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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.51 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2019
ARTIGOS
A potência política do real
The political potency of the real
La potencia política de lo real
Vinicius José de Lima SouzaI*;Tiago Iwasawa NevesII**
IUniversidade Federal de São João del-Rei - UFSJ - Brasil
IIUniversidade Federal de Campina Grande - UFCG - Brasil
RESUMO
Nas últimas quatro décadas, a racionalidade neoliberal avançou sobre o cenário social, determinando o quadro de possibilidades da política através da generalização da concorrência como princípio universal das condutas e da empresa como modo privilegiado de subjetivação. Além de determinar os fins da política institucional, a racionalidade neoliberal também promoveu novas formas de sujeição social através da determinação dos modos de individuação e sociabilidade que devem ser assumidos pelos sujeitos para que tenham suas condutas reconhecidas. O saldo desse avanço é a ausência de transformações efetivas na política, uma vez que toda e qualquer transformação fora do quadro delimitado pelo neoliberalismo é considerada uma realização impossível. Diante desse contexto, o presente ensaio teórico objetivou promover uma articulação entre psicanálise e política por meio da extração da potência política do conceito de real presente na obra de Jacques Lacan. A negatividade do conceito lacaniano mostrou-se fecunda ao nos permitir defender que a política não pode ser pensada a partir de um regime de gestão das possibilidades de uma dada situação, pois a política é por excelência um acontecimento real, ou seja, trata-se justamente da realização através de processos disruptivos do que até então era considerado impossível pelo regime dominante.
Palavras-chave: neoliberalismo, política, real, psicanálise.
ABSTRACT
In the last four decades, neoliberal rationality has advanced on the social scene, determining the framework of possibilities of politics through the generalization of competition as a universal principle of conduct and enterprise as a privileged mode of subjectivation. In addition to determining the ends of institutional politics, neoliberal rationality has also promoted new forms of social subjection through the determination of the modes of individuation and sociability that must be assumed by the subjects to have their behaviors recognized. The balance of this advance is the absence of effective transformations in politics, since any transformation outside the framework delimited by neoliberalism is considered an impossible realization. In view of this context, the present theoretical essay aimed at promoting an articulation between psychoanalysis and politics through the extraction of political power from the concept of real present in the work of Jacques Lacan. The negativity of the Lacanian concept has proved fruitful in allowing us to argue that politics cannot be thought from a regime of management of the possibilities of a given situation, since politics is par excellence a real event, that is, it is precisely from the realization through disruptive processes of what until then was considered impossible by the dominant regime.
Keywords: neoliberalism, policy, real, psychoanalysis.
RESUMEN
En las últimas cuatro décadas, la racionalidad neoliberal avanzó sobre el escenario social, determinando el cuadro de posibilidades de la política a través de la generalización de la competencia como principio universal de las conductas y de la empresa como modo privilegiado de subjetivación. Además de determinar los fines de la política institucional, la racionalidad neoliberal también promovió nuevas formas de sujeción social a través de la determinación de los modos de individuación y sociabilidad que deben ser asumidos por los sujetos para que tengan sus conductas reconocidas. El saldo de ese avance es la ausencia de transformaciones efectivas en la política, ya que toda transformación fuera del marco delimitado por el neoliberalismo se considera una realización imposible. Ante este contexto, el presente ensayo teórico objetivó promover una articulación entre psicoanálisis y política por medio de la extracción de la potencia política del concepto de real presente en la obra de Jacques Lacan. La negatividad del concepto lacaniano se mostró fecunda al permitirnos defender que la política no puede ser pensada a partir de un régimen de gestión de las posibilidades de una determinada situación, pues la política es por excelencia un acontecimiento real, o sea, se trata justamente de la realización a través de procesos disruptivos de lo que hasta entonces era considerado imposible por el régimen dominante.
Palabras clave: neoliberalismo, política, real, psicoanálisis.
Introdução
Na segunda metade do século XX, o declínio da democracia liberal nos países ocidentais marcou a ascensão de um novo modelo de gestão na política institucional. O avanço da racionalidade neoliberal nas últimas quatro décadas através da generalização da norma da concorrência e do modelo empresa como forma de conduta legou à política de Estado um modo de governo orientado pelos princípios e pelas práticas da gestão de empresas privadas.
Para entender como a nova face do capitalismo é partidária de um novo modo de governo na política institucional, é importante enfatizar que a ascensão neoliberal resulta não somente de uma crise de acumulação, mas de uma resposta a uma crise de governabilidade. Segundo Pierre Dardot e Christian Laval (2016), o "novo liberalismo" nasce da constatação da incapacidade dos dogmas liberais em colocar novos parâmetros para a intervenção governamental. No neoliberalismo, a divisão tradicional entre Estado e mercado, defendida pelos liberais clássicos, não existe mais. Longe de objetivarem a "saída" do Estado, os neoliberais buscaram lograr uma transformação da ação pública, fazendo do Estado uma empresa submetida às regras concorrenciais e às exigências de eficácia. O Estado-providência, considerado burocrático e ineficaz, foi gradativamente substituído por um Estado-empresa que se dobra à norma mundial da concorrência e adota dispositivos administrativos e sociais mais eficientes para a lógica de mercado. Dessa forma, a política institucional não faz outra coisa senão orientar a ação pública dentro do campo de possibilidades formatado pelo neoliberalismo.
O saldo dessa mudança na forma de governar é a ausência de transformações efetivas no campo político. Se na democracia liberal a formação de compromissos que a sustentava já representava o abandono da busca por mudanças institucionais profundas, no governo neoliberal a política institucional não só permanece orientada pelos ditames da economia capitalista, como incorpora um discurso moral perpetrador de novas formas de sujeição social. Além de determinar os fins da política institucional, a racionalidade neoliberal também determina os modos de individuação que devem ser assumidos pelos sujeitos para que tenham suas condutas reconhecidas. É nesse ponto que reside a sua novidade: o neoliberalismo avança sobre diversos sistemas da vida social através da expropriação libidinal e da regulação psíquica, determinando o quadro dos possíveis da existência.
Se a única forma de fazer política atualmente é adotando a gramática neoliberal, é porque já não há política alguma. Para Alain Badiou (1999, p. 38), "a política consiste em pensar e praticar o que é declarado impossível pela política dominante. É isso que faz com que uma política seja real. É quando ela força o impossível a existir". Por isso, se nos dizem que o neoliberalismo é a única possibilidade e que fazer outra coisa é impossível, devemos retrucar que uma política real reside justamente na realização desse impossível. É o que objetivamos defender no presente ensaio teórico ao extrair a potência política do conceito de real como a realização do impossível, presente na obra de Jacques Lacan. A partir dessa extração, pretendemos fazer a defesa de uma política real, uma política capaz de produzir transformações no campo político através da emergência de novas formas de vida.
Na primeira parte do trabalho discorremos sobre o governo empresarial adotado na política institucional como marca da reestruturação do Estado promovida pelo neoliberalismo e as novas formas de sujeição social. Na sequência, considerando que a transformação é o fim esperado de uma política, buscamos localizar os impasses da transformação no contexto da gestão neoliberal da vida. Por fim, nos lançamos a extrair a potência política do conceito de real como realização do impossível para fazer a defesa de uma política lacaniana do real.
Gestão dos possíveis
A ascensão do neoliberalismo nas décadas de 1960 e 1970, fruto da convergência fortuita dos princípios neoliberais com as reivindicações de movimentos sociais como Maio de 68, representou, na visão de Boltanski e Chiapello (2009), não somente a consolidação de novos postulados sobre a circulação de riquezas na sociedade, mas fundamentalmente o avanço de uma racionalidade sobre a cena política e social.
Segundo Dardot e Laval (2016, p. 7), o neoliberalismo não é apenas uma doutrina econômica, mas "um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida". A racionalidade neoliberal fez da generalização da concorrência e do modelo empresa os princípios de inteligibilidade das condutas: os valores e práticas reconhecidos nesse contexto são aqueles que respeitam as regras da gramática empresarial. Foi através do avanço dessa racionalidade que o papel do Estado na economia e na sociedade foi reconfigurado.
O Estado passou a agir em conformidade com a razão neoliberal de duas maneiras: de fora, através de privatizações de empresas estatais, e de dentro, com a incorporação de novos instrumentos de poder, como a avaliação empresarial de rendimentos e a estruturação de novas relações entre governo e sujeitos sociais. Dessa forma, buscou-se superar as críticas à falta global de eficácia e produtividade do Estado-providência, que custava caro e colocava obstáculos à competitividade da economia. O que mudou sobremaneira foi a ação pública, agora submetida à lógica da competição mundial. Mesmo cabendo ao Estado administrar a sociedade para colocá-la a serviço das empresas, ele próprio passou a funcionar conforme as regras de eficácia das empresas privadas. Foi essa a principal característica do "Estado gerencial", que começou a se formar a partir dos anos 1980.
A imposição da lógica empresarial à ação pública conduziu a política institucional a uma nova forma de governo. O gerenciamento é o novo paradigma que orienta a ação pública no sentido de garantir uma atuação do Estado que seja fundamentada no mercado e voltada para o consumidor. No universo empresarial, o conceito de gerenciamento diz respeito à gestão dos processos com foco na otimização dos resultados. A importação de conceitos como esse para o setor público foi consequência da formatação do poder governamental pela racionalidade da empresa. Não é sem razão que a palavra "governança", termo muito próximo da significação atribuída ao gerenciamento na gramática das empresas, tornou-se a palavra-chave da política institucionalizada na era neoliberal. A política da "governança" tem uma função muita importante na difusão da concorrência como princípio universal das condutas. "A ‘boa governança’ é a que respeita as condições de gestão sob os préstimos do ajuste estrutural e, acima de tudo, a abertura aos fluxos comerciais e financeiros, de modo que se vincula intimamente a uma política de integração ao mercado mundial" (Dardot, & Laval, 2016, p. 276).
A avaliação que recebe a política de Estado atualmente se dirige a julgar a sua capacidade de respeitar as "boas práticas" econômicas de governança. Desse modo, assim como os gerentes de empresas privadas são avaliados de acordo com os critérios da corporate governance, os gerentes de Estado são julgados pelos mesmos critérios de controle definidos pela comunidade financeira internacional. É dessa forma que investidores estrangeiros podem assegurar-se de seus investimentos: cobrando aos dirigentes locais a adoção das normas vigentes numa rede internacional de instâncias supragovernamentais, eles garantem o controle dos instrumentos da política institucionalizada, que asseguram o alcance de seus interesses econômicos. É por isso que as agendas do Estado são ditadas pela lógica do capitalismo financeiro.
A partir dessa lógica que rege o governo de Estado é que podemos entender a afirmação de Alain Badiou (2017) de que os economistas são pretensamente os fiadores do real na contemporaneidade. Isso fica mais evidente quando reparamos nas medidas adotadas na governança neoliberal, todas elas amparadas nos ditames e nas previsões da comunidade financeira internacional. Os economistas mostram uma realidade inexorável, à qual todos precisam se dobrar tal a força de sua intimidação. Quando vemos os Estados adotarem a retórica de que a austeridade é o único caminho possível para recuperar a economia do país, fica claro como os economistas capitalistas e seus financiadores reinam na política institucionalizada. O alarmismo que rodeia o aumento da dívida pública no Brasil, por exemplo, tratada enquanto uma questão puramente técnica pelos economistas, levando à retração de bancos públicos e ao corte dos investimentos em serviços públicos, deixa algo bem claro: é necessário sacrificar os gastos sociais em nome de uma realidade imposta por economistas que travestem interesses de grupos financeiros em dados científicos.
Não são raras as ocasiões em que a economia prova não saber muita coisa. Ela sequer consegue antever tragédias em seu próprio campo. Mas o que chama a atenção de Badiou (2017, p. 10) é o fato de que, "mesmo quando enuncia que o "real" dela está fadado à crise, à patologia, eventualmente ao desastre, todo esse discurso inquietante não produz nenhuma ruptura com a submissão subjetiva ao real de que ela se gaba de ser o saber". Ou seja, mesmo quando o discurso econômico sobre o real perde seu compasso ao esbarrar em catástrofes que não conseguiu prever, ele continua firme e forte na imposição de um saber sobre o real. Contudo, frente à concepção intimidante de real dos economistas, é preciso enfatizar que seus discursos versam não sobre o real, mas sobre uma realidade que eles mesmos sustentam.
É precisamente a realidade sustentada pela racionalidade neoliberal que delimita o campo dos possíveis da ação política. E isso não se resume só à política de Estado, pois como defenderá Vladimir Safatle (2017), o neoliberalismo é um discurso moral que produz novas formas de sujeição social através da expropriação libidinal e da regulação psíquica. Uma maneira de dizer que a razão neoliberal, além de delinear a política institucional, também produz certos tipos de relações sociais, certas formas de subjetivação. Pois o que está em jogo no neoliberalismo "é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos" (Dardot, & Laval, 2016, p. 16).
A tese de Michel Foucault em Nascimento da biopolítica (2008) converge com a defesa de Dardot e Laval (2016). Para ele, o neoliberalismo, antes de ser a adoção de uma racionalidade econômica como forma de governo, é fundamentalmente uma política de sociedade. Vejamos:
O neoliberalismo, o governo liberal não tem de corrigir os efeitos destruidores do mercado sobre a sociedade. Ele não tem de constituir, de certo modo, um contraponto ou um anteparo entre a sociedade e os processos econômicos. Ele tem de intervir sobre a própria sociedade em sua trama e em sua espessura. No fundo, ele tem de intervir nessa sociedade para que os mecanismos concorrenciais, a cada instante e em cada ponto da espessura social, possam ter o papel de reguladores. [...] não é um governo econômico, é um governo de sociedade (Foucault, 2008, p. 199).
O que devemos extrair das teses dos três autores é que o neoliberalismo determina, enquanto modelo socioeconômico, a configuração de um conjunto de comportamentos, métodos de avaliação e justificativas a serem internalizadas pelos agentes da sociedade a fim de que tenham suas ações reconhecidas. O modelo da empresa e o princípio universal da concorrência, além de chegarem à política de Estado, produziram novas formas de subjetivação na modernidade. O que não se fez sem a disseminação de uma concepção de homem que servisse de modelo de conduta para todos.
Tal modelo de conduta, no contexto neoliberal, é precisamente a figura do empreendedor de si, o indivíduo que governa a si mesmo através da "cultura de empresa". A adoção individual da gestão empresarial como modelo privilegiado de conduta implica em levar para todos os âmbitos da vida a lógica da eficácia, da otimização de resultados e, principalmente, a responsabilização pelos riscos que se corre, inclusive o de fracassar. Segundo Dardot e Laval (2016, p. 333), o empresário de si é o indivíduo competente e competitivo que procura maximizar seu capital humano em todas as esferas, não apenas calculando ganhos e custos, mas procurando, sobretudo, "trabalhar para si mesmo com o intuito de transformar-se continuamente, aprimorar-se, tornar-se sempre mais eficaz". Não é por acaso que o coaching é a marca de nosso tempo. A busca desenfreada pela superação de desempenhos na sociedade faz com que se multipliquem técnicas e estratégias que visam ofertar ferramentas para que os indivíduos aperfeiçoem seus desempenhos.
Para Alain Ehrenberg (2010), o neoliberalismo buscou na competição esportiva um ideal social de justiça meritocrática para responder à crise dos modos de ação clássicos da política. Dessa forma, a competição foi naturalizada, forçando os indivíduos a assumirem o governo de si como forma de resposta possível num cenário de riscos. O empreendedor é o herói da vida cotidiana que reinventa a rotina e a domina ao invés de se submeter a ela, pois ele não se vê mais como um trabalhador, mas como um empresário de si em busca de sua realização pessoal. Safatle (2017, p. 26) afirma que a razão neoliberal foi imposta através de uma moral baseada em uma versão muito particular da coragem como virtude. Pois na "selva" neoliberal é preciso ter coragem "para assumir o risco de viver em um mundo no qual pretensamente só se viveria através da inovação, da flexibilidade e da criatividade".
O mais irônico no discurso neoliberal é que cada indivíduo pode inventar seu próprio modelo, elaborar a sua performance, ter liberdade para escolher ser quem quiser, contanto que respeite as formas de individuação neoliberal. O indivíduo pode fazer escolhas apenas dentro de um quadro de possibilidades formatado pelo neoliberalismo, sob pena de não ter sua ação reconhecida. O poder dessa racionalidade reside em forçar os sujeitos a jogarem conforme as regras do jogo neoliberal, definindo a forma de vida do empreendedor como a única possível.
O efeito mais nefasto do neoliberalismo para a política é o engessamento dos sujeitos em modos de individuação restritos à racionalidade da empresa. Dentro do quadro normativo neoliberal a escolha só pode se realizar dentro do cálculo do interesse individual, ou seja, as ações estão delimitadas por um universo que parece ter a acumulação como lei geral da existência. No campo dos possíveis organizado pelo neoliberalismo nenhuma transformação parece possível, porque a elevação da concorrência e do modelo empresa a princípios universais da conduta não se faz sem a circulação do medo como afeto político central.
Impasses da transformação política
A tese de Safatle (2015, p. 19) é de que "o medo como afeto político central é indissociável da compreensão do indivíduo, com seus sistemas de interesses e suas fronteiras a serem continuamente defendidas, como fundamento para os processos de reconhecimento". A perspicácia de sua tese reside em constatar que a reprodução material de determinadas formas de vida, como a forma "empresa" reproduzida pelo neoliberalismo, garante sua força de adesão através da circulação de afetos que privilegiam certos modos de existência em detrimento de outros. Conduzir a vida a partir de uma determinada norma implica sempre estar mobilizado pelos afetos que lhe são específicos. Por isso, para compreender o poder é necessário "compreender seus modos de construção de corpos políticos, seus circuitos de afetos com regimes extensivos de implicação, assim como compreender o modelo de individualização que tais corpos produzem, a forma como ele nos implica" (Safatle, 2015, p. 16).
Modelos socioeconômicos como o neoliberalismo, fundamentados na institucionalização de liberdades individuais, são indissociáveis da gestão social do medo. O individuo empreendedor de si não é convocado a ser herói, como assinala Ehrenberg (2010), por acaso. Pois ele, estando na condição de empresário de si mesmo num mundo regido pela norma da concorrência, é permanentemente mobilizado pelo medo não só de perder os seus bens materiais, ou de investir da maneira errada, mas fundamentalmente pelo medo de ser despossuído dos predicados que o determinam dentro de um campo estruturado de diferenças opositivas (Safatle, 2015). A predicabilidade é uma pré-condição nas sociedades neoliberais para o reconhecimento dos sujeitos. Sendo a predicação o modo privilegiado de reconhecimento, a possessão é naturalizada como relação a si mesmo. Se para o sujeito sua expressão só pode se dar a partir de predicados, outras formas de relação a si são impossíveis e por isso ele teme perder os predicados que o constituem.
Observando a predicabilidade como pré-condição da relação do sujeito a si mesmo nas sociedades neoliberais, vemos claramente como a principal forma de poder no neoliberalismo é a sujeição. Segundo Judith Butler (2017), a sujeição é uma forma de poder que age sob a própria formação do sujeito. Nela, o poder não é apenas exercido de fora, ele determina a condição da existência e a trajetória do desejo do sujeito, levando-o a jogar conforme as regras gramaticais da racionalidade hegemônica. Pensando no neoliberalismo, a internalização pelos sujeitos das normas da concorrência e do modelo empresa são formas de sujeição que, agindo diretamente na própria maneira como os sujeitos se veem, asseguram a hegemonia do modelo socioeconômico. "Não se trata mais de regular através da determinação institucional de identidades, mas através da internalização do modo empresarial de experiência, com seu regime de intensificação, flexibilidade e concorrência" (Safatle, 2015, p. 207).
Se pensarmos na sujeição como a principal aposta da razão neoliberal, veremos como a circulação do medo como afeto político central é um dos impasses da transformação política. Pois é verdadeiramente o medo do que poderia ser a vida fora do modelo de individuação neoliberal que bloqueia experiências de transformação política e a emergência de novas formas de existência.
Mas é importante também acentuar que a aquiescência dos sujeitos às normas neoliberais não ocorre somente pela circulação do medo, ela também se realiza através de promessas de êxtase. Segundo Safatle (2015, p. 24), "nada nem ninguém consegue impor seu domínio sem entreabrir as portas para alguma forma de êxtase e gozo". Podemos dizer que hoje um dos principais mantras do neoliberalismo é a promessa de realização pessoal que o empreendedor pode alcançar através da virtude de sua coragem de assumir riscos e superar seus desempenhos. Mantra que se estende para todas as esferas de sua vida (família, trabalho, lazer, educação, religião, etc.), pois o homem neoliberal acredita que através de sua performance pode gozar livremente.
Jacques Lacan foi astuto ao perceber que o supereu da contemporaneidade não é mais aquele da repressão ao gozo, como nos tempos de Sigmund Freud. O supereu da contemporaneidade toma o gozo como um imperativo (Lacan, 1985). O discurso multiculturalista, e sua defesa de que cada um tem o direito de gozar da maneira que quiser, é um exemplo da incitação ao gozo nas sociedades neoliberais. Mas, como já vimos, a escolha que cada indivíduo pode fazer ocorre em um quadro de possibilidades formatado pela racionalidade neoliberal. É precisamente o que o discurso das liberdades individuais não pode admitir, porque a sua força de adesão repousa em grande parte na promessa de os sujeitos poderem ser quem quiserem nas sociedades capitalistas. O "sucesso" da lei superegoica do "goza" reside justamente em não fornecer uma maneira privilegiada de gozo para que os sujeitos acreditem que podem fazê-lo à sua maneira.
Dessa forma, é preciso insistir na tese de Safatle (2015) de que a política é também um modo de produção de circuito dos afetos. Uma vez se tratando das sociedades neoliberais podemos afirmar que o medo e a esperança de gozo são afetos políticos centrais por o neoliberalismo apostar na sujeição como principal forma de poder. A circulação desses afetos parece ser o fator subjetivo que nos dá pistas dos impasses da transformação no contexto de gestão neoliberal da vida, ao mesmo tempo que nos coloca questão sobre como ser afetados de outra forma.
O impossível é real: psicanálise, política e transformação
Foi no Seminário 7 - A ética da psicanálise (1997) que Lacan propôs que a cura psicanalítica deveria se orientar pelo real. Logo no início desse Seminário, Lacan diz ser curioso como alguns de seus ouvintes insistiam em saber o que era o real quando ele só falava sobre o imaginário e o simbólico. Muitos poderiam, naquela época e ainda hoje, acreditar que a ética deveria se conformar ao domínio do ideal, referenciando-se pelo Bem Supremo aristotélico. Porém, nos diz Lacan (1997, p. 21), "[...] iremos, pelo contrário, ao inverso, no sentido de um aprofundamento da noção de real". Nesse Seminário, a ideia central será a defesa de que a ética da psicanálise não se orienta pelos ideais morais e civilizatórios, mas pelo real da experiência.
Segundo Ronaldo Torres (2012), o sentido de um "aprofundamento da noção de real" ocorreu por Lacan ter verificado a presença do real na clínica para além daquilo que escapa ao simbólico, tese esta que vinha orientando suas tentativas de determinação da cura até então. Estritamente falando, o real se contrapõe ao imaginário e ao simbólico, na medida em que esses dois últimos funcionam dentro da ordem de significação. O real não pertence à ordem de significação, já que é justamente aquilo que a nega, aquilo que não pode ser incorporado a essa ordem. Para Lacan, o real funciona como o que impõe limites a qualquer sistema de significação. Ora, é exatamente em função desse limite imposto que o real também funciona como aquilo que possibilita a constituição da significação. Nesse sentido, o real é inicialmente para Lacan inerente ao campo da significação: tanto é o limite negativo da significação quanto a sua condição de possibilidade. A partir do Seminário 7 o real "passa a ser reintroduzido em seu ensino desde a recuperação da noção das Ding" (Torres, 2012, p. 85). Lacan dirá que das Ding é o fora-do-significado que "se apresenta, e se isola, como o termo de estranho em torno do qual gira todo o movimento da Vorstellung, que Freud nos mostra governado por um princípio regulador, o dito princípio do prazer" (Lacan, 1997, p. 76). Lembremos de passagem que Freud já assinalava das Ding no Projeto de 1895 como uma função primordial que engendra a gravitação das Vorstellungen (representações) inconscientes em torno de um vazio. Sem dúvida, o que das Ding instaura é a ideia de que a estrutura de linguagem não comporta somente a dimensão do significante; há algo que está do lado de um impossível, impossível de saber e de dizer. Das Ding, portanto, introduz a questão do real como algo irredutível ao simbólico, impossível de significar. O impossível se faz presente pela via da falta: essa ausência primordial em torno da qual orbitam os significantes.
Sabemos que uma das definições mais consagradas do real na releitura da obra de Lacan é aquela que diz que o real é o que escapa à simbolização, ou seja, aquilo que não pode ser apreendido e que aparece como o impossível das operações de significação. Contudo, devemos insistir que não menos importante foi a definição do real como a realização do impossível. "Esse real, onde o encontramos? É, com efeito, de um encontro, de um encontro essencial, que se trata no que a psicanálise descobriu - de um encontro marcado, ao qual somos sempre chamados" (Lacan, 1998, p. 56). Essa elaboração do real como encontro, acontecimento traumático, foi em larga medida realizada no decorrer do Seminário 11, quando Lacan propôs discutir a função da causa em psicanálise a partir dos termos autômaton e tychê extraídos da física aristotélica.
O autômaton não é uma novidade no ensino lacaniano em 1964, já que podemos situá-lo desde seus escritos sobre a repetição como insistência da cadeia significante, ou seja, o automatismo de repetição, "o retorno, a volta, a insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio de prazer" (Lacan, 1998, p. 56). O autômaton, portanto, está em íntima ligação com a proposição da lógica do significante, situando-se no campo do sentido e da significação. No nível de autômaton, nenhum ato ou evento ocorre desprovido de uma causalidade estrutural.
Assim, Lacan esteve seguro de defender que "o real está para além do autômaton" (Lacan, 1998, p. 56). O real deve se articular à dimensão de tychê: do encontro inesperado que se realiza para além da repetição significante comandada pelo princípio do prazer. "Toda a história da descoberta por Freud da repetição como função só se define com mostrar assim a relação do pensamento com o real" (Lacan, 1998, p. 52). Segundo ainda Lacan, a função da tychê, isto é, do real como encontro, pode ser remetida ao encontro faltoso da experiência traumática. Lacan afirma:
A função da tiquê, do real como encontro - o encontro enquanto que podendo faltar, enquanto que essencialmente é encontro faltoso - se apresenta primeiro, na história da psicanálise, de uma forma que, só por si, já é suficiente para despertar nossa atenção - a do traumatismo. Não é notável que, na origem da experiência analítica, o real seja apresentado na forma do que nele há de inassimilável - na forma do trauma, determinando toda a sua sequência e lhe impondo uma origem na aparência acidental? (Lacan, 1998, p. 57).
Desde Freud, sabemos que o trauma pode ser definido como uma experiência disruptiva para o sujeito, uma vez que desestabiliza e desorganiza as coordenadas simbólicas na qual está situado. Nas palavras de Christian Dunker, o trauma " pode ser considerado um evento hiperintenso, que excede à capacidade representacional e que colhe o sujeito antes que este possa tramitá-lo psiquicamente" (Dunker, 2006, p. 16). Por essa razão, o funcionamento do princípio do prazer, em função de sua homeostase subjetivante, conforme nos diz Lacan, visa tamponar essa ferida traumática. Todo o problema, continua ele, é que a experiência nos coloca diante da insistência do trauma em ser lembrado. Porém o trauma não reaparece somente como cena enigmática, como tentativa de rememoração de uma cena primordial escondida atrás das lembranças mais remotas do sujeito. Muitas vezes, ao contrário, ele reaparece com o rosto desvelado.
É o que sonho traumático, por exemplo, indica. Como pode o sonho, fiador do desejo de dormir, construção psíquica que é essencialmente a portadora do desejo do sujeito, produzir o que faz ressurgir em repetição o trauma? Em outras palavras, por que nos sonhos de natureza traumática não vemos a tarefa de manter o sono ser cumprida? Ora, nos diz Lacan, é exatamente porque o sonho traumático é uma forma de encontro com o real. E, como defesa contra a irrupção desse encontro com o real, isto é, para continuar sonhando, o sujeito desperta para a realidade. Ou seja, para evitar o encontro com o real do sonho, é como se o sujeito preferisse continuar sonhando na realidade, amparado novamente por suas fantasias. Como observa Zizek (2010), na medida em que sonhar é um modo de fantasiar para se evitar o encontro com o real no sonho traumático em que o real fica próximo, o sujeito só acorda para continuar sonhando na realidade. Nada mais confortável do que aquele primeiro pensamento ao despertar de um sonho ruim: "Ufa! ainda bem que foi só sonho. Nada melhor do que acordar e continuar a viver na realidade". De fato, nesse sentido, a vida realmente é um sonho para nós. Como demonstra de forma categórica Zizek (2006), aqueles que exigem uma forma de vida que seja a expressão de uma experiência mais autêntica do real, voltada para o real além de todas as aparências mundanas, esquecem que essa é a experiência mais aterradora que pode nos suceder. Pois, no fundo, são a vida e o sentido que damos a ela que nos afastam desse encontro traumático com o real.
Tudo isso nos leva à seguinte fórmula: na clínica, o real está demarcado por meio dos acontecimentos psíquicos que vão do trauma à fantasia. Segundo Lacan (1998, p. 61), "o lugar do real vai do trauma à fantasia". Em primeiro lugar, para determinar o alcance dessa fórmula, basta recordarmos do caráter retroativo da eficácia traumática. A experiência dita traumática não é traumática em si mesma; o efeito traumático não se afere imediatamente a sua suposta causa, mas pela sua ressignificação posterior, com o apoio da fantasia. Em suma, podemos dizer que o trauma é o que não cessa de não se escrever, ou seja, a indicação do real como mau encontro. Por outro lado, a fantasia é uma montagem que tenta suspender os efeitos desse encontro traumático, tamponando de forma defensiva o buraco, a opacidade radical, de uma dimensão da experiência que toca diretamente o real.
Concordamos com Zizek (2006) quando defende que a principal elaboração lacaniana sobre o real talvez não seja aquela que diz que ele é o que resiste à interpretação analítica, ou seja, o elemento que escapa ao simbólico por não poder ser reduzido ao significante. O problema dessa formulação, nos diz o autor, é que o real nela pressuposto gravita em torno da ideia de real como grande ausência: ele sempre falta e daí a ilusão de que podemos recuperá-lo. Esse é o sentido da ironia de Zizek ao comentar que Lacan não era um poeta que dizia que o real é sempre aquilo que nos escapa. Não restam dúvidas de que a elaboração de que o real é o que escapa ao simbólico e que por isso ele deve ser reconhecido como o impossível de ser simbolizado é importante na trajetória de construção da direção da cura lacaniana. Mas a partir da inversão proposta por Zizek é possível insistir que a elaboração teórica lacaniana mais decisiva sobre o real é a que afirma que o impossível é real e não que o real é impossível. Em função disso, podemos chegar a uma fórmula precisa do impossível como real: o impossível não é aquilo que não pode existir ou realizar-se. Ao contrário, como nos demonstra Zizek (2006), a questão decisiva é que o impossível acontece.
Estamos diante, portanto, de dois aspectos do real. O primeiro deles indica que o real é impossível: indizível, inominável, insondável, o furo do simbólico, enfim. Já o outro aspecto, o qual estamos defendendo como sendo o mais crucial da elaboração lacaniana, indica que o real, além de impossível, é aquilo que acontece. Logo, mais importante do que definir o real como impossível seria definir o impossível como real. Essa talvez seja a principal contribuição teórica de Zizek para a compreensão do real em Lacan. Isso porque a defesa que Zizek faz do impossível como real não deixa de ser uma crítica aos desenvolvimentos que acreditam que o real lacaniano "é uma espécie de núcleo duro - a realidade verdadeira, em oposição a nossas meras ficções simbólicas" (Zizek, 2006, p. 99). Não, continua Zizek, não é que o real seja um excesso ou uma falta produzida pelo processo de simbolização. Na visão desse autor, em Lacan não existe uma realidade pré-simbólica que não pode ser totalmente abarcada pela simbolização. O erro seria admitir que isso que não poderia ser simbolizado seria simplesmente o real.
A lição crucial de Lacan definitivamente não é essa. Já dissemos com o próprio Zizek: Lacan não é um poeta da perpetuação da falta e da incompletude. Acrescentaríamos que ele tampouco é o defensor da resignação infinita e do niilismo existencial. O crucial para Lacan é defender o seguinte: o que o ato de simbolização realiza não é a tentativa de apanhar um grão de uma suposta realidade prévia ao sujeito. Devemos entender que "trata-se, antes, de que o próprio gesto de simbolização introduz uma lacuna na realidade. É essa lacuna que é o Real, e toda forma positiva dessa lacuna é constituída através da fantasia" (Zizek, 2006, p. 99).
Esse é o real que para Lacan encontra-se, por exemplo, inscrito no seio da sexualidade humana. Lembremos que a sexualidade para a psicanálise é um campo de experiência marcado por um fracasso irredutível, em que "a diferença sexual é o antagonismo das duas posições sexuais entre as quais não há denominador comum" (Zizek, 2010, p. 82). A famosa fórmula lacaniana da não existência da relação sexual é que define o lugar do impossível como real. "O sexo propõe, se me permitem dizer, ‘a nu’, o real como impossível próprio: a impossibilidade da relação" (Badiou, 2013, p. 67). Então, podemos dizer que a ênfase de Lacan ao afirmar a não existência da relação sexual está no termo relação. Isso quer dizer que a impossibilidade da relação é "o real como tal, o real do ‘não há’" (Badiou, 2013, p. 71), pois toda relação entre sujeitos deve se estabelecer na ordem fálica da linguagem, onde não há Outro que possa garantir a justa proporção, a relação ideal entre os sexos.
Assim, temos na dimensão da sexualidade um universal que podemos chamar de não-todo. Lembremos que o universal que interessa à psicanálise, desde Freud, não diz respeito a nenhum saber absoluto, mas ao acolhimento da diversidade universal de singularidades, uma vez que a universalidade do desejo dá-se somente pelo fato de que este é uma lei particular, "mesmo que seja universal que essa particularidade se encontre em cada um dos seres humanos" (Lacan, 1997, p. 35). Ora, se o universal se manifesta pela infinitude de diferenças, ele não pode ser definido positivamente como um conjunto de todos os predicados, mas somente como negação da totalidade do universal.
A partir da passagem acima é possível perceber o alcance da fórmula não há relação sexual. No ser humano, a sexualidade nunca é a realização de uma relação - no sentido matemático do termo. Ao contrário, é a impossibilidade de escrever tal relação que caracteriza a sexualidade no homem. Lembremos que uma das descobertas mais significativas de Freud é que não há nenhum vínculo natural entre a pulsão e os objetos de sua eleição.
Em O aturdito (2003), Lacan poderá, a partir da fórmula não há relação sexual, afirmar que não há verdade do real. Pois do real, defende Lacan nesse texto, só há o matema como escrita da ciência lógica, não havendo, portanto, lugar para uma linguagem que possa dizer o real, isto é, um modo cognitivo de conhecê-lo ou ignorá-lo. O real não é objeto do conhecimento, ou seja, o real não se conhece, ele se demonstra. Demonstrar o real é atingir uma formalização inteiramente depurada e integralmente transmissível. Lembremos, entretanto, do paradoxo que anima a ideia de transmissão integral que o matema realiza. Segundo Torres (2012, p. 89), Lacan leva ao cúmulo o que pode portar a noção de integral, "se referindo a uma estrutura que se transmite não toda e que só dessa forma pode ser integral. Trata-se da transmissão que não vai sem o impossível, cujo nome na estrutura é furo".
Uma transmissão integral significa, portanto, que aquilo que é transmitido/formalizado não vai sem o seu próprio impasse/impossível, nas palavras de Lacan, sem aquilo com que o real se enrosca. Podemos ainda dizer, em função do que Lacan afirma ao final da citação acima, que a definição de que o impossível é real pode ser encontrada no que ele chamou de impasse da formalização. Recordemos uma das últimas definições sobre o real enunciada no Seminário 20: "É aí que o real se distingue. O real só se poderia inscrever por um impasse da formalização" (Lacan, 1985, p. 125).
A recente edição brasileira do livro de Alain Badiou Em busca do real perdido (2017) é uma referência para aqueles que desejam compreender o que Lacan quis dizer quando aproximou a noção de real com o impasse da formalização. Antes de comentarmos a demonstração do real realizada por Badiou, devemos destacar uma tese desse livro que é crucial neste momento. Para esse autor, Lacan está repleto de razão ao afirmar que a realidade do conceito não pode abarcar o real, ou seja, apelar à conceitualização para caracterizar o modo como a realidade nos afeta nunca poderá ser "uma autêntica prova do real" (Badiou, 2017, p. 9). Por isso o real não é a formalização em si, mas o impasse dessa formalização.
Um exemplo do próprio Badiou (2017) nos ajuda a compreender por que a formalização que leva em conta o real não pode ser a que pretende registrar a realidade em conceitos. Badiou explica que irá partir de um exemplo porque, advertidamente, não quer começar pelo conceito para demonstrar o real. Pois bem, o exemplo de que se trata é uma formalização no campo da matemática. Segundo o autor, as funções matemáticas básicas como adição e subtração, por exemplo, nos colocam no seio da formalização da aritmética elementar. Isso porque quando calculamos não há outra possibilidade senão a obtenção de um número como resultado. Ora, isso exige que, "seja qual for a duração do cálculo finito, sempre encontraremos um número" (Badiou, 2017, p. 29). Em função disso, a aritmética elementar se sustenta pelo seguinte enunciado: "estamos numa formalização, que é regulamentada (há regras de adição, aquelas ensinadas às crianças), que é finita, e, no interior dessa formalização, há uma atividade particular que é o cálculo" (Badiou, 2017, p. 29).
Contudo, a exigência de que cálculo sempre produza um número exige por sua vez que não exista um último número. "Isso seria absolutamente contrário à liberdade do cálculo" (Badiou, 2017, p. 29). Assim, é necessário que a série dos números seja infinita. O infinito, por sua vez, como bem sabemos, não pode ser um número. Eis o impasse. Segundo Badiou (2017, p. 30), a formalização da aritmética básica, ao contrário de dissolver esse impasse, incorpora-o, pois "exige que se admita uma infinidade subjacente que funda o real do cálculo ainda que como impasse de qualquer resultado possível desse mesmo cálculo, que só pode produzir números finitos". Em outras palavras, todo cálculo só é possível na medida em que se admite que o número, no que ele tem de finito, só pode se manifestar na dimensão de uma in-finitude. Esse é o sentido do que Badiou chamou de liberdade do cálculo: ele é de duração finita já que traz um número finito como resultado, mas, curiosamente, o cálculo também é uma operação que não tem fim (in-finita). "É nesse sentido que se pode dizer que o real dos números finitos da aritmética elementar é um infinito subjacente, inacessível a essa formalização, o que é, portanto, realmente, seu impasse. Lacan tem toda a razão" (Badiou, 2017, p. 30).
Temos que o infinito é a condição subjacente a todo cálculo finito. Contudo, é uma condição que não pode ser calculada, ou seja, é uma condição que fica de fora daquilo que ela condiciona. O infinito é o de fora, o impossível da formalização na qual o cálculo opera. Eis o real da aritmética elementar escrito como o impasse da formalização: "isso quer dizer que aquilo que a formalização torna possível - a saber, no nosso exemplo, calcular a partir de números - só é possível pela existência implicitamente assumida daquilo que não pode se inscrever nesse tipo de possibilidade" (Badiou, 2017, p. 30). Isso explica porque, na lógica lacaniana dos três registros sob os quais a experiência humana se desenrola, o impossível como real é o que ne cesse pas de ne pas s’écrire, ou seja, aquilo que não cessa de não se escrever (Lacan, 1985, p. 81). Com isso, o impasse do exemplo torna-se claro: o infinito é o que não cessa de não se escrever no cálculo e é exatamente devido a essa insistência em não se escrever que faz com que a não-inscrição do infinito seja o de fora, o impossível que torna possível a formalização da finitude aritmética.
Eis a demonstração de que a formalização, ou seja, o que Lacan chama de transmissão integral, não vai sem o seu impossível. O impossível não é suprimido, mas conservado. Tendo isso em vista, podemos afirmar que só se tem acesso ao real quando se consegue distinguir qual é o impossível próprio de uma formalização. Esse último ponto sobre a relação entre o real e o impasse da formalização serve, no fundo, para responder àqueles que defendem que há uma maneira de termos um acesso direto ao real. A política lacaniana do real não é uma política de paixão pelo real: em momento algum da trajetória lacaniana é possível localizar o desejo de estabelecer uma nova ordem "por meio de uma ciência do real capaz de fazer a crítica radical da aparência" (Safatle, 2005, p. 186). Podemos dizer que Lacan nunca se apaixonou dessa forma pelo real, pois ele nunca acreditou que a destruição da aparência promoveria a assunção de uma nova experiência da ordem do real. Para Lacan, definitivamente, nunca temos acesso à Coisa real, pois o real não é o elemento escondido atrás da aparência ou o elo que nos faria reencontrar terreno firme em alguma realidade mais real. O real lacaniano é aquilo que nos acontece.
De fato, Zizek (2005) é quem nos fornece uma fórmula muito feliz para se evitar a captura do real lacaniano pela imagem de uma realidade que transpareça ser mais real que a própria ficção na qual a realidade se estrutura. Segundo ele, uma das lições mais significativas de Lacan é que não se pode tomar a realidade como sinônima de ficção. "É preciso ter a capacidade de discernir, naquilo que percebemos como ficção, o núcleo duro do Real que só temos condições de suportar se o transformarmos em ficção" (Zizek, 2005, p. 34). Dito de outra maneira, é preciso ter a capacidade de reconhecer que grande parte daquilo que chamamos de realidade é estruturada por fantasias, o que faz com que, mesmo sendo discernidas como realidade, sejam percebidas num modo ficcional. "Muito mais difícil do que denunciar ou desmascarar como ficção (o que parece ser) a realidade é reconhecer a parte da ficção na realidade ‘real’" (Zizek, 2005, p. 34).
Dessa forma, o verdadeiro contrário do real é a realidade. O que significa que, para Lacan, o real deve ser totalmente dessubstancializado. Ora, é exatamente por isso que podemos retificar a ideia de Lacan de que o real é o furo do simbólico, o impossível de ser simbolizado com o impasse da formalização: o real não é só o impasse dos processos de simbolização, mas também aquilo que possibilita a constituição da própria significação. Nesse sentido, o real é tanto o limite negativo da significação quanto a sua condição de possibilidade.
E a política?
A paixão pelo real é no limite uma falsa paixão - a realização direta da esperada nova ordem pelo confronto violento com a Coisa só produzirá o efeito espetacular de destruição -, a qual traz como consequência uma política que, ao buscar implacavelmente a Coisa real por detrás das aparências, se define "como o estratagema definitivo para se evitar o encontro com ele [o real]" (Zizek, 2005, p. 39).
A política do real em Lacan pode ser então entendida como a estratégia de politização da defesa da irredutibilidade do real. Para Lacan, uma política que leve em consideração o real é uma política aberta à realização do impossível e não uma prática de gerência dos possíveis. Não custa lembrar que a política como arte de administração e gestão dos possíveis é o que Zizek (2005) chama de política sem política. Assim como o café sem cafeína, a cerveja sem álcool, o doce sem açúcar e o sexo virtual sem sexo, a política como sinônima de gestão eficiente de combate aos antagonismos é um produto que contém o agente de sua própria inibição. "A política sem política" é a política extraída daquilo que por definição é a política, isto é, o campo em que se constitui uma prática essencialmente aberta à realização do impossível. Quando Lacan fala do encontro com o real como a realização do impossível não se trata de fundamentar esse acontecimento, essa contingência, como um cálculo interno à formalização que deve obedecer aos seus princípios e regras. Ao contrário, como ficou demonstrado anteriormente, o ato é o que faz com que a própria formalização se desvaneça em proveito do real que aí irrompe.
"Contra uma política das identidades, uma política da universalidade da inadequação" (Safatle, 2005, p. 185). Contra uma política do mal e do bem necessário, dos gestos calculados para que encontremos soluções possíveis, uma política aberta ao acontecimento desprovido de nome e de lugar. Por essa razão, a verdadeira política do real não é animada pela busca desesperada de eliminação dos antagonismos sociais, mas pela defesa da irredutibilidade desses antagonismos, das diferenças, das inadequações e dos impasses que fundam a experiência do político.
Uma política lacaniana do real significa que não podemos remeter ao Outro a garantia de nossas ações e decisões. "Isso nos explica por que o Real é sempre descrito de maneira negativa, como se fosse questão de mostrar que há experiências que só se oferecem ao sujeito sob a forma de processos disruptivos" (Safatle, 2009, p. 139).
Referências
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Artigo recebido em: 12/04/2018
Aprovado para publicação em: 14/05/2019
Endereço para correspondência
Vinicius José de Lima Souza
E-mail: viniciuslimarn@gmail.com
Tiago Iwasawa Neves
E-mail: tiagoiwasawa@yahoo.com.br
*Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei. Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Campina Grande.
**Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Campina Grande. Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco.