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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2022

 

ARTIGOS

 

Midiatização e linguagem: poesia, pensamento e resistência na era do capitalismo informatizado

 

Mediatization and language: poetry, thought and resistance in the age of computerized capitalism

 

Médiatisation et langage: poésie, pensée et résistance à l'ère du capitalisme informatique

 

 

Eduardo Francelino de Carvalho*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente artigo são articuladas ideias de pensadores como Gilles Deleuze, Felix Guattari, Franco Berardi, Michel Hardt e Toni Negri em torno do problema da comunicação e dos dispositivos técnico-informacionais operantes na atualidade, para mostrar de forma suscinta como problematizam, criticam e respondem a alguns problemas levantados nesse domínio. No contexto das sociedades de controle e do Império, o capitalismo funciona, sobretudo, como um operador semiótico que transforma e condiciona profundamente os processos de subjetivação dos indivíduos a partir do trabalho, da linguagem, das relações e dos afetos. Diante disso, em um primeiro momento do texto, será mostrado como a filosofia de Deleuze se compõe em grande medida como uma resistência a esse poder de subjetivação, especialmente no que diz respeito às formas de comunicação mobilizadas por ele e, em um segundo momento, como Franco Berardi, dando continuidade a essa crítica, propõe uma insurreição da linguagem em relação aos efeitos do capitalismo financeiro e informatizado sobre a vida dos indivíduos, evocando uma recusa ou calote poético promovido contra esses dispositivos de poder.

Palavras-chave: Comunicação, Pensamento, Controle, Linguagem, Poesia.


ABSTRACT

In this article, ideas from thinkers such as Gilles Deleuze, Felix Guattari, Franco Berardi, Michel Hardt and Toni Negri are articulated around the problem of communication and the technical-informational devices operating today, to succinctly show how they problematize, criticize, and respond to some problems raised in this area. In the context of societies of control and the Empire, capitalism works as a semiotic operator that deeply transforms and conditions the processes of subjectivation of individuals based on work, language, relationships, and affections. Therefore, in a first moment of the text, it will be shown how Deleuze's philosophy is composed to a large extent as a resistance to this power of subjectivation, especially with regard to the forms of communication mobilized by it and, in a second moment, as Franco Berardi, continuing this criticism, proposes an insurrection of language in relation to the effects of financial and computerized capitalism on the lives of individuals, evoking a refusal or poetic default promoted against these devices of power.

Keywords: Communication, Thought, Control, Language, Poetry.


RÉSUMÉ / RESUMEN

Dans cet article, les idées de penseurs tels que Gilles Deleuze, Félix Guattari, Franco Berardi, Michel Hardt et Toni Negri sont articulées autour de la problématique de la communication et des dispositifs technico-informationnels en fonctionnement aujourd'hui, pour montrer succinctement comment ils problématisent, critiquent et répondent à certains problèmes soulevés dans ce domaine. Dans le contexte des sociétés de contrôle et de l'Empire, le capitalisme fonctionne avant tout comme un opérateur sémiotique qui transforme et conditionne en profondeur les processus de subjectivation des individus fondés sur le travail, le langage, les relations et les affections. Ainsi, dans un premier temps du texte, il sera montré comment la philosophie de Deleuze se compose en grande partie comme une résistance à ce pouvoir de subjectivation, notamment au regard des formes de communication mobilisées par celui-ci et, dans un second temps, comme Franco Berardi, poursuivant cette critique, propose une insurrection du langage par rapport aux effets du capitalisme financier et informatisé sur la vie des individus, évoquant un refus ou un défaut poétique promu contre ces dispositifs de pouvoir.

Mots-clés / Palabras clave: Communication, Pensait, Contrôler, Langue, Poésie.


 

 

Introdução

Em Isto não é um manifesto, publicado no Brasil em 2014, Antonio Negri e Michael Hardt apresentam brevemente alguns aspectos de quatro novas figuras de subjetividade que teriam sido produzidas graças ao triunfo e à crise do neoliberalismo nas últimas décadas. Temos, segundo os autores, como efeito de uma variedade de fatores econômicos, políticos, militares, tecnológicos e midiáticos, a emergência de indivíduos securitizados, representados, endividados e mediatizados. Essas figuras compõem no seu entender o "terreno social" a que é preciso resistir e se rebelar, bem como o âmbito mesmo em que os combates políticos se desdobram na atualidade.

No presente artigo será traçado um entrecruzamento de ideias que envolvem, sobretudo, processos de formação e aspectos específicos dos dois últimos tipos subjetivos citados: o sujeito endividado, produzido pela "hegemonia das finanças e dos bancos" nos processos econômicos da sociedade e, de maneira mais detida, o mediatizado, criado pelo "controle das informações e das redes de comunicação" (Hardt & Negri, 2014, p. 21) no contexto do Império. Tomando como fonte alguns conceitos, considerações e problemas apresentados por Gilles Deleuze, bem como pelos pensadores italianos Franco Berardi e Maurizio Lazzarato, além dos já citados Michael Hardt e Toni Negri.

A filosofia de Deleuze e Guattari, assim como a de Foucault, reverbera em muito do que esses autores contemporâneos estão a pensar e produzir no terreno da ética e da filosofia política, especialmente no que poderíamos chamar de uma estética da existência, pautada no pensamento sobre as condições de produção de subjetividades e modos de vida, tal como desenvolvida em meio a uma diversidade extremamente rica de conceitos como os de biopolítica, governamentalidade, devir minoritário, multidão, micropolítica e sociedades de controle. Em linhas gerais, esse é o âmbito teórico em que as discussões e ideias apresentadas no decorrer desse texto pretende se desenvolver. Para ressaltar de forma mais precisa um aspecto dessa reverberação invocada, o texto se divide em dois momentos, na tentativa de tratar da crítica à comunicação e aos dispositivos de informação na atualidade.

Em um primeiro momento será mostrado como Deleuze, a partir de alguns aspectos de sua crítica da imagem dogmática do pensamento e dos desdobramentos posteriores que esta produziu em seus trabalhos, fornece elementos fortes para uma avaliação crítica dos dispositivos de informação, sobretudo no contexto das sociedades de controle. E, em um segundo momento, recorrendo sobretudo às ideias do pensador italiano Franco Berardi, veremos como os fatores midiáticos, linguísticos e financeiros se modulam e articulam na promoção de uma situação de "dívida semiótica" imposta sobre os indivíduos no contexto de um "semiocapitalismo", mostrando como os dois tipos subjetivos, do endividado e do mediatizado - que em certa medida se implicam e envolvem mutuamente - podem ser superados por uma recusa ativa sob a forma de um calote "ético" e "poético" nos dispositivos políticos e semióticos de controle.

 

Deleuze e o problema da comunicação

Percebe-se, na obra tardia de Gilles Deleuze, em seus livros, conferências e falas públicas dos anos 1980 e início dos 1990, uma frequente (embora um tanto fragmentada e não excessivamente formulada) problematização em torno da questão da comunicação. Existe toda uma dimensão da sua micropolítica, da sua noologia e mesmo da sua concepção de filosofia que invoca a comunicação como problema e objeto de críticas contundentes. O que levantaria a consideração sobre a pertinência desse caráter de seu pensamento para analisar alguns aspectos da nossa contemporaneidade, notadamente marcada pelo desenvolvimento exponencial das tecnologias de comunicação e das possibilidades de informação. Deleuze, nesse período, compreendia que a crise das tecnologias de confinamento das sociedades disciplinares parecia ceder lugar às tecnologias de informação e comunicação que viriam a ser, quanto mais se aprofundasse sua instantaneidade e abrangência, componente fundamental do controle constante que marcaria as formas de dominação nos novos tipos de sociedades emergentes.1

Encontramos, por exemplo, em frases que dizem que a linguagem não comunica uma informação, mas dá ordens à vida ou que é preciso criar vacúolos de não comunicação para escapar ao controle (proferidas em diversas ocasiões pelos autores de Mil Platôs), indícios de que o que Deleuze e Guattari propõem como elemento privilegiado de sua filosofia, passa por outra esfera que não só problematiza a linguagem e diverge da comunicação, mas se opõe radicalmente a ela: trata-se do pensamento da diferença, da expressão e da criação, que, na concepção dos filósofos, não comunicam nem informam nada, mas, efetivamente, afetam, contagiam e forçam tanto quanto são produtos de uma violência produzida sobre um estado orgânico e passivo dos corpos e das mentes.

Ao tratar desse tema, vale notar de início que Deleuze não procedia com base em noções universais e puramente abstratas e, tão pouco, "moralizava" conceitos. No sentido de que não se pode facilmente reduzir à oposição grosseira e "maniqueísta" um conceito em geral a outro. Não se toma um conceito puramente negativo e outro puramente positivo no contexto de suas abordagens filosóficas, como se houvesse uma noção universal e negativa de comunicação que se oporia a uma noção universal e positiva de criação, por exemplo. A noções de comunicação ora aparece enquanto objeto de crítica, ora é invocada para desenvolver à exposição de seus conceitos de maneira propositiva, como no caso das comunicações aberrantes em Diferença e Repetição.

Neste artigo, no entanto, para apresentar e desenvolver o argumento, o sentido do termo comunicação que será tomado é o "negativo". Trata-se da comunicação como dispositivo de controle e instrumento de poder dos aparelhos de Estado e do Capital; que atua para normalizar, restringir, cercear e produzir formas específicas de relação e existência no interior desse sistema. Uma vez que, nas palavras de Deleuze (1992), "é o dinheiro que reina mais além, é ele que comunica" (p. 192), e não as inteligências neutras e puras que se valem livremente da linguagem, imunes a esse condicionante prévio que é perpassado por relações de poder. Trata-se aqui da comunicação associada à "informação morta", como dizem Hardt e Negri, ao invocar essa expressão para se referir à linguagem entranhada de burocracia e paralisada nas máquinas produtivas do trabalho morto do capitalismo (Hardt & Negri 2014).

Em entrevista concedida a Negri em 1990, que seria publicada no Livro Conversações sob o título "Controle e Devir", Deleuze indica que não parece possível que o advento de uma sociedade baseada na "organização transversal de indivíduos livres" seja possível simplesmente através da tomada de posse efetiva das formas de comunicação pelas minorias, uma vez que, segundo o filósofo: "talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estão inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por acidente, mas por natureza." E, em seguida, completa: "É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar" (Deleuze, 1992, p. 217). Esse desvio de fala como advento de uma língua menor no interior da própria língua hegemônica é algo que permeia grande parte do pensamento do filósofo.

De modo complementar, podemos entender o entremear profundo entre poder, linguagem e imagem ao considerarmos, por exemplo, a ideia de Negri e Hardt (2001) de que é o Império mesmo que se sustenta sobre a comunicação. Para os autores ele se ergue em meio a transição para uma economia da informação, onde o trabalho se torna cognitivo, imaterial, marcado pela informatização da produção e pelo domínio sobre os afetos. Nesse contexto os meios de comunicação subordinam a própria soberania política e não o inverso. (Hardt & Negri, 2001). O trabalhador no Império já não é exatamente um alienado como o operário industrial do século passado: enquanto este tinha sua consciência fraturada, fendida, aquele - o trabalhador cognitivo e mediatizado - tem a sua consciência radicalmente absorvida nos meios informáticos. A atenção, ao mesmo tempo que se dispersa em uma quantidade de informações fragmentadas, se mantem sempre mobilizada, sempre requisitada por um processo produtivo de valor, mesmo fora do expediente de trabalho, uma vez que os dispositivos de controle em rede hiper conectada estão cada vez mais entranhados em nosso cotidiano: "com o smartphone e as conexões wireless, você pode ir a qualquer lugar e continuar ocupado, o que significa que você continuará trabalhando onde for. A mediatização é o fator principal das divisões cada vez mais indistintas entre trabalho e vida" (Hardt & Negri, 2014, p. 29).

 

Filosofia e comunicação

Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari defendem que, ao contrário do que propõe uma das tendências mais fortes da contemporaneidade, a filosofia não pode ser entendida e muito menos definida enquanto uma forma de comunicação, ainda que uma forma privilegiada, como tão pouco poderia ser definida essencialmente como sendo reflexão ou contemplação. Nesse livro eles desenvolvem sua conhecida tese de que a filosofia, enquanto ação de pensamento é criação e, especificamente (diferindo de outros modos de pensamento como a ciência e a arte) criação de conceitos. Em vez da reflexão, a criação de conceitos assume o modo de funcionamento de um "construcionismo" e, em oposição à comunicação, o pensamento criador de conceitos se apresenta como uma expressão, um expressionismo propriamente filosófico onde encontramos um Outrem, como expressão de um mundo possível (Deleuze, 1992). Com efeito "a filosofia não encontra nenhum refúgio último na comunicação, que não trabalha em potência a não ser de opiniões, para criar o 'consenso' e não o conceito" (Deleuze & Guattari, 2010, pp. 12-13), dirão os filósofos.

Neste contexto verifica-se, por exemplo, uma tentativa presente em autores como Habermas e Richard Rorty de aproximar decisivamente a Filosofia da Comunicação. Mas nem a noção de "consenso" por parte do primeiro, nem as "regras" de uma conversa democrática universal, no caso do segundo, apesar de todos os esforços, conseguem, segundo Deleuze (2006), produzir um conceito "verdadeiramente crítico" de comunicação. Para se compreender a extensão dessa crítica que Deleuze faz à noção de comunicação em seus últimos textos, mesmo à filosofia da comunicação, seria oportuno remeter aos estudo que empreendeu sobre a imagem do pensamento ainda em seus livros Nietzsche e a filosofia, de 1962, Proust e os signos, de 1964 e, sobretudo, em Diferença e Repetição, de 1968.

É nesta obra difícil e importante que podemos compreender já os elementos que explicam sua crítica à comunicação como domínio do consenso, como domínio sufocante que se associa ao âmbito da opinião na sociedade e ao elemento da recognição no intelecto. Aspectos que restringem a possibilidade do pensamento enquanto criação, reduzindo-o a uma plena sujeição ao domínio da representação. Neste livro, Deleuze nos apresenta um esforço no sentido de encontrar as condições de superação desse domínio, a partir da possibilidade de se pensar a repetição pura e a diferença em si mesma, não mais relativa as formas em que a representação a esquarteja ou exorciza: a identidade no conceito, a oposição no predicado, a analogia no juízo e a semelhança no objeto.

Dessa orientação por uma filosofia da diferença Deleuze desenvolve de maneira original e consistente uma noologia, ou seja, uma teoria da imagem do pensamento, bem como uma ética e uma filosofia política que assumem de forma radical as consequências das prerrogativas dessa posição filosófica, sob a forma de uma filosofia da pura imanência. De modo bastante simplificado, poderia se dizer que pensar a diferença seria o limite transcendental do pensamento, onde este encontra o impensado em si mesmo e assume as condições para se tornar criação de si mesmo. O pensamento da diferença seria a chave para se compreender uma gênese do próprio pensamento. E isso só pode se dar no nível de um "involuntarismo" do próprio pensamento, no sentido de que não é na alçada de uma livre decisão de pensar que o pensamento cria e se cria, não é a partir de uma afinidade pretensamente natural entre o pensamento e o verdadeiro que a criação se produz, mas antes diante de uma violência que se imprime sobre as faculdades e que se distribui, a maneira de um curto-circuito ou uma corrente quebrada, de uma para a outra:

Tanto quanto só há pensamento involuntário, suscitado, coagido no pensamento, com mais forte razão é absolutamente necessário que ele nasça por arrombamento, do fortuito no mundo. O que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, é o inimigo, e nada supõe a Filosofia; tudo parte de uma misossofia. (Deleuze, 1988, p. 230).

É pelo contato sem mediação com um signo sensível que provoca, violenta e força a sensibilidade até o seu limite, que a possibilidade do pensamento está posta. É um sensível que não reporta de imediato a uma memória, a uma imaginação, a um reconhecimento do objeto percebido, mas antes a um estranhamento, uma perturbação e um choque. Esse contato não se dá, portanto, sob as restrições de uma comunicação controlada, mas pelo efetivo descontrole de uma comunicação aberrante no próprio tecida da realidade, no acontecer de uma experiencia real. A sensibilidade é forçada pela intensidade de um signo sensível através de um encontro, de um afeto. A intensidade afeta a sensibilidade que por sua vez força a memória involuntária e o pensamento: "é sempre através de uma intensidade que o pensamento nos advém", (Deleuze, 1988, p. 239). O signo abre a percepção para diferenças espaço-temporais, para mundos diversos e para sentidos que se distribuem no decurso da aparição e interpretação dos próprios signos. Não passam, portanto, por significados convencionais e convenientes às determinações dos poderes dados em nível explicito e convencional. É um "aprendizado obscuro" que se dá a partir do momento em que a percepção se volta mais para as singularidades e diferenças do que para os significados e definições, mais para as forças e intensidades do que para as formas e objetos:

Passamos ao largo dos mais belos encontros, nos esquivando dos imperativos que deles emanam: ao aprofundamento dos encontros, preferimos a facilidade das recognições, e assim que experimentamos o prazer de uma impressão, como o esplendor de um signo, só sabemos dizer "ora, ora, ora", o que vem a dar no mesmo que "bravo! Bravo! Bravo!", expressões que manifestam nossa homenagem ao objeto (Deleuze, 2003, p. 26).

Nesse interim, a comunicação dos significados objetivos são somente uma dimenção da experiencia e apenas a menos importante no que diz respeito ao apredizado e criação do novo. Seja este novo um conceito, uma obra de arte, uma função cientifica; seja a fabulação política de um povo que ainda falta, de um comum, de modos existencias singulares e potentes etc.

No interior dessa compreensão o adversário direto do pensamento não é o erro, como insiste a filosofia baseada em uma imagem dogmática do pensamento, não é tanto a mentira ou a notícia falsa enquanto erro o grande problema, mas a baixeza que as envolve. O erro nada mais é do que uma repartição equivoca dos elementos da representação, uma recognição malsucedida. Confusão entre percepção e concepção mental do objeto, por exemplo, um mero desvio no reconhecimento dele. Mas em todo caso algo que pode ser corrigido, superado, evitado com a aplicação eficaz de uma lógica metódica e obstinada. É possível que a besteira, a bobagem e a baixeza que se instalam na linguagem, ainda que no interior de uma proposição perfeitamente verdadeira, sejam mais perniciosas para o pensamento. Segundo Deleuze (1988), "o que alguém diz nunca está errado, não é que esteja errado, é que é besteira ou não tem nenhum interesse" e "do que se morre atualmente não é de interferências, mas de proposições que não tem o menor interesse" (p. 162). Poderíamos dizer também, de falas que não trazem nenhum sentido novo, necessário, útil, que não abrem nenhum possível e que são simples bobagens ou idiotices carregadas de pura baixeza, de puro veneno e desejo de apequenar, entravar, adoecer etc. Algo que inunda não só as conversações corriqueiras, mas também os espaços de circulação de informação midiáticos, cada vez mais presentes e integrados em nosso cotidiano.

Ao tratar do sujeito mediatizado, Negri e Hardt (2014) relembram que em grande medida prevaleceu a ideia de que a ação política de resistência era sufocada e bloqueada por uma forma de domínio da mídia pelos poderes sensores, que impediam a livre expressão, o acesso aos meios de comunicação e a quantidade necessária de informação. Embora o silenciamento e o cerceamento ao acesso irrestrito à informação muitas vezes de forma repressiva é um fato que de maneira alguma deva ser negligenciado, caberia considerar também de forma séria e consistente também o problema oposto, sobretudo nos tempos atuais, do excesso de informação e suas consequências.

As forças repressivas, dirão Hardt e Negri fazendo eco a Deleuze, antes forçam as pessoas a se exprimirem do que as impede. O problema é enfrentar o excesso de fala, que nos tira da solidão e do silêncio, condições de se ter algo "raro ou rarefeito" a dizer. Deleuze não é um defensor do espontaneísmo, embora a criação se dê em uma velocidade infinita, as respostas imediatas e "rápidas" raramente são criadoras. É o que relembra ao invocar o problema do reconhecimento sensório motor em Bergson e a descrição infinita envolvidas em um "reconhecimento atento", demorado, silencioso, que nos permite fraturar as formas, fender os objetos, as palavras e as coisas em sua imagem representativa, quebrando o prolongamento sensório-motor da ação e conduzindo ao acesso de imagens diretas do tempo e do pensamento. É desse modo que a solidão e o silêncio, a experimentação, a ruminação, a travessia do deserto, o contato direto e demorado com um problema nos dá mais chance de trazer à luz um sentido, uma resposta nova.

No contexto das sociedades de controle, a comunicação parece assumir a reunião de todas essas dimensões: da besteira, da recognição, dos significados formalizados, dos valores correntes, da representação etc. como aquilo que se opõe de maneira radical à criação. Sendo o meio pelo qual os possíveis se restringem e endurecem, as identidades se cristalizam, as percepções e opiniões se solidificam encurralando as alternativas desviantes, constituindo verdadeiras impossibilidades. Mas ocorre que é entre impossibilidades que as chances de criação se agitam, "a criação se faz em gargalos de estrangulamento" (Deleuze, 1992, p, 167). E não no ambiente "livre" mas perfeitamente controlado dos espaços abertos e das redes de comunicação produzidas, assumidas e assimiladas pelas corporações capitalistas promotoras diretas das verdades e valores da democracia representativa neoliberal.

 

Poesia e calote semiótico

Na esteira de muitas dessas ideias apresentadas por Deleuze, o pensador italiano Franco Berardi nos mostra como a linguagem e os significados mobilizados pela comunicação no contexto do capitalismo informatizado restringem nossa realidade a um aparato semiótico, simbólico e linguístico do qual nos tornamos tributários, aos quais estamos submetidos como que em uma relação de dívida, de modo que os excessos dos sentidos, a poesia, os devires da linguagem, são sempre expulsos do nível comunicativo ordinário em nome de uma espécie de financeirização generalizada da linguagem. De modo que Berardi nos convida, como atitude política ou micropolítica, cometer um efetivo "calote" nessa economia opressiva.

De maneira bem-humorada, Berardi (2020) nos lembra que, provavelmente, com exceção do autor de a Terra Devastada, T.S Eliot (que trabalhava no Lloyds Bank), os grandes poetas em geral foram pobres demais para serem investidores da bolsa; para ilustrar o que é evidente: que não é nada intuitivo associar o âmbito do capital financeiro ao da poesia. Mas em seu livro, Asfixia: capitalismo financeiro e insurreição da linguagem, publicado no Brasil em 2020, Berardi levanta uma série de aspectos interessantes que aproximam e confrontam de modo singular esses dois domínios: poesia e capitalismo, mais precisamente a linguagem excessiva da poesia e os efeitos destruidores do capitalismo financeiro e midiatizado. Passaremos a seguir brevemente por alguns desses aspectos.

A princípio vale notar que a linguagem e o dinheiro têm em comum o fato de não serem nada em "si mesmos", mas disporem da capacidade de pôr tudo em movimento! São símbolos, convenções, emissão de voz que mobilizam de fato ações concretas que transformam as coisas do mundo. (Berardi, 2020). Outra semelhança apontada pelo autor é que, na modernidade, ambos, linguagem e dinheiro, conheceram um deslocamento decisivo em relação ao limite que os lastreava e continha. Com a poesia, sobretudo a partir das inspirações e experimentações acumuladas em torno do simbolismo, a linguagem se liberou do referencial "do mundo concreto" e o dinheiro, a partir da liberação do dólar em relação ao padrão ouro, liberou-se também do correspondente objetivo (mercadoria). Essa reconfiguração apontoaria tanto em um como no outro para uma automação autorreferente marcada pela capacidade de produzir e destruir o "real", de postular os modos de relação a partir do qual habitamos o mundo e vivemos nossas vidas. Com efeito, a desreferencialização "[...] marca das experimentações poéticas e artísticas do século XX, tem algo a ver com a transformação ocorrida nas últimas décadas na relação entre trocas econômicas e monetárias" (Berardi, 2020, p. 30). Quando, em 1972, Richard Nixon rompeu com os acordos de Bretton Woods, o dólar perdeu como referência à realidade e seu valor "[...] seria dali em diante decidido por um ato de linguagem." O que impulsionou a predominância do capitalismo financeiro, cujas dinâmicas se libertaram enquanto tais do referente da realidade.

Como nos mostra Maurizio Lazzarato (2017), com esse processo de desreferencialização e o advento da hegemonia do neoliberalismo que acompanha, o capitalismo financeiro não liberou o mercado, seu suposto poder de autorregulação, mas de maneira muito mais significativa, liberou "seu movimento imanente de desequilíbrio permanente e sua busca sistemática de assimetrias e de desigualdades, que são as condições de sua valorização, quer dizer, da apropriação e da expropriação da produção social, que constituem suas verdadeiras finalidades". (p. 130).

O capitalismo se vale de dispositivos linguísticos embora não seja ele mesmo linguístico, ele é um operador semiótico, um "semiocapitalismo" que produz e distribui signos operantes dentro das determinações maleáveis e desterritorializantes de sua axiomática.2 Para Lazzarato (2017) "os fluxos de signos (a moeda, os logaritmos, os diagramas e as equações) agem diretamente sobre os fluxos materiais, sem passar pela significação, pela referência, pela denotação" (p. 22). São semióticas a-ssignificantes e trabalham em nível maquínico, que integram os indivíduos em um tipo singular de servidão, onde os aspectos propriamente volitivos e subjetivos não participam livremente.

Mas diante de tudo isso, Berardi apresenta a interessante tese de que a linguagem, provocada ao seu nível poético, guarda uma potência de contra efetuação em relação aos axiomas introduzidos pelo capital. Se arriscarmos a fatídica e aparentemente inábil questão: o que pode a poesia contra o mundo capitalista? Contra o mundo automatizado, financeirizado, informatizado, contra a existência endividada, securitizada, administrada, asfixiante produzida por esse sistema? Berardi indica como resposta que, talvez esteja na poesia, na linguagem enquanto "excesso sensorial" não automatizado, um "excesso de transações semióticas" que está nas condições de "reativar a respiração", de liberar a possibilidade de dar folego a um efetivo calote na dívida semiótica que nos encurrala.

Certamente não é só em termos financeiros que se sustem a dívida, Berardi se refere a um "endividamento simbólico" e, também, a uma espécie de compromisso firmado em torno de uma normalização generalizada do real (ainda que tal normalização comporte graus de variedade e modulação), que abrange nossa vida psíquica, social, afetiva, cultural; perante a qual devemos responder como tributários. Dívida para com as formas de verdade no discurso, as formas semiológicas e linguísticas, os regimes de imagem e de signos submetidos à lógica da informação; as formações de memória, de sentido, de ação e experiência submetidos a contenção opressiva de uma espécie de "realismo capitalista" para usar a expressão de um importante interlocutor do pensador italiano, o inglês Mark Fischer.3 Tem-se todo um grosso aparato de juízo e controle que esgotam as capacidades de mobilização, ação, conjunção, em suma de respiração e conspiração dentro de seus circuitos.

Esse calote semiótico efetivado na linguagem poética corresponde a uma liberação dos processos de subjetivação na economia financeirizada e midiatizada, por meio de uma emancipação da linguagem e sobretudo dos afetos e pensamentos que a acompanham e potencializam, multiplicando as formas de troca e de produção de sentido:

O calote não é apenas a recusa de pagar os custos das crises econômicas provocadas pela classe financeira, mas também a rejeição da dívida simbólica corporificada na normalização psíquica e cultural da vida diária [...][...]o calote social representa a rejeição da lista de prioridades que o conformismo capitalista impôs a sociedade (Berardi, 2020, p. 20).

Como nos diz Lazzarato (2017), se insistirmos em um possível diálogo entre os autores: "não é dobrando-nos às injunções de reembolso da dívida que nós podemos nos liberar dela. Não é por um ato de pagamento, mas por um ato político, por uma recusa que podemos romper a relação de dominação da dívida" (p. 84). A dívida constitui-se como uma forma de governamentalidade que abrange as variadas dimensões da vida, por isso sua quitação, seu suposto reembolso ou seu calote não poderiam se dar em um nível apenas econômico. O capitalismo impõe seus axiomas e os faz circular em circuitos comunicativos que abrangem as várias dimensões dos conjuntos numeráveis, reduzidos aos modelos que impõe. De modo que é aquele corpo que não se restringe a inclusão numérica, que desvia do modelo e atravessa a normalização axiomática do capital sem se deixar capturar, que está em condições efetivas de recusar essa dívida. Trata-se do devir minoritário, da potência do não numerável.

Não cabe aqui demasiadas explanações para ancorar uma definição rigorosa do que seja poesia, por hora basta a orientação por meio da própria apresentação de Berardi (2020) no contexto estrito em que procura desenvolver seu argumento, uma definição segundo ele mesmo "arbitrária e ilícita" (p. 14): Poesia, diz o autor, "[...] é a linguagem não transacional, o retorno da hermenêutica infinita e a volta do corpo sensorial da linguagem [...]"(p. 110) e "[...] falo em poesia aqui como um excesso de linguagem, como uma ferramenta oculta que nos permite mudar de um paradigma a outro" (p. 111). E, ainda,

[...] chamamos "poesia" a concatenação semiótica que excede a esfera das trocas e a correspondência codificada do significante e do significado; a concatenação semiótica que cria novas rotas de significação e abre caminho para reativar o elo entre sensibilidade e tempo, já que sensibilidade é o que possibilita a singularidade da enunciação e a singularidade da compreensão de um enunciado não codificado". (p. 118).

Certamente, a poesia aqui não assume os contornos de um ofício especializado atribuído a literatos e doutores, mas se volta para um uso autônomo e heterogêneo no que diz respeito a partilha da linguagem, das visibilidades e da sensibilidade. Para Berardi (2020), a poesia funciona como a linguagem de um movimento insurrecto que introduziria um novo ritornelo capaz de conduzir à "separação entre as forças psíquicas da sociedade e o ritmo padronizado das relações compulsória de competição-consumo" (p. 119). É o que permitirá dar autonomia em relação a tal padronização dos modos de vida em sua variedade, a poesia enquanto criação de enunciados e visibilidades livres dos esquemas de redundância e irrelevância que abundam nosso espaço perceptivo, psíquico, corporal.

Nada autoriza a precipitação de acusar o autor de uma estetização ingênua da luta política. A importância decisiva dada a linguagem e ao que chama de poética se impõe, porque situa essa ação na experimentação direta com a realidade, que sempre passa pelo sentir e pelo perceber, pelo ouvir e pelo falar, por uma estética, portanto. A linguagem tornada poética ultrapassa seu uso empírico e se torna um acontecimento no interior da própria linguagem, confrontando seu limite, e é por meio do acontecimento que a política começa. É o acontecimento que faz a ação política se tornar criadora ao fissurar os limites de possibilidade dados e realizar o impossível a partir de uma nova distribuição de possíveis. Como nos mostra Lapoujade (2015) ao tratar das contribuições de Deleuze e Guattari:

Se toda política começa com a estética, não é de modo algum em virtude de uma estetização da política ou de uma politização da estética, mas porque tudo começa com ver e falar; é porque a estética, em Deleuze, é o que nos leva de volta para as condições da experiência, sob a dupla garra do visível e do enunciável [...] [...] a política começa quando um acontecimento vem "fender as palavras e as coisas", isto é quando afasta as garras que constituem a forma de interioridade da mônada. Ver e falar deixam de ser exercícios empíricos e de preencher sua função social preestabelecida. Eles são submetidos a um uso transcendental, ou "menor", que os faz atingir o indizível do dizível, o invisível do visível. (p. 280).

E é com essa linguagem fendida, excessiva, aberrante, e mesmo com os silêncios que comporta e nos quais se forma, que se possui a condição de fazer frente à linguagem endividada, carcomida por clichês, apodrecida pelo dinheiro, como certa linguagem informacional que produz uma condição monádica e niilista que restringe em uma circularidade ou redundância ostensiva as potencias do ouvir, do ver e do falar; de modo que todos remontam circularmente uns aos outros, sem que os circuitos de comunicação se fissurem, curto-circuitem e os "vacúolos de não comunicação" se produzam. Tal padronização atua na base do conformismo atual que sustenta a incontestabilidade da economia capitalista como uma fé dogmática, como um operador discreto que modula tudo, que trabalha as formações sociais e subjetivas por dentro.

 

Conspiração

A conspiração, o respirar junto, está destinada ao fracasso! É a conclusão a que chega Berardi em Asfixia. A empatia, a sensibilidade como capacidade de acessar o outro em suas singularidades não comunicantes, prerrogativas para uma existência conspiratória, se tornaram um "fardo e uma desvantagem" na sociedade da competição plena e da brutalidade crônica. O ritmo mesmo que o autor imprime a seu livro é o ritmo de uma respiração, a respiração como estilo, com suas repetições as vezes estranhamente idênticas, cacofonias, com momentos de folego amplo e de resfolegar asmático (mal de que o autor sofre e relata). É diante do fracasso eminente da respiração que declara "...estou tentando deslocar o campo da busca vibracional, movê-lo da conspiração social para a expiração cósmica, para a dissolução do individual (eu) em meio à dimensão cósmica do nada". (Berardi, 2020, p. 238). Na atmosfera sufocante em que chegamos, propõe reencontrar a poesia como respiração, mas atentando para o fato de que "a poesia deve preparar nossos pulmões para que respirem o ritmo da morte", uma vez que:

A respiração está destinada ao fracasso na esfera social (a esfera da conspiração) de hoje. As pessoas sentem essa impossibilidade e tendem a ser egoístas e cínicas e, como consequência, a sentirem depressão e autodesprezo. Como a solidariedade foi anulada, tudo o que sobrou foi a vingança [...] (Berardi, 2020, p. 238).

Em textos e entrevistas mais recentes o autor aponta a ascensão dos populismos de direita que caracterizam a ascensão de governos do tipo Bolsonaro e Trump como uma espécie de novo fascismo, cuja verdade profunda sobre o qual se consolida é o próprio sentimento de impotência que domina os homens e a raiva que dela se origina, impotência mascarada pela exaltação da "potência" ou do poder que lhes resta: poder da "violência, do trabalho, da concorrência". E ressalta que diante das iminentes destruições que nos assombram a saída talvez passe por um ascetismo informático, uma desaceleração e uma busca pela frugalidade na existência cotidiana e concreta.4.

É provável que tais práticas possam favorecer o calote semiótico que visa destituir a padronização, a subsunção e a subjugação das subjetividades e dos fluxos sociais aos automatismos tecnolinguísticos promovidos pelo capital financeiro que submeteu a linguagem e o afeto à sua racionalidade própria, e ao efeito paradoxalmente caótico que essa racionalidade produz.

Esse automatismo tecnolinguístico, aliado "às obrigações financeiras, necessidades sociais e invasão psicomidiáticas" (Berardi, 2020, p. 19) possui o efeito de transformar tanto quanto possível o corpo social em uma espécie de enxame, uma espécie de "organismo coletivo cujo comportamento é dirigido de forma automática por interfaces conectivas". (Berardi, 2020, p. 18). A noção de enxame complementaria a de rede, se entendermos esta como um tipo de pluralidade abrangendo humanos e máquinas que operam juntos, interconectados, para realizar atividades especificas. O comportamento de enxame seria efeito do excesso de atividades interconectadas em rede e da incapacidade de processar de forma seletiva, consciente e eficiente as informações (devido sua quantidade e velocidade de circulação) por parte dos indivíduos. É uma consequência direta da intensificação do fluxo informativo que atravessa o corpo social, da aceleração que derruba "os muros de contenção de relevância" do ritornelo racionalista. O que faz com que a acomodação em comportamentos compartilhados, padrões de interação que "facilitam" as coisas, se torne regra estruturante dos campos de possibilidades, sobrederminando seus direcionamentos e redefinindo os modos sociais de processamento de informação. Com a o agravante de que as decisões autônomas são simplesmente anuladas: "Em um enxame, não há como dizer 'não'. Seria irrelevante" (Berardi, 2020, p. 19).

 

Considerações finais

O excesso de informação que mobiliza de maneira constante a atenção também é o que põe a percepção em vertigem, "para além de limites físicos, emocionais e culturais" (Berardi, 2020, p. 157) para enfim a quebrar, reduzir, aparar, não se trata da velocidade infinita do pensamento (Deleuze), do desregramento de um tempo que se libera dos gonzos e nos faz experimentar outras durações, mas de um niilismo passivo que aponta para um totalitarismo de tipo novo que parece se anunciar. É o momento do "pânico", como inscrição subjetiva no caos5, condição "pós-racional" a que precisa aprender a combater.

A poesia seria, por outro lado, a conquista de um ritmo, um fluxo de intensidades em composição, que se diferenciaria do puro caos, do puro indiferenciado bem como da formação rígida, abstrata e transcendente pela qual nenhuma diferença pura passa. É um caosmos, um buraco no guarda-chuva. Atman e prana (Berardi, 2020). Ela promove uma evocação autônoma do significante em relação ao referente, é a linguagem liberada e lançada ao marulho universal dos encontros, dos afectos e devires. Através dela a relação entre palavra e mundo deixa de ser referencial denotativa e passa a ser experimental, e a potência conotativa da linguagem é liberada até seu "ponto de combustão" e "hiperinclusão", o excesso que surge como condição para a "revelação", para a vidência. Nessa abertura pós referencial, promovida primeiro pela poesia simbolista, a linguagem deixa de ser funcional, técnica e passa a ser mágica e epifânica. Atingindo movimentos e velocidades aberrantes, tal como a imagem ao se libertar do movimento mecânico e da forma representativa. Para Berardi (2020):

Enquanto a funcionalidade da palavra operacional sugere a redução do ato de enunciação à recombinação conectiva, a poesia é o excesso sensorial que se descarrega no circuito da comunicação social e que reabre as dinâmicas do jogo infinito da interpretação: o desejo. (p. 23).

Segundo Giorgio Agambem (2022), a filosofia e a poesia são uma língua morta, ou um dialeto, que no entanto "serve para dar mais vida ao pensamento".6 Para Deleuze (1992), a filosofia é um meio clandestino de pensamento que frequenta os interstícios do poder e as zonas indiscerníveis e indistintas onde as suas representações se diluem e esvaem, desde que ponha em movimento uma língua menor, um devir minoritário capaz de fazer resistir ao controle. Para ele, neste sentido "a única comunicação que poderíamos desejar, como perfeitamente adaptada ao mundo moderno, é o modelo de Adorno, a garrafa atirada ao mar, ou o modelo nietzscheano, a flecha lançada por um pensador e recolhida por outro". (Deleuze, 1992, p. 192). Mas vale considerar, também - como Negri e Hardt (2014) apontam a respeito dos acampamentos e ocupações de 2011 - a promoção de novas formas de estar juntos, quebrando o excesso de mediação tecnológica, promovendo mais uma vez essa espécie de "comunicação corpórea" que abre para a possibilidade da produção de afetos que incitem a inteligência e as ações políticas coletivas capazes de fortalecer as chances reais de fazer a recusa da dívida (que sequer é nossa) e lançar o pensamento e a linguagem na conspiração e na intenção da autonomia e de um novo comum.

 

 

Referências

Agambem, G. (2022). Quando a casa queima. Recuperado em 18/07/2022 em: <https://www.n-1edicoes.org/textos/196?fbclid=IwAR0hyifhsmmiI_zgoxwCDg_y4n0tYDgHUhhfGT6Hu3JVnxqAnMEoMkC9G0>         [ Links ].

Berardi, F. (2014). Asfixia: capitalismo financeiro e insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu Editora.         [ Links ]

Berardi, F. (1968). Desejo, revolução e os ecos de 1968. Recuperado em 16/07/2022 em: <https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/bifo-desejo-revolucao-e-os-ecos-de-1968/>         [ Links ].

Deleuze, G. (1992). Conversações. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Deleuze, G. (1997). Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Deleuze, G. (2006). A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Editora Iluminuras.         [ Links ]

Deleuze, G. (2003). Proust e os signos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O que é a filosofia? (3ª ed.). São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil platôs. (Vol. 5). São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Hardt, M., & Negri, T. (2014). Declaração: isto não é um manifesto. São Paulo: N-1 edições.         [ Links ]

Hardt, M., & Negri, T. (2001). Império (2001). Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

Lapoujade, D. (2015). Deleuze: os Movimentos Aberrantes. São Paulo: N-1 Edições.         [ Links ]

Lazzarato, M. (2017). O governo do homem endividado. São Paulo: N-1 Edições.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Eduardo Francelino de Carvalho
E-mail: eduarddofc@gmail.com

 

 

*Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará - UECE em 2007. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará - UFC, na área de pesquisa Ética e Filosofia política. ORCID: 0000-0001-7124-9450.
1Vide o Post Scriptum sobre as sociedades de controle, Conversações, Editora 34, 1992.
2Sobre isso, dizem Guattari e Deleuze: "Os axiomas do capitalismo não são evidentemente proposições teóricas, nem fórmulas ideológicas, mas enunciados que constituem a forma semiológica do Capital e que entram como partes componentes nos agenciamentos de produção, de circulação e de consumo". In Mil Platôs, Vol. 5, pp. 174-175.
3Vide o livro de Mark Fischer, Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? (Autonomia Literária, 2020).
4Recuperado em: <https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/bifo-desejo-revolucao-e-os-ecos-de-1968/>.
5O que Berardi chama aqui de caos é a quebra da capacidade de seleção de informações com base na relevância como uma "incapacidade de atribuir sentido ao fluxo"; seria, então, uma organização supraperceptiva, um caos diante de nossa capacidade de estruturação.
6Agamebem (2022), "enquanto a casa queima". Recuperado em: <https://www.n-1edicoes.org/textos/196?fbclid=IwAR0hyifhsmmiI_zgoxwCDg_y4n0tYDgHUhhfGT6Hu3JVnxqAnMEoMkC9G0>.

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