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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.52 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2020
ARTIGOS
Trauma e lesão: algumas articulações em psicanálise
Trauma and injury: some articulations in psychoanalysis
Trauma y lesión: algunas articulaciones en psicoanálisis
Clarice MedeirosI*; Isabel FortesII**
IUniversidade Veiga de Almeida - Brasil
IIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
RESUMO
O objetivo do presente trabalho é articular lesão e trauma a partir da teoria psicanalítica. O trauma é definido tanto pelo hiato deixado na cadeia psíquica quanto pelo excesso pulsional, que produzem sequelas na história do sujeito. Destacamos o caráter subjetivo do trauma, afastando-o tanto de uma leitura científica daquilo que poderia ser objetivável, quanto como algo da ordem da realidade. Assim, o caráter traumático atribuído a um determinado evento depende também do próprio sujeito. Portanto, destacamos a lesão como um real que o sujeito incorpora e ao mesmo tempo desorganiza a economia psíquica e a reconfigura.
Palavras-chave: lesão, trauma, real, psicanálise.
ABSTRACT
The aim of this work is to articulate injury and trauma from a psychoanalytic theory viewpoint. Trauma is defined both by the gap left in the psychic chain and by the excess drive, which lead to sequels in the subject's history. We emphasize the subjective character of trauma, removing it from a scientific interpretation of what could be objectifiable and from the realm of reality. Thus, the traumatic character of an event is ascribed also by the subject. Therefore, we emphasize the lesion as a real element that the subject incorporates, which at once disorganizes the psychic economy and reconfigures it.
Keywords: injury, trauma, real, psychoanalysis.
RESUMEN
El objetivo del presente trabajo es articular lesión y trauma a partir de la teoría psicoanalítica. El trauma es definido tanto por el hueco dejado en la cadena psíquica cuando por su exceso pulsional, produciendo secuelas en la historia del sujeto. Destacamos el carácter subjetivo del trauma, retirándolo de una interpretación científica de lo que podría ser objetivable y del orden de la realidad. Así, el carácter traumático asignado a un determinado evento es dado por el propio sujeto. Por consiguiente, destacamos aquí la lesión como un real que el sujeto incorpora, que a la vez desorganiza la economía psíquica y la reconfigura.
Palabras clave: lesión, trauma, real, psicoanálisis.
Introdução
Quando ocorre uma lesão corporal, seja sob a forma de torções, estiramentos musculares, fissuras ou fraturas ósseas, dependendo da gravidade, o serviço de saúde ao qual nos dirigimos é nomeado de "traumatologia" e suas variações, como "traumato-ortopedia". Tal direcionamento faz da lesão um evento comumente encaminhado e tratado pelo saber médico. Entretanto, gostaríamos, no presente artigo, de refletir sobre o acontecimento da lesão a partir da teoria psicanalítica e propomos, para tal desafio, articulá-la à noção psicanalítica de trauma.
A relação entre trauma e lesão é antiga, uma vez que ambas remetem à clínica médica e cirúrgica. Nesse campo de saber, o trauma remonta às consequências de ferimentos ou lesões causados por um choque mecânico, ou seja, por uma violência de origem externa, e pressupõe uma marca visível aos olhos do médico e manipulável por ele (Canavêz, & Herzog, 2011). Ou seja, para a medicina, o trauma é oriundo de uma lesão provocada por eventos e agentes externos diversos (físicos, químicos, mecânicos etc.), com caráter acidental, cuja extensão, intensidade e gravidade são variáveis. Atualmente, nos manuais de psiquiatria, percebemos uma expansão da noção de trauma, que passa a dizer respeito também a uma agressão emocional capaz de desencadear perturbações psíquicas e, em decorrência disso, somáticas. No âmbito da psicopatologia, o termo designa acontecimentos que rompem radicalmente com um estado de equilíbrio do psiquismo, causando uma desorganização psíquica e consequentemente impondo um árduo trabalho de reestruturação psíquica (Rudge, 2003).
Dessa maneira, a noção de trauma se faz presente em vários contextos e permanece atualmente ainda como uma noção central em diferentes campos do saber. Segundo Laurent (2004), o sentido clássico atribuído ao trauma foi especialmente estendido pelos significados imputados a ele até os anos de 1980. A extensão do termo se justifica pelo próprio movimento científico, que, ao avançar, produz determinações e programações que vão do campo da genética até a importância e centralidade da temática do meio ambiente. A ciência, com seu progresso, faz existir uma causalidade programada de eventos que se articulam em uma dinâmica de causa e efeito. Contudo, com certa frequência, "surge o escândalo do trauma que, ele sim, escapa a toda programação" (Laurent, 2004, p. 21). Ou seja, na explicação de Laurent, o trauma seria aquilo que escapa à programação prévia da racionalidade científica, aquilo que surge como não determinado, como um evento inesperado. Tal formulação nos parece particularmente interessante: se a ciência determinista visa ao controle, será traumático aquilo que lhe escapa, aquilo que se mostra como indeterminado, incontrolável e imprevisível. Essa é uma característica bem marcante do trauma freudiano: para que algo seja traumático é necessário que traga consigo o fator surpresa, o inesperado.
Desse modo, diante do trauma, cabe à medicina, quase que exclusivamente, produzir modos de apaziguar esse corpo ferido, reinserindo-o no que é considerado saúde. Em contrapartida, os saberes psi seriam responsáveis por se dedicarem ao funcionamento psíquico. Podemos, inclusive, inserir a categoria diagnóstica de estresse pós-traumático como uma tentativa médica de também produzir um saber sobre o psiquismo. Contudo, o que estamos propondo com essa demarcação, de um lado a medicina responsável pelos cuidados do corpo e, de outro, os saberes psi dedicados ao psicológico, é acentuar a herança cartesiana da distinção entre mente e corpo, para demonstrar que, para a psicanálise, há uma subversão dessa concepção, uma vez que o psiquismo diz respeito tanto à mente quanto ao corpo. Com efeito, a separação mente-corpo, da forma pensada acima, isto é, que concebe a lesão como evento pertinente exclusivamente ao saber médico, é herdeira da visão cartesiana de mundo. Descartes descreve o mundo em dois termos: a res extensa - domínio espacial e físico, que seria apreendido pela ciência - e a res cogitans - domínio metafísico e racional, mais associado ao pensamento filosófico. Dessa maneira, a metafísica cartesiana busca conciliar duas realidades distintas que configuram um mesmo mundo - um mundo passível de racionalização.
Entretanto, no que tange à obra freudiana, podemos recolher desde sua inauguração indicações de como a dicotomia mente e corpo é esmorecida, não sendo um pressuposto que molda os conceitos psicanalíticos. Freud assevera, desde o início, com a neurastenia, a neurose de angústia, e as neuroses atuais, ainda no assim chamado período pré-psicanalítico, uma noção de corpo cuja via sintomática possui necessariamente um núcleo de excitação somática. Além disso, a descoberta da sexualidade infantil e sua relação direta com as neuroses recortaram um campo especial do funcionamento do organismo e, a partir desse momento, Freud voltou seu interesse para a sexualidade humana e seus correlatos psíquicos. Com o caso Dora, Freud define a conversão somática e a complacência somática como possibilidades do poder expressivo do corpo e sua aptidão para a significação. Com o texto sobre o narcisismo, descreve o corpo como uma superfície de onde emanam os investimentos pulsionais e, simultaneamente, como objeto desses investimentos. Enfim, a ideia de pulsão coroa a visão anticartesiana de Freud, diluindo ainda mais a referida dicotomia, uma vez que aquela situa-se no limite entre o físico e o psíquico. E, ainda, com a reformulação da teoria pulsional em 1920, as experiências psíquicas e afetivas são articuladas com alguns processos que seriam próximos ao campo do biológico.
Nessa visão, o corpo pode ser entendido como gerador de material psíquico, ou seja, como um agenciamento articulado desde e para o organismo. Assoun (2009), a partir da etiologia da palavra "soma", traça uma diferenciação do termo orgânico. Soma, em grego, é oposto a psyché, a alma. O orgânico é um dispositivo instrumental e, assim configurado, é uma montagem construída pela medicina moderna. A introdução freudiana do inconsciente vai recusar esse dualismo. Segundo Assoun (2009, p. 3), o inconsciente é o "missing-link" entre o psíquico e o somático e, pelo fato de ser estruturado como linguagem, temos como efeito a impossibilidade de localizá-lo seja no orgânico seja no somático, justamente porque o próprio significante aí se corporifica.
Assim, o presente artigo propõe, pelo viés do trauma e da lesão, acentuar a torção entre corpo e psiquismo, apostando na não separação entre esses dois registros.
A lesão na histeria
Para iniciarmos a discussão sobre a lesão física, pensamos ser necessário, antes de tudo, debruçarmo-nos sobre esse tema em psicanálise. Os primeiros indicativos sobre o assunto aparecem nos escritos freudianos em seu negativo, ou seja, pela ausência da lesão que justificasse os casos de paralisias, dores e cegueiras, entre outros, que se manifestavam na síndrome da histeria. No final do século XIX, particularmente devido aos trabalhos de Charcot, a medicina era confrontada com casos de histeria. Esse quadro caracterizava-se por sintomas de ordem somática para os quais não era possível encontrar uma etiologia orgânica. Por ser atribuída à histeria a capacidade de simulação das mais diferentes patologias, Freud (1893/1996) se empenha em pesquisá-la e compreendê-la. Para isso, traça um estudo comparativo entre as paralisias motoras orgânicas e histéricas a partir de sua vivência com Charcot no hospital psiquiátrico de Salpêtrière. Freud (1893/1996) logo conclui que na histeria não há uma simulação das paralisias orgânicas, mas que ela compartilha das suas características por representação. Dessa forma, a "paralisia histérica também é paralisia da representação" (Freud, 1893/1996, p. 206), isto é, os membros que se encontram paralisados não seguem a cadeia da anatomia, tratando-se mais de um mapeamento psíquico que atinge partes do corpo sem seguir a lógica anatômica, mas a lógica de uma representação psíquica. Assim, vemos, por exemplo, que nessa neurose o ombro ou a coxa podem estar mais paralisados do que a mão e o pé, o que organicamente não seria possível, pois tal eleição de membros contraria as regras da paralisia cerebral orgânica. Além disso, a paralisia histérica caracteriza-se por ter uma delimitação precisa e também pela intensidade excessiva, características que a distinguem da paralisia cerebral orgânica, na qual essas duas características estão ausentes.
Freud (1893/1996), então, questiona-se sobre qual poderia ser a natureza da lesão na paralisia histérica, já que esta não respeita a localização ou a extensão da lesão, nem a anatomia do sistema nervoso. Recorre aos estudos de Charcot, o qual afirma que a lesão na histeria seria uma lesão cortical, mas puramente dinâmica e funcional. Para Charcot, uma lesão dinâmica é uma lesão verdadeira, mas mínima e transitória, que após a morte não apresenta qualquer vestígio. Freud (1893/1996, p. 212) afirma justamente o contrário: "a lesão nas paralisias histéricas deve ser completamente independente do sistema nervoso, pois, nas suas paralisias […], a histeria se comporta como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta". Na paralisia histérica, o que está em questão é a representação dos órgãos e do corpo em geral, e a lesão é uma modificação de uma representação de uma parte do corpo. Assim, nessa paralisia uma determinada representação não consegue entrar em associação com outras ideias do eu, das quais o corpo e suas partes são componentes importantes. Tomando como exemplo o braço, "a lesão, portanto, seria a abolição da acessibilidade associativa da concepção de braço" (Freud, 1893/1996, p. 213). Nesse momento, denominado de pré-psicanalítico, é interessante notar a conexão entre a interrupção da cadeia associativa da representação do membro e sua paralisia, isto é, o fluxo associativo se interrompe, ao mesmo tempo que o afeto a ele correspondente é transportado para a ordem do corpo, que passa a ter, por sua vez, uma representação psíquica.
Nos casos de paralisia histérica, o órgão paralisado ou a função abolida estão remetidos a uma associação que é revestida de grande carga de afeto, situando-se longe da consciência. A parte do corpo paralisada pode, então, ter seus movimentos liberados tão logo essa quantidade de afeto seja descarregada. Toda impressão psíquica é revestida de uma carga de afeto da qual o eu se desfaz, seja por meio da reação motora ou da atividade psíquica associativa. Se o sujeito é incapaz de eliminar o afeto excedente ou se mostra relutante em fazê-lo, a lembrança da impressão passa a ter a importância de um trauma e se torna causa de sintomas histéricos permanentes (Freud, 1893/1996).
Observamos, portanto, que a lesão nas paralisias histéricas diz respeito à inadequação do órgão ou função de uma parte do corpo para o acesso às associações psíquicas e, reciprocamente, a um congelamento da representação psíquica do membro atingido. Essa modificação funcional é causada pela fixação do afeto em uma lembrança traumática, a qual não fica liberada e acessível enquanto a carga de afeto do trauma psíquico não for eliminada por uma reação motora adequada ou pela atividade psíquica consciente (Freud, 1893/1996). Aqui, observamos que a relação entre trauma e lesão se encontra articulada pelos entrelaçamentos entre atividade psíquica associativa, afeto e os destinos dos dois elementos acima nas expressões corporais.
O trauma em Freud
Como exposto, a noção de trauma na teoria psicanalítica emerge a partir do estudo de Freud sobre a histeria. A lesão na histeria é decorrência da lembrança traumática, que provoca uma ruptura na cadeia psíquica. Acreditamos, agora, ser pertinente perpassar as teorizações de Freud acerca do trauma para um maior embasamento da relação dele com a lesão física.
Na primeira formulação da histeria de Freud (1888/1996), essa neurose seria efeito de um trauma real, como os ocorridos em acidentes ferroviários, em que haveria um trauma físico intenso e a parte do corpo afetada pelo trauma poderia se tornar sede de um sintoma local. A noção de trauma esteve primeiramente, no final do século XIX, associada aos acidentes de trem, que causavam um traumatismo chamado de railway spine, que se manifestava por fenômenos como exaustão, tremores e dor crônica vistos como oriundos do choque do trem (teoria do choque). Logo após, o psiquiatra Oppenheim cunha o termo "neurose traumática" para designar a nova síndrome. Foram essas as bases em que se apoiaram Charcot e Freud para formular uma teoria do trauma psíquico que sustentava a etiologia da "histeria traumática" (Rudge, 2016).
Assim, nesse momento, Freud equivale a histeria à neurose traumática, nomeando-a de histeria traumática. Ou seja, na primeira formulação sobre a neurose traumática, o que está em questão é um acidente real, no qual há um perigo de vida iminente. Entretanto, Freud (1893/1996) considera ser necessário equiparar o fator determinante na histeria comum ao da histeria traumática, pois, "mesmo no caso do grande trauma mecânico da histeria traumática, o que produz o resultado não é o fator mecânico, mas o afeto de terror, o trauma psíquico" (Freud, 1893/1996, p. 40). Com isso, há um alargamento da histeria traumática, uma vez que toda histeria implica em um trauma psíquico e todo fenômeno histérico é determinado pela natureza do trauma.
Mas o que chama a atenção é o fato de algo ocorrido há tanto tempo continuar exercendo poder sobre o sujeito. Ou seja, o que importa, do ponto de vista da psicanálise, é que o trauma possui efeitos duradouros não restritos ao evento em si. Se o trauma psíquico está ligado a uma soma de excitação no aparelho psíquico, observa-se que quanto maior o trauma, mais intensa deve ser a reação correspondente, para que o aparelho possa se proteger de tal excesso. Porém não é sempre que essa reação é possível ou suficiente, e quando isso ocorre o trauma retém seu afeto original, permanecendo como um trauma psíquico. Portanto, os pacientes histéricos sofrem de traumas psíquicos que não foram totalmente reagidos ou ligados.
Com isso, Freud (1893/1996; 1896b/1996) pôde atribuir categoricamente ao trauma o seu caráter psíquico, o qual passa a ser compreendido como um afeto que não encontrou a via para ser ab-reagido. Dessa maneira, os sintomas da histeria são determinados por certas experiências vividas pelo paciente no passado que atuaram de modo traumático e que são reproduzidas em sua vida psíquica sob a forma de símbolos mnêmicos.
Além disso, a atribuição de um sintoma histérico à cena traumática deve responder a duas condições: a adequação para funcionar como determinante e ter, reconhecidamente, a força traumática. Com isso, Freud afirma que, se a primeira cena descoberta não possui a força traumática, faz-se necessário ir buscar mais além uma experiência ainda mais anterior e significativa. Assim, será possível entrelaçar as duas lembranças produtoras do sintoma. Conclui, ainda, que "nenhum sintoma histérico pode emergir de uma única experiência real, mas que em todos os casos a lembrança de experiências mais antigas despertadas em associação com ela atua na causação do sintoma" (Freud, 1896b/1996, p. 194). E, ao longo da investigação, "chegamos, infalivelmente, ao campo da experiência sexual" (Freud, 1896b/1996, p. 196). Então, nesse momento, a dimensão do sexual é introduzida, ao considerar que os sintomas histéricos só poderiam ser compreendidos se remetidos aos traumas psíquicos referentes à vida sexual do paciente.
Com efeito, a chamada Teoria da Sedução, que ligaria a origem do sintoma histérico à ação tardia de um trauma sexual na infância, foi elaborada nesse momento para explicar o caráter traumático da histeria. A ação traumática pressupõe dois tempos. No primeiro, há a cena de sedução propriamente dita, que ocorre, geralmente, na infância, quando a criança sofre uma tentativa de agressão ou uma agressão sexual por parte de um adulto. Porém, nesse primeiro momento, ela ainda não atribui a essa primeira cena um caráter sexual e traumático. É somente depois, na puberdade, quando uma segunda cena evoca a primeira, que o sujeito pode ressignificar a primeira cena com caráter sexual, logo, traumático. A partir disso, eclode o sintoma histérico (Laplanche, & Pontalis, 2001). Dessa forma, na Teoria da Sedução, o trauma não se localiza na vivência da vida adulta, mas no reviver, a posteriori, a intensidade evocada da primeira cena.
Com essa elaboração, duas características do trauma se mantêm ao longo da teoria psicanalítica. O passado censurado tem menos valor do que o estabelecimento de articulação entre as duas cenas, o que confere, a posteriori, o caráter traumático incluído na própria associação das cenas. E o efeito traumático está sempre relacionado a uma ruptura entre percepção e consciência.
Observamos que, durante algum tempo, Freud acreditou que o acontecimento objetivo era o responsável pelo trauma. Mesmo não descartando um aspecto de realidade ao trauma, o que perdurará até a "Carta 69" escrita a seu amigo Fliess, Freud propõe categoricamente a existência de uma realidade psíquica ao trauma, sem reduzi-lo, como vários estudiosos de sua época, ao estatuto do acidente ou do evento fatídico apenas. Podemos encontrar em encontrar em suas formulações a subjetividade inserida na dinâmica do acontecimento traumático, que tem um caráter determinante. Assim, "não importa que muitas pessoas vivenciem cenas sexuais infantis sem se tornarem histéricas, desde que todas as que se tornam histéricas tenham vivenciado cenas dessa ordem" (Freud, 1896b/1996, p. 205). Com essa constatação, Freud retira o caráter objetivo e totalizante que poderia ser atribuído ao trauma e o insere na dimensão do sujeito. Aqui, importa percebermos a dimensão psíquica inerente ao trauma. Ou seja, nada é traumático em si: um acidente, uma catástrofe, um evento violento não constituem em si um efeito traumático. Segundo Vieira (2008), existiria para a psicanálise uma premissa de que há em qualquer trauma um "fator subjetivo" ineliminável. Então, precisamos sempre considerar que, independentemente do fato em si, algo singular do sujeito precisa entrar em ação para que se possa definir um trauma, já que nem todos os sujeitos expostos à mesma situação serão traumatizados.
Na "Carta 69", endereçada a Fliess, Freud (1897/1996) revela que não acredita mais em sua neurótica, devido aos seus contínuos desapontamentos nos tratamentos psicanalíticos que empreendia, ao não chegar a uma conclusão real e à ausência de êxitos completos. Além disso, admite a impossibilidade em conceber a perversão em todos os adultos e, principalmente, nos pais, como precursores do abuso sexual da infância encontrado nos casos de histeria, e "a descoberta comprovada de que, no inconsciente, não há indicações de realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a ficção" (Freud, 1897/1996, p. 310).
A violência do evento costuma ofuscar esse "fator subjetivo", que é exatamente o que justifica a presença da psicanálise no campo do trauma, assinala Vieira (2008). Ora, se Freud se dedicou ao trauma do início ao fim de sua obra, não foi para dizer mais do mesmo. A particularidade da psicanálise dentre os demais discursos e saberes que abarcam o trauma é justamente por ela considerar a dimensão subjetiva, mesmo que nos escritos pré-psicanalíticos isso tenha aparecido de forma velada. Claro que a violência, o acidente, a catástrofe, a urgência que frequentemente acompanham o trauma são presentes na constituição do mesmo. Entretanto, admitir a existência do horror que acompanha o trauma só é válido na medida em que "o sujeito apresenta-se como esmagado pelo evento que parece carimbá-lo como traumático" (Vieira, 2008, p. 510).
Com tais constatações, Freud abandona a Teoria da Sedução, reconhece a limitação do papel patogênico do traumatismo infantil real e postula a existência de uma realidade psíquica. Apesar disso, é importante marcar que o abandono dessa teoria não é o abandono da noção de trauma, mas o reconhecimento do fator subjetivo. Com isso, desloca a teoria da sedução para a teoria da fantasia e da realidade material para a psíquica (Laplanche, & Pontalis, 2001).
Com efeito, com a predominância da teoria da fantasia e da realidade psíquica como explicações das formações do inconsciente, o tema do trauma desaparece por um período das teorizações freudianas e reaparece tempos depois, quando Freud escreve seu ensaio "Além do princípio do prazer" (1920/1996), a partir dos casos de neurose traumática. A Primeira Guerra Mundial e as marcas deixadas nos ex-combatentes convocaram Freud a retomar a teoria sobre o trauma. O fim dos combates elevou o número de casos de pacientes traumatizados e, enquanto a medicina insistia em caracterizar as neuroses de guerra como decorrências de um dano orgânico, Freud (1919/1996, p. 228) defendia que "não há dúvidas quanto à natureza psíquica das causas determinantes das neuroses de guerra". Com essas formulações, ele mais uma vez retira da teorização do trauma e da neurose o caráter exclusivo do fator externo catastrófico, para situá-los novamente como algo da ordem do psíquico.
As neuroses de guerra são, desse modo, exemplos paradigmáticos de neuroses traumáticas: "as neuroses de guerra, na medida em que se distinguem das neuroses comuns por características particulares, devem ser consideradas como neuroses traumáticas, […] ocorrem também em tempos de paz, após experiências assustadoras ou graves acidentes" (Freud, 1919/1996, p. 224-225). A partir dessas postulações, constata que as neuroses traumáticas e as de guerra podem "proclamar em voz muito alta os efeitos do perigo mortal e podem ficar em silêncio ou falar apenas em tom surdo dos efeitos da frustração do amor" (Freud, 1919/1996, p. 225). Tanto nas neuroses traumáticas como nas de guerra, o eu defende-se de um perigo, interno ou externo, que o ameaça.
Dessa forma, Assoun (2009) situa as produções freudianas dessa época, como descrevemos, no âmbito das discussões sobre as neuroses de guerras. A questão vigente era se a neurose traumática, prova de um real invasivo, poderia fornecer o modelo de todas as patologias orgânicas neuróticas. Freud desloca essa discussão ao formular mais claramente a ideia de uma engrenagem neurótica do trauma.
Em "Além do princípio do prazer", Freud (1920/1996) dá continuidade a suas formulações sobre o trauma, que são agora inseridas na concepção do segundo dualismo pulsional. Nessa nova teorização, o trauma diz respeito a quaisquer excitações que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor e tirar de ação o princípio do prazer, pondo o sujeito em estado traumático. Diante disso, não haveria mais a possibilidade de impedir que o aparelho psíquico seja inundado com grandes quantidades de estímulos. O trauma passa a ser descrito, então, como o efeito do rompimento do escudo protetor do psiquismo por um excesso de excitação que não pode ser processado psiquicamente, seja por uma incapacidade estrutural ou contingencial, seja pelo fator surpresa. A consequência disso seria não somente a presença de uma intensidade excessiva e livre, mas o desmanche de parte da tessitura psíquica. Em resumo, o traumático derivaria da ausência de ligação e da quebra maior ou menor da rede representacional.
Trauma e real
A noção freudiana de trauma pode ser aproximada do conceito lacaniano de real, definido como algo que escapa, que se encontra além da insistência dos signos comandados pelo princípio do prazer (Lacan, 1964/2008). Tanto trauma quanto real estariam fora da regência do princípio do prazer e, dessa maneira, situam-se além e aquém do significante. O real, para Lacan, é o inassimilável. Se o traumático é sempre atravessado pelo resto não assimilável, a linguagem pode rodeá-lo, mas não absorvê-lo completamente (Lacan, 1964/2008). Tal como extraímos da teoria do trauma em Freud o caráter de ruptura da rede representacional, ao aproximar trauma e real Lacan também propõe que o trauma possui um caráter inassimilável no psiquismo, podendo ser concebido fora do significante. O trauma produz, então, uma ruptura, pois se trata de um evento violento, abrupto, diante do qual o sujeito tentará dar conta a posteriori. Cabe lembrar, mais uma vez, que o trauma não é o momento ou o evento que o desencadeou, ele é acessível somente por suas consequências, e seus efeitos só poderão ser entrevistos pela linguagem e não pela experiência em si.
Nessa perspectiva, Garcia-Roza (2003) explica a noção de causa acidental, que é utilizada por Lacan para tratar do real, sob os tipos da tyche e do automaton. Lacan (1964/2008) concebe o automaton como a rede de significantes e a tyche como o encontro com o real, e, por isso, está além do jogo dos signos e significantes e seu retorno (automaton), além da fantasia, além do princípio do prazer. Ambos são acontecimentos excepcionais sem serem concebidos como absurdos ou irracionais e podem, em geral, ser assimilados à noção de acaso, pois dizem respeito a algo que ocorre fora do alcance da razão humana, dificultando que se lhes atribua uma inteligibilidade. No entanto, Garcia-Roza (2003) concebe que somente o automaton pode ser compreendido como aquilo que acontece sem nenhuma deliberação humana ou divina e cujo efeito não era esperado, definindo-se, portanto, como mais próximo do acaso. A tyche, diferentemente, não remete ao acaso porque "ela designa muito mais um destino, algo ao qual o homem é submetido e que é exterior aos próprios acontecimentos" (Garcia-Roza, 2003, p. 40). Dessa maneira, ao definir o real como um lugar que se dá entre destino e acaso, a noção de trauma afina-se com esse campo, uma vez que o entendemos como fruto tanto da repetição como do indeterminismo. Então, a aproximação entre real e trauma permite entrever a dimensão daquilo que se impõe a cada sujeito falante, que escapa da rede significante, mas a que apenas podemos ter acesso pelas coordenadas subjetivas próprias. Disso apreendemos que não temos acesso ao trauma do real, apenas ao trauma já infiltrado no fantasma de cada um. Dessa forma, ao mesmo tempo que confronta cada um para construir um sentido, há algo que é estruturalmente inassimilável.
Lacan (1973-1974/2018, p. 144) cria o neologismo troumatisme para descrever o trauma, aliando o furo (trou) do simbólico com o trauma advindo do real: "lá onde não há relação sexual, isso produz um buraco que traumatiza (troumatisme)". A concepção lacaniana também propõe pensar o trauma em sua relação entre o interior e o exterior, o que é condensado na figura do toro, um espaço particular da linguagem que apresenta uma permeabilidade entre o dentro e o fora. Tal modelo apresenta a particularidade de designar o interior e o exterior e é a forma mais simples do espaço que inclui um buraco (Laurent, 2004). Então, num primeiro sentido, o trauma é um buraco no interior do simbólico, este que pode ser entendido como o conjunto de significantes a partir do qual o sujeito pode encontrar a presença de um real. O toro "permite figurar o real em exclusão interna ao simbólico" (Laurent, 2004, p. 25).
Soler (1998), por sua vez, faz uso da equivocidade do neologismo proposto por Lacan e associa o trauma ao tropmatisme, àquilo que é trop, que é demasiado e excessivo. Com isso, o trauma pode ser entendido não somente pela via de um furo, como no neologismo lacaniano, mas inscrito também no registro do excesso. Assim, apreende-se com Freud e com Lacan que o trauma não é somente o buraco, mas também algo que excede, causa ruptura, que é insuportável para aquele sujeito. Trata-se de algo que é impossível antecipar, evitar ou conter de antemão, já que remete a um real que parece excluir a incidência do inconsciente e o desejo daquele que padece do trauma, deixando-lhe sequelas.
Dessa maneira, o trauma como troumatisme é também um tropmatisme, sendo ao mesmo tempo buraco e excesso, insistência com suas marcas indeléveis, que se referem ao mais singular de cada um e requerem uma forma de defesa para lidar com o retorno incômodo de um gozo fora de sentido, um acúmulo de excitações que se situam além do princípio de prazer, além do que se pode contabilizar e eliminar (Barros, 2015).
Nessa perspectiva, a intrusão do traumático não é homogênea nem unívoca e apresenta diversas faces, não apenas as individuais, como também as coletivas. Os momentos de catástrofes naturais, guerras, atentados ou violências expressam o drama coletivo e põem em cheque a relação sempre abalável entre o sujeito e o Outro. Falar do aspecto muitas vezes inarticulável dessa relação indica o impensável da experiência traumática e aponta a dimensão de buraco nela presente. A abertura desse buraco é correlata a um gozo em excesso, sem referência possível, e diz respeito à inconsistência de um Outro que seja capaz de oferecer algum recurso para lhe servir de mediação, para simbolizá-lo ou mesmo metabolizá-lo (Barros, 2015). Nesse sentido, Soler (1998, p. 3) salienta que "o verdadeiro trauma não pode aparecer quando o Outro existe". Quando o Outro existe - esse campo em que há significações estáveis mais ou menos compartilhadas por todos os membros de uma comunidade e que dá contornos definidos aos seus laços sociais -, em um discurso que o faça existir, há dor, há sofrimento, há exterminação, há todo tipo de tragédia, mas também há o sentido da vontade do Outro e, portanto, não há uma experiência que possamos chamar de traumática. Essa rede de significações compartilhadas serve como um anteparo, uma proteção diante das irrupções brutais e traumáticas. Porém, quando o Outro não existe, quando o discurso do Outro perde sua consistência e fracassa como proteção, o que surge é o real sem sentido e, consequentemente, o traumático. Nesse caso, o buraco aberto fica assim ocupado por um corpo estranho, que insiste em sua opacidade, "que se fixa, tornando a vida difícil de suportar a cada vez que certos acontecimentos, muitas vezes insignificantes em si, evocam esse ponto, essa ferida incurável" (Barros, 2015, p. 1-2). Então, diante do trauma, como expõe Lacan (1973-1974/2018, p. 144), "inventamos um truque para preencher o buraco do real"; inventa-se o que é possível para cada um.
Trauma e lesão
A partir das contribuições freudianas sobre as neuroses traumáticas e as de guerra, e com a formulação do além do princípio do prazer, podemos aproximar a noção de trauma à noção lacaniana de real. Para tal equiparação, é importante asseverar que para a psicanálise o trauma é sempre psíquico e diz respeito à ruptura da rede significante. Como podemos, então, para seguir a premissa proposta no presente artigo, articular trauma e lesão, utilizando, para essa aproximação, a teoria psicanalítica?
Acreditamos ser pertinente explorar, primeiramente, a proposta de Nudelman, Mayrink, Vieira, Abla, Gouvêa e Lage (2017) sobre o impacto do trauma no eu-corpo, a partir da descrição do aparelho psíquico presente na "Carta 52" de Freud (1896a/1996).
Nesse escrito, Freud se mantém com a problemática da percepção e de memória, que ele tentara resolver anteriormente em seu ensaio "Projeto para uma Psicologia Científica". A respeito do funcionamento do aparelho psíquico elaborado nesse momento, Freud (1896a/1996) explica que a percepção (W), à qual a consciência se liga, não conserva nenhum traço e os primeiros registros da percepção ocorrerão em Wz, signo de percepção. O signo de percepção é o momento primário da elaboração mnêmica e é anterior à inscrição da memória, onde se formam os representantes, e posterior à sensação/percepção.
Com isso, constatamos que o signo de percepção é uma marca deixada no aparelho psíquico, mas sem ainda poder ou nunca poder ser representante. Assim, o signo de percepção não é representação. Há uma marca, mas que não é significante, pois é exterior à linguagem e ao sentido, por se inserir na cadeia de representações; os traços não estão ligados e não formam séries, devem ser entendidos como signos isolados, não ligados, que podem ser configurados como mais da ordem do sinal ou do índice do que da ordem do significante (Garcia-Roza, 2004). As marcas do signo de percepção caracterizam-se por não sofrer nenhuma tradução e são impressões psíquicas desregradas, não articuladas em uma trama de representações e, portanto, de memória. Elas subsistem como marcas psíquicas, ou seja, as marcas mantêm-se fora dos sistemas de representações e das regras aplicadas a estas (Antonello, & Herzog, 2012).
Tendo isso em vista, Nudelman et al. (2017) explicam que, ao ligar a percepção ao signo, cria-se uma antecipação lógica, em que é possível localizar uma pré-figuração do inconsciente. O signo de percepção é o germe do significante, que poderá ser escrito a posteriori. Então, a percepção, na "Carta 52", é o sistema que implica uma "sensação que imprime-se como ponto traumático" (Nudelman et al., 2017, p. 307), no corpo. O signo aponta para o real que incide sobre o eu-corpo, sem intermediação do sistema mnêmico e das representações, deixando marcas no corpo. Com isso, podemos pensar que, com a incidência real diretamente no corpo, sem intermediação simbólica, resta uma marca, uma lesão.
Uma proposta semelhante a essa, descrita anos depois, em 1920, é apresentada em "Além do princípio do prazer", quando Freud demonstra que um grande dano físico causado é capaz de diminuir a possibilidade de uma neurose se desenvolver. A justificativa para isso era que, ao mesmo tempo que a violência do trauma libera uma quantidade de excitação sexual capaz de, diante da ausência de uma proteção eficiente, ter um efeito traumático, o dano físico (lesão) simultâneo causado por esse impacto exigiria um investimento narcísico na parte do corpo lesionado, o que sujeitaria o excesso de excitação liberada.
Esse investimento narcísico na região corporal lesionada já havia sido mencionado em 1914, em "Sobre o narcisismo: uma introdução", quando a experiência da dor é associada à doença orgânica e ao narcisismo; citando a célebre frase de Wilhelm Busch a respeito do poeta que sofre de dor de dente: "concentrada está a sua alma no estreito orifício do molar" (Freud, 1914/1996, p. 89). Com isso, indicava que, na dor e na doença orgânica (do mesmo modo que em todo sofrimento), o enfermo retiraria o interesse e a libido do mundo, concentrando-os no órgão dolorido ou doente. Aquele que é tomado pela dor e por um mal-estar abandona o seu interesse pelos objetos do mundo exterior, desde que eles não tenham relação com seu sofrimento. A dor, nesse momento, é o paradigma do narcisismo, de modo que o retorno narcísico concentra a vida psíquica em uma parte do corpo. Além disso, em "O eu e o isso", Freud (1923/1996) indica a dor como paradigma do narcisismo e da constituição do próprio corpo, associa certas representações, garantidas por percepções externas, a sensações e afetos, percepções internas, e conduz à concepção do eu-órgão, ou seja, participa da construção do eu.
Encontramos, então, nessas formulações freudianas, uma via para compreender a relação entre lesão e trauma. A lesão é a marca do trauma em certos pontos de impacto no corpo inclusos na economia narcísica. Como o sujeito não pode se precaver diante do trauma, que tem como uma de suas principais características o fator surpresa, a lesão aparece, para Assoun (2009), como um tiro de advertência ao eu, resultante do mau encontro entre o sujeito e o real. O sujeito incorpora um real que é impossível de simbolizar; um mau encontro que desorganiza a economia psíquica, mas ao mesmo tempo a reconfigura. Ao marcar o corpo, a lesão permite que o caos se circunscreva em uma determinada região, o que lesiona. Acreditamos ser mais interessante, portanto, conceber a lesão não como origem do trauma, mas como um de seus possíveis destinos. Essa reversibilidade de compreensão da lesão formulada por Assoun nos parece interessante, já que ela não é origem, tal como concebe o discurso médico, mas destino.
Além disso, o autor destaca que as neuroses de guerra são paradigmáticas para relevar o conflito neurótico. A lesão coloca no corpo o drama da neurose traumática e nesse ponto sinalizaria a neurose para o sujeito. Esse argumento é importante, uma vez que há aqui um problema de causalidade. A lesão pode ser compreendida como um trauma que causa dor e dela advém o drama neurótico, as dores neuróticas. Ou seja, não há propriamente causa e consequência para a lesão. Trata-se, portanto, de um impacto corporal que produz uma descontinuidade entre o antes e o depois, mas se insere, de alguma forma, na história de vida do sujeito.
Essas constatações, é importante ressaltar, marcam um distanciamento de Freud do discurso médico. A descrição do trauma não somente como um dano corporal decorrente da guerra, mas principalmente como um impacto físico que uma experiência pode causar, põe em relevo a importância do psiquismo na experiência traumática.
Por isso, Vieira (2008, p. 511), ao enfatizar o indeterminismo do fator surpresa inerente ao traumático, insere a dimensão do sujeito frente ao trauma, "algo surpreendente em si não existe. Muita coisa acontece na vida, mas o que dela surpreende é o que me toca como sujeito". Portanto, ao relacionarmos a lesão ao trauma, entendemos que este pode resultar em uma lesão ou um dano orgânico, mas o impacto que tal evento terá para o sujeito é sempre singular. Assim, propomos pensar a lesão como uma resposta subjetiva ao trauma, uma vez que circunscreveria o excesso em determinada região corporal. Nesse sentido, a lesão pode comparecer, da forma exposta segundo Lacan (1973-1974/2018), como uma possibilidade de invenção por parte do sujeito para responder ao buraco e ao excesso do Real (troumatistme/tropmatisme).
Considerações finais
Concluindo, portanto, acreditamos poder encontrar nas teorizações freudianas uma via para uma aproximação entre o trauma e a lesão, articulação não muito desenvolvida nas pesquisas em psicanálise, mas a qual procuramos enfatizar, pensando em como pode o psicanalista enfrentar os desafios da clínica. Tal apreensão não é de fácil acesso pela teoria psicanalítica, mas buscamos pontuar, ao longo do presente artigo, alguns elementos que a nosso ver nos permitem justificar a pertinência de compreender a lesão física pela via do trauma. Vimos, assim, como a lesão é a marca do trauma em certos pontos de impacto no corpo inclusos na economia psíquica. Como o sujeito não pode se precaver contra o trauma, que tem como uma de suas principais características o inesperado, o fator surpresa, a lesão aparece no eu, segundo explica Assoun (2009), como uma resultante do mau encontro entre o sujeito e o real. Trata-se, conforme buscamos explicitar, do encontro com um real que é duro de metabolizar e que por sua vez desorganiza a economia psíquica. Ao mesmo tempo, o psiquismo será levado a partir daí a se reconfigurar. Além disso, é fundamental, conforme assinalamos, para a escuta psicanalítica da lesão, compreendê-la não como origem do trauma, mas como um de seus possíveis destinos. Desse modo, somente podendo ser um destino para o excesso traumático o dano físico da lesão pode ser escutado e elaborado a partir da história de vida daquele sujeito em sua singularidade.
Referências
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Artigo recebido em: 29/11/2018
Aprovado para publicação em: 09/03/2020
Endereço para correspondência
Clarice Medeiros
E-mail: mdrsclarice@gmail.com
Isabel Fortes
E-mail: mariaisabelfortes@gmail.com
*Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, Professora da Universidade Veiga de Almeida.
**Psicanalista, Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.