modo essencialmente negativo" e reconhecendo: "mais tarde encontrei a fórmula que a ela concedia melhor justiça: o seu poder repousa certamente em seu conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt), porém esta verdade não é material, mas sim histórica" (Freud, 1935/1999, p. 33). Tal afirmação, como observa o editor inglês, remete às últimas seções da terceira parte de "Moisés e a religião monoteísta". Nelas "o conteúdo de verdade da religião" (der Wahrheitsgehalt der Religion) é reconhecido, todavia, ao contrário da pretensão dos crentes religiosos, não se trata de verdade transcendente ou, nas palavras de Freud, "de um fragmento da verdade eterna", mas antes, diz ele, "nós também cremos que a solução dos crentes contém a verdade, mas não a verdade material e sim a verdade histórica" (Freud, 1939/1999, p. 238). A contraposição entre verdade material (materielle Wahrheit) e verdade histórica (historische Wahrheit) é feita no contexto do exame crítico do argumento piedoso (das fromme Argument), claramente aproximado por Freud à inclinação de nosso intelecto às ilusões de desejo (Wunschillusionen). Estaríamos condenados a tais ilusões? Certamente não, pois se o fôssemos não seria possível distinguir entre os dois tipos de verdade, a material e a histórica. Não há como reconstruir a exposição freudiana, mas nela podemos perceber, de um lado, a contribuição específica da psicanálise, ao investigar o lugar da religião na constituição subjetiva e, de outro, certas pressuposições filosóficas típicas de sua formação. Como veremos, também Feuerbach em sua obra mais conhecida A essência do cristianismo, de inegável influência sobre Freud, não rejeitou simplesmente a religião, mas afirmou a sua essência verdadeira, ou seja, a sua verdade antropológica (Mezan, 1986).
Objeções à concepção freudiana
Não é de surpreender, portanto, a enorme influência exercida pela concepção freudiana acerca da religião e a desconfiança generalizada por ela suscitada no campo psicanalítico. Todavia, a sua aceitação sem maiores cuidados deve ser questionada, e há muitas e diferentes razões para submetê-la a um exame mais detido, de modo a abrir outras perspectivas hermenêuticas. Podemos apontar rapidamente duas dessas razões, ainda que este não seja o lugar para explorá-las de modo mais detalhado e aprofundado.
A primeira razão possui um caráter epistemológico. Não se deve estabelecer uma relação imediata entre a concepção freudiana da religião e a densa rede conceitual da metapsicologia. Freud não era e jamais pretendeu ser um filósofo. Não obstante, as suas convicções mais genéricas e básicas foram nitidamente marcadas por doutrinas filosóficas específicas e condicionadas pelo clima intelectual de sua época. Não só pelas correntes de pensamento que se entrecruzavam no efervescente mundo centro-europeu, como também pelas ideias então prevalecentes no específico meio científico vienense. A medicina alemã professava desde meados do século XIX crenças materialistas bastante toscas, e os seus arautos não hesitavam em adotar o mais grosseiro reducionismo. Essa confrontação simplista entre ciência e filosofia tornou-se um pouco mais sofisticada, seja com a adoção de uma posição agnóstica em relação aos problemas metafísicos fundamentais, de modo a liberar a ciência para o enfrentamento de problemas bem circunscritos e passíveis de resolução empírica, como fez a Escola Fisicalista de Berlim, seja com a adoção de uma espécie de fusão entre ciência e metafísica, como foi o caso do monismo naturalista de Ernst Haeckel (Assoun, 1983). De qualquer forma, Freud rejeitou a metafísica, fortemente identificada com o idealismo alemão, e era hostil à mistura de filosofia e ciência. Porém, apesar de sua ambivalência para com a filosofia, ele sempre ambicionou ser um pensador (Denker) e, enquanto tal, as suas ideias foram profundamente influenciadas por todas essas correntes da filosofia alemã e, sobretudo, pela contraposição de extração positivista entre ciência e filosofia (Assoun, 1978; Rocha, 2004).
Ora, no decorrer do século XX, a investigação epistemológica enfraqueceu muito a concepção empirista da ciência, não só mostrando como a teoria não decorre indutivamente dos dados observacionais, e sim os precede, mas a tese da independência dos fatos empíricos em relação à interpretação teórica foi problematizada, indicando a subdeterminação estrutural da teoria pelos dados observacionais. Ou seja, as evidências empíricas não parecem ser suficientes como critérios de discernimento entre duas teorias incompatíveis (Papineau, 2002). Não se trata apenas das críticas, como Karl Popper as fez desde os anos trinta do século passado, ao método indutivo, às formas mais difundidas de positivismo ou à verificação como critério de significado de um enunciado (Popper, 1975). Mesmo a tentativa de demarcação entre ciência e não ciência com base no critério de falsificação foi sendo largamente questionada, propiciando uma nova imagem da ciência e a consciência da íntima dependência histórica e cultural de todo conhecimento, inclusive do conhecimento científico, dificultando em muito a proposição de algo como uma visão científica do mundo (Brown, 1988; Feyerabend, 2005). A questão é intrincada e a bibliografia infindável, mas foi aqui trazida apenas para indicar como se tornou problemática a crença freudiana no progresso da ciência. Esse não é, certamente, um argumento a favor da religião, todavia mostra a ciência como uma atividade cultural inserida num sistema de crenças e com isso torna menos nítida a fronteira entre ciência e não ciência.
No caso da Psicanálise, a sua pretensão de cientificidade e, sobretudo, o empenho freudiano em incluí-la como uma das Ciências da Natureza têm sido duramente questionados. Um filósofo da ciência de tão larga influência como Karl Popper rejeita a cientificidade da Psicanálise simplesmente porque seus enunciados não são passíveis de refutação e o seu estatuto seria comparável ao da astrologia (Popper, 1975, 1982). Aqui não nos interessa discutir a pertinência ou não das considerações de Popper, insustentáveis em nossa opinião, mas apenas assinalar as imensas dificuldades em assimilar a Psicanálise aos cânones hegemônicos utilizados na definição da normalidade científica. Talvez, no entanto, a fecundidade hermenêutica e a força crítica da Psicanálise residam justamente em sua "impossibilidade" epistemológica, em seu "fracasso" como ciência (Dor, 1993; Drawin, 1998). Seja como for, o antagonismo entre o avanço triunfante da ciência na explicação e domínio da realidade e a ingenuidade infantil da crença religiosa não parece mais se sustentar como antes.
A segunda razão possui um caráter antropológico. Em meados do século XIX, após a morte de Hegel em 1831, uma considerável parcela de seus antigos discípulos se voltou para o humanismo ateu. Dentre eles o mais célebre foi Ludwig Feuerbach, ao postular a antropologia como sendo o segredo da teologia e ao inverter a relação entre Deus e o homem: Deus não é o criador do homem, mas este é o criador de Deus, cuja realidade é apenas a projeção dos desejos humanos, de suas aspirações e tendências naturais. Ao assumir o lugar de Deus, o homem se liberta do jugo religioso, para afirmar a sua soberania e fazer da história o processo de realização de sua própria essência (Schulz, 1957, p. 93-96). Podemos ver nessas teses as bases do chamado humanismo ateu, cujo cerne encontrava-se na aposta de um futuro promissor para a humanidade, cuja efetivação dependia, em grande parte, da dominação da natureza e da construção de uma sociedade livre da hipoteca divina. Ciência e humanismo deveriam convergir para o mesmo ponto histórico, o da emancipação da humanidade. Essa convicção foi amplamente difundida no século XIX no contexto da luta pela modernização da sociedade e da cultura europeias, apesar da oposição de grandes pensadores solitários como Kierkegaard e Schopenhauer, somente mais tarde reconhecidos em sua envergadura (Löwith, 2014). Essa convicção está claramente presente em Freud, sobretudo no primeiro desenvolvimento de sua obra. Assim, no último capítulo de "Psicopatologia da vida cotidiana", ao defender o determinismo psíquico, ele endossa a ideia feuerbachiana da religião como projeção imaginária, ao afirmar a "concepção mitológica do mundo" (mythologische Weltauffassung), presente ainda nas mais modernas religiões, como "psicologia projetada no mundo exterior" (in die AussenweltprojiziertePsychologie). Por conseguinte, as crenças religiosas (Deus, imortalidade, etc) e metafísicas (subsistência da realidade suprassensível) poderiam ser convertidas, por meio da ciência, em "psicologia do inconsciente", em metapsicologia. A proximidade de Freud (1901/1999) com as formulações de Feuerbach (1841/1960) é impressionante, pois ambos partilham da mesma tese fundamental segundo a qual o segredo da teologia é a antropologia, e sua decifração consiste na reconversão do além da essência divina num aquém atualizado, determinado, realizado e, portanto, "o homem é o início, o meio e o fim da religião" (Freud, 1901/1999, p. 222), como quando o filósofo alemão (Feuerbach 1842/1959, p. 222-223) define a religião como "um sonho no qual as nossas próprias representações surgem como seres fora de nós".
Acontece que o redirecionamento da ilusão projetiva religiosa em realidade exige como condição de possibilidade um terceiro termo capaz de fornecer o critério para a sua realização. Para Feuerbach, esse terceiro termo seria a natureza tal como concebida pelas ciências da natureza, e para Freud seria a metapsicologia ou a teoria psicanalítica enquanto ciência do inconsciente, também incluída no domínio daquelas mesmas ciências. A realidade seria entendida basicamente como natureza, e o acesso à natureza seria monopolizado pela ciência. Contudo, como foi acima afirmado, o estatuto científico da Psicanálise é muito problemático e, por conseguinte, a tese da projeção dos sonhos e fantasias na realidade ou num mundo exterior fora de nós fica muito fragilizada (Drawin, 2015).
Além disso, o próprio vínculo entre ciência e humanismo tornou-se objeto de intensa contestação, com o esmaecimento das expectativas acerca de progresso da civilização da razão. O século XX desde o seu alvorecer mergulhou num ciclo de inaudita violência, e o esperado sol da libertação humana foi encoberto pelas trevas da desesperança, pelo fumo dos campos de batalha. À luz dos acontecimentos do século, a balança pareceu inclinar-se decisivamente na direção do pessimismo cultural e dar certa razão ao instigante título do ensaio de Oskar Pfister: a perspectiva de um futuro sem ilusão iria se revelando aos poucos como ilusão de um futuro, aquele confiantemente aguardado como de uma humanidade desnecessitada de sonhos vãos após ter alcançado a sua viável realização (Pfister, 1928/2003).
Para efeito da nossa exposição focalizamos, sobretudo, a influência de Feuerbach e do cientificismo alemão no modo como Freud interpretava a religião. Essas influências podem ser facilmente constatadas quando Freud assume explicitamente suas opiniões e crenças. Há na obra de Freud, porém, outra presença filosófica não menos marcante: a de Schopenhauer. O filósofo alemão somente saiu do anonimato e adquiriu notoriedade a partir dos anos cinquenta do século XIX. A partir daí a sua difusão foi rápida e especialmente penetrante na atmosfera cultural vienense (Schorske, 1988). Schopenhauer procurou mostrar a compatibilidade de sua filosofia com os avanços da ciência e, sobretudo, com as investigações anatômicas e fisiológicas das ainda incipientes neurociências. Freud mesmo, apesar de certa relutância, reconhece a ampla coincidência de suas ideias com as de Schopenhauer, como, por exemplo, no caso do mecanismo do recalque e na importância atribuída à sexualidade. Essas e outras aproximações impressionantes podem ser rastreadas com alguma facilidade (Freud, 1925/1999; Moreira, 1998). Todavia, alguns obstáculos se interpõem na aceitação de Schopenhauer pelos meios científicos da época, como a sua severa rejeição do materialismo, a sua teoria idealista do conhecimento e a sua posição explicitamente metafísica. Para ele a realidade em si mesma se identificava com a vontade, ou seja, com um querer viver cego e inteiramente sem outra finalidade além de sua perpétua afirmação. O teísmo bíblico com sua doutrina de um mundo bom, porque criado por Deus, devia ser rejeitado como a fonte por excelência do otimismo ocidental. Nem por isso a sociedade secularizada e pretensamente livre dos dogmas religiosos escapava de sua persistente presença. Para o filósofo alemão, ao falarmos em progresso científico e racional como quer o humanismo ilustrado, ao apostarmos na emancipação da humanidade, não caminhamos para a dissipação das ilusões, apenas as aprofundamos e com isso suscitamos novos motivos de sofrimento. Schopenhauer, mesmo sem citá-lo diretamente, conhecia o pensamento de Feuerbach, considerado como herdeiro do otimismo hegeliano, e o repudiava vigorosamente (Schopenhauer, 1844/1990). Se for verdade, escreveu o filósofo, que a religião ilude o povo e o torna mais dócil para ser subjugado pelo Estado, e nisso ele está próximo dos filósofos ilustrados, mais perniciosa ainda é a crença ilusória no advento de um mundo novo pacificado e reconciliado consigo mesmo.
O pessimismo antropológico freudiano converge com essa tese da metafísica schopenhauriana, matizando a sua crença cientificista e o aproximando do iluminismo sombrio típico da modernidade vienense (Roudinesco, 2016; Le Rider, 1993). Ao propor a sua hipótese da pulsão de morte, ele afirmou ser impossível dissimular essa convergência, pois com ela a sua teoria "inesperadamente entrava no porto da filosofia de Schopenhauer". (Freud, 1920/1999, p. 53) Tal reconhecimento, feito no momento crucial da postulação da pulsão de morte, alimentou muita controvérsia entre os comentadores (Zentner, 1995; Raikovic, 1996). Para efeito de nossa argumentação, queremos tão simplesmente assinalar outro caminho de entendimento da interpretação freudiana da religião. Uma vertente mais distante das proposições do freudismo ilustrado e talvez mais relevantes na contribuição da psicanálise para a construção de uma teoria crítica da sociedade numa época de triunfo da ciência e difusão da mentalidade secular.
Lacan: elementos de leitura filosófica
Essas e muitas outras razões convidam a repensar a concepção freudiana da religião, no interior do campo psicanalítico. Mesmo porque, como atesta a pluralidade de correntes do campo psicanalítico, há inegável autonomia entre a teoria psicanalítica construída por Freud e suas convicções filosóficas genéricas. A fecundidade da metapsicologia, não só em sua relevância clínica, mas também em seu potencial de crítica cultural, não pressupõe a aceitação de todas as opiniões e crenças do fundador da psicanálise. A riqueza da obra freudiana consiste justamente na diversidade de perspectivas de desenvolvimento por ela inauguradas. Com esse intuito vamos acompanhar, à luz das considerações feitas anteriormente, algumas indicações filosóficas contidas em alguns escritos de Jacques Lacan de diferentes momentos de sua trajetória intelectual. Cabem aqui duas advertências: não se trata de mapear as divergências entre Freud e Lacan acerca da religião, de modo a alimentar uma perspectiva apologética e nem de acompanhar o desenrolar sumamente difícil e tortuoso da obra lacaniana. Sobre essa questão os dois autores convergem em muitos pontos, no entanto, entre ambos, há certo deslocamento filosófico capaz de propiciar leituras diferenciadas do fenômeno religioso com diferentes incidências na elaboração de uma teoria crítica da cultura contemporânea. Podemos, como exemplo, citar os trabalhos de dois estudiosos da psicanálise lacaniana: o italiano Massimo Recalcati, ainda bem pouco conhecido entre nós (Recalcati, 2011, 2013) e o muito conhecido filósofo esloveno Slavoj Zizek (Zizek, 2013, 2014, 2015).
No contexto das querelas institucionais dos anos cinquenta do século passado, o nome de Lacan foi reiteradamente associado à palavra de ordem do retorno a Freud. Ora, um retorno não poderia ser a mera retomada da literalidade de um texto, pois, nesse caso, como é óbvio, não haveria qualquer novidade ou reviravolta, mas tão somente a repetição passiva de um texto suscetível de ser objeto das mesmas e equívocas interpretações. A intenção lacaniana encontrou uma formulação lapidar em sua conferência de 1955 na Clínica Neuropsiquiátrica de Viena: "O sentido de um retorno a Freud é um retorno ao sentido de Freud" (Lacan, 1956/1966, p. 405). Esse jogo de palavras é logo em seguida esclarecido: busca-se um sentido dirigido a todos porque se trata do questionamento da verdade que está inscrita em nós, em nossa carne. (Lacan 1956/1966, p. 405). Essa intenção de universalidade e a referência frontal à verdade instauram, no direcionamento da psicanálise, não só o conflito com o sistema institucional dominante, mas também com toda tentativa de aprisionamento da prática analítica num sistema doutrinário fechado. A acidentada trajetória institucional do pensamento lacaniano as rupturas e excomunhões, a fundação da École Freudienne em 1964 e sua dissolução em 1980 testemunha uma prática insubmissa a toda pretensão de priorizar o acabamento lógico do saber em detrimento do emergir sempre novo e inesperado da verdade no cerne da experiência.
A advertência acerca da "verdade inscrita em nossa carne" (la découverte du pouvoir de la vérité en nous et jusqu'en notre chair) afirma a primazia da prática, porém a reiteração da palavra verdade nos previne contra o gosto pelo impressionismo, pelo inefável, pela inclinação misológica. Por que a prática não se confundia com o mero subjetivismo de uma interpretação arbitrária? Pouco tempo antes da conferência de Viena em novembro de 1955, Lacan havia encontrado na Páscoa do mesmo ano com Heidegger e lhe havia pedido para traduzir ao francês um dos seus artigos, intitulado Logos, a ser publicado no primeiro número da revista La Psychanalyse dedicada à linguagem (Roudinesco, 1993). Ora, o texto de Heidegger (1951/1954, p. 213) é um comentário do fragmento 50 de Heráclito, assim traduzido: "Se não me haveis escutado a mim mas o sentido, é sábio dizer no mesmo sentido: um é tudo". Em sua interpretação do fragmento, o pensador alemão explora o campo semântico do termo logos para mostrar como a linguagem não se limita à fala de alguma pessoa, mas pode trazer um sentido emergindo, se apresentando, se disponibilizando num dizer e numa escuta que o recolhe. O sentido não advém no dizer banalizado e vazio da vida quotidiana, ele acontece como "mistério inconcebível" (unausdenkliche Geheimnis), sem pretender com tal expressão aludir a algo "misterioso" ou "esotérico" e sim o "des-encobrimento do já presente" (Unverborgenheit des Anwesenden) no "falar da linguagem" (das Sprechen der Sprache) (Heidegger, 1951/1954). Ao contrário da fala própria da comunicação quotidiana, a essência da poesia consiste em não se impor à linguagem, mas em recolher a verdade dela proveniente, recolha somente possível pelo exercício atento e paciente da escuta.
Embora o texto heideggeriano não seja fácil de ser acompanhado, não se pode negligenciar a proximidade de suas formulações com aquelas da conferência na qual Lacan (1956/1966) propõe o retorno ao sentido de Freud. A prática analítica rompe com a fala comunicativa e utilitária do quotidiano para abrir outro espaço de experiência da linguagem e acolher uma verdade já presente, inscrita em nossa carne, embora ainda e sempre encoberta. O inconsciente não é mudo, manifesta-se na linguagem, embora não como propriedade de quem fala ou de quem escuta. Essa experiência radical da prática analítica não antagoniza a razão, não cultiva a misologia; ao contrário, exige o permanente empenho da criação conceitual. Por que há na linguagem um "mistério inconcebível"? Porque a linguagem atravessa a experiência humana des-encobrindo algum aspecto que escapa ao cerco imposto por uma determinada grade conceptual prévia e, por isso mesmo, exigindo novas criações conceituais. O sentido do retorno a Freud é o des-encobrimento do inconsciente como movimento incessante do sentido e essa "des-coberta" freudiana, diz Lacan (1956/1966) em sua conferência, "põe em questão a verdade" (met en question la verité). Pois bem, conforme expõe Heidegger (1930/1976), alètheia é a nominação grega para verdade e o seu significado literal é "suspensão do esquecimento" (lèthe), do "ausente" como algo presente e velado, encoberto pelos véus da fala corriqueira. Corretamente entendida, "a essência da verdade é a liberdade", mas o que é a liberdade? Não o arbítrio dos indivíduos e sim "o deixar-ser do ente" (das Sein-lassen des Seienden), não o mero "deixar de lado" e sim o consentir o próprio ser que se é (Heidegger, 1930/1976, p. 188).
Todas essas aproximações e associações nos ajudam a compreender como no início do seu ensino original Lacan, com sua proposição do retorno a Freud, deu um novo encaminhamento para a teoria e a prática psicanalíticas. Essas considerações já nos colocam no cerne do problema da religião, pois nos ajudam a entender o afastamento dos pressupostos epistemológicos e antropológicos presentes no modo freudiano de conceber a religião. Do mesmo modo como ocorreu no nascimento da psicanálise freudiana, marcada pelo entrecruzamento de diversas e heterogêneas correntes de pensamento presentes nas culturas alemã e austríaca, também a subversiva releitura lacaniana assimilou extensiva e intensivamente as discussões científicas e filosóficas de seu tempo. O tempo de formação e elaboração da obra lacaniana, por um lado, foi o do refluxo do racionalismo neokantiano, até então dominante nas universidades francesas e representado por Léon Brunschvicg com a sua visão otimista da história, e o eclipse do espiritualismo bergsoniano, cujo enorme êxito se iniciou com a publicação em 1907 de L'Évolution créatrice; por outro, o da ascensão da primeira geração filosófica do século XX, a chamada geração dos Três H, aquela marcada pelo impacto nas obras de Hegel, Husserl e Heidegger, obras de difícil acesso na França, mas cuja força pujante encontrou em Alexandre Kojève o seu mais influente intérprete. A partir dos anos cinquenta do século passado, uma nova tríade veio a substituir os três H, a dos três mestres da suspeita, como ficaram conhecidos Marx, Nietzsche e Freud a partir da grande vaga estruturalista. No domínio das ciências sociais deve-se mencionar o positivismo de Durkheim, influente com sua ideia da contração familiar nos primeiros escritos de Lacan sobre o declínio da imago paterna e, posteriormente, na mesma época da proposição do retorno a Freud, o estruturalismo de Lévi-Strauss, tão presente na releitura do imaginário à luz da função simbólica (Descombes, 1979; Worms, 2009).
A rapidez dessas alusões atesta a impossibilidade de mapear tantas e tão intrincadas influências na elaboração da obra lacaniana, porém assinala um nítido deslocamento filosófico em relação à estrutura conceptual subjacente à criação freudiana da psicanálise. Tais mudanças trazem consigo novas perspectivas críticas de interpretação da cultura em suas diversas dimensões a religião, a arte, a literatura, a ciência e, em decorrência, novos elementos para a elaboração de uma teoria do sujeito. Aqui vamos nos ater apenas a duas considerações postas em contraposição às duas razões acima evocadas, para a avaliação crítica da concepção freudiana da religião. A primeira remete ao problema epistemológico, ou seja, à questão da ciência e sua referência à verdade; a segunda remete ao problema antropológico, ou seja, à questão do sujeito em sua referência ao real.
Lacan: o saber e a verdade
Fizemos acima duas observações filosóficas acerca da concepção freudiana da religião. Agora vamos fazer um brevíssimo exame acerca do problema epistemológico, ou seja, aquele do distanciamento do pensamento lacaniano em relação à concepção freudiana de ciência e, em geral, em relação a toda tradição positivista. Para isso nos reportamos a alguns textos cronologicamente bem próximos.
A aula de abertura do seminário de 1965-1966 intitulado L'objet de la psychanalyse e publicado nos Cahiers pour l'Analyse se inicia interrogando o estatuto do sujeito na práxis analítica de modo a reafirmar a cisão (Spaltung), a fenda (refente) como sua condição estrutural. Esta condição não só engolfa o sujeito em sua experiência quotidiana, mas também é pressuposta na práxis orientada pelo inconsciente. No entanto, seja o pressuposto, seja a empiria clínica exigem alguma elucidação epistemológica se a psicanálise, porventura, pretende ser reconhecida como uma ciência em sentido moderno e se pretende, ao mesmo tempo, marcar a sua singularidade no interior do campo científico. A compreensão desse texto árduo exige alguns esclarecimentos filosóficos: a referência a Descartes como aquele que inaugura o pensamento moderno após a revolução científica e o caráter heideggeriano da interpretação de Descartes. Lacan assume uma ideia já desenvolvida pelos historiadores da ciência, sobretudo por Alexandre Koyré, estudioso do surgimento da ciência moderna e, por sua vez, também marcado por Heidegger. No texto lacaniano, fato raro, Koyré é explicitamente nomeado como seu guia. Para ele, a ciência moderna não pode ser dissociada da concepção cartesiana de sujeito, do Eu penso, isto é, do cogito como experiência radical do sujeito submetido às exigências da dúvida hiperbólica. Para Descartes, se o cogito, por um lado, é o ponto de partida da construção de um novo sistema do saber, após o desmoronamento da forma clássica ou cosmocêntrica de pensar, por outro lado é justamente o que não pode se tornar objeto de nenhum saber determinado, pois é o fundamento de todo saber. Há uma distância incontornável entre o sujeito fundante e o conhecimento fundado, tal distanciamento foi posto na origem da ciência moderna, pois se por um lado esta investiga a natureza tomada como domínio da objetividade, como uma realidade rigorosamente matematizada, uniforme e separada de nossas vivências subjetivas, por outro lado o sujeito epistêmico, por princípio, está fora da natureza (Koyré, 1979).
Dois efeitos decorrem dessas considerações bastante limitadas. Em primeiro lugar, impõe-se o reconhecimento da ciência moderna como condição de possibilidade para o surgimento da psicanálise, isso porque ela fez emergir um sujeito separado de seus conteúdos conscientes e daquelas vivências facilmente acessíveis por meio de descrições em primeira pessoa. A verdade do sujeito se mostra irredutível às certezas do conhecimento científico. Por conseguinte, pode-se dizer que essa divisão constitutiva posta na origem da ciência moderna se desdobra como distinção entre o saber (le savoir) e a verdade (la vérité) (Lacan, 1966). Ou seja, a verdade emergente na práxis não pode jamais ser capturada pelo esforço de objetivação do saber científico e, por conseguinte, a própria teoria psicanalítica enquanto ciência, e ela o é, fica sempre aquém da verdade do sujeito. Conclusão a assestar um profundo golpe no otimismo iluminista acerca do progresso da racionalidade científica e, no entanto, apontando para a singularidade do lugar da psicanálise em seu estar simultaneamente dentro e fora do universo científico.
Em segundo lugar, porque a introdução de uma cunha entre o sujeito requerido pela fundação da ciência e o saber objetivado da própria ciência possibilita a justificação da posição ética e política do analista. Por quê? Porque sua renúncia em estabelecer a estrita correspondência entre o saber e a verdade não flerta com o irracionalismo e nem é obstáculo para a consecução da psicanálise, mas, ao contrário, põe em movimento o processo analítico. Ou seja, o processo analítico não é movido pelo saber previamente possuído pelo analista, por seu conhecimento racionalmente garantido, pois a sua causa é de outra ordem, é da ordem de uma verdade que desconcerta o sujeito em suas tentativas de se assegurar de sua vida, de apreendê-la objetivamente e dominá-la em suas incertezas. As manifestações do inconsciente não se deixam capturar inteira e previamente nas malhas conceituais de uma ciência, mesmo dessa ciência sui generis intitulada psicanálise.
Lacan (1966, p. 863) articulará, então, algumas proposições instigantes. Após afirmar "o objeto da psicanálise não é outro [...] senão aquilo que ele já tinha antecipado sobre a função que nela desempenha o objeto a", ele pergunta: "o saber sobre o objeto a seria então a ciência da psicanálise?". A resposta em princípio deveria ser obviamente afirmativa, contudo, e surpreendentemente, ele a evita e parece ir em outra direção, pois o objeto a deve ser inserido na divisão estrutural do sujeito e este "está em exclusão interna a seu objeto" (Lacan, 1966, p. 861). Apesar da formulação algo obscura, não há nada muito enigmático em tudo isso. Esse não é um tema inusitado na história da filosofia, pois já se encontra nas discussões medievais acerca da existência de Deus: há uma diferença fundamental entre pensamento e existência, por isso não se pode deduzir a existência real a partir de princípios lógicos. Desse modo, como argumentou Kant (1787 [1781]/1980) na Crítica da razão pura, da ideia de Deus como ser absolutamente necessário não se pode deduzir a sua existência, pois não nos é permitido extrair o real do ideal.
A seu modo, Lacan retoma alguns elementos dessa discussão. Certamente podemos pensar as relações causais entre os fenômenos e esse é o trabalho da investigação científica. Há, porém, uma causa de outra ordem, não apreensível previamente pelo saber já possuído e nunca inteiramente previsível. Ela é atuante no processo analítico e o é justamente porque é inapreensível e se faz presente como falta e diferença, como o impossível para o saber. Impossível, mas não irrelevante, pois irrompe desarranjando a consistência das falas, não como um acaso proveniente da variabilidade da linguagem (autômaton), mas porque perturba, por seu caráter traumático, a intencionalidade da narrativa egoica. Esta irrupção, considerada como uma força independente de nossa deliberação foi denominada tyche por Aristóteles e traduzida pelo psicanalista francês por "encontro com o real". Ora, como observa Souza (1996), nesse ponto o real de Lacan pode ser reencontrado participando da verdade do sujeito, ao mesmo tempo que se impõe como inapreensível nos termos do esquema lógico de causa e efeito do saber científico. Qual verdade? A da ausência, a da falha, do acaso e do encontro faltoso com um elemento traumático jamais inteiramente subjugado e, portanto, relacionado com a intransparência e estranheza de nossas escolhas e decisões mais pessoais (Lacan, 1964/1966; Souza, 1996).
Deve-se reiterar, todavia, não haver qualquer hostilidade em relação à ciência e à racionalidade. Ao contrário, toda sua obra é uma busca incansável de rigor conceitual. A psicanálise, certamente, pode reivindicar um lugar no universo da ciência e do saber, mas faz parte de sua reivindicação o reconhecimento do furo, da incompletude de toda ciência e de todo saber. Nesse sentido, ela é de certa forma herdeira heterodoxa não só da teoria kantiana do conhecimento, mas também da antropologia kantiana do ser humano irremediavelmente mergulhado na sensibilidade e ancorado no corpo como ser radicalmente finito. Por isso, disse Lacan, a verdade não é objeto de um saber, inscreve-se na carne. Distante do triunfalismo iluminista, o trabalho analítico faz o luto do conhecimento trazido pelo sujeito da análise, o qual só se torna verdadeiramente analisante ao fazer a travessia de suas certezas no reconhecimento de sua incompletude constitutiva. Novamente se faz notar a presença de Heidegger na própria apropriação lacaniana de Kant. O reconhecimento da incompletude é uma resolução privada de toda garantia, porque nada é dado, tudo só pode ser conquistado na temporalidade de uma existência convocada a assumir a facticidade e a possibilidade de seu passado. Como diz Heidegger, o Dasein como ente cujo ser é essencialmente porvir ou adveniente (zukünftig) pode deixar relançar-se em seu aí factual, assumir o seu próprio estar-lançado (Geworfenheit) e para isso não é necessário saber em sua resolução (Entschlossenhei), isto é, não se pode e não se requer saber expressamente acerca da origem das possibilidades nas quais se projeta (Heidegger, 1927/2001; Vaysse, 2005). Poder-se-ia perguntar: qual temporalidade, se o inconsciente é sem tempo (Zeitlos)? O inconsciente não está contido no tempo da maturação psicológica, não sanciona uma filosofia da história dos sujeitos individuais ou coletivos. Não obstante, irrompe na história do sujeito e o convoca ao enfrentamento do seu ter-sido, abrindo o horizonte da liberdade finita e o leque de significados apreendidos sempre no a posteriori (Nachträglichkeit), num entendimento posterior, como Freud intuiu precocemente e assinalou no estudo de uma neurose infantil conhecida como o homem dos lobos (Freud, 1918/1999; Lacan, 1964/1966).
Desse modo Lacan, pela mediação da interpretação heideggeriana, retira, do cogito cartesiano e do próprio ato fundacional da ciência moderna, certa destituição do saber ou, ao menos, de sua segurança em produzir certezas acerca da realidade. Certamente, poder-se-ia objetar, a ciência não visa produzir certezas e sim, e tão somente, propor enunciados hipotéticos e sempre reformáveis. Não obstante, a nossa argumentação se refere à visão, largamente difundida pelo discurso da ciência, de um saber considerado como a única explicação legitima da realidade. Os outros saberes, caso pudessem ser assim nomeados, seriam assimilados ao domínio da ilusão. Assim, se tornam mais frágeis as razões epistemológicas para demarcar com segurança o terreno científico e separá-lo do domínio da ilusão como aquele no qual a religião estaria situada.
Mas como ficaria a questão antropológica, aquela representada pelo humanismo moderno, a assegurar para o homem a dominação da natureza e o senhorio da história? Ao tornar mais nebulosa a fronteira entre ciência e não ciência, o que poderíamos esperar do humanismo moderno e de seu projeto fáustico de forjar um mundo novo para um homem novo? A resposta parece evidente. Não há um sujeito unitário capaz de tomar em suas mãos a rédea da história e nem mesmo de antecipar o seu sentido.
Basta-nos retornar por um breve momento à experiência do cogito. Nela, como foi acima indicado, podemos discernir a necessidade de um sujeito exterior à natureza, designado transcendental na linguagem kantiana, como sendo a única base suficientemente sólida para o estabelecimento da física-matemática. Todavia, há outra direção do eu penso menos perceptível. Ao investigar autorreflexivamente a geração das ideias na mente humana finita, o filósofo descobre uma ideia impossível de ser analisada, porque impossível de ser analiticamente desconstruída como algo produzido pelo sujeito. Essa ideia ou, antes, esse pensamento irredutível é justamente a ideia de Deus, isto é, a capacidade de pensar uma substância infinita impossível de ser gerada por uma mente finita. Desse modo nos deparamos, no próprio cerne do pensamento racional, com a seguinte aporia: a mais radical exigência de compreensão exige em sua realização a referência ao incompreensível, pois o finito não pode compreender o infinito. Descartes ainda acredita, por meio das provas da existência de Deus, ser ainda possível franquear a passagem do compreensível ao incompreensível (Beyssade, 2009). Com Kant, porém, essa passagem é interditada, e no lugar do Deus transcendente se instala a coisa-em-si (Ding-an-sich) como limite interno de tudo o que nos é cognoscível. Ora, a coisa-em-si não é algo fora da representação ou uma coisa exterior com poder de causar a representação, pois o conceito de causalidade só faz sentido no interior do circuito representacional. Não há, certamente, identidade conceitual entre a coisa-em-si kantiana e o real lacaniano, pois se o fizéssemos estaríamos assimilando sem maiores mediações dois sistemas de pensamento e sem darmos conta do caráter algo lúdico e irônico da relação de Lacan com a filosofia (Macherey, 1991). A aproximação apenas se justifica no contexto de nosso argumento, porque, de modo semelhante, também o real não é algo misterioso como uma exterioridade inefável em relação ao sujeito, é um modo de nomear o vazio estrutural instalado no mais íntimo de sua intimidade e somente nesse sentido causa o sujeito. Ou, se quisermos outra referência filosófica relevante, aquela do Hegel kojèviano, a causação do real no sujeito tem a ver com o trabalho de disrupção do negativo, o emergir inesperadamente aquele quase nada que tudo pode mudar. Tais entrelaçamentos não podem, entretanto, aqui serem desenvolvidos (Zizek, 2013).
Do ponto de vista da psicanálise, a incidência do real não se confunde com um destino obscuro e inexorável, antes é um acontecimento a nos convocar a uma tomada de posição e a nos exigir responsabilidade pela escolha feita por nós frente a algo que nos interpela e, justamente por isso, pela ausência de garantia prévia ou de certeza objetiva, nos torna sujeitos de nossos atos. Manifestando-se num detalhe, num acaso, numa aparência, como algo talvez banal, o real não determina um efeito previsível e idealmente controlável como numa relação entre fenômenos estudados cientificamente, todavia abre um campo de possibilidades e incita uma resposta, tornando o sujeito responsável pela sua insciência e indeterminação, sem fiança num Outro consistente e substancial, capaz de oferecer a palavra decisiva lastreada na ordem do sentido.
Diferentemente da causalidade científica circunscrita ao domínio da objetividade, a causa do sujeito foi pensada por Lacan numa dupla vertente, essencialmente entrelaçada: como significante e como real. Não obstante, negligenciar as relações de causalidade, por um lado, seria reduzir a psicanálise a uma hermenêutica e, por outro lado, seria deixá-la cair no mais sombrio obscurantismo, pois a causa possibilita ao analista se aproximar do significante como limite do gozo.
A causa do sujeito se dá como estrutura significante, uma estrutura compósita formada por significantes e objetos pressupondo o efeito estrutural, seja produzindo a materialidade do significante separado de sua significação, seja engendrando uma perda, algo que lhe é concomitantemente intrínseco e heterogêneo. Essa causa divide o sujeito e o constitui como sujeito de desejo. O inconsciente, concebido nessa perspectiva, não é um lugar mais profundo e sim o efeito da linguagem ou do significante (Lacan 1966/1964, p. 839).
Para concluir: Lacan e a questão da religião
O intuito do nosso trabalho foi indicar o deslocamento da problemática filosófica acerca da religião no interior do campo psicanalítico, tomando como referência alguns textos de Freud e de Lacan. Não pretendemos mostrar como os dois autores pensam de modo diferente sobre a questão da religião. Ao contrário, em muitos pontos eles convergem. Nada obstante, tomamos a interpretação da religião como pano de fundo capaz de nos propiciar um contraste mais nítido entre as suas pressuposições filosóficas. A exposição sobre a interpretação freudiana da religião, já bastante explorada na literatura, não teve outra função senão recordar alguns de seus pontos essenciais. Não pretendemos agora entrar de modo mais detalhado na concepção lacaniana da religião. Tal empreitada exigiria outro artigo.
Como sucedeu com Freud, a questão da religião sempre interessou a Lacan e no interior da École Freudienne de Paris alguns psicanalistas, por formação e razões pessoais, se interessaram vivamente pelo assunto (Beirnaert, 1987; De Certeau, 1987). Isso não significa, de modo algum, a instalação de uma reconciliação ou uma relação confortável entre psicanálise e religião. A psicanálise, em seu compromisso com a investigação do inconsciente, traz consigo irremediável desconforto e o permanente questionamento com relação a toda tentativa de acomodação. Apesar disso, as elaborações teóricas lacanianas possibilitam uma nova compreensão acerca do lugar da religião na cultura e, por conseguinte, abre instigantes possibilidades para repensarmos a estrutura e a constituição do sujeito. Para Freud (1927/1999, p. 360) "pode-se a partir da aplicação do método psicanalítico tanto obter novo argumento contra o conteúdo de verdade da religião [...] mas também servir aos seus partidários para avaliar plenamente a significação afetiva da doutrina religiosa". Essa afirmação bem como as de outras passagens, como aquela na qual confessa a possível "natureza ilusória" de suas esperanças, parecem acenar para algumas perspectivas de diálogo e matizam as duras críticas feitas em "O futuro de uma ilusão" (Freud, 1927/1999). Certamente a terapia psicanalítica também serve às pessoas religiosas. No entanto, o espaço filosófico para uma reavaliação crítica da religião ainda é muito restrito. Como já foi antes enfatizado, a abordagem lacaniana converge em muitos pontos com a freudiana. Apesar disso, nela podemos encontrar, não apenas em sua letra, mas também em alguns de seus direcionamentos teóricos e filosóficos, um rico potencial crítico para compreendermos melhor o papel da religião numa sociedade cada vez mais minuciosamente administrada e amarrada à lógica funcionalmente imanente e reprodutiva do modo de produção do capitalismo globalizado e sua plasmação no conjunto da vida social. Nesse novo limiar epocal, designado por alguns estudiosos como hipermodernidade, não se pode descartar ad límina a intervenção teológica na discussão pública ou mesmo a experiência da transcendência como um modo de pensar alternativo em relação à racionalidade hegemônica.
Em sua aula inaugural do seminário de 1965-1966 na École Normale Supérieure, incluída em seus Escritos com o título de "A ciência e a verdade", as suas palavras a respeito da religião não são menos duras do que as de Freud. Ele rejeita o ecletismo e as aproximações fáceis entre ciência e religião e reitera a analogia freudiana com a neurose obsessiva. Como quando admoesta a tentação do religioso de renunciar à sua responsabilidade através do recurso de "atribuir a Deus a causa de seu desejo" (Lacan, 1966, p. 872).
Não obstante, após advertir para a projeção escatológica da verdade e o seu "ranço obscurantista", ele alude à relevância da literatura patrística e, sobretudo, à meditação agostiniana no De Trinitate, para apreendermos "sobre a estrutura da relação do sujeito com a verdade" (Lacan, 1966, p. 873). São apenas pistas cujo exame nos imporia não somente a exegese de um texto sabidamente difícil, como também de seu cotejamento com muitos outros textos do psicanalista francês. Na entrevista de 29 de outubro de 1974 ele disserta, de maneira um tanto coloquial, sobre o triunfo da religião na esteira do êxito e da perturbação trazidos pela ciência como suplemento de sentido diante de nossa angústia existencial (Lacan, 1974/2005).
Aqui também podemos perceber as reverberações do pensamento heideggeriano sobre a morte de Deus. O declínio do complexo paterno parece, por um lado, confirmar e, por outro, contestar o anúncio dessa morte esmagadora. O pai idealizado e todo-poderoso parece ter morrido, e dele deve-se fazer o luto. Porém, como observa Philippe Julien, como fazê-lo senão por meio do pai no real, aquele que marca o real como o lugar estrutural e indestrutível, no qual Deus, mesmo morto, está e não cessa de suscitar o movimento de um sentido impossível de estancar ou de ser estabilizado numa certeza doutrinária? (Julien, 2008).
Não há como preencher o vazio sempre reiterado pelo real impossível de ser simbolizado. A psicanálise não quer e nem pode ir além, deixando para o sujeito, na solidão de sua singularidade, a tarefa impossível, porém incontornável, de dar Nome à experiência que se furta a todo ato determinante de nominação.
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Artigo recebido em: 10/01/2018
Aprovado para publicação em: 27/03/2018
Endereço para correspondência
Carlos Roberto Drawin
E-mail: carlosdrawin@yahoo.com.br
Fuad Kyrillos Neto
E-mail: fuadneto@ufsj.edu.br
* Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Docente do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).
** Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).