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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso v.29 n.54 Belo Horizonte set. 2007
CLÍNICA PSICANALÍTICA
Escutar é preciso, diagnosticar não é preciso
Listening can be precise, diagnosing cannot
Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
A partir do relato de um caso clínico, discute-se a acurácia do estruturalismo clínico em Psicanálise e destaca-se a dupla função - diagnóstica e terapêutica - da escuta analítica.
Palavras-chave: Estruturas clínicas, Diagnóstico em Psicanálise, Entrevistas preliminares, Perversão, Neurose obsessiva.
ABSTRACT
Stemming from clinical studies, the author discusses the accuracy of clinical structuralism in Psychoanalysis while emphasizing the double function – diagnostic and therapeutic – of analytical listening.
Keywords: Clinical structures, Diagnosis in psychoanalysis, Preliminary interview, Perversion, Obsessive neurosis.
"Navegar é preciso, viver não é preciso."
(Fernando Pessoa)
Escutar é preciso
O paciente R, 18 anos de idade, me foi encaminhado por uma Psicóloga, que o havia reprovado na avaliação psicotécnica para obtenção da carteira de habilitação de motorista. Na primeira entrevista, R trouxe como queixa principal o fato de ser inseguro e afirmou: "As pessoas me manipulam, principalmente minha mãe; tento agradar a todos e eles sempre me trataram como bobo, me mandam fazer coisas o tempo todo como se eu fosse escravo". Na ocasião, relata um sonho: "Estou num circo amarrado ao mastro central, o circo começa a pegar fogo, minha família e toda a platéia assistem, riem de mim, fogem e me deixam lá. Acordo".
R é o caçula de três irmãos e o único que, ao iniciar o tratamento, ainda não estava na universidade. Tentou o vestibular, mas fracassou e passou a fazer "cursinho" para tentar novamente. Os pais dormem em quartos separados há anos e mantêm o casamento "por causa dos filhos e da situação financeira". Mora também na casa o avô materno do paciente, "velho e doente", de quem R gosta muito mas, por ocasião de sua morte ao longo da análise, diz não ter sido "capaz de chorar nenhuma lágrima".
A mãe é descrita por R como onipresente e onipotente, intrusiva, interfere em tudo o que ele diz ou demanda e procura sempre decidir e escolher por ele sobre tudo o que deve fazer: "Ela me sufoca, não me deixa nem respirar. Eu não gosto dela, queria ficar livre dela, quero fazer faculdade em outra cidade". Em sessão, a mãe de R me diz que ele, devido à dislexia diagnosticada cedo, "deu muito trabalho" com aprendizado, necessitando freqüentemente da ajuda de professores particulares para ser aprovado na escola e por isso "ele sempre foi muito caro". Ela o considera "muito limitado", opinião corroborada pelo pai, teme que R "não dê em nada" e é contra seu desejo de tentar o vestibular para Medicina por considerá-lo "incapaz para passar em curso tão difícil", admitindo querer convencê-lo a tentar "curso mais fácil". Também admite sobrecarregar muito R, já que "ela é a única mulher em casa e não tem ninguém com quem falar". O pai é descrito por R como alguém que "não fala nada, não responde nada que eu quero saber, conta sempre as mesmas coisas da vida dele e sempre escorrega quando preciso da opinião dele nas minhas coisas". Por isso, apesar de dormirem no mesmo quarto, R não consegue falar de suas angústias com o pai, em especial de "suas dúvidas sobre sexo". Apesar do pai "nunca dizer nada", é com ele que R mais conversa em casa, de quem mais gosta e com quem às vezes prazerosamente brinca de lutar boxe, porque "é o único contato físico que posso ter com ele". R afirmou sobre os pais que "seria melhor que eles se separassem e tentassem ser felizes".
O quadro clínico de R é polissintomático e motivo de intensa angústia muitas vezes descrita nas sessões mas, apesar disso, o paciente nunca chorou com os relatos. Ocupa predominantemente a fase inicial do tratamento a descrição de insistentes idéias de morte, sem ideação suicida explícita, mesmo diante de questionamento direto sobre o desejo de auto-extermínio. Relatou sonhos com tal conteúdo, como: "Estou estudando no quarto de minha mãe, há um assalto no prédio ao lado, uma bala perdida me acerta na testa e morro. Acordo". Outro sonho: "Vou por uma estrada, chego à bifurcação, escolho o caminho mais difícil que termina numa ponte sobre um ... (tenta em vão dizer a palavra desfiladeiro e a substitui por) uma depressão muito funda, começo a travessia mas no final tenho que pular para a margem, pulo, mas caio e morro. Acordo". Esta ideação gradualmente desaparece ao longo do tratamento.
Outro sintoma marcante é a compulsão incontrolável "de comer tudo o que vê" em sua frente, em situações que o angustiam ou o deixam com raiva, a maioria delas ligada à intrusão da mãe em decidir por ele em tudo. R: "Ela quer decidir até o que eu devo ler. Ela acha que eu perco tempo de estudar se quero ler jornal". Analista (A): "E o que você acha?" Esta intervenção sintetiza a estratégia sistematicamente adotada no início do tratamento, já que era claro e urgente que a massacrante relação de absoluto assujeitamento ao desejo da mãe sob a qual R vinha vivendo há tanto tempo, causa de sua angústia e de seus múltiplos sintomas, devia ser barrada através da possibilidade de emergência do sujeito proporcionada pelo espaço analítico. Pontuar, escandir e marcar sempre que o sujeito surgia no discurso foi a estratégia terapêutica prioritária desde o início da análise, como afirmação para R da existência de outro desejo além do imposto pela mãe. Devido à compulsão por comida, R é obeso e tenta seguir dieta a ele prescrita.
R refere também a tentativa obsessiva de encontrar figuras geométricas em tudo o que vê, bem como sua insistência em se perguntar exaustivamente o "porquê das coisas", o que o deixa mentalmente cansado. Diante de decisões a tomar sofre com as dúvidas que lhe surgem e tende sempre a ser negativo nas avaliações. Autodeprecia-se com freqüência, mesmo que perceba que as pessoas "falam só besteiras, inclusive lá em casa, mas ninguém dá valor ao que eu digo e eles gozam minha cara".
Após poucos meses de análise, descreve dois episódios de automatismo mental. No primeiro, está tomando banho e ouve a voz da mãe mandando-o arrumar sua cama, interrompe o banho e cumpre a ordem. No segundo, está a caminho da loja do pai e ouve a voz da mãe mandando-o ir ao mercado, obedece a ordem e muda seu trajeto, mas ao chegar ao mercado não sabe o que foi fazer lá. Tais relatos geram dúvida diagnóstica, já que surgiu a possibilidade de tratar-se de psicose (paranóia), mas interrogado sobre a origem da voz materna, R afirma que "ela vem de dentro da minha cabeça", detalhe clínico valioso. Seguro quanto à inexistência de fenomenologia consistente com psicose, pedi avaliação psiquiátrica para início de medicação para alívio de seus sintomas que, por sua intensidade, prejudicavam seus estudos. Foi prescrita medicação antidepressiva e ansiolítica e nenhuma anti-psicótica, reforçando hipótese diagnóstica de automatismo mental obsessivo. Porém, de valor conclusivo quanto a esta dúvida diagnóstica foi a definição da posição do sujeito diante do Outro materno sufocante, proporcionada pela escuta analítica, que se revelou como uma angustiante luta de separação e não como uma acomodação alienada.
Mas é a sexualidade o motivo das maiores angústias de R e de seu sentimento de encontrar-se "confuso e perdido". Diz que em sua casa este assunto sempre foi "tabu" e relata que sua mãe nunca permitiu que ninguém se despisse diante de outra pessoa. Assim, R diz nunca ter visto nem mesmo seu pai ou seus irmãos nus, pois até para experimentar uma roupa nova eles eram obrigados pela mãe a fazê-lo sozinhos num quarto ou banheiro. Ao iniciar o tratamento, R não havia tido nenhuma relação sexual e nunca havia namorado. Questionado nas entrevistas preliminares sobre suas fantasias masturbatórias, cita constrangido o nome de um jogador de futebol e de um cantor famosos como centro delas, nas quais obrigatoriamente o parceiro deve estar de cueca e há sempre um jogo de dominação exercido por R, que controla a cena, ordena que seus pés sejam beijados e bate no outro sem, porém, nunca haver penetração sexual. Descreve fantasias masturbatórias também com mulheres, que sempre usam calcinha, onde predomina o prazer de ser tocado e de tocar o corpo feminino, embora terminem com a penetração sexual, que diz conhecer só por fotos de revistas pornográficas. Diz-se angustiado e confuso por não saber "qual é a dele", pois sente-se atraído sexualmente tanto por homens quanto por mulheres e afirma que precisa com urgência "resolver este problema" que incomoda tanto. Gostaria de ter mais intimidade com o pai e poder falar sobre sexo, mas "ele sempre escorrega" e R nunca acha espaço para isto, pois também não se arrisca a falar do assunto com os irmãos por temer ser alvo de suas humilhações. Sentir-se acolhido ao relatar seus conflitos e encontrar no dispositivo analítico o espaço para, finalmente, expressar suas angústias ligadas à sexualidade, foi essencial para a instalação da forte transferência de R ao analista, desde o início do tratamento. R: "Só posso falar disso aqui e com você".
Porém, após um ano de análise, esta transferência é incorporada às fantasias perversas que R, finalmente, pôde relatar livremente. Embora constrangido, confessa ao analista seu intenso desejo de vê-lo de cueca e diante do reticente silêncio que tem como resposta, insiste em sua demanda por algumas sessões, até que se torna necessário intervir. A obrigatoriedade do véu sobre a genitália masculina ou feminina – cueca ou calcinha – em suas fantasias masturbatórias, já revela sua dificuldade no encontro com o real do sexo e, portanto, o conflito inerente à aceitação da castração. A: "Nem sempre é possível ter o que se deseja." R: "Eu sei ... mas será que no futuro você pode fazer isto para mim?" A: "Não." R: "Mas nunca?" Seguro da consistência do laço transferencial e ciente da necessidade de barrar a instalação do par perverso desejado por R, tornou-se imperativa ao analista a imposição de um limite. A: "Definitivamente não." Após esta intervenção, R não mais mencionou sua fantasia por longo período da análise, sem qualquer dano aparente ao vínculo transferencial. Mas, embora não mais a mencionasse em relação ao analista, R volta a se referir a ela pouco depois e permite ao analista uma intervenção que, "a posteriori", revelou-se estruturante para o paciente. R: "Continuo querendo ver um homem de cueca." A: "Além de você?"
Diante das angustiantes dúvidas quanto à sua sexualidade, R faz experiências na tentativa de definir sua preferência. Vai a prostíbulo e, após um fracasso inicial, retorna e tem sua primeira relação sexual, que descreve como prazerosa, não só pela penetração, mas particularmente por tocar a mulher, em especial nas suas costas, e ser tocado por ela. Repete a experiência algumas vezes e relata a satisfação de "ter atuado bem como homem", fala sempre pontuada pelo analista. Apesar disto, persiste em dúvida quanto à sua escolha sexual e resolve pagar "michê" para realizar sua fantasia de ver um homem de cueca. Na ocasião, R contenta-se em ordenar o parceiro a beijar seus pés e o chão que pisa mas, diante de sua investida demandando penetração sexual, R vê-se obrigado a correr do quarto. Permanece "confuso e perdido" e planeja contratar casal para poder, finalmente, decidir se prefere sexualmente o homem ou a mulher, mas não concretiza o plano. Porém, diante destas experiências o analista pôde, eticamente e sempre evitando a sugestão, dar sustento a uma escolha sexual que parecia timidamente se definir. A análise nada pode contra a pulsão, pois ela existe e insiste em se manifestar, mas o analista pode dar suporte à resultante pulsional que, economicamente, se delineia no discurso como predominante. A: "Como se sentiu com o rapaz de programa?" R: "Eu queria vê-lo de cueca e matar minha curiosidade, mas não queria que ele me tocasse ou que houvesse penetração. Eu não me senti bem, fiquei muito nervoso." A: "E com as mulheres, como se sentiu?". R: "Foi muito melhor, tive muito prazer em ver e tocar o corpo dela, ser tocado e penetrar. Eu descobri que prefiro ficar com mulher." A: "Você prefere mulher..." R: "É, eu prefiro." Na análise o sujeito deve se haver com o discurso e, diante de tal afirmação, caberia a R a partir de então ratificá-la ou retificá-la sem qualquer partidarismo do analista, mas sendo agora possível ao terapeuta nortear suas intervenções de acordo com a declarada preferência sexual do paciente, sem incorrer na impostura ética de impor-lhe uma escolha pela sugestão.
Apesar deste significativo progresso quanto à sua definição sexual, R permanece confuso e traz um dia um novo elemento de capital importância para o entendimento de seu conflito. Chega à sessão visivelmente transtornado e relata angustiado que se sentira há pouco compelido a comprar uma "revista gay" que casualmente vira em uma banca, tendo na capa a foto de um par formado por pai e filho. Folheia atônito a revista no divã e se diz decepcionado com as fotos, pois tinha a expectativa de que elas lhe mostrassem "Como é intimidade entre pai e filho." A concretude com que R imagina a proximidade afetiva de pai e filho revela a grave precariedade do registro simbólico em intermediar esta relação, expressa pela crua confusão entre intimidades física e emocional, o que desnuda a fragilidade da função paterna que deveria fundá-lo e sustentá-lo. Competiria ao analista oferecer a R a suplência simbólica que, criando enigmas, abalasse a certeza angustiante imposta pelo real. A: "Será preciso isto para pai e filho serem íntimos?" R: "Não sei, estou perdido." A: "O que você deseja de seu pai?" R: "Que ele me fale alguma coisa e me diga o que preciso saber." A: "Ter conversa íntima com ele?" R: "É, isso." A: "Mas ele sempre escorrega." R: "Sempre." A: "O que você quer saber?" R: "O que eu sou." A: "O que você é?" R: "É, ter atração por homem e mulher me deixa confuso." A: "Você já disse que tem uma preferência." R: "A mulher me atrai mais, ela eu quero tocar e quero que ela me toque." A: "E o homem?" R: "Só quero ver de cueca, não quero tocar nele, nem que ele me toque." A: "Você não quer intimidade física com ele?" R: "Não."
Ao iniciar o segundo ano de análise, começa a "ficar" com uma moça, relatando detalhes das carícias que trocavam e reafirmando estar convencido de sua preferência heterossexual, embora ainda tivesse as fantasias masturbatórias perversas com homens conhecidos na mídia. Declara desejar muito ter relações sexuais com a moça, mas esta resiste às suas investidas. Relata um sonho em que está sentado sozinho num quarto, entram várias mulheres vestidas como homens, que se despem diante dele. Diante da interrupção do relato e de seu significativo conteúdo, o analista auxilia R a prosseguir. A: "Elas tiram toda a roupa?" R: "Não, ficam só de calcinha." A: "Que mais elas fazem?" R: "Mais nada." A: "E você?" R: "Toco nelas, acaricio." A: "Qual parte do corpo?" R: "As costas, os peitos, a bunda." A: "Você prefere alguma parte?" R: "As costas." O sonho o faz lembrar de que, com cerca de onze anos, assistiu em uma festa no sítio da família, onde sua mãe não estava presente, a várias moças num "concurso miss camiseta", no qual elas ficavam só de calcinha e camiseta, se molhavam na piscina e desfilavam para a votação dos homens, ocasião em que pela primeira vez viu o corpo feminino seminu. A: "O que você sentiu?" R: "Fiquei excitado, queria tocar nelas." Após este sonho, relata em sessões seguintes novas lembranças em que a pulsão escópica é dominante. Diz que com cerca de seis anos tinha muita curiosidade para ver o corpo da mulher e ele e os irmãos espiam pela janela a empregada da casa tomando banho, mas R não tem altura suficiente para ver nada e, apesar disto, afirma ter visto o mesmo que os irmãos mais velhos descrevem, para não se sentir inferiorizado diante deles: "Olha o peitão dela, olha a perereca como é aberta." A: "Você não viu, o que você imaginou?" R: "Que a perereca fosse um buraco por onde se vê todos os órgãos da mulher." R se lembra também de que com cerca de onze anos entra no banheiro do sítio da família e casualmente se defronta com o primo de dezoito anos completamente nu, ocasião em que viu o corpo masculino pela primeira vez, o que o constrangeu muito. Neste período, procura "sem pensar" um Urologista por julgar seu pênis "pequeno" e conta na sessão seguinte de sua satisfação por "ter tirado dúvidas sobre o corpo."
Após dois anos de "cursinho" presta o terceiro vestibular. Opta por Farmácia, ainda assim sob críticas da família, que considerou o curso difícil para R. É aprovado e, diante da alegação da mãe de não poder pagar a universidade, dirige-se "sem pensar" ao diretor da escola e consegue reduzir à metade a mensalidade, forçando-a a aceitar sua escolha. R muito cedo se destaca como o melhor aluno, obtém ótimas notas, é disputado pelos professores para tê-lo como monitor e chamado de "gênio" pelos colegas. A: "De bobo a gênio?" R: "É, minha família nunca me enxergou, talvez porque a dislexia me fazia parecer retardado." A: "Como você se sente?" R: "Ótimo, reconhecido." Passa a ser procurado pelos colegas para ajudá-los em exercícios e outras tarefas da faculdade, o que motiva o surgimento de uma nova fantasia perversa. R: "Com isso de ter este poder com meus colegas têm me vindo umas idéias." A: "Idéias?" R: "É, o saber é um poder e quando estou ensinando a eles me vem a idéia de domínio, mando que beijem meus pés e lambam o chão que piso, dou ordens, bato neles." A: "E eles?" R: "Obedecem, chu... me tocam." A: "Chupam?" R: "É, meu pau." A: "Mais alguma coisa?" R: "Também me batem." A: "Onde?" R: "No rosto." A: "O que mais?" R: "Mais nada, não há penetração. Quando tenho fantasias com mulheres eu as toco e elas me tocam e sempre acaba com penetração. Idéias de poder me angustiam, tenho que me esforçar para afastá-las quando estou com meus colegas, me concentrar no que estou ensinando, tenho medo de fazer algo e ter problemas." A: "Problemas?" R: "É, sei que esta idéia não é socialmente aceita. Por isso vou ter que me afastar deles." A: "Não, isto não é necessário, você pode falar destas idéias aqui. O que faz quando está angustiado?" R: "Escrevo em meu diário ou desconto na comida." A: "Na comida você desconta, aqui você diz, conta..." R: "É verdade, eu descobri que eu preciso falar, pôr para fora." A: "E não para dentro." R: "É isso." R acata a sugestão do analista e passa a relatar suas fantasias perversas onde associa poder ao saber, evitando isolar-se dos colegas como antes julgou ser necessário. Gradualmente, deixa de falar delas e, neste período, relata um sonho onde um japonês gordo faz perguntas a um grupo de alunos e bate neles com uma régua a cada resposta errada, ao que R, que assiste à cena, reage com gargalhadas até que o japonês se irrita com ele e o agride também, mas a régua se parte ao atingir R. A: "Japonês?" R: "É, japonês é inteligente e sabe muito." Além destas fantasias, o destaque de R na escola tem gerado "ciúmes" de colegas que o angustiam, pois "quer sempre agradar a todo mundo."
R relata também ter surgido uma estranha "vontade de posse" e o impulso quase incontrolável de roubar coisas das quais não necessita, como canetas dos colegas ou protetor solar em supermercado, esforçando-se para "desviar o raciocínio para outra coisa" por saber que "esta idéia também não é socialmente aceita." A: "Também?" R: "É, como as idéias de dominação, tenho tido muito com cantores e atores da TV quando estou sozinho e minha cabeça não está ocupada com outra coisa, aí então me masturbo." Descreve também fantasias sexuais que incluem a penetração com uma colega com quem "ficava" e trocava carícias. Ao longo da análise, "fica" com várias colegas.
Vinha praticando natação como parte do tratamento para obesidade e, embora goste do esporte, "sem pensar" decidiu substituí-lo por um tipo de luta de defesa pessoal "para ter contato físico não sensual com homem". Passou a se tocar diante do espelho, no início todo vestido, depois de cueca e ultimamente completamente nu, "como um animal marcando território" e diz que prazerosamente explora cada parte de seu corpo. R: "Estou me achando, me encontrei." Descreve ordem de preferência dos toques: 1. ser tocado por mulher; 2. tocar a mulher; 3. se tocar; 4. tocar o homem sem sensualidade. Nesta sessão afirma: "Estou parando de perguntar porque, porque, para tudo o que penso ou tenho vontade. Descobri que se paro para pensar negativizo tudo, acho que vai dar sempre tudo errado. Se faço sem pensar, por impulso, as coisas correm melhor." Diz que, aos sete anos, foi o único não convidado a ir à festa de uma colega de escola, que nunca soube o motivo e que desde então teve "medo de ser excluído de novo." R: "Acho que por isso queria agradar a todos."
Com o progresso da análise, ocorre uma significativa mudança em seus sonhos. Em um deles, R está ao lado de vários homens completamente nus diante do espelho e compara o tamanho do pênis de cada um deles com o seu. A: "Você e os outros homens estão sem cueca?" R: "É, todos nós estamos sem cueca, é a primeira vez que sonho assim..." Na sessão seguinte, relata outro sonho onde está numa praça repleta de gente de quem quer se aproximar para conversar, mas é repelido por cães pitbull agressivos que o perseguem até ele refugiar-se numa sala onde estão vários homens nus, que "escutam o que eu digo e também me contam seus problemas". Apesar disto, o núcleo perverso envolvendo o analista em suas fantasias resiste: "Eu achava que nós podíamos fazer o mesmo aqui, que haveria uma troca, que se eu te falo tudo de mim nós podemos tirar a roupa e conversar." Aqui o analista tem a oportunidade de resgatar um aspecto essencial do conflito de R, já abordado: a fragilidade do registro simbólico, reflexo da precariedade da função paterna, levando ao amalgamento fantasístico entre intimidades emocional e física entre homens, denunciado pelo episódio da "revista gay" com o par pai e filho. A: "Você gostaria de ter uma conversa íntima comigo. Será que para isso é necessário que fiquemos nus?" R: "Sei que não, mas eu gostaria." A: "Você se confunde com o significado da palavra intimidade." R: "É, eu entendo isto ‘ao pé da letra’, acho que é porque sexo lá em casa sempre foi tabu." Porém, mesmo com este discurso, diante da inabalável recusa do analista à sua proposta, R pergunta ao sair se poderia abraçá-lo. A regra freudiana da completa abstinência é seguida à risca pelo analista, com a força de um ato analítico que sustenta sua interpretação e sua ética: "É melhor que não." Ato que barra a montagem perversa alicerçada na pulsão escópica e demarca o limite do laço transferencial no qual o analista navega e escuta: a palavra. E, parafraseando o poeta, conclui-se que navegar é preciso, viver não é preciso.
Perversão e/ou obsessão?
O diagnóstico estrutural em Psicanálise é instrumento essencial à prática clínica, mas a experiência cotidiana não raramente nos desafia com situações em que ele parece não permitir enquadramento claro em psicose, neurose ou perversão. R é exemplo disto, já que seu diagnóstico transitou inicialmente entre as três estruturas. Porém, a cuidadosa escuta analítica, não contaminada pela premência de classificação nosológica própria da Medicina e da Psiquiatria, permitiu a exclusão de psicose. Os episódios de automatismo mental, que motivaram a suspeita clínica de paranóia, revelaram sua natureza obsessiva grave e sua origem na esmagadora instância supergóica, através da definição da posição do sujeito diante do Outro materno sufocante, proporcionada por uma escuta imparcial.
Porém, o discernimento entre neurose obsessiva e perversão no presente caso foi particularmente difícil, pois há argumentos clínicos favorecendo ambas as estruturas. O caráter obsessivo da patologia psíquica de R está presente em várias manifestações: as ruminações, a procura insistente de figuras geométricas no ambiente, a dificuldade em lidar com as dúvidas cotidianas, perguntar-se repetidamente pelo "porque das coisas", a tendência à negativização e à autodepreciação são algumas delas. De outro lado, aponta para o diagnóstico de perversão um outro conjunto de achados clínicos, encabeçado pela insistente demanda de R em ver o analista de cueca e, apesar da inabalável recusa deste em atendê-lo, sua repetição da clássica fórmula de O. Mannoni para o perverso em relação à castração: "eu sei, mas mesmo assim...". Além disto: fantasias de dominação e agressão física associadas à masturbação e freqüentes nos sonhos (parcialmente "realizadas" no episódio com o "michê"), a pobre afetividade denunciada pela absoluta ausência de lágrimas durante a análise (inclusive diante da morte do avô), as idéias de dominação envolvendo os colegas ligadas à associação entre saber e poder, o forte caráter escópico de suas fantasias e sua tendência à cleptomania (que pode ser interpretada como a busca de um gozo através do desafio à Lei). Tal cenário clínico cria evidente dificuldade para um diagnóstico estrutural único: trata-se de um neurótico obsessivo grave com fortes "traços perversos" ou o contrário, de perverso estruturado com intensas manifestações obsessivas? Esta indefinição parece ser séria o bastante para levantarmos uma terceira possibilidade, aparentemente contraditória para diagnóstico estrutural: a de coexistirem em R ambas as estruturas, perversão e neurose obsessiva. Possibilidade que encontra, em Freud, uma valiosa sustentação teórica indireta.
Em "Fetichismo" (1927), Freud faz a intrigante afirmação de que na perversão, antes de definir-se o desmentido como mecanismo defensivo dominante no confronto com o horror da castração, há a passagem anterior pelo recalque, o que parece apontar para a possível coexistência dos dois processos nos perversos. A aversão à genitália feminina, presente em todo fetichista, permaneceria como um "estigma indelével" do recalque (do afeto) que se efetuou. Reforça esta visão outra colocação de Freud que, no capítulo VIII de seu inacabado "Esboço de Psicanálise" (1940), afirma textualmente:
"Deparamo-nos com fetichistas que desenvolveram o mesmo temor à castração dos não-fetichistas e reagem da mesma maneira a ela. Seu comportamento, portanto, expressa simultaneamente duas premissas contrárias ... As duas atitudes persistem lado a lado por toda a vida, sem se influenciarem mutuamente, o que pode ser corretamente chamado de divisão do ego (os grifos são meus), circunstância que capacita-nos a compreender como é que o fetichismo, com tanta freqüência, é apenas parcialmente desenvolvido. Ele não governa exclusivamente a escolha de objeto, mas deixa lugar para um maior ou menor comportamento sexual normal; às vezes, na verdade, contenta-se com o desempenho de um papel modesto ou se limita a uma mera alusão."
É revelador notar que mesmo no título do artigo "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo" (1922), Freud parece admitir coexistirem duas estruturas – neurose e psicose – por "divisão do ego" em certos sujeitos.
O caso clínico de R, como muitos outros que nos desafiam cotidianamente, põe em xeque o diagnóstico estrutural em Psicanálise e suscita uma questão crucial de duplo sentido: diagnosticar é preciso?
Diagnosticar não é preciso
O dispositivo analítico, por propiciar o encontro faltoso, pode deflagrar a psicose que se encontra estável ou desencadeá-la no sujeito pré-psicótico. Identificar estas duas situações é tarefa prioritária a ser respondida pela dimensão diagnóstica das entrevistas preliminares ao se iniciar um tratamento, já que para ambas este dispositivo, como nos alerta Lacan, é não só ineficaz como também perigoso. Embora defenda que não se deve recuar diante da psicose, Lacan adverte que "não se há de tomar psicóticos em análise, porque toda a doutrina que se tem sobre este tema vai mostrar um impasse" e que "se tomarmos um psicótico em análise, isto o torna louco" (Lacan apud Forbes, 2004). O maior desafio ao analista que inicia um tratamento, portanto, resume-se à identificação do sujeito pré-psicótico.
Respeitada esta premissa, pode-se dizer que "fechar" um diagnóstico estrutural precocemente na análise de muitos sujeitos não é preciso, em ambos os sentidos que a palavra encerra: não é exato e não é necessário. Freud muito cedo alertou os analistas a não iniciarem uma nova análise "com ouvido velho", ressaltando a especificidade da escuta analítica, que se abre para o universo psíquico particular de um único sujeito com um duplo efeito simultâneo: diagnóstico e terapêutico. A precipitação em estabelecer o diagnóstico, sob o risco de "rotular" o paciente em uma patologia, pode empobrecer em muito esta escuta, ao torná-la hipersensível a certas falas do sujeito e "surda" a outras. O diagnóstico psiquiátrico contemporâneo é o extremo desta estratégia estéril, que engessa em um punhado de "transtornos" a diversidade da subjetividade humana, atendendo aos propósitos da indústria farmacêutica, que magicamente oferece curas para todos eles.
O diagnóstico estrutural em Psicanálise, embora clinicamente útil, não atende a todas as possibilidades de expressão do pathos humano. Neste sentido, freqüentemente ele não é exato, ao passo que escutar sempre é preciso: a escuta atende a todo sujeito, ao qual não interessam as querelas diagnósticas de que se ocupa o analista. Por outro lado, o diagnóstico muitas vezes se constrói ao longo da análise e norteia as interpretações e a direção do tratamento, sendo desnecessária a premência em defini-lo precocemente. Reveladora, neste contexto, é a seguinte observação: "e qual o terapeuta não se espantou ao verificar o quanto é mais fácil definir um diagnóstico após a primeira entrevista do que muito depois, quando sabemos muito mais sobre o indivíduo?" (YALOM, 2006, p.24).
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Recebido em 15/06/2007
Aprovado em 27/06/2007
SOBRE O AUTOR
Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho
Médico. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.