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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.68 Belo Horizonte dez. 2014

 

ARTIGO

 

A participação subjetiva no trauma1

 

The subjects participation in the trauma

 

 

Oscar Cirino

Centro Mineiro de Toxicomania

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trauma retoma a cena na clínica psicanalítica contemporânea. A partir de um caso clínico busca-se discutir a participação do sujeito naquilo que lhe advém de surpresa, enquanto um “golpe do real”.

Palavras-chave: Trauma, Angústia, Real, Sujeito.


ABSTRACT

Trauma reappears at the centre of contemporary psychoanalytic practice. A clinical case is used to discuss how does the subject participate when something takes him by surprise as a “strike from the real”.

Keywords: Trauma, Anxiety, Real, Subjet.


 

 

Quero, inicialmente, destacar a feliz ideia dos colegas da Comissão Organizadora em nos fazer visitar de novo um tema, que se encontra no início da psicanálise, na sua descoberta por Freud. É, como sabemos, a partir das reminiscências de suas pacientes histéricas, que ele vai atribuir, em 1895, a etiologia da histeria a acontecimentos traumáticos vivenciados durante a infância e reativados, poderíamos dizer, revisitados na adolescência. Esse aspecto dos dois tempos do trauma será essencial para elaborarmos algo sobre a participação do sujeito naquilo que o assalta de fora, de surpresa.

Sabemos também que, já em 1897, na famosa Carta 69, escrita a Fliess, que ele questionará a teoria da sedução sexual da criança, dizendo “não acreditar mais em sua neurótica”, pois encontrou a fantasia sob a máscara do traumatismo. Assim, a teoria freudiana deslocaria a ênfase do trauma para a fantasia sem, contudo, abandonar a questão do trauma até o fim de sua obra. Com isso, enquanto o senso comum ficou fixado no trauma – “essa pessoa deve ter sofrido algum trauma” – o discurso da psicanálise teria salientado a fantasia, que, por estar conectada ao desejo, seria própria do ser do sujeito.

A questão que me fez trabalhar desde que recebi o convite para participar dessa plenária foi: como se dá a implicação do sujeito naquilo que lhe acontece inesperadamente e no qual efetivamente ele não se reconhece?

Devemos admitir que os psicanalistas não são muito atraídos pelo apelo ao traumatismo, porque ele permite muitas vezes o sujeito se esquivar, recusar sua participação, justamente quando a consideração de sua implicação no que ele sofre é condição sine qua non de sua entrada em análise.

No final de Inibição, sintoma e angústia, Freud ([1926] 1976) estabelece a articulação da angústia com o traumatismo, formulando novamente a questão: de onde vem a neurose? Dependendo da forma como essa pergunta é respondida, podemos pensar o sintoma como resultado de um acidente da história, de uma das contingências da vida, na qual o sujeito é essencialmente vítima do mau encontro mais do que parte interessada. Desse modo, o debate traumatismo ou fantasia vai além da procura pela causa dos sintomas, pois tem ressonâncias éticas, que tocam na implicação do sujeito com sua neurose.

Não há dúvida de que, quanto mais se acentua a causalidade traumática, mais se inocenta o sujeito – a culpa é da falta de sorte, do destino, das forças do mal –, e que quanto mais se acentua a causalidade não traumática, mais o peso recai sobre ele a partir da responsabilidade paradoxal com seus próprios sintomas.

Nossa época é marcada, segundo Colette Soler, por extraordinária produção literária em torno do trauma e seus tratamentos possíveis. Essa ênfase, que vem desde o início do século XX, é mais ou menos contemporânea ao choque civilizatório da Primeira Guerra Mundial e à psicanálise. A noção de neurose traumática, um dos pontos de partida da teoria da pulsão de morte, exemplifica essa conjunção (SOLER, 1998). Agora, o trauma não mais advém apenas de um incidente sexual na infância, mas de eventos horríveis, violentos que se repetem nos pesadelos, tal como Freud propõe em Além do princípio do prazer ([1920] 1976). Essa pode ser uma das maneiras de entender o Real: todas as formas de gozo que Eros não canaliza e que excedem ou escapam às regulações do princípio do prazer.

Hoje o tema insiste em vários discursos: na psiquiatria (com o estresse pós-traumático (F.43.1), descrito na CID-10), nas políticas de saúde (com a indenização dos traumatizados das grandes catástrofes), no direito (com a busca em discriminar os problemas relativos à responsabilidade pelo trauma). Lembremos tudo o que ocorre em torno da queda recente do viaduto da Av. Pedro I em Belo Horizonte.2

Atualmente também, quando as pessoas sofrem um traumatismo por situações de perigo ou atentados, os profissionais de saúde se precipitam em oferecer seus serviços. Poderíamos perguntar: é preciso mesmo intervir? Elas não poderiam se curar por si mesmas?

Sobre a oferta, nessas ocasiões, dos terapeutas cognitivo-comportamentais, Jacques-Alain Miller comenta que os psicanalistas poderiam sentir inveja e trauma diante da suposta eficácia da terapia cognitivo-comportamental nessas situações. Todas essas terapias tratam, como sabemos, pela sugestão e se propõem a curar recomendando ao paciente que recupere rapidamente a confiança em si mesmo.

Uma análise, pelo contrário, necessita que o sujeito perca sua confiança em si mesmo e que não se recupere rapidamente, de maneira que a questão insista, permaneça aberta para que ele siga trabalhando.

De forma bem-humorada, Miller brinca que as terapias cognitivo-comportamentais são breves porque o sujeito não poderia suportar por muito tempo o tipo de pressão moral – expectativas, metas e ideais – e às vezes físicas que lhe faz o terapeuta. Elas produziriam com isso um segundo trauma. Um bom exemplo se encontra no filme de Stanley Kubrick Laranja mecânica (MILLER, 2008).

Em todos os casos em que há trauma é preciso interrogar sobre sua razão, seu por que, uma vez que em todos atentados e catástrofes, há traumatizados e não traumatizados. Não são, portanto, suficientes a violência, o fogo, as enchentes, as mortes... Trata-se muitas vezes de um espetáculo, que as pessoas vão ver na TV ou no cinema por prazer, pois o perigo em si mesmo não é traumatizante. Muita gente se coloca em perigo por prazer, como nos esportes radicais.

Colette Soler indica que o campo do trauma ultrapassa aquele do qual os psicanalistas se ocupam e esclarece:

[...] o trauma é um dos nomes que se pode dar ao horror do mal-estar toda vez que ele vem de fora, de surpresa, sem que se possa imputá-lo ao sujeito, que, horrorizado, sofre suas consequências. É por isso que o trauma é referido a um real que assalta o sujeito, um real que não pode ser antecipado ou evitado. Um real [...] em face do qual o sujeito ‘não se aguenta’; um real, enfim, que deixa sequelas, como tantas marcas que cremos serem inesquecíveis (SOLER [1998], 2004, p. 71).

Ela indica que é grande a lista dos traumas tratados pela psiquiatria atual: (a) os traumas de guerra e (b) os traumatizados do terrorismo, de atentados sexuais, da violência urbana e das catástrofes naturais. Estabelece, contudo, uma distinção: enquanto na guerra, na violência urbana e no sexo, o registro do Outro e sua obscura vontade está implicado, nas catástrofes naturais surge o que ela denomina “o mais real do real”, uma vez que excluem todo e qualquer sujeito.

 

O olhar e não a bomba3

Trata-se de uma imigrante romena, de 38 anos, afetada pelo atentado terrorista ocorrido em uma estação de metrô, em Madrid, em março de 2004. A explosão a surpreendeu quando estava na cafeteria com suas amigas. Ela pensou imediatamente em uma bomba e, tomada de horror, saiu correndo sem esperar por ninguém, fugindo apavorada entre os feridos e os mortos. Em sua fuga, cruzou com o olhar de um homem estirado no solo com o rosto ensanguentado, “como um Cristo estirado”. A imagem do “Cristo estirado” continua a olhá-la a cada noite nos pesadelos que se repetem desde então. Importante: os pesadelos de repetição não são com a bomba, mas com esse olhar. Além disso, ficou dias captada pela angústia e por um estado de agitação e hiperatividade, que não a deixava descansar nem de noite.

Sente-se culpada por ter saído correndo da estação, por não ter ficado e ajudado os feridos, por não estar à altura do ideal transmitido por seu pai, um pai todo amor (que é uma das definições de Deus), muito religioso, pertencente à Igreja dos Adventistas, que lhe ensinava, frente à agressão, responder como Cristo oferecendo a outra face. Ela havia faltado ao dever de socorrer os feridos, e aquele olhar a lembra disso a cada noite nos pesadelos que se repetem.

No entanto, a tentativa de dar sentido ao trauma pelo recurso ao pai, pela via do discurso religioso, não funcionou, pois continuava angustiada... Nas primeiras entrevistas, a colega espanhola a acolhe sem desculpabilizá-la, ficando em silêncio. Com isso, a culpa logo desliza e recai sobre o outro: a culpa é dos marroquinos, dos terroristas. A culpa dá, então, lugar ao ódio, um ódio desconhecido por ela até aquele momento. Assim, o acontecimento traumático a levou a se confrontar subitamente e de modo surpreendente com esse afeto, um gozo desconhecido, ignorado por ela mesma (como o Homem dos Ratos, com o tormento dos ratos). É da clínica do trauma, o sujeito se deparar com um gozo êxtimo, inassimilável, não apreendido pelas redes do significante. Encontramos, então, algo “paradigmático”, de acordo com o psicanalista espanhol Vicente Palomera:

[...] os sujeitos que, ante uma situação traumática, mais desconhecem as pulsões que os habitam [...], são mais inclinados, mais lábeis ao afeto traumático, do que os sujeitos que têm certo saber sobre esse gozo que os habita (PALOMERA citado por MILLER, 2008, p. 33).

A lógica da analista foi contrária a uma posição idealizante. Ou seja, escutá-la falar desse ódio e manter a via aberta para que pudesse subjetivar algo de seu ser. Buscou-se sempre não tamponar a produção, quer através do sentido religioso, quer pelo sentido advindo do ódio.

Nas entrevistas emerge um novo amor, o amor ao saber. Estabelece-se a transferência, via um sonho no qual diante de uma situação estranha e perigosa, havia muita gente que a olhava tranquilamente, e uma mulher se dirige a ela e a convida a ficar e não fugir.

A abertura do inconsciente se produz, e ela passa a trazer uma série de sonhos que têm a particularidade de serem resolutivos, tranquilizadores, pois neles encontra saídas para situações aflitivas. Sonha, por exemplo, sem se incomodar, com um homem sem rosto que, portanto, não tinha condições de olhá-la de modo superegoico nem de recriminá-la através das palavras saídas de sua boca. A elaboração por meio dos sonhos foi uma maneira de deslocar o “olhar do Cristo estirado”, de inscrevê-lo em outra cadeia de representações distintas do acontecimento traumático.

A restituição da trama do sentido e a inscrição do trauma na particularidade inconsciente do sujeito são, como sabemos, curativas. Efeitos de uma desidealização do dito religioso do pai-todo-amor e da colocação em marcha do inconsciente como um dispositivo que produz revitalização libidinal: o fio da vida em contraponto ao real da morte.

 

Trauma e memória

Será interessante pensar o que o traumatizado nos ensina sobre a memória. O traumatizado é assombrado por um encontro, um instante, que não consegue esquecer, que o assalta de noite – se dele conseguiu escapar durante o dia – um instante que não lhe dá trégua, absorvendo a totalidade de sua libido e de seus interesses, em proveito de um pavor e de uma angústia que não cessam.

Por que não é possível esquecer esse instante, já que tantos outros se evaporam no esquecimento? Como um instante pode engendrar uma perpetuidade? Lembro-me de um analisante, hoje com 50 anos, que, até pouco tempo, buscava na internet notícias sobre a prisão de um homem que abusou sexualmente dele, quando tinha nove anos.

De fato, contudo, o traumatizado não se lembra; ele antes é invadido por imagens, barulhos, sensações do instante traumático Seu esquecimento impossível é uma falha de memória, no sentido de que uma memória é inscrição e de que se lembrar é se reconhecer nos sinais que podem ser convocados ou deixados de lado.

 

Os dois momentos do trauma

No caso, há algo que retorna na imagem do Cristo, não sob a lógica do deslocamento ou do recalque, mas sob a forma alucinatória do percebido, como Lacan ([1955-1956] 1985) indica no Seminário 3, as psicoses.

Por isso, podemos estabelecer relação entre o instante traumático e a estrutura da foraclusão, no sentido da não inscrição, da falha da Bejahung. O próprio Freud considerou a homologia entre o trauma e a alucinação. Um real, impossível tanto de suportar quanto de evitar, que não encontra nenhuma correspondência no simbólico, o que contribui para produzir a rejeição de toda “atribuição subjetiva”. Esse seria o primeiro momento do trauma, o tempo do impacto, do golpe do encontro com o real.

No entanto, não é suficiente que algo inesperado “caia sobre nossa cabeça” para que um pavor se instaure ou para que uma marca indelével se inscreva. Assim, por mais brutal que seja, um encontro só pode ser traumático se houver participação subjetiva ou internalização do trauma, como indica Freud no final de Inibição, sintoma e angústia (FREUD [1926] 1976, p. 193). Esse constitui o segundo momento do trauma, relacionado ao só-depois, às sequelas e às repercussões para o sujeito, que variam enormemente conforme a leitura que ele faz do real.

Aqui, segundo Colette Soler,

[...] o toque do inconsciente não falha jamais. Isso porque é muito difícil para o ser falante não ser crente e não pensar, como dizia Lacan, que as coisas são tramadas. Pouco importa o nome que se dá ao Outro suposto trama, Deus, o inconsciente ou os responsáveis: o resultado é a negação do non sense do real, o qual é convertido em intencionalidade obscura tão logo o encontro se dê.

Por isso, de acordo com ela,

[...] é urgente uma oposição ao discurso determinista que pretende estabelecer correspondência biunívoca entre uma causa traumática e suas consequências sintomáticas, pois, entre os dois, há o inconsciente ([1998] 2004, p. 86-87).

 

Se não há idealização, não há traumatismo

Jacques-Alain Miller, no comentário do caso da colega espanhola, propõe um princípio: há traumatismo quando um fato entra em oposição com um dito essencial da vida do paciente. Nesse caso, o dito é o famoso pai-todo-amor. Desde pequena essa mulher foi criada assim, tendo que oferecer a outra face. O que a traumatiza é que não há mais outra face para oferecer. No mundo do pai todo-amor, isso é um fato totalmente incompreensível. Se o pai tivesse dito o contrário – que as pessoas têm de se defender, que é melhor matar do que morrer – seria outra coisa. Desse modo, o atentado viria confirmar a lição do pai. Para ela, no entanto, ele fez desaparecer um pilar, uma coluna, de seu mundo (MILLER, 2008).

Poderíamos dizer que, em sentido estritamente freudiano, o paradigma estrutural do trauma é a situação de desamparo, pois ela implica um cenário de abandono radical do Outro que ostenta a potência de proteger. Assim, um trauma não depende necessariamente da violência de uma situação. Ele pode ser desencadeado sempre que se sente desamparo e fragilidade. Eis então uma hipótese:

[...] se os acontecimentos violentos traumatizam, não é apenas pelo fato de representarem um perigo real de destruição de si mesmo ou dos mais próximos, mas também porque, ao desfazer os referentes simbólicos e imaginários que dão segurança, ameaçam os significantes a que o ser se enlaça para ordenar a vida (GALLO, 2008, p. 343).

Para a mulher romena o traumatismo parecer ser consequência de um hiato, de uma incompatibilidade entre um mundo que tem uma lei, aquela do pai todo-amor, e a emergência do real sem lei, como diz Lacan ([1975-1976] 2007) no Seminário XXIII, Le Sinthome. Ela, que vivia na felicidade do pai todo-amor, havia se deparado com a emergência do ódio que descobre em si mesma, com a verdade horrível do real.

 

7x1

Foi este princípio – se não há idealização, não há traumatismo – que me levou a pensar na dor vivida por nossa população com as derrotas da seleção brasileira na Copa do Mundo. Retomemos a crônica Agora é cair na real, do poeta Ferreira Gullar, publicada na Folha de S.Paulo (20/7/2014):

Creio que o ponto principal para entendermos o desastre que foi nossa atuação nesta Copa está em nos darmos conta de que o Brasil é mega, o melhor do mundo. E como quem é mega não se dá conta de que o é, nós brasileiros, ao sabermos que a Copa seria aqui, começamos imediatamente a sonhar com o título de hexacampeão e com o banho que daríamos em nossos adversários.
Porque somos mega, a derrota de 1950 tornou-se um trauma insuperável. É que o mega não pode perder e, se perder, não se conforma, como não nos conformamos com a derrota para o Uruguai.
[...] nos esquecemos de considerar que, tendo perdido a última Copa realizada aqui, estaríamos obrigados a vencer esta, do contrário passaríamos por um vexame ainda maior. Ou seja, em vez de nos livrarmos do trauma de 50, acrescentaríamos a ele um novo trauma, o de 2014.

 

O mal-entendido é nosso berço

Recorrerei agora à lição de 13 de março de 1968 do Seminário XV, de Lacan. Nesse seminário sobre o Ato psicanalítico, como em vários outros, Lacan faz recursos à lógica para desenvolver seu ensino. A função do “todo” (tanto no sentido numérico de cada um – “todo homem é sábio” – quanto no sentido de inteiro em oposição à parte – “percorreu todo o caminho”) será bem trabalhada nesse momento.

trauma do nascimento, proposto por Otto Rank, em 1924, terá, segundo Lacan, incidências marcantes no pensamento analítico. De acordo com ele a proposta de Rank instaura a ideia de uma fusão ideal projetada como primeira, original. O homem conhece o “todo”, porque esteve em fusão original com a mãe. Essa fusão estabelece para o sujeito a possibilidade primitiva e, portanto, possível de ser reconquistada, de uma união com o que constitui o “todo”: a relação da mãe com a criança e da criança com a mãe no estágio uterino, antes do nascimento.

Isso teria contribuído, segundo Lacan, para “desviar” a direção freudiana, pois teria conduzido o saber analítico a tentar totalizar sua própria experiência, em busca da exaustão do conhecimento de si, como se fosse possível desconsiderar a divisão e subversão do sujeito. Em psicanálise, trata-se antes da apreensão do limite do “conhece-te a si mesmo”, uma vez que o objeto, aquilo que escapa ao saber, é que permitirá ao sujeito se constituir como tal.

Lacan postula, no entanto, que abordar o nascimento pela perspectiva do trauma é lhe dar função significante, já que uma hiância permanece aberta entre o homem e a mulher e, como consequência, na própria constituição do sujeito não acontece à complementação entre o macho e a fêmea.

Em 1980, em uma de suas últimas lições, intitulada O mal-entendido, Lacan retoma o trauma do nascimento de Otto Rank, para enfatizar que não há outro trauma que o do mal-entendido: o homem nasce mal-entendido.

O berço do falasser (parlêtre) é o mal-entendido, onde ele nadava, desde antes do seu nascimento, pois era transmitido pelo balbucio de seus ascendentes. É ele quem sustenta o falasser no inconsciente e faz com que cada um coabite de maneira particular a língua.

Porque não há o elemento que estabeleça a cópula sexual entre o homem e a mulher, a criança aparece como o resto da impossibilidade dessa relação.

Diz Lacan:

O falasser reparte-se em dois falantes. Dois que não falam a mesma língua. Dois que não se entendem. Dois que não se escutam simplesmente. Dois que se conjuram para a reprodução, mas por um mal-entendido consumado que seu corpo veiculará com tal reprodução (LACAN, 1980, p. 2).

Mesmo admitindo que a linguagem possa servir para uma comunicação sensata, como o diálogo, Lacan o considera raro e no caso da “produção de um novo corpo falante, é tão raro que de fato está ausente” (LACAN, 1980, p. 2).

Cair na real, lidar um pouco melhor com o real. Assim, enquanto o projeto do discurso da ciência é dominar, colonizar o real, chegar a um grau zero de mal-estar, enquanto a perspectiva religiosa é procurar dar sentido a tudo, a aposta do discurso analítico é que o sentido é marcado pelo não sentido advindo de que não há relação sexual. Assim, a satisfação da pulsão não tem que necessariamente passar, via repetição, pelo sentido fixo e congelado do sintoma, podendo, pela via da invenção, do sem sentido, estabelecer outro modo de tratamento do gozo, pelo sinthome, o que implica uma nova aliança entre o desejo e a pulsão.

Desse modo, talvez possamos saber lidar melhor, um pouco melhor, com real sem lei e sem sentido, sem precisar nos anestesiar ou sofrer em demasia com a dor de que os acontecimentos possam ser simples fatos sem sentido. Desse modo, se, no início da análise, suportar o impossível do real produz sofrimento, no final, isso pode nos levar ao entusiasmo, a um desejo inédito.

 

Referências

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GALLO, H. Trauma. In: Scilicet: os objetos a na experiência psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008, p. 343.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
Rua Aimorés, 2660/01 - Santo Agostinho
30140-072 - Belo Horizonte - MG
E-mail: ocirino@uol.com.br

Recebido em: 02/09/2014
Aprovado em: 15/09/2014

 

 

SOBRE O AUTOR

Oscar Cirino
Psicanalista em Belo Horizonte. Mestre em Filosofia (UFMG). Integra a equipe do Centro Mineiro de Toxicomania.

 

 

1 Trabalho apresentado em plenária da XXXII Jornada de Psicanálise do CPMG “O trauma revisitado”, Belo Horizonte, 29 e 30 ago. 2014.
2 Acidente ocorrido pouco antes da realização da Copa do Mundo no Brasil, que produziu mortos e feridos e uma série de questões jurídicas, políticas, técnicas e sociais.
3 Caso clínico apresentado pela psicanalista espanhola Araceli Fuentes em Conversação Clínica do Campo Freudiano, em Barcelona, em fevereiro de 2005.

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