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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2022

 

ARTIGOS

 

Mestrias antigas e posições analíticas: a psicanálise à luz de Michel Foucault

 

Ancient masteries and analytical positions: psychoanalysis in the light of Michel Foucault

 

Maitrises anciennes et positions analytiques: la psychanalyse a la lumiere de Michel Foucault

 

 

Samuel Iauany*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com o intuito de correlacionar Foucault e a psicanálise lacaniana, analisamos parte de seu pensamento final, voltado para as mestrias antigas, e lançamos luz à questão atual da posição do analista. Nosso embasamento consiste principalmente no curso ministrado em 1982, publicado como L'Hermèneutique du Sujet, que se endereça significativamente à discussão da função terapêutica da filosofia - recorte histórico-metodológico que lança Foucault a algumas análises do tempo presente, entre as quais encontramos breves referências à psicanálise. Apesar de pequenas, pensamos que tais menções realizam aberturas importantes para o diálogo entre a filosofia e o campo psicanalítico. Além disso, retomamos secundariamente passagens de outros cursos e conferências da década de 1980, nos quais o filósofo nos oferece ferramentas importantes para pensar o papel e as modalidades históricas da relação dialógica voltada para a cura, ou, em outros termos, para a relação entre o sujeito e a verdade.

Palavras-chave: Foucault, Lacan, mestre, analista, cuidado de si.


ABSTRACT

In order to correlate Foucault and Lacanian psychoanalysis, we analyze part of his final thought, focused on ancient mastery, and shed light on the current question of the psychoanalyst's position. Our basis consists mainly of the course taught in 1982, published as L'Hermèneutique du Sujet, which significantly addresses the discussion of the therapeutic function of philosophy - a historical-methodological approach that launches Foucault to some analyzes of the present time, among which we find brief references to psychoanalysis. Despite being small, we think that such mentions provide important openings for the dialogue between philosophy and the psychoanalytic field. In addition, we secondarily comment on passages from other courses and conferences from the 1980s, in which the philosopher offers us important tools to think about the role and historical modalities of the dialogical relationship focused on healing, or, in other words, on the relationship between the subject and the truth.

Keywords: Foucault, Lacan, master, psychoanalyst, the care of the self.


RÉSUMÉ

Pour relier Foucault et la psychanalyse lacanienne, nous analysons une partie de sa pensée finale, centrée sur les maîtrises antiques, et nous passons la question actuelle de la position de l'analyste. Notre base est constituée principalement du cours enseigné en 1982, publié sous le titre L'Hermèneutique du Sujet, qui aborde de manière significative la discussion de la fonction thérapeutique de la philosophie - une approche historico-méthodologique qui lance Foucault à certaines analyses du temps présent, parmi lesquelles nous trouver de brèves références à la psychanalyse. Malgré leur petite taille, nous pensons que de telles mentions offrent des ouvertures importantes pour le dialogue entre la philosophie et le champ psychanalytique. De plus, nous reprenons secondairement des passages d'autres cours et conférences des années 1980, dans lesquels le philosophe nous offre des outils importants pour penser le rôle et les modalités historiques de la relation dialogique centrée sur la guérison, ou, en d'autres termes, sur la relation entre le sujet et la vérité.

Mots-clés: Foucault, Lacan, prof, analyste, prends soin de toi.


 

 

Introdução

O intuito deste manuscrito é realizar um diálogo entre Foucault e a psicanálise lacaniana, buscando correlacionar algumas questões que ele trabalha sobre as mestrias antigas com a questão da posição do analista. Com efeito, nos embasamos principalmente no curso ministrado em 1982, publicado como L'Hermèneutique du Sujet (Foucault, 2001; 2010a1), que tem boa parte dedicada à discussão da função terapêutica da filosofia - dimensão histórica que permite ao filósofo pequenas abordagens sobre o presente, entre as quais encontramos breves referências à psicanálise. Apesar de breves, pensamos que elas realizam aberturas importantes para o diálogo entre a filosofia e a psicanálise, na atualidade. Além disso, retomamos, com mais centralidade, outras passagens de outros cursos e conferências da década de 1980 (Foucault, 2008; 2010b; 2013; 2017), nos quais Foucault parece nitidamente nos oferecer ferramentas para pensar a função do que ele chama de Outro - aquele posto no lugar de facilitador da cura.

Primeiro, delineamos um contorno geral para a figura do Outro filósofo, conforme Foucault desenvolve em alguns eixos dos cursos de 1982 e de 1983 (Foucault, 2001; 2008; 2010a; 2010b). Para tanto, contamos com o trabalho de Cattapan (2011), que esquematiza um crivo foucaultiano de leitura das posições de interpretação e de produção da verdade, já endereçado à possibilidade de pensar o presente, sobretudo a psicanálise. Em seguida, aprofundamos a relação entre Foucault e a psicanálise, iniciando por um comentário mais amplo acerca das ressonâncias entre ambos os campos discursivos e terminando por uma análise das posições analíticas à luz do pensamento final do filósofo. Depois, tecemos um breve comentário sobre a questão da mestria e do lugar do analista, partindo de uma passagem chistosa da conferência foucaultiana de 1983, em Berkley, Estados Unidos, na qual ele trata da questão do pagamento pela relação terapêutica (Foucault, 2017). Por fim, encerramos o texto apresentando um impasse na afinidade que sustentamos entre a estrutura do cuidado de si e o campo ético e técnico da psicanálise, consequência da relação entre as noções de sujeito e de verdade advindas do dispositivo de uma análise.

 

Notas sobre um outro filósofo: visão geral das mestrias greco-latinas

A figura do Outro no discurso de Foucault da década de 1980 indica, dentr o da espiritualidade filosófica do cuidado de si, o posicionamento do filósofo no exercício de uma função terapêutica. Seria essa a função principal, a espinha dorsal daquilo que ele (Foucault, 2001; 2010a) busca em 1982, e o admite em 1983, em Berkeley (Foucault, 2017, p.79), quando diz ser essa a razão do seu foco nos greco-latinos. O filósofo, assim posicionado, visa otimizar naqueles que o demandam a capacidade de uma autossubjetivação, coincidindo esta potencialidade com o alcance de uma cura. Neste sentido, podemos falar de um contorno geral para o mestre da cultura de si, que será dotado de certos traços agrupados a partir das análises de Foucault (2010a), sobretudo quando ele discute os pensamentos de Epicuro, Galeno, Epicteto, Filodemo, Quintiliano e Sêneca, figuras que se dedicaram notavelmente a pensar a função do mestre.

Mesmo que voltada para obtenção de uma espécie de cura, a ligação entre mestre e discípulo, neste contexto, será muito diferente de uma direção cristã ou daquela psiquiátrica/psicológica, ambas deixadas de lado no curso de 1982, apesar de aparecerem demasiadamente em outras obras de Foucault. A começar pela circunstância que leva à ligação filosófica, a qual acontece, na cultura de si, pela união de duas "vontades" (Foucault, 2013, p. 42), ou seja, de modo voluntário e temporário. Ela se inicia pela ocorrência de uma porção de fatos que precisam ser equacionados, mas que servem de fomento para a criação de um modo de vida duradouro. Mesmo que a direção filosófica leve um tempo longo, a parceria greco-romana visa dotar o sujeito dirigido da autonomia necessária para, posteriormente, prescindir de orientações e de intervenções. Outro fator importante desta relação filosófica epicurista e estoica é que não existe a necessidade de uma exposição exaustiva de uma verdade do discípulo para o mestre, e muito menos um vínculo tal que dê a este total poder sobre quem o procura.

De uma perspectiva técnica, o Outro precisa cumprir uma série de requisitos, como Foucault (2010a) o demonstra comentando o Tratado das Paixões, de Galeno. No contexto específico da parrhesía trabalhada em 1982, que é a da direção de consciência, mais voltada à "fala franca" que ao "tudo dizer" ou ao "dizer corajosamente" (Foucault, 2010b, p.71), o mestre precisa estar particularmente atento à possibilidade de recepção da verdade por parte do discípulo. Portanto, ao exercer sua função, o filósofo parece movimentar-se por uma série de posturas táticas voltadas ao momento propício (kairós) da intervenção, como, por exemplo, não estabelecer diálogos vãos, nem usar de violência, nem irritar e/ou constranger quem o escuta - duas características comuns ao posicionamento socrático. O mestre não deve, ainda, pautar-se na lisonj a, nem usar de reprim endas e, principalmente, não se colocar como alguém que, por si só, pode satisfazer as demandas do discípulo, no sentido de tudo saber. Em suma, o mestre greco-latino não é nem um mestre de exemplo, nem um mestre de competência e nem um mestre do embaraço (Foucault, 2010a, p.115-116), já que não visa apenas a substituição de uma ignorância por um saber. Foucault o classifica como o "[...] mediador na relação do indivíduo com sua constituição de sujeito" (Foucault, 2010a, p. 117).

Dentro do exercício desta mediação, a função terapêutica da filosofia coincide com a possibilidade de transformar a maneira de ser de um sujeito que não pode fazê-la sozinho. Para Foucault, o mestre

[...] não é mais aquele que, sabendo o que o outro não sabe, lho transmite. Nem mesmo é aquele que, sabendo que o outro não sabe, sabe mostrar-lhe como, na realidade, ele sabe o que não sabe. Não é mais nesse jogo que o mestre vai inscrever-se. (Foucault, 2010a, p. 117).

Assim, considerando a figura histórica de um Outro que, de diferentes m aneiras, diz ao sujeito a sua verdade, já que este não é capaz de compreendê-la - um modo sintético de referir-se ao contexto platônico-cristão, há aquele Outro que, frente ao sujeito, faz com que ele próprio possa criar os meios de sua verdade. Nesta vertente, o mestre não possui o lugar de referência do saber, mas o lugar de interlocutor em uma relação ética.

A dupla divisão histórica entre as figuras do Outro pode ser enriquecida com a divisão, feita por Foucault (2010b) em 1983, entre "três dizer-a-verdade" (Foucault, 2010b, p. 77) presentes na tradição ocidental, quais sejam, os modos oracular, confessional e do jogo político. Estas modalidades referem-se a formas distintas de produzir e veicular o verdadeiro, posicionando o Outro em lugares diversos. Estes tipos enunciativos estão presentes na tragédia de Íon, de autoria de Eurípedes, mas podem ser vislumbrados de modo conjuntural no desenvolvimento das práticas de si ocidentais, marcando características gregas, greco-latinas, cristãs e modernas. Para esta leitura, temos em conta a contribuição de Cattapan (2011), que volta a discussão foucaultiana para a análise de posições interpretativas operadas atualmente, mas no contexto da psicanálise. De qualquer forma, é coerente compreender a divisão do Outro como uma das entradas para uma análise mais direta do presente, dando importância à ideia de Foucault acerca da centralidade do problema para "[...] toda história da prática de si e, de modo mais geral, da subjetividade no mundo ocidental" (Foucault, 2010a, p. 117).

Primeiro, falemos do Outro em posição oracular. Seu modelo é o templo de Delfos, de onde uma divindade tem o poder de revelar ou não a verdade. Esta, quando aparece, é dada pelo Outro de forma "[...] reticente, enigmática, difícil de compreender e, no entanto, inelutavelmente diz o que é e o que será" (Foucault, 2010b, p. 76). A verdade só pode se expor próxima ao oráculo, ou seja, no plano criado por ele para sua veiculação, e exige daquele que a demanda a capacidade de solucionar o enigma discursivo. É uma verdade que determina como será a vida daquele que a busca, mas aparece apenas ofuscada, em "metades" (Foucault, 2010b, p. 79). O plano dialógico do modo oracular pode ser definido como uma relação na qual apenas um dos lados detém a capacidade de produzir um saber verdadeiro (Cattapan, 2011).

Segundo, há o modo confessional de produção da verdade. No caso do curso de 1983, Foucault se restringe ao Íon de Eurípedes, mas podemos falar de um plano genérico, no qual o Outro escuta uma verdade confessada por aquele que o procura. Cattapan (2011) enxerga dois cenários para essa mesma lógica, um, no qual o Outro apenas recepciona a verdade que o sujeito detém mas precisa compartilhá-la; dois, no qual o Outro tem o papel de fazer a verdade aparecer no discurso turvo e involuntário de um sujeito que, apesar de dizê-lo, não poderia percebê-la sozinho. Nas duas ocasiões, o confessor ou apresenta-se "[...] sedento de escutar uma verdade", ou "[...] ocupa uma posição em que somente ele é capaz de pontuar quando uma verdade surge ou não no discurso [...]" (Cattapan, 2011, p. 09). Em ambos os casos, o oracular e o confessional, há alguém que sabe, desde o princípio, a verdade. Sendo o Outro ou o discípulo, há sempre alguém que, nas palavras de Cattapan (2011), "[...] já tenha mapeado onde e o que deve ser a verdade secreta" (p. 10).

Por fim, o modo do jogo político de produção do verdadeiro, aquele que mais se associa ao lugar do Outro da espiritualidade do cuidado de si. O jogo político só acontece quando há, entre o Outro e o sujeito, a necessidade de uma interlocução que passe pela experiência comum, dentro de um plano de relação com as regras morais e os interesses de cada uma das partes em determinada situação. A própria relação que Sócrates estabelece com Alcibíades não depende do oráculo, mas de um embate dialógico, de uma discussão sobre práticas diversas, diferentes valores e concepções de modos de vida. O primeiro visava cumprir seu encargo de cuidar do cuidado de si de outrem, e o segundo desejava cuidar de si apropriadamente para poder governar a cidade. Cattapan sintetiza a questão do espaço de veiculação da verdade no jogo político, dizendo: "[a] verdade que se constrói ali é algo entre pessoas, não algo transcendental ou algo localizado dentro de alguém" (Cattapan, 2011, p. 13). E o Outro, portanto, situa-se no mesmo plano que o sujeito, mas dotado de uma diferença proporcionada por sua técnica, que possibilita a movimentação do jogo e sua respectiva produção dinâmica de discursos verdadeiros, tal como a parrhesía pode movimentar a democracia diante da monotonia do direito igualitário à palavra (Foucault, 2009).

 

Ressonâncias entre Foucault e a psicanálise

O intuito desta seção é delinear um campo de ressonâncias entre Foucault e a psicanálise, tendo como base a abertura acerca da questão das mestrias, proporcionada pelo curso ministrado pelo filósofo em 1982. Em certo sentido, trata-se de buscar um plano de afinidade entre esta obra e a psicanálise lacaniana, considerando que, neste campo, cabem conjunções, disjunções e impasses (Birman & Hoffmann, 2017). Foucault fica conhecido, de modo especial na década de 1980, por "[...] diagonalizar a atualidade por meio da história" (Gros, 2016, p. 11), isto é, falar do presente posicionando-se de uma exterioridade relativa. No entanto, mesmo neste contexto de deslocamento histórico-metodológico, alguns problemas atuais são brevemente abordados de maneira direta. A questão da psicanálise é um deles, e aparece em digressões inesperadas em meio a análises de preceitos, contos, fabulas e metáforas antigas. No entanto, a abertura ao saber analítico, mesmo que direta, é pequena, ocorrendo mais frontalmente em uma ocasião na aula 6 de janeiro de 1982, pela qual podemos perguntar: seria a psicanálise correspondente à espiritualidade do cuidado de si (epiméleia heautoû), segundo os fundamentos apresentados pelo filósofo? Esta correspondência será buscada na questão das posições analíticas, à luz da posição do antigo filósofo greco-latino.

A referência à psicanálise no curso de 1982 surge com um caráter significativamente distinto no pensamento de Foucault. Dentro do material do Collège de France da década de 1980 (Foucault, 2001, 2008, 2009, 2012, 2014), é apenas em 1982 que ela aparece deliberadamente como um problema. Esta ausência no resto dos cursos constitui, para nós, seu valor, levando-nos a indagar o quê, em L'herméneutique du sujet (Foucault, 2001), leva a psicanálise a surgir no quadro de estudo foucaultiano. A resposta pode estar na função terapêutica da filosofia, particularmente desenvolvida naquelas aulas por meio do estudo de textos greco-latinos. A análise desta função, rigorosamente espiritual, proporciona uma nova perspectiva para a definição da relação consigo - por almejar a obtenção de um "algo a mais" em termos de verdade, mas também para seus efeitos técnicos no estabelecimento de relações dialógicas encontradas na história do pensamento ocidental. Referimo-nos às modalidades de relação entre o si mesmo e o Outro - figura posta no lugar privilegiado de interlocução para uma vida ética, tão cara a formas de saber como a psicanálise.

O trabalho que propomos é importante tanto para o campo foucaultiano, pois encara um problema colocado pelo filósofo que não pôde ser levado adiante, devido à proximidade com sua morte, quanto para a psicanálise, pois o curso de 1982 não tem, até hoje, grande recepção neste meio (Allouch, 2014; Ayouch, 2015; Birman & Cunha, 2012). Este movimento é historicamente recente, sobretudo no Brasil, onde costuma-se recepcionar a obra de Foucault em suas críticas à psicanálise por sua relação com a confissão cristã, ou por sua inserção em um dispositivo da sexualidade (Foucault, 1988).

Mesmo que este modo de recepção seja pequeno, podemos mencionar alguns nomes de importância para uma correlação entre Foucault e a psicanálise a partir das técnicas de si, alguns com ênfase especial no curso de 1982. O principal, e considerado um dos expoentes na relação entre psicanálise e espiritualidade, é Jean Allouch (2014; 2015). Podemos citar, também, Ayouch (2015; 2016), Cattapan (2011), Laufer (2015), Laufer e Squverer (Orgs., 2015), Birman e Cunha (2012), Birman e Hoffman (2017) e Martins (2018). Alguns destes autores chegam a dizer de uma "psicanálise foucaultiana" (Laufer, 2015; Allouch, 2015), no sentido de que, depois de Foucault, não é possível que a psicanálise permaneça a mesma. Ao inserirmo-nos neste campo, buscamos uma interlocução preciosa para o próprio Lacan, o qual, em certas circunstâncias (Lacan, 1966c, 1979, 1992, 2006, 2008a, 2008b), realizou seu trabalho considerando os problemas colocados por Foucault (1977, 1999, 2000, 2009b).

Se pretendemos pensar a inserção da psicanálise no espectro da espiritualidade, mais especificamente, da espiritualidade das escolas greco-romanas, será inevitável certa perspectiva generalista sobre a estrutura desta espiritualidade no curso de 1982. P odemos dizer que o momento no qual as exigências do cuidado de si podem ser apreendidas com maior determinação é entre epicuristas, estoicos e cínicos. Ora, se Foucault (2001) esquematiza esta época como uma Cultura de Si, conjugando escolas que, por si só, são muito diversas, é porque ele avalia que a configuração predominante entre elas se constitui pelos mesmos traços filosóficos, correlacionados a uma estrutura terapêutica - tal como as mesmas peças em um tabuleiro de xadrez que propiciam jogos muito diferentes (Allouch, 2014, p. 56).

O posicionamento original da psicanálise dentro do pensamento ocidental pode ser definido de modo mais eficaz se, nas palavras de Allouch, "[...] inscrevermos a psicanálise dentro de sua própria genealogia" (Allouch, 2014, p. 56). Em um contexto de diferenciação moderna entre epistemologia/ciência e espiritualidade, uma "forma de saber" (Foucault, 2001, p. 30) como a psicanálise ou o marxismo2, comumente deslocada da ciência, é, para Foucault (2001), um impasse. Se hoje a ciência estipula como falsa ciência qualquer forma de saber que contenha a necessidade de uma conversão do sujeito e que vise, ao final, uma salvação, ou seja, que contenha uma estrutura de espiritualidade, encontraríamos nos saberes psicanalítico e marxiano as exigências mais básicas do cuidado de si (epiméleia heautoû), caracterizando-os enquanto técnicas éticas e não como ciências (Foucault, 2017). No entanto, para o filósofo, "[...] nem uma nem outra dessas duas formas de saber levou muito explicitamente em consideração, de maneira clara e corajosa, esse ponto de vista" (Foucault, 2001, p. 31). Com respeito especificamente à psicanálise, Foucault (2001) entende que há efeitos do conhecimento de si em suas instituições sociais, como são as escolas de formação e seu caráter de transmissão de saber, e nesse sentido pergunta: é possível, neste campo, "[...] colocar a questão das relações do sujeito com a verdade, que - do ponto de vista [...] da espiritualidade e da epiméleia heautoû - não pode [...] ser colocada nos próprios termos do conhecimento?" (Foucault, 2001, p. 32). A resposta, como indicada a seguir, pode ser positiva se for buscada na lógica lacaniana, considerando que, segundo o filósofo, Lacan foi quem

[...] tentou formular a questão que é, historicamente, propriamente espiritual: a questão do preço que o sujeito tem de pagar por dizer o verdadeiro, e a questão do efeito que tem sobre o sujeito o fato de que ele disse [...] a verdade sobre si próprio. Fazendo ressurgir essa questão, creio que ele fez efetivamente ressurgir, no interior mesmo da psicanálise, a mais velha tradição, a mais velha interrogação, a mais velha inquietude dessa epiméleia heautoû, que foi a forma mais geral da espiritualidade. (Foucault, 2001, p. 31).

Se Foucault vai aos greco-romanos em busca de uma moral voltada à ética, e se aquela moral serve para pensarmos uma relação consigo atualmente, diferente de uma moral do código, como dito na entrevista A Ética do Cuidado de Si como prática de liberdade de 1984 (Foucault, 2006a), percebemos então como seu olhar para a psicanálise e para o marxismo parte da mesma perspectiva. Quando Foucault anuncia uma separação entre uma psicanálise voltada para a relação ética entre sujeito e verdade, e uma psicanálise voltada para os métodos de uma escola de ensino, divide-se entre uma subjetividade revolucionária e o efeito de pertencimento a um partido (Foucault, 2001, p. 30), ele está, aqui também, se utilizando da divisão entre moral de ética e moral de código, e corroborando com a importância da questão, a qual define tanto aquilo que será o trajeto de ligação entre sujeito e verdade, quanto colabora com o uso desta nova genealogia - voltada para os antigos - no pensamento de práticas atuais. No presente manuscrito, pensamos a questão da ética com recorte teórico sobre as posições analíticas, pelo qual aproveitaremos o pano de fundo do curso de 1982 e alguns elementos do curso de 1983, utilizados por Cattapan (2011) para pensar a interpretação.

 

Posições do analista à luz da filosofia antiga

Parte importante do derradeiro pensamento de Foucault pode incidir no problema da posição do analista, posta em perspectiva pela necessidade estipulada pelo cuidado de si de "passar por um Outro" (Allouch, 2014, p. 63) para alcançar a verdade. Este tipo de reflexão cabe na estrutura mais ampla da história das veridicções, iniciada em Du gouvernement des vivants (Foucault, 2012). Na sequência iniciada por este curso, vemos Foucault analisar a exigência de manifestação da verdade variando sua perspectiva, ora pensando-a direcionada ao sujeito, ora observando-a nos vários mestres a que este sujeito recorre, ora refletindo a enunciação entre sujeitos em posição de igualdade. Na questão da psicanálise, estamos falando de uma necessidade de veridicção por um sujeito que, para colocá-la em prática, também demanda certa modalidade de enunciação do interlocutor escolhido no processo analítico.

Quando Foucault parte de um questionamento da veridicção ele se aloca dentro de um campo composto pela psicanálise. Em outros termos, por questionar a "[...] base pulsional de todo conhecimento" (Ayouch, 2015, p. 106), Freud, assim como Foucault, posiciona-se em uma "[...] episteme não-cognitiva" (Ayouch, 2016, p. 173), que investiga as condições de produção e de veiculação da verdade. Ayouch (2016) visualiza uma analogia entre o modo como Foucault trabalha a questão dos jogos de verdade gregos e greco-latinos e o campo de Freud-Lacan, quanto este se forma como uma psicanálise estratégica embasada nas relações de poder e no laço da relação dialógica. Isto é, em se tratando de um dispositivo "estilístico" de ligação entre sujeito e verdade, este mais próximo das relações estratégicas de poder, e de um dispositivo disciplinar, pautado na estratégia de garantia da obediência à norma, parte da psicanálise lacaniana estaria mais próxima do teor estilístico, por ser uma técnica ética.

A própria noção de escola, quando vem de Lacan3, tem ressonâncias deste pensamento greco-latino sobre o qual Foucault desenvolve seu trabalho final. Para o filósofo, a obra do psicanalista não se reduz à comunicação de um conteúdo, mas pode ser vista do mesmo modo como é descrita a prática de si espiritual, ou seja, "[...] que o trabalho necessário para o compreender fosse um trabalho sobre si mesmo" (Foucault, 1999, p. 299). Lacan estaria, em certo sentido, em posição semelhante à de um mestre de espiritualidade, não exercendo poder institucional e falando somente àqueles que desejavam, àqueles que o procuravam por uma razão que está além do ensino - podemos lembrar de Epicteto, no colóquio 21, livro II, no qual Foucault (2001) encontra a seguinte consideração: "[...] vocês devem lembrar que estão aqui essencialmente para a cura. Portanto, antes de começar a aprender silogismos, 'curai vossas feridas, cessai o fluxo de vossa paixão, acalmai vosso espírito' [...]" (Foucault, 2001, p. 96).

Outro momento fundamental que aponta para a afinidade entre Lacan e a espiritualidade é o Seminário 12, Problemas cruciais para a psicanálise, no qual ele declara

[...] aqui não restam senão aqueles para quem este ensinamento [...] tem um valor de ação. [...] [U]ma escola, ela merece seu nome - no sentido em que esse termo é empregado desde a Antiguidade - é algo em que se deve formar um estilo de vida. Aqui eu peço que venham aqueles que [...] tomam meu ensinamento como o princípio de uma ação que seja a deles, e da qual possam prestar contas. (Lacan, 2006, pp. 113-114).

Encontramos, nesta citação, alguns dos postulados da espiritualidade, dos quais distinguimos o ensinamento como valor de ação, a necessidade de se formar um estilo de vida, ou seja, de se inscrever como uma moral voltada para a ética, e, por fim, a noção de prestar contas dos próprios princípios. Ora, sob este ponto, o tipo de reflexividade impulsionada pela ascese do cuidado de si tenta levar o sujeito a prestar contas de si como "sujeito ético da verdade" (Foucault, 2001, p. 463). A correspondência da psicanálise com os exercícios espirituais não era algo estranho a Lacan que, dois anos depois de situar-se na noção antiga de escola, afirma encontrar o "modelo" da prática psicanalítica naquilo que ainda há de "fragmentário" do legado dos "[...] exercícios espirituais [antigos] que correspondem certamente a uma práxis ética [...]" (Lacan, 2008b, p. 198).

Pensando pela análise de uma posição do filósofo/analista, é notável a coincidência do preço da figura de Sócrates e de seus diálogos com Alcibíades, em Foucault (2001) sendo a origem filosófica do cuidado de si (epiméleia heautoû), em Lacan (1992) sendo uma base importantíssima da reflexão sobre a transferência em seu Seminário 8, fundamental para aquilo que, um ano antes, ele define como "a ascese freudiana" (Lacan, 2008a, p. 18), ou seja, a ética da psicanálise. Safatle (2020) chega a dizer que, em certa medida, a interpretação lacaniana coloca Sócrates como "o primeiro analista" (Safatle, 2020, p. 74), e faz de suas respostas a Alcibíades "[...] a primeira lição de manejo da transferência que teríamos conhecido" (Safatle, 2020, p. 74). Em outros termos, Sócrates, quando responde a Alcibíades do lugar de quem não detém o agalma que este lhe supunha (o agalma como metáfora do saber), abre o campo histórico no qual pode se des envolver a transferência analítica a partir da noção de sujeito suposto saber (Lacan, 1992).

Há coincidência entre o curso de Foucault (2001) e a psicanálise no aspecto da criação de uma relação dialógica específica, orientada para certa "cura". O mais essencial d e L'Herméneutique du sujet (Foucault, 2001) é aquilo que a técnica dialógica visa, a saber, a autossubjetivação do discípulo. Por um tempo, o filósofo tem função de intermediar a relação consigo criada pelo discípulo. Desde Sócrates até os estoicos, ninguém consegue cuidar de si sem recorrer a um outro que lhe estenda a mão (educere). Ao mesmo tempo, Foucault (2001) aponta para o momento de desprendimento desta relação primordial, proporcionado e demarcado pelo exercício técnico da parrhesía, que é a veridicção praticada na relação espiritual greco-latina. Para Allouch, essa veridicção específica encontra eco no "bem dizer" (Allouch, 2014, p. 63) lacaniano. Além de ser uma terapêutica, um socorro, a parrhesía faz com que o sujeito a quem ela se dirige prescinda, em certo momento, daquele que a enuncia, podendo ele mesmo, posteriormente, subjetivar suas verdades.

Outras perspectivas incidem sobre a questão da técnica interpretativa - de produção da verdade - designada como função do analista. Conforme entende Ayouch (2016), a técnica de Freud realiza uma espécie de afecção de si por si. Vislumbrada nas noções de "elaboração" (Freud, 1914/2017a) e de "verdade histórica" (Freud, 1937/2017b), a técnica forma

uma incidência particular do dizer que efetua um ato: é o da elaboração. Este processo consiste essencialmente em um remanejamento afetivo: não é uma questão, de modo geral, nem de aquisição de um conhecimento completo e nem de rememoração das representações reprimidas, mas de um verdadeiro trabalho de transformação do afeto. (Ayouch, 2016, p. 175).

Se a psicanálise consiste em um tipo de busca constante por alguma verdade sobre nós mesmos, podemos, considerando Foucault, distinguir os diferentes meios históricos de realizar esta busca. Retomamos aquela divisão, feita por Cattapan (2011) a partir d e Le gouvernement de soi et des autres (Foucault, 2008), entre três modos possíveis de produção da verdade, os quais podem ser vislumbrados na técnica analítica: os modos oracular, confessional e do jogo político. É sob este último que enxergamos a coincidência entre espiritualidade e psicanálise, justamente quando a definição mesma de inconsciente passa de "[...] um lugar onde uma verdade se esconde [...]" para "[...] um motor para a construção de discursos que se queiram afirmar verdadeiros" (Cattapan, 2011, p. 14). Trata-se de uma inversão lógica da interpretação, quando ela é comumente articulada, por outra psicanálise, enquanto "tradução de um material" (Cattapan, 2011, p. 11) já assentado no inconsciente e homogêneo entre indivíduos - algo similar a uma verdade que apenas se relembra. Dado esta disjunção dentro da própria psicanálise, falemos um pouco da diferença entre as posições analíticas.

Aparentemente, do ponto de vista das técnicas de si, os três modos históricos de produção dialógica da verdade convivem como formas de proceder a interpretação dentro do campo psicanalítico (Cattapan, 2011). O primeiro modo, oracular, tem o saber situado do lado de alguma divindade que, por opção, escolhe revelar ou não a verdade, de modo claro ou enigmático, a um sujeito que a demanda. Cattapan (2011) enxerga este posicionamento como uma espécie de "tentação" relevante no meio psicanalítico. Conforme sua constatação, "[...] fica fácil perceber que aqueles que assim procedem supõem-se os únicos na situação analítica a poder produzir um saber verdadeiro sobre o inconsciente" (Cattapan, 2011, p. 8). Vale lembrar que este tipo de postura era rejeitado por Freud desde o princípio da criação de sua técnica, mas, em momentos diferentes dentro de uma mesma obra, como no caso da Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900/2019), ele coaduna com a possibilidade de sua utilização (relativa à decifração de símbolos "coletivos").

O segundo modo de produção da verdade, o da confissão, está presente na psicanálise por sua famosa herança genealógica cristã. Seu esquema é o de alguém que revela algo a um superior, o qual é hierarquicamente posicionado no quesito moral religioso. A verdade, na confissão, pode situar-se dos dois lados da relação. Primeiro, ela pode estar em posse daquele que fala, pois ele a articula de maneira evidente e direta, compartilhando com outrem. Segundo, ela pode estar do lado do confessor, pois está mal articulada por quem tenta confessá-la, precisando, portanto, da expertise do primeiro. Cattapan (2011) usa essa noção foucaultiana para fazer uma analogia com a psicanálise, analogia esta de caráter duplo. Uma, com um analista sedento por ouvir uma verdade que será articulada por um paciente, outra, com o analista posicionado como detentor exclusivo da capacidade de selecionar uma verdade no discurso confuso de um analisante. Esta segunda posição, Cattapan (2011) a enxerga em divisões analíticas como as que Lacan (1966a) estabelece entre "fala plena" e "fala vazia", em resumo, uma enunciação que traz em si associações inconscientes, e uma enunciação que não traz nada significante, respectivamente.

Nos modos oracular e confessional de dizer-a-verdade, podemos perceber a existência da concepção de que alguém já tenha apreendido o que é a verdade e como se pode acessá-la naquele que vem dizê-la. Ou seja, mesmo que a psicanálise exija uma associação de ideias diante das formações do inconsciente, o que acontece, depois, com o material associado? Este, quando aparece, está quase pré-determinado a ser revelador de uma verdade "por trás do sintoma" (Cattapan, 2011, p. 10). Segundo Cattapan (2011), existe um tipo de "mapeamento" que, para algumas áreas da psicanálise, serve de registro para códigos interpretativos que coadunam os modelos oraculares e confessionais. São eles, conforme o autor, a referência constante ao Édipo e ao complexo de castração, mesmo dentro do campo lacaniano; a dinâmica das introjeções e projeções dos seios bom e mau, formuladas por Melanie Klein, os quais configuram, na maioria das vezes, "[...] mapeamentos do que deve ser encontrado no 'fundo' do Inconsciente" (Cattapan, 2011, p. 10), ou, um "[...] supersentido generalizador qualquer" (Cattapan, 2011, p. 16). Faz-se notar, assim, que o conteúdo de uma narrativa clínica pode ser conduzido por sentidos que o analista considere, a priori, como verdades dissimuladas, mas codificadas e já conhecidas - mais uma vez, o retorno a um saber já sabido, mas ignorado por quem o sabe, ou seja, uma associação "nada livre". É comum, por exemplo, que se considere a ação de uma resistência do analisante quando este não reconhece uma interpretação feita sobre ele - o que não deixa de nos remeter à crítica lacaniana à posição do analista como um exercício estrito de poder (Lacan, 1998).

Junto desta perspectiva, existe uma distinção freudiana, sistematizada por Harari (2001), entre duas ações em potencial na técnica analítica, a ação específica e o ato analítico, sendo a primeira análoga ao modo como as posturas oraculares e confessionais produzem a verdade. A ação específica tem como referência o momento mais primordial no qual um infans não pode dialogar com outrem para pronunciar sua demanda. Neste sentido, tudo que ele emite de modo inapreensível deve ser, para quem o recepciona, tomado como valor de sinal. Este sinal passa pela interpretação de alguém que precisa ter, como diz Harari, "[...] a presença efetiva de um certo código" (Harari, 2001, p. 47) que o permita dizer - mesmo que arbitrariamente - o que é o sentido daquela expressão do bebê, que deve ser respondida com algo que satisfaça suas necessidades primordiais. Quem assim procede a decodificação do infans é denominado, então, "ajudante alheio" (Harari, 2001, p. 48). Do ponto de vista de uma análise, é possível pensar que uma postura como essa diante da enunciação de um analisante parte de um saber e se direciona a uma finalidade pressuposta, qual seja, "[...] o cessar da tensão da necessidade" (Harari, 2001, p. 47). Em certa medida, se fixada nessa ação, a psicanálise postula uma verdade universal, qual seja, que a fonte de todos os impasses morais humanos pode ser encontrada no desamparo primordial do infans - aqui entram aqueles "supersentidos", como os anos de vivência do Édipo ou os seios e o superego primitivo kleineanos. Em termos técnicos, a ação específica age sempre "conforme os fins", isto é, com um objetivo já determinado, como coloca Harari: "[...] o analista é convocado a proceder a respeito de um analisando compreendido como o infans, segundo o qual o experimentador deve dispor de um código correto" (Harari, 2011, p. 49).

Sob o crivo das modalidades de produção da verdade, Cattapan (2011) direciona uma crítica à própria lógica da interpretação, quando ela é articulada enquanto tradução de um inconsciente-substância. É o caso, por exemplo, dos inúmeros discursos sobre os mal-estares atuais, sobre os sintomas sociais mais comuns, sobre as diversas áreas acerca das quais a psicanálise sempre parece ter algo a dizer. Trata-se, em análises como estas feitas a partir de Foucault - crítica que também encontramos em Allouch (2014), de perceber o quanto a psicanálise, em muitos casos, se elege como porta-voz de qualquer assunto, como se a descoberta do inconsciente freudiano pudesse explicar a verdade que rege todas as formações sociais. De qualquer modo, parece que, apesar de existirem essas brechas em sua obra, é Freud mesmo que nos alerta sobre a necessidade daquilo que hoje conhecemos como atenção flutuante, que se define esquematicamente pelo exercício de concentrar-se na escuta sem focar em algo específico, tentando deixar a atenção o menos tendenciosa possível com respeito ao conteúdo, e mais voltada para a forma das associações - como no famoso caso freudiano do esquecimento do nome Signorelli. Para Cattapan (2011), a postura da atenção freudiana é um modo de otimizar, no discurso de outrem, a abertura para algo que não está pré-determinado. Para este analista, o modo de solucionar tal impasse deve ser uma revisão da noção de técnica interpretativa, isto é, "[...] que analista e paciente reconheçam a interpretação e a teorização apenas como possibilidades criativas do discurso humano de produzir sentido, entre outras" (Cattapan, 2011, p. 12).

O terceiro modo de produção do verdadeiro é o do jogo político, e também pode ser visto na psicanálise. Foucault (2008), quando interpreta a peça Íon, de Eurípedes, reconhece nela o desenrolar de um jogo de tensão entre verdades, mentiras, enganos, pequenos acordos, ludibriamentos, coragem de verdade (parrhesía) e riscos. Dito de outro modo, essa modalidade de produção da verdade decorre do entrecruzamento de forças distintas, e não no desenvolvimento de um percurso de único sentido. Quanto à "localização" onde se produz este "valor de verdade" (Cattapan, 2011, p. 13), Cattapan percebe na leitura de Foucault a dimensão transindividual, diferente de uma dimensão transcendental ou interna a alguém. Somado a isso, ainda sobre o Íon, Foucault (2008) compreende que a verdade do jogo político tem potencial instaurador de novas modalidades de existência, algo diverso das catástrofes descritas na revelação da verdade em algumas tragédias, como a de Édipo, por exemplo.

Para exemplificar a potencialidade da psicanálise desenvolver o modo do jogo político de produção da verdade, Cattapan (2011) relata uma situação na qual ele mesmo se encontra na posição de analisante. Na ocasião retratada, a então analista comete um ato falho, que consiste em realizar uma ação por engano enquanto se tentava deliberadamente realizar outra coisa. O mais tradicional é que isso ocorra do lado do analisante, portanto, o ato falho da analista representa um impasse para situação analítica. Nas palavras de Cattapan: "[o] que considero interessante a respeito deste episódio [...] é muito menos o ato falho em si do que o ato analítico que o seguiu" (Cattapan, 2011, p. 13). O ato analítico é uma função do analista definida por Lacan em seu ensino, que inclusive deu nome a um de seus seminários, o Seminário 15: o ato analítico (Lacan, tradução nossa, 1967). Podemos compreendê-lo de forma distinta das interpretações baseadas na codificação do inconsciente, como aquelas que Cattapan (2011) aproxima dos modelos oracular e confessional de produção da verdade.

Voltando ao exemplo dado pelo autor, o quê, então, procede ao ato falho da analista e que pode ser considerado um ato analítico? A analista di z, simplesmente, "[a]tos falhos aparecem para serem interpretados. Bom, agora cabe a você interpretá-lo" (Cattapan, 2011, p. 13). Dizendo-o, ela escancara a falta de uma pré-concepção fiadora da verdade do discurso analisante. Se o ato-falho é dela, analista, como, ainda assim, ele pode gerar um efeito de verdade para o analisante? A demonstração deste efeito, testemunhada no fato dele ser articulado pelo autor a ponto de virar um texto sobre a interpretação, não conduz a um reconhecimento da verdade, mas na constatação de que nada resta senão criar alguma coisa com ela. É o que Cattapan demonstra quando afirma, "[...] a posteriori, percebi como tal intervenção foi bastante incisiva e decisiva - produziram-se em mim transformações interessantes - tanto é assim que ainda hoje me dedico a elaborá-la (como evidencia este artigo)" (Cattapan, 2011, p. 13). Este teor ausente de fiador da verdade refere-se a um ato analítico, pois os efeitos provocados sob quem ele age são mais importantes que as razões do analista para fazê-lo. A causalidade do ato analítico é pensada de forma diametralmente diversa da ação específica. Se esta advém de um "para quê" deliberado, aquela só pode dizer de um "porque" respondido a posteriori. Ou seja, o ato acontece de modo "mal-sucedido" em termos de correspondência de sentido, mas bem-sucedido nos efeitos que, depois de ocorrer, pode gerar.

A verdade que se produz nesta situação analítica específica diverge de seu advento nas situações mais comuns da psicanálise. A diferença fundamental é que, nestas últimas, impera um esforço de tornar consciente algum material inconsciente que estava disfarçado, enquanto na intervenção aqui discutida admite-se que a elaboração da verdade não depende da posição de especialista, imperando seu teor criativo, uma análise "[...] construtora de verdades e de valores" (Cattapan, 2011, p. 14). A interpretação é comparável, então, a um "trabalho lúdico" (Cattapan, 2011, p. 14), ou, como concebe Rodulfo (1990, p. 48), a uma criança que para brincar com um brinquedo deve poder quebrá-lo, dessacralizá-lo. Neste caso, o brinquedo é a própria técnica psicanalítica que, como em uma navegação - metáfora antiga sobre a posição filosófica, deve ser rigorosamente elaborada consider ando o caráter contingente d o campo de ação que lhe é próprio.

 

Breve nota sobre pagamento

A espiritualidade greco-latina, tal como Foucault (2001) a expõe, conta com uma proliferação das discussões acerca do custo de uma enunciação da verdade. Este custo abrange aquilo de que o sujeito deve se abster para ser um sujeito ético; o leque de práticas e de relações a que ele deve se submeter - as quais envolvem, algumas vezes, o custo financeiro; as transformações imprescindíveis no modo de agir e, ainda, o risco que o sujeito corre pelo fato de falar a verdade. Ora, a psicanálise também conta com um tensionamento acerca do preço da palavra, tão literalmente que o pagamento entra em jogo no estabelecimento de uma sessão analítica. Este preço também pode ser debitado na posição do sujeito, na medida em que alguma transformação de si é um dos objetivos desta prática.

Ao redor da questão do pagamento aparece, em L'Herméneutique du sujet, alguma tonalidade de crítica foucaultiana à certa parte da psicanálise. Ao comentar a generalização do cuidado de si a partir do filósofo Luciano, Foucault (2001) cita, mais uma vez, a prática psicanalítica. Essa citação surge, por sinal, em meio à crítica de Luciano quanto ao "mercado dos modos de vida" (Foucault, 2001, p. 89) - que teria sido instaurado pelos filósofos do século II - e a análise do texto Hermotímio. De modo um tanto chistoso, essa analogia parece se voltar às relações de dependência que, porventura, podem ser estabelecidas numa relação psicanalítica, quando, evidentemente, esta prática se realiza de uma maneira específica. No texto de Luciano existe uma cena em que Hermotímio vaga pelas ruas, desnorteado, quase delirante, a proclamar e a relembrar as falas trocadas entre ele e seu mestre. Neste momento, o personagem é abordado por Licínio, para quem Hermotímio confessa que há vinte anos se submete à direção de um mestre, o qual lhe cobra fortunas para tanto. Quase falido, mesmo assim certo da necessidade de tal prática, Hermotímio afirma ainda precisar de uns vinte anos para concluí-la. A motivação "provo cativa" desta referência se confirma quando vemos o assunto ressurgir na conferência proferida pelo filósofo em Berkeley, em abril de 1983, nos Estados Unidos. Foucault fala:

Estou certo de que nenhum de vós é um Hermótimo moderno, mas aposto que a maioria de vós já conheceu pelo menos uma dessas pessoas que, hoje em dia, frequentam regularmente este tipo de mestre, que lhes cobra dinheiro para lhes ensinar como cuidarem de si próprios. No entanto, e felizmente, esqueci-me, seja em francês, em inglês ou em alemão, do nome desses mestres modernos. Na antiguidade, chamavam-se filósofos (Foucault, grifo nosso, 2017, p. 69).

Percebemos aí que a referência às três línguas corresponde, muito provavelmente, ao cenário lacaniano, à escola inglesa e a Freud. De todo modo, essa provocação não representa uma recusa, já que Foucault aproxima, na mesma fala, Lacan e a espiritualidade, coadunando com sua prática e com a importância da psicanálise. Na realidade, Foucault, ao resgatar a cena de Hermotímio, vai, sem o saber, além do campo psicanalítico. Hoje, a história caminha de tal forma que esta figura fica escalonada, de modo um tanto quanto apressado, na proliferação de uma "elite psicanalítica", ou mesmo de modalidades de coaches que, de modo geral, ocupam o lugar de mestres muito bem pagos, os quais alimentam uma dependência de seus "consumidores" com respeito ao "serviço" ofertado. Sobre este último ponto, Foucault (2006b) "erra" uma de suas análises do presente, dizendo que ninguém se arriscaria a escrever sobre "formas de existência", algo que, atualmente, é muito difundido em uma espécie atualização anacrônica do mercado dos modos de vida.

 

Considerações finais

Colocada a afinidade inicialmente exposta entre a posição do filósofo no princípio do cuidado de si (epiméleia heautoû) e a posição do analista na psicanálise, direcionamo-nos, agora, a considerações que demonstram o caráter ainda aberto do pensamento de Foucault. Com efeito, precisamos considerar as determinações próprias ao que o filósofo denomina de paradoxo do platonismo (Foucault, 2001; 2010a), ou seja, uma configuração histórico-filosófica que faz o cuidado de si e o conhecimento de si conviverem dentro de um mesmo campo, inclusive colocando para si os tipos de ligação entre sujeito e verdade - convivência que, em termos históricos, costuma apresentar-se de maneira cindida. O enigma da inscrição da psicanálise é ela aparecer com mais resquícios do atrelamento histórico primordial entre os preceitos do que de sua nítida cisão, esta que seria própria das formas de saber modernas. A oposição fundamental entre a predominância do conhecimento de si e a do cuidado de si divide-se entre um saber sobre si essencial, o qual está perdido, mas pode ser visto no "espelho do inteligível" (Foucault, 20 01, p. 2 44) da alma através da reminiscência, e um saber sobre si que nunca foi sabido, que não tem referência na alma e depende de uma técnica para ser criado.

Apesar da psicanálise não se orientar para o "sentido dos sentidos" (Lacan, 1966b), como afirma Lacan em 1957, sabemos da importância da metáfora do espelho (Lacan, 1966d) para caracterizar o começo do que chamamos de processo de subjetivação, sendo o lugar onde um sujeito pode enxergar um primeiro "eu ideal"4 e, de certo modo, o alvo de uma análise. Tendo em vista a heteronomia de sentido causada p or esse registro primordial, diríamos que, até certo momento, o processo analítico vai em direção a algo já sabido, mas recalcado. Por ser fundamental na fundação do inconsciente e, portanto, na emergência do sujeito, o registro significante inicial tem valor de "Um" (Molina, 1988, p. 135), ou seja, de um termo irredutível. O primeiro passo da análise seria, portanto, uma redução ao irredutível, como diz Molina, "[...] no sentido de levar o sujeito até o Um que o fundamenta" (Molina, 1988, p. 135). Mesmo que este termo não carregue em si um significado imperativo, o significante está definido inexoravelmente como fundador do processo de subjetivação. Mas também não é este o ponto que pretendemos questionar, já que é próprio da análise dizer: "[...] a partir daí [da aproximação com o Um] então ele deslancha, ou seja, vai para o infinito" (Molina, 1988, p. 135), em outros termos, busca uma concepção jamais pressuposta. Tendo em vista que o significante não significa, em si, coisa alguma, posto ser "[...] um traço que se traça por seu círculo, sem poder ser aí considerado" (Lacan, 1966c, p. 819), ou seja, deixando um lugar vazio, seria logicamente preciso ir além de suas possibilidades.

O segundo momento de uma análise, portanto, exige um movimento que parte da insuficiência da rememoração, isto é, vai do inconsciente definido como o "recalcado da história individual" (Pratta & Costa-Rosa, p. 675), para o inconsciente definido como "produção dinâmica de sentido" (Pratta & Costa-Rosa, p. 675), saliente na lógica lacaniana do significante. É esta concepção, inclusive, que permite analistas como Cattapan (2011) e Ayouch (2016) aproximarem a técnica interpretativa da psicanálise à modalidade greco-latina de produção da verdade. Conforme L'instance de la lettre (Lacan, 1966b), essa abertura é proporcionada pelo eixo vertical da associação das cadeias, em outros termos, por um exercício criativo que maneja os significantes além de um eixo dado na linha horizontal do enunciado. O duplo trajeto em direção, primeiro, a um termo irredutível e, depois, ao infinito, é o modo como a psicanálise lacaniana aparece. Olhando para ela, sem nos determos em um ou outro momento da análise, nos parece ser possível questionar, ainda: o que mais podemos dizer sobre a coexistência destes dois trajetos dentro de um campo delimitado de técnica ética, considerando que cada um dos preceitos determina, historicamente falando, uma ética própria? Referindo-se à ligação entre sujeito e verdade, s endo então uma espiritualidade, ela está mais próxima do modo platônico, do cristão (gnôthi seautón), ou está mesmo na herança epicurista e estoica (epiméleia heautoû)? Por hora, não desenvolveremos estas questões, esperamos fazê-lo em trabalhos futuros.

Mesmo assim, dentro desta perspectiva, é possível realizar uma rápida aproximação entre a psicanálise e o cuidado de si platônico, mais que greco-latino. Podemos vislumbrá-la na questão da relação dialógica, por exemplo, na comparação entre o analista e a mestria socrática, pela qual o cuidado de si é exercido considerando o amor (Eros), figura cara à psicanálise e ausente na mestria greco-latina. Ainda deste ponto de vista, é Sócrates que, enquanto mestre, incentiva que o discípulo fale para que este, dizendo o que sabe, acabe por dizer aquilo que ignora saber - algo que também não é estranho ao campo analítico. Isto é muito diferente dos estoicos e dos epicuristas que exigem, a princípio, um enorme silêncio daquele que se inicia no cuidado de si.

Tendo em vista nosso objetivo principal, o de delinear uma afinidade entre o laço dialógico da estrutura da espiritualidade do cuidado de si (greco-latina) e a psicanálise lacaniana, concluímos este texto considerando mais um ponto de ressonância entre os dois campos. Trata-se de um caráter fundamental da espiritualidade epicurista e estoica que, do nosso ponto de vista, também reaparece no fundamento da ascese psicanalítica. Referimo-nos à concepção, fundamento da relação entre mestre e discípulo, de "virtutes discere é vitia dediscere (aprender as virtudes é desaprender os vícios)" (Foucault, 2001, p. 92), a qual, no estoicismo, circunscreve a necessidade da "desaprendizagem" (Foucault, 2001, p. 92) dos valores familiares, mais que um posicionamento com respeito a vícios corpóreos, como a bebida, a comida etc. A psicanálise lacaniana, por sua vez, produz semelhante perspectiva quando fala da necessidade de desembaraçar o sujeito daquilo que Rodulfo (1990) chama de mitos familiares.

Estes mitos consistem em certos significantes, ou cadeias associativas, provenientes de uma enunciação própria da "família" na qual determinada pessoa se posiciona enquanto sujeito. Pelo lugar específico que tais significantes ocupam nestas relações, eles tornam-se mitos por formarem um circuito significante especialmente "fechado", ou seja, com pouca ou nenhuma possibilidade de novas ligações, determinando, assim, um modo de vida consideravelmente restrito - uma restrição a mais dentro dos limites já colocados pelo contexto social. Este círculo vicioso seria como um significante que representa demasiadamente o sujeito. Assim, Rodulfo afirma que "[...] o fim da análise não consiste em encontrar o último significante, mas em estabelecer um movimento interrompido, quando não constituir um movimento que nem sequer tenha iniciado" (Rodulfo, 1990, p. 53), qual seja, o da possibilidade de que o circuito se abra para novas posições significantes e, consequentemente, novos modos de existência, mesmo que pautado em uma posição inaugural - seria isso a obtenção de um "algo a mais", como desejam os greco-latinos? Para nós, esta perspectiva é muito semelhante ao que Foucault (2001) coloca como o movimento próprio da conversão a si, que é a possibilidade de realizar uma experiência infindável de retorno a si, mas só depois de "passar por um Outro".

 

 

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Endereço para correspondência
Samuel Iauany
E-mail: saiauany@gmail.com

 

 

*Doutorado Direto em Psicologia pela Unesp de Assis-SP, financiado pela FAPESP (2019/11506-9). Membro do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e "Subjetividadessaúde" (LATIPPSS).
1Cumpre mencionar que as principais obras foram trabalhadas tanto com as versões originais em francês quanto com as traduções em português.
2Não pretendemos explorar, neste texto, a abertura ao pensamento marxiano. Porém, convém mencioná-lo pelo fato de ter aparecido nos mesmos termos que a psicanálise, e por ser, também, um dos focos de discussão mais direta sobre o presente a partir das categorias trabalhadas naquelas aulas.
3Considerando todos os impasses da relação entre ele e "suas" escolas, que terminaram por serem dissolvidas.
4Notamos aqui uma ressonância platônica, quando Sócrates diz: "[...] se o olho quer ver a si mesmo, precisará contemplar outro olho e, neste, a porção exata em que reside a virtude do olho, que é propriamente a visão" (Platão, 1975, p. 244).

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