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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.35 no.65 Belo Horizonte jul. 2013

 

Antiterapias

 

Antiterapias

 

 

Jacques Fux

Universidade de Harvard

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Proponho pensar os conceitos da psicanálise, da literatura e do testemunho através de dois capítulos do livro Antiterapias. Esse pode ser lido como uma sessão de psicanálise e uma busca pela memória (inventada) em que o personagem principal tenta se desvencilhar das amarras judaicas, criticando a religiosidade como única forma de ser judeu. Partindo desse contexto, da frase Borgiana “que a história tivesse copiado a história já era suficientemente assombroso; que a história copiasse a literatura era inconcebível” e acompanhado pelo Complexo de Portnoy, discute-se a inserção de qualquer estrangeiro derridiano em uma comunidade.

Palavras-chave: Antiterapias, Testemunho, Psicanálise, Memória.


ABSTRACT

I propose to think about the concepts found in psychoanalysis, literature and testimony through two chapters of the book Antiterapias. This text can be read as a session of psychoanalysis, and a search for (invented) memories in which the main character tries to free himself from the Jewish bonds by criticizing its supposedly necessary relation with religion. Based on this present context, the Borgesian’s quote “that history should have copied history was already sufficiently astonishing; that history copy literature was inconceivable” and followed by the book Portnoy’s Complaint, this text discusses the insertion of any derridian étranger in a community.

Keywords: Antiterapias, Testimonial, Psychoanalysis, Memory.


 

 

Antropólogo ou aquele que perscruta o ser

Eu nunca quis ser um antropólogo. Apesar de ter desejado seguir diversas profissões e caminhos, antropólogo eu nunca quis ser. Mas me sentia como um Antropólogo em Marte. Uma pessoa diferente. À margem das coisas. Das pessoas. Assim como todos se sentem vez por outra, n’est-ce pas? É interessante pensar que muitas vezes nos sentimos mais especiais e diferentes que todos, já que não conhecemos o outro. O outro é o estranho. E como não temos nenhum acesso a esse outro, estranho, nos sentimos distintos. Distantes. Diferentes. Na verdade, temos todos os mesmos medos, receios, sonhos. Mas eu sou o centro desta ficção. O olhar do narrador está voltado para mim. Eu, judeu, protegido por vários úteros, inserido em muitos pequenos mundos. Família, escola, amigos, diáspora. (Eu existo pelo olhar dos malditos nazistas. E agora reafirmo minha cultura. Minha origem. Revendo e reinventando minhas lembranças, vejo o quão estrangeiro sou).

Eu pensava em todos os mistérios do mundo. Arrogante era. Continuava a questionar algumas infâmias. Mesmo as infâmias inquestionáveis. Olhava e não estava de acordo. Ainda na escola judaica, nas rezas matinais, ouvia algumas coisas que não entendia. Ensinaram-me que a Bíblia tinha sido escrita por inspiração divina. Assim deveriam ser também as nossas orações. Inspiradas por uma divindade. Ao menos na teoria e no fundamento das religiões. No judaísmo, as letras eram sagradas. Deveriam ser sagradas. Recitávamos na língua sagrada. E havia uma oração que se rezava todos os dias. Sua tradução era estranha. Começava assim: Bendito és Tu, Adonai, nosso Deus, Rei do universo. E terminávamos agradecendo alguma coisa: Que dá ao galo o entendimento para distinguir entre o dia e a noite. Que não me fez servo. Que abre os olhos dos cegos. Que liberta os amarrados. Que ergue os curvados. Que dá força ao fatigado. Até aí, tudo bem, apesar de meio evangélico. Agradecia de bom grado. As rezas tinham uma conotação literária e metafórica, e até então faziam sentido. Mas dois agradecimentos eram um pouco polêmicos. Que não me fez goy e, para os homens: Que não me fez mulher. A mulher, obviamente, não recitava essa passagem. Ela agradecia: Que me fez conforme sua vontade. Acho que foi aí que Lilith não gostou. Que Lilith não aceitou seu destino. Sábia? Delinquente? Nunca saberemos. E falar isso todo dia, repetidamente, se tornou um problema para mim. Aqui não funcionava o fato da mentira falada cem vezes, que bem pode se tornar verdade. Não. Recitei mais de mil vezes. Mas não se tornou verdade para mim. (Malditos os nazistas e os antissemitas que inventaram todas essas mentiras. A mentira de uma raça superior a outra. A mentira da raça ariana. A mentira do deicídio. A mentira dos Protocolos do Sábio de Sião. Mentiras. Será que eu fui descuidado? Havia chance, sim, mas mínima. Mas nunca poderia imaginar que isso se passaria aqui, na Diáspora. E ainda numa cidade tão pequena. Com poucas famílias judaicas. E com a assimilação tão grande).

Na época eu não entendia o sentido das rezas. Tampouco, das infâmias. Ainda hoje tenho dificuldade. A corrente liberal do judaísmo revogou essas passagens infames. Era por demais polêmica e discriminatória para ser pronunciada. Perpetuada. Corroborada pela corrente moderna do judaísmo. Mas, é lógico, criaram outras blasfêmias. Hoje eu tenho algumas conjecturas sobre esses dois polêmicos agradecimentos. Não para justificá-los. Mas para tentar entendê-los de acordo com o respectivo relativismo cultural. Cada época com seus monstros. Agradecer por não ser goy é uma forma de se revelar ao mundo como judeu. Diferente. Orgulhoso da diferença. A perseguição de muitos confirmou e fortaleceu a nossa crença. A crença do povo judeu. Do meu povo. (Agora, depois dos malditos nazistas, ainda mais!). Somos e nos sentimos estrangeiros. Não havia Israel e por isso éramos errantes, mas com raízes. Somos fortes. Orgulhosos. Perpetuaremos nossa espécie. Mas, claro, nessa declaração há um pouco de discriminação. Era o troco dos judeus perseguidos. Dos judeus que escreveram essa prece. Sem nenhuma inspiração divina, acredito. Já agradecer por não ser mulher é a confirmação da doutrina patriarcal do povo. Somos filhos de Abraão, Isaac, Jacó. Nem sabemos quem foram nossas mães. Apesar da iídiche mama ser onisciente. O Pai, aqui, incorpora a figura de autoridade. De justiça. De força. De disciplina. Deus não é masculino? Os grandes imperadores, czares, déspotas, não eram todos homens? A religião só corrobora essa doutrina patriarcal. A mãe é forte. Destemida. Onisciente. Superprotetora. Muito bem representada em Woody Allen. Mas eu não tinha como entender isso tudo na época. E estranhava as rezas.

Mas o estranho e o mistério sempre permeiam os caminhos do povo judeu. Existe coisa mais estranha e contraditória que Judeus Messiânicos? É um paradoxo. Paradoxo como o descrito no Dom Quixote: Se alguém passar por esta ponte, de uma parte para a outra, há de dizer, primeiro, debaixo de juramento, onde é que vai, e se jurar a verdade, deixem-no passar, e se disser mentira morra por elo de morte natural, na forca que ali se ostenta, sem remissão alguma. O paradoxo é criado quando o homem jura que vai morrer na forca, criando, assim, um problema insolúvel para os juízes: Se deixarmos passar este homem livremente, ele mentiu no seu juramento e, portanto, deve morrer; e, se o enforcamos, ele jurou que ia morrer naquela forca, e, tendo jurado a verdade, pela mesma lei deve ficar livre. Outros paradoxos existem. Esses messiânicos caem em contradição. Mas são espertos. Primeiramente, em seus ensinamentos, retiram a parte do agradecimento: Que não me fez goy. Óbvio, são goyim. Não pertencem ao povo judeu. (Nem foram perseguidos pelos malditos nazistas).

Esses messiânicos cometem um erro elementar de lógica. Os judeus não acreditam que Jesus era o messias. Nem o próprio Jesus se julgava messias, já que era judeu. E o judeu acredita que o messias irá chegar um dia. Pelo menos os que têm alguma crença na religiosidade. Não é o meu caso. Acredito na literatura e em suas contradições. Ludicamente séria e seriamente lúdica. Jesus era um judeu que discutia e questionava alguns ensinamentos. Como os Rebes sempre o fizeram. Jesus era um Rebe. Um sábio. Mas não colocava em questão o fundamento do judaísmo. Fundamento esse que é baseado na vinda de um messias. Que não tinha chegado ainda e não era, de forma alguma, ele próprio. Mas os messiânicos acreditam que Jesus era o messias. Podem acreditar no que quiserem. Liberdade de expressão. Free will. Há pessoas que acreditam, ainda, que a Terra é quadrada. Há um grupo organizado para a libertação dos anões de jardim. Interessante, mas ridículo. Os messiânicos acreditam que Jesus é o messias. Até aí tudo bem. Mas por que se autointitulam judeus? (E por que não foram caçados pelos malditos nazistas?). Os judeus não acreditam nisso. Não podem acreditar nisso. Seria uma contradição. O axioma básico é que o messias vai chegar, e não que ele já chegou. Mas temos todos o direito de acreditar no que quisermos. Mas se você acredita que Jesus é o messias, você pode ser qualquer coisa, menos judeu. Ridículo. Quase tão ridículo quanto a revogação do Purgatório ou a tentativa de canonização de Pio XII pela Igreja. O Papa de Hitler. Ridículo, se esses fatos clamam pela verdade. Por isso, não entendia as rezas judaicas que discriminavam e separavam. Nem as doutrinas que seguiam o caminho de Jesus. Para mim, era tudo ficção. Questionar as religiões, crenças e infâmias passou a ser minha doutrina. A discussão do monopólio da salvação.

Eu também não entendia minha família. O motivo de ter nascido nela. Acho que ninguém nunca entende isso de verdade. A gente só inveja aqueles que não conhece muito bem. Assim era minha família. Diferente. Peculiar. Como todas são. Mas até então eu não sabia disso. Eu tinha dois pais e duas mães. O meu pai era Pai e Mãe e minha mãe era Mãe e Pai. E eles tinham dois filhos únicos. Eu, perfeito, e meu irmão, gauche. Vai Ben, vai ser gauche na vida. Como éramos opostos, reflexos invertidos, fomos tratados como únicos. Todos são únicos. Todos são iguais. Mas uns mais iguais do que os outros. Meu irmão era especial. Especial em todos os sentidos. Nascido com uma paralisia cerebral. Na época, inserido de corpo e alma na situação, eu não entendia a diferença. Meu irmão era meu irmão. Especial como todos os irmãos. Diferente e carinhoso pelo amor fraternal que sentíamos. Que todos os irmãos que se gostam sentem. Ele falava somente mama. Bem psicanalítico. O Hurbinek, criança testemunhada por Primo Levi, só falava matisklo. Palavra que ninguém entendia. Imerso em um mundo de horror, no mais terrível lugar que já existiu. Auschwitz. (Malditos nazistas). Hurbinek só conseguia articular uma palavra que ninguém entendia. Matisklo. Coitado. Mas nós entendíamos o mama de meu irmão. Que criava outros meios de comunicação com o mundo. Interage muito bem socialmente. Evoluiu tudo o que podia. Esforça-se todos os dias para melhorar. Para se comunicar melhor. Para se inserir no mundo. E tem muito carinho. Ele era muito agitado. Mas tinha um zelo especial comigo. Eu era seu irmão mais novo. Ele tinha me ganhado de presente de aniversário. Fez cinco anos, ganhou um carrinho de bombeiros e um irmão. Lembro-me do carinho. Do cuidado. Tudo à forma dele. Especial. Ainda me lembro de nós dois pequenos, deitados na cama de nossos pais. Uma fotografia mental. Memorável. Eu não sabia ler e tinha comigo um fascículo da Bíblia, de cabeça para baixo. Meu irmão tampouco sabia ler. Continua sem saber. E nos abraçávamos e rolávamos na cama de meus pais. Mamãe tinha nos ensinado o amor. Todo o amor. E, mais ainda, o amor fraterno. E nós dois sabíamos disso. Ele era o Ben. O Benão. E eu não sabia da sua diferença. De longe, todos percebiam. Meus pais sabiam a diferença. Estavam fora e dentro da situação. Ele era um pequeno búlgaro — não sabíamos nada sobre a Bulgária, assim como não conhecíamos nada sobre o mundo de meu irmão. As palavras me faltam para explicar a normalidade da situação em que estava imerso. Afinal, todos os irmãos e todas as circunstâncias são normais quando é você quem os vive durante longos períodos. A Síndrome de Estocolmo não foi normal para seus personagens? Sequestrador e sequestrado não viveram nessa relação durante anos? Criaram até certo amor.

Meu irmão foi extremamente normal para mim. Com suas limitações. E encantos. Mas, com o tempo, fui descobrindo suas dificuldades. E as dificuldades da família. Meu pai e minha mãe se entregavam à solução desse problema. Totalmente. Completamente. Tinham o dever de curar o meu irmão. Ainda não tinham aceitado que o mistério não é um problema, e que por isso não havia cura. Procuraram melhorar a qualidade de vida do Ben. Conseguiram. Com muitas visitas a médicos, curandeiros, falsos profetas. Fé. Tudo foi muito bom. Mas continuava havendo problemas em casa. Meu irmão era nervoso. Mordia-nos, às vezes. E, de vez em quando, a casa me parecia um caos. Hoje vejo que era bem tranquila. Calma. Com momentos de agitação. Mas na época me portei do modo mais correto e responsável possível. Eu, que falava, que tinha coordenação motora fina, que entendia perfeitamente, não podia dar trabalho aos meus pais. Não podia nem sonhar em levar meus problemas para casa. Dizer que estava apaixonado por Silvinha. Que não sabia me impor em relação ao dibouk. Os únicos problemas que levava eram os deveres escolares. Mamãe sempre me ajudava. O início do estudo é sempre acompanhado. Mas logo isso passou. Meus pais tinham que se preocupar (e muito) com meu irmão. Com suas deficiências. Com seu futuro. Confesso que, depois que comecei a entender o estranho mundo do meu irmão, tive um pouco de vergonha. Falar ou mostrar meu irmão era um processo delicado. Duro. Pesado. Tornei-me ainda mais fechado, tímido. E encontrei minha outra família. Meus amigos irmãos. Normais. Com eles conversava sobre meus problemas amorosos, futebolísticos (acho que eram os únicos problemas naquela época). E eu tinha uma pequena tristeza por não entender meu irmão e meus pais.

Invejava a família dos meus amigos. Do meu mais próximo amigo. Sem muito conhecer, sonhava. Imaginava. Assim como fazemos todos. Sempre. Tanto. Até que, um pouco mais velho, viajei com a família do meu grande amigo. Do meu outro irmão. E descobri que temos todos problemas familiares. A utopia só existe em nossas mentes. Ou nos dicionários. No Dicionário de lugares imaginários. Utopia: Ilha situada a pouco menos de 25 quilômetros da costa da América Latina, originalmente ligada ao continente por um istmo e conhecida pelo nome de Sansculottia. Se soubesse, teria tentado organizar uma machané para lá. A Terra do Nunca em Utopia! E com todos meus amigos.

Assim fui aceitando lentamente meu irmão. Bem lentamente, mas com muito amor. Com carinho e dedicação. E ele, ao longo do tempo, passou a me ver diferente. Antes eu era o seu irmão mais novo. Ele tinha que tomar conta de mim. Zelar pela minha saúde e proteção. Mas eu fui crescendo. Evoluindo. Ele não. Eu fui tomando as rédeas da proteção. Eu era como uma fera, um tigre com listras, à espreita. (Sorte minha que eu não estava com meu irmão nesse encontro com os malditos nazistas). Em ambientes públicos, zelava de longe por ele. Se alguém o discriminasse, o tratasse mal, o menosprezasse, eu, tigre, avançaria sem piedade alguma. Com doses de crueldade, puniria qualquer ameaça a ele. Por isso, nunca estive tranquilo em ambientes onde nós dois estávamos. Eu tinha que assegurar seu bem-estar. O irmão mais novo tinha tomado o lugar do mais velho. Aqui minha história repete a de Esaú e Jacó. Eu e Ben não éramos gêmeos, mas tínhamos nascido no mesmo dia. Ele era mais velho. O primogênito, com suas regalias e responsabilidades. Mas o destino o ludibriou. Como Jacó ludibriou seu pai. Roubou o posto de primogênito. Eu roubei a responsabilidade e a autoridade de meu irmão. Entre nós nunca houve e nunca haverá inimizade. Apenas amor. Mas meu irmão foi percebendo que eu tomava as rédeas do nosso destino. Que eu crescia e evoluía. Que eu podia clamar pela responsabilidade de ser o primogênito, mesmo que de fato não o fosse. E sua postura em relação a mim mudou. Mudou porque tinha que mudar. Ele tinha que acatar as ordens do destino. Da situação. E ele, inteligente à sua maneira, e com a maior dor que alguém pode ter, a de se saber incompleto e deficiente, foi aceitando a situação. Com certa melancolia e tristeza. Eu seria mais um disciplinador em sua vida. Já não bastariam meus pais e seus professores. A minha figura se tornaria importante. Fundamental. Eu seria, na minha casa, um patriarca. Meu irmão seria minha responsabilidade. Eu lhe daria ordens. Exigiria (dele) respeito. Tudo com muito amor e carinho. Mas só hoje percebo essa inversão que a vida nos jogou. Um pouco triste, mas real. Hoje eu o amo. Sem pensar. Amo-o como ele é. Um amor até maior do que o que tenho pelos meus pais. Por tudo. Amor que me faz viajar e morar fora. E sempre voltar. Tanto amor. Um amor ainda não tão inocente. Mas profundo.

Nessa época aprendi bem o conceito de maniqueísmo. De polaridade. De dualidade. Eu tinha que brilhar. Tirar boas notas. Ser bom nos esportes. Educado. Modesto. Forte. Perfeito. Já meu irmão, não aprenderia a ler. Não comeria com garfo e faca. Não falaria. Não seria independente. Não trabalharia. Não perpetuaria o nosso gene. Não ganharia dinheiro. Tantos nãos novamente! E todas as expectativas estavam depositadas em mim. Meus ombros suportariam o mundo. Embora sonhasse com alguma genialidade secreta em meu irmão, acho que isso não aconteceria. Ele não era um autista genial. Daqueles que conhecemos nas histórias românticas. Os grandes calculistas. Os grandes músicos. Grandes artistas. Autistas, mas gênios em alguma área do conhecimento. A conhecida Síndrome de Aspeger. Oliver Sacks conjecturou que muitos grandes escritores tinham essa síndrome. Apresentavam traços de problemas sociais, de relações humanas e, contudo, alcançavam a genialidade em algum campo do conhecimento humano. Sacks chegou a dizer que Proust, com toda sua capacidade de reviver os momentos, de guardar e escrever todos os sentimentos, poderia ter esse traço de genialidade e dificuldade social. Assim como Einstein, em sua relação difícil com a esposa e maravilhosa com a ciência. Ou Joyce, com seus problemas psicanalíticos solucionados através da escrita. Da sua escrita. Do fluxo de consciência. A síndrome poderia ser estendida, também, a alguns personagens literários? Joyce, Proust e Einstein seriam personagens como Funes, Lino Margay, Auguste Dupin, Bouvard e Pecuchét? Gênios incríveis.

Mas meu irmão, apesar da memória perfeita e detalhista, não era um Funes. Mas era também literatura. Minha fonte de inspiração e de amor. Não era tampouco um Proust. Não seria capaz de descrever (e nem de escrever) nada. Sua comunicação com o mundo é muito pequena. Entende tudo. Mas expressa pouco. Somente meus pais e eu conseguimos entender alguma coisa. Pouca coisa. Mas já é muito. Um grande ganho. Também não seria um Joyce, apesar de seu sofrimento face às limitações humanas. Maiores em seu caso. Não conseguimos alcançar o fluxo de consciência de meu irmão. Não sabemos sua consciência da realidade. Nem Dupin poderia descobrir os seus mistérios. Que devem ser tão belos. Tão vivos. Tão marcantes e tão profundamente secretos. Vivemos assim, eu e meu irmão, nessa nossa fraternidade de opostos. Meus pais não sabem ponderar a situação. Eu fiz e faço o que está ao meu alcance. Mas ainda assim é pouco. As expectativas a meu respeito continuam. Aguardam meu feito prodigioso. Meu reconhecimento público e financeiro. O prêmio. Aguardam e aguardarão sempre. Pois nunca é o bastante. São sábios, porém ansiosos. Já no caso do Ben, pequenas conquistas são vistas como um grande sucesso. Recentemente, foi capaz de reconhecer as letras de seu nome num computador. Genial. Uma alegria para a família. Já meu doutorado é só mais um passo do meu grandioso destino. Que ainda chegará. Mas hoje fico mais tranquilo. Sou mais tranquilo. E seguimos, eu e meu irmão, nesse maniqueísmo danado. Questionando o porquê da vida, das religiões, das infâmias, das blasfêmias, e das doutrinas e seus paradoxos. (Eu não deveria ter ido por aquele caminho naquele dia. O encontro foi casual? Todos os nossos encontros são casuais? E os malditos nazistas, porque diabos vieram parar logo aqui? A ODESSA os ajudou. Já preparavam a derrota e a fuga. Tinham muito dinheiro. Muitos amigos. Muitos simpatizantes por todo mundo).

 

O autor ou Aquele que plagia a outra dor

Il faudrait dire je. Il voudrait dire je. Mais, quel “je”? O que eu queria era mergulhar nos meus sonhos. Nas minhas invenções. Em minhas lembranças falseadas. Encantadas. Passadas. Quem é o autor aqui? O autor está morto? Quem é esse eu que escreve o livro? O eu narrador e o eu autor. Tenho responsabilidade pelo que escrevi? Tenho responsabilidade pelo que escrevo? Expresso aqui minhas opiniões? Minha visão política? Minha visão da literatura? Da ficção? Aqui aparece rigorosamente a minha intenção romântica enquanto autor? Pode o autor ser completamente imparcial? Posso eu escrever algo alheio à minha vida? Distante da minha arte? Longe da literatura? Há aqui uma independência da literatura em relação à história? E a psicanálise do autor? Do narrador? Do personagem? Do eu? Aqui há um sentido profundo? Uma alegoria? Pierre Menard, o autor do Quixote, descreve um texto que foi escrito por dois autores distintos com sentidos muitas vezes opostos, graças ao contexto e às intenções de cada autor. Aqui, foram muitos autores. Muitos colaboradores. Minha história me acompanhou. A literatura perpassou e preencheu os vazios da memória. Ou os vazios da literatura foram preenchidos por minha vida. A literatura é de quem? O autor do começo desse livro não é o autor do fim desse livro. Ele sofre mutações. Evolui. Regride. Enxerga a literatura e a memória de outra forma. Esse autor continua sendo eu. Esse eu que é um fingidor. Um plagiário. Um plagiário por antecipação? O sentido dessa obra está somente no autor? Está somente no leitor? Está na descoberta do eu? Na identificação de todos os fingidores? Na revelação do que foi inventado e do que foi de fato vivido? O que é um autor? Aqui há uma multiplicidade de sentidos e de autores (dentre os quais, o fato de não haver sentido e não existir autor). O conjunto vazio está contido em qualquer conjunto. Tudo aqui pode e deve ser interpretado em relação ao fator histórico. Mas a história, apesar de clamar muitas vezes pela verdade, também é uma invenção, logo a história aqui contada faz parte do contexto da história. Aqui, as minhas passagens paralelas podem ser encontradas nos muitos autores desta obra. Nos muitos eus. No cânone. Uma cadeia literária é criada. Discutida. Estruturada. Polemizada. Desconstruída. Ambiguidade intencional. A obra aqui vive a sua vida. A sua arte. E eu vivo a minha obra. A minha arte. As minhas invenções. Frustrações. Devaneios. Não amamos plenamente um poema se não o compreendemos. Por outro lado, não compreendemos plenamente um poema se não o amamos. Eu não entendo a minha literatura. Mas eu a amo. Amo o mistério. O segredo. O não saber. O estranhamento. Amei tanto a literatura de muitos simplesmente por sua primeira leitura ter me causado um grande mal-estar. Estranhei. Incomodou-me. Quis perscrutar. Revelar. Descobrir. E continuei incomodado. Continuo inquietado com a literatura e com toda a rede de referências que ela cria e plagia. Esse foi o mesmo amor que tive por todas as mulheres que me incomodaram. Que não me revelaram, a princípio, sua beleza e seus encantos. Mulheres que me deixaram cabreiro e me excitaram. Assim como a literatura. A literatura aqui é como as mandalas budistas. Alguns budistas trabalham na construção de belas imagens com grãos de areia coloridos. São lindas obras de arte. O trabalho é rigoroso. Fatigante. Demoram muito tempo para construí-las. Descobri-las. Inventá-las. Esculpi-las. Um trabalho árduo. Elas tomam forma lentamente. Lentamente são reveladas. Havia uma intenção do construtor de mandalas? Ele pensou em todas as possibilidades ao moldá-las? Soube inicialmente como elas ficariam? Incomodou-se com isso? Ele é como um criador de puzzles? Pode imaginar de fato todas as combinações possíveis? Acredito que os budistas não se preocupam com essas questões literárias. Eles têm grande desapego. Utopia. E quando terminam a sua majestosa obra destroem completamente tudo o que foi feito. O prazer está no durante. No caminho. Assim como um dos autores só existe quando a obra está sendo escrita. O prazer do durante. Esse autor vive enquanto escreve sua obra. Seu livro. Enquanto cria seus momentos. Suas ficções. Assim que a obra acaba, acaba-se com ela um autor. Esse autor que a escreveu. Que nela colocou sua emoção. Que sofreu e sorriu. Criou mistérios, encantos, problemas e soluções. O autor budista. Entregue à escrita e à elaboração de algo belo. Artístico. E que, ao chegar ao fim, se libertou de seu trabalho. O livro passa a existir em outra dimensão. Outro plano, outro autor, outro leitor. O durante da obra não existe mais. Existe algo que será lido e interpretado por outros. Como aqueles que fotografam as mandalas budistas ao longo de sua confecção. Intérpretes de um momento. Tecem relações. Com outros momentos. Com seus próprios momentos. Ou não. Apenas fruem a leitura. Alguns recepcionam as obras de arte de acordo com suas possibilidades. Amam, detestam ou on s’en fout. Acham belo ou ridículo. As mandalas são lindas. E a labuta é grande. Mas a beleza não está no fim, está no durante. Quando não escrevo, estou morto. Desapego-me da literatura pela vida. Pela vontade de viver. Pelo desejo de reinventar a vida. Reinventar a invenção literária. A autobiografia ficcional. A autobiografia literária. Autofiçção. Redescobrir e reconstruir a ficção que aqui se acaba com a disparition do meu eu.

 

Referências

FUX, J. Antiterapias. Belo Horizonte: Scriptum, 2011.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Donato da Fonseca, 810/101 - Cidade Jardim
30380-260 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: jacfux@gmail.com jfux@fas.harvard.edu

Recebido em: 30/01/2013
Aprovado em: 20/03/2013

 

 

Sobre o Autor

Jacques Fux
Bacharel em Matemática. Mestre em Ciência da Computação. Doutor em Literatura Comparada pela UFMG. Docteur em Langue, Littérature et Civilisation Françaises pela Université de Lille 3. Atualmente é Visiting Scholar na Universidade de Harvard (2012-2014). Pós-doutorando em Teoria da Literatura pela Unicamp, com bolsa Fapesp de pesquisa.