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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.35 no.66 Belo Horizonte dez. 2013

 

ARTIGO

 

O que se faz quando se faz psicanálise1

 

What does one do, when one does psychoanalysis?

 

 

Carlos Antônio Andrade Mello

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Entre as dificuldades enfrentadas pela psicanálise a partir de sua criação estão, desde aquelas resultantes de sua inserção na cultura, até o manejo do analista diante da singularidade do sujeito e das manifestações atribuídas à contemporaneidade. Para isso, tem que se valer da criação, da technè poiésis, deslocando a noção de técnica como referida a um conhecimento ou a um trabalho qualquer para a de técnica como um trabalho criador.

Palavras-chave: Psicanálise, Cultura, Técnica, Saber inconsciente, Interpretação, Linguagem, Ato analítico.


ABSTRACT

Amongst the difficulties faced by psychoanalysis from its creation are, since those resulting from its insertion in the culture, until the analyst's management on the singularity of the subject and of the manifestations attributed to contemporary times. To do this, the psychoanalyst must appeals to the creation, the technè poiésis, displacing the notion of technique as referred to knowledge or any work, to the technique as a creator work.

Keywords: Psychoanalysis, Culture, Technique, Unconscious knowledge, Interpretation, Language, Analytical act.


 

 

Num evento social, o psicanalista é apresentado a um convidado como tal, como psicanalista. O outro, imediatamente, reagiu com uma interpelação: Psicanalista... mas freudiano ou lacaniano?

Esse episódio, ocorrido na realidade, parece ilustrar bem como hoje a psicanálise está inserida na cultura, diferentemente da maneira como era olhada de soslaio no início do século passado. Era, então, vista como ciência obscura, fruto das invenções de um médico, que se inclinava ao pedido de uma histérica para que ele se calasse, pois era ela quem estava com a palavra, e tendo conhecimento de outra que se atrevia, ela sim, a denominar o método a que estava se submetendo de "cura pela palavra". Atualmente, a psicanálise está em toda parte: a ponto de o psicanalista ser convocado a estampar sua referência teórica, como se apenas ser psicanalista não bastasse. Isso se reflete até em nossas instituições psicanalíticas com suas denominações, freudianas ou lacanianas, como se fossem correntes antagônicas.

Enfim, nesse avanço da psicanálise através da cultura ao longo do tempo, se antes era a estranheza, hoje é uma familiaridade estabelecida, para o bem ou para o mal, com a qual o psicanalista tem de se haver.

Entre 1911 e 1915, Freud escreveu uma série de artigos que, na edição standard brasileira, recebeu a denominação de Artigos sobre a técnica. Além disso, Freud sempre se preocupou com a técnica, como verificamos ao longo de toda a sua obra, desde os Estudos sobre a histeria (1883) com o método catártico de Breuer e Freud, até Análise terminável e interminável (1937) — só para citar algumas referências pontuais.

Uma palavra em defesa da técnica: É muito comum em psicanálise encontrar esse conceito depreciado, principalmente se contraposto ao de ética, assumindo a técnica uma condição de conceito menor, quase palavra maldita, como aprisionante, redutor das coisas a um estado de ordem preestabelecido, algo do mundo das normas.

Freud, porém, no texto Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, com o rigor com que revestia sua criação, já estabelecia com clareza as condições em que conduzia esse trabalho:

As regras técnicas que estou apresentando aqui as alcancei por minha própria experiência no decurso de muitos anos, após resultados pouco afortunados me haverem levado a abandonar outros métodos... Devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade: não me arrisco a negar que um médico constituído de modo inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente em relação a seus pacientes e à tarefa que se lhes apresenta... (FREUD, [1912] 1969, p. 147).

Assim também afirma Lacan:

Certamente a psicanálise como ciência é sempre uma ciência do particular. [...] mesmo que esses casos singulares se prestem não obstante a alguma generalidade, desde que há mais de um analista (LACAN, [1953-1954] 1986, p. 31).

Portanto, jamais haveria uma técnica de caráter universal, capaz de conciliar e direcionar a individualidade de um analista, de acordo com a citação de Freud e como comprovamos em nossa prática, tendo em vista a singularidade de cada sujeito em trabalho de análise.

Na concepção heideggeriana, a técnica é libertada da habitual rigidez conceitual para uma extrema maleabilidade que a vê como uma constelação onde se produz, ao mesmo tempo, o desnudamento e a ocultação de uma verdade.

A etimologia nos diz que a técnica é uma maneira ou habilidade especial de executar ou fazer algo. Lembra Heidegger que, até Platão, a palavra technè esteve sempre associada a epistemè, e os estoicos foram os responsáveis pela ligação de technè a poiésis, deslocando a noção de técnica como referida a um conhecimento ou a um trabalho qualquer para a de técnica como um trabalho criador.

Parece ser essa a vertente da técnica de que Freud tanto se ocupou desde que partiu da hipótese do inconsciente e sua verificação na prática, num trabalho que muito aproxima do artista o psicanalista, ao tomar a pedra bruta da singularidade do ser falante, guiado pelas pulsações errantes daquilo que, como o trabalho do sonho, "não pensa, não calcula e nem julga" (FREUD, [1900] 1969, p. 541).

Yara Tupinambá, artista plástica mineira, em conferência, falou da magia que revestiu o primeiro ato de criação artística da humanidade, quando o homem primitivo, tomando um objeto tridimensional, delineou-o na superfície plana de uma caverna. Pura criação que implicou uma perda inegável da realidade, mas em contrapartida o ganho de uma nova representação daquele objeto faltante.

O processo psicanalítico também parece operar com uma certa contabilidade, ao permitir ao sujeito se desfazer de um quantum possível de gozo, como preço pelo acesso ao desejo que, indestrutível, habita o saber inconsciente e insiste em ser desvendado "em seu eterno perambular pelas ruas do significante" (MELLO; COIMBRA; LISBOA; VILELA; ANCHIETA, 2004).

Não será desse recurso à arte, enquanto pura criação, que se vale o analista, em seu ofício, frente aos impasses da clínica?

Foi a partir da clínica que nasceu a invenção freudiana, e os praticantes que se seguiram, quando introduziam algo de novo nas formulações teóricas, naturalmente o fizeram a partir de sua prática. O caminho natural é, pois, aquele que conduz da clínica à teoria, com o cuidado necessário, num caminho de volta, de não transformar toda a teoria no leito de Procusto, onde a clínica teria de se encaixar a qualquer preço, pagando até com sua deformidade. Isso é algo de que não podemos nos descuidar.

Esse é sempre um risco de nossos tempos quando nos vemos às voltas com as propostas que a experiência psicanalítica nos impõe. Faz lembrar aqui dos chamados novos sintomas, cuja formalização teórica e manejo clínico têm constituído um grande desafio.

Mais do que os desatinos da histérica e o ruminar do obsessivo, agora parece ser a vez das inibições aterradoras, dos quadros voltados ao corpo, como os distúrbios alimentares e os fenômenos psicossomáticos, do consumo excessivo de drogas aditivas e de bens supérfluos, e da virtualização dos relacionamentos pessoais, trazendo esta, como seus congêneres, uma espécie de texto desafiante, em que sobressai a letra da angústia carregada de matizes do Real.

Diante dessas novas formas do adoecer psíquico o psicanalista se vê impelido a buscar novos recursos. Parece ter chegado ao fim a era de ouro das interpretações que chamaríamos de 'notariais' — como um tabelião de cartório que escreve: "Faço saber a todos que aos sete dias do mês de março do ano 2013 do nascimento de Nosso Senhor...." — ou seja, dizendo o que o sujeito "já sabe e sabe que sabe", diferentemente do saber inconsciente — aquele que o sujeito, mesmo sendo seu portador, desconhece. Saber esse que, muitas vezes, se revela a uma simples pontuação, um dito esclarecedor, uma ressonância da fala. Assinala Ana Portugal M.Saliba:

Como sabemos pela obra freudiana, as pegadas, ou vestígios (Spuren), repetidas como sinais ou significantes, são restos de uma 'outra cena', a partir dos quais se formaram as fantasias e sintomas, dando corpo ao desejo inconsciente, presença de algo que pulsa para se realizar. Assim, cabe ao analista, com a atenção flutuante, fazer um trabalho de leitura desses rastros estruturados como uma linguagem, tendo como meta persegui-los e, não, apagá-los ou suprimi-los. No entanto, é dentro da própria linguagem que a psicanálise acolhe o estranho que irrompe na narrativa do sofrimento como uma lembrança sem lembrança. E então, ao invés de propor uma contra-história ou uma interpretação, o analista deve retomar as rupturas, os brancos, os tropeços e atos falhos, e, no esvaziamento, forçar para que algo se inscreva diferentemente (SALIBA, 2004, p. 26).

Além disso, se no dispositivo da análise parecem operar dois jogadores — como Lacan descreve em Problemas cruciais para a psicanálise (LACAN, [1964-1965], Leçon de 19 mai 1965), dois sujeitos, o sujeito dividido e o sujeito suposto saber —, é preciso reconhecer aí a existência de um terceiro elemento, que é a realidade da diferença sexual, o impossível de saber, o Real como impossível. Disso já se antecipara Freud quando se deparou com o rochedo da castração. São impasses com os quais o analista tem que se haver como um desafio inevitável em todo o processo.

Parece que os analisandos de outrora tinham mais paciência com seus analistas. Foi o que permitiu a construção de tudo isso que aí está a partir mesmo do seu criador. Embora Freud tenha afirmado nunca ter sido um "terapeuta entusiasta" ([1933], 1969, p. 185), tudo indica que foi um grande analista, o que, mesmo assim, não impediu que alguns de seus pacientes se impacientassem com o rumo de sua análise.

Nossos analisandos hoje têm muito mais pressa, o que os leva a buscar soluções anunciadas como mais rápidas e eficientes.

Entretanto, não há por que a psicanálise se curvar à concorrência dessas práticas 'contemporâneas', tendo a seu favor a regência de uma ética direcionada ao que há de mais caro ao sujeito — o desejo.

Sobretudo, se exercida como um processo 'não estandardizado' pode se valer de possibilidades infinitas de criação, resguardando sempre a marca da singularidade com a qual foi concebida.

E quanto à proposta deste trabalho — o que se faz quando se faz psicanálise —, é oportuno o pensamento de Lacan, quando enuncia:

O analista, claro não deixa de ter necessidade, de se justificar para si mesmo, quanto ao que se faz na análise. Faz-se qualquer coisa, e é bem desta diferença entre o fazer e um ato que se trata. O lugar onde se instala o psicanalisando é o de um fazer. Ele faz (também) qualquer coisa. Chamem-no como quiserem, poesia ou manejo e é bem claro que justamente uma parte da indicação da técnica psicanalítica consiste em um certo laisser-faire. Mas será isso suficiente para caracterizar a posição do analista, quando esse laisser-faire, esse "deixar rolar" comporta, até certo ponto, na manutenção intacta, nele, desse sujeito suposto saber, ainda que ele conheça, por experiência, a queda e a exclusão desse sujeito, e o que nisso resulta do lado do psicanalista? (LACAN, Leçon de 29 nov. 1967, p. 34).

Parece que essa indagação, se não é respondida, pelo menos é reforçada pela reflexão de Contardo Calligaris, em uma de suas passagens por nossa instituição. Disse ele:

Curioso esse nosso ofício de psicanalista, que consiste em tanto esforço para serrar um galho no qual ele próprio está assentado...2

 

Referências

CALLIGARIS, C. Aula ministrada no CPMG, em data não localizada.         [ Links ]

FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937). In: ______. Moisés e o monoteísmo, esboço de psicanálise e outros trabalhos (1937-1939). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 231-270. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23).         [ Links ]

FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900-1901). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 5).         [ Links ]

FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933). In: ______. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos (1932-1936). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 17-177. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22).         [ Links ]

FREUD, S. Recomendações aos médicos que praticam a psicanálise (1912). In: ______. O caso Shereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. p. 147-159. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12).         [ Links ]

FREUD, S. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar (1893) (Breuer e Freud). In: ______. Estudos sobre a histeria (1893-1895). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 39-53. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 2).         [ Links ]

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LACAN, J. Le séminaire, livre 15: l'acte analytique. Leçon de 29 nov.1967. École Lacaniènne de Psychanalyse, p. 34. Disponível em: <www.ecole-lacanienne.net>. Acesso em: 04 mar. 2013        [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). 3. ed. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Versão Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.         [ Links ]

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TUPINAMBÁ, Y. Participação em mesa-redonda na 4ª Jornada Centro-Sul do Círculo Brasileiro de Psicanálise, XXIII Jornada do Fórum de Psicanálise do CPMG e Iª Jornada de Psicanálise e Arte do CBP-RJ, em set. 2005.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Endereço para correspondência
Av. Brasil, 283/1502 - Santa Efigênia
30140-000 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: carlosaamello@gmail.com

Recebido em: 25/09/2013
Aprovado em: 04/10/2013

 

 

Sobre o Autor

Carlos Antônio Andrade Mello
Psicanalista. Sócio efetivo do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro da Comissão de Publicação da revista Reverso do CPMG.

 

 

1O presente texto, em parte, é uma versão do artigo do mesmo autor, Mais que nunca é preciso criar, publicado na Reverso n. 53, p. 93, CPMG, BH, 2006, tendo recebido um tratamento destinado a melhor atender a proposta de uma apresentação no CPMG, sobre o tema O que se faz quando se faz psicanálise, em 7 mar. 2013.
2CALLIGARIS, C. Aula ministrada no CPMG, em data não localizada.