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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.37 no.69 Belo Horizonte jun. 2015

 

ARTIGO

 

Psicóticos ou fóbicos da alteridade? Por um resgate da subjetivação na pós-modernidade

 

Psychotic or the alterity phobic? By a escue of subjectivation in postmodernity

 

 

Ana Paula Paes de Paula

Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apresentamos algumas reflexões sobre a necessidade de resgate do processo de subjetivação e os desafios que isso representa para a clínica psicanalítica. Partimos de uma síntese do fenômeno de constituição do sujeito, utilizando-o como referência para entender como ocorrem o processo de subjetivação e o estabelecimento do laço social. Em seguida, recorremos aos pensamentos de Dufour e de Lebrun para discutir a posição subjetiva na pós-modernidade (psicose ou fobia da alteridade), apontando possíveis saídas para a alienação.

Palavras-chave: Subjetivação, Psicose, Alteridade.


ABSTRACT

This article presents some reflections on the need to rescue the subjective process and the challenges that this poses to the psychoanalytic clinic. We start with an overview of subject constitution phenomenon by using it as a reference to understand how is the process of subjectivity and the establishment of the social bond. Next, we turn to thoughts of Dufour and Lebrun to discuss the subject position in postmodernity (psychosis or phobia of otherness), indicating possible solutions to alienation.

Keywords: Subjectivity, Psychosis, Otherness.


 

 

Introdução

Muitas são as interpretações sobre o sujeito pós-moderno no domínio da sociologia, das ciências políticas, da antropologia e da psicologia. Neste artigo, buscamos contribuir com uma leitura a partir da psicanálise, pois acreditamos que tal interpretação do fenômeno pode ser útil para a clínica contemporânea.

Nessa direção, recorremos ao pensamento de dois autores que discutem as relações entre a sociedade e a psicanálise a partir das elaborações de Jacques Lacan, a fim de analisar a posição subjetiva dos sujeitos pós-modernos: Dany-Robert Dufour e Jean-Pierre Lebrun.

Esses autores se destacam por seus trabalhos a partir da perspectiva da cultura, seja utilizando os conceitos psicanalíticos para explicar fenômenos na sociedade, seja realizando uma transposição disciplinar ousada e ao mesmo tempo rigorosa, que precisa ser considerada dentro dos limites que existem, em trazer reflexões do campo da subjetividade para o domínio social. Apresentamos algumas reflexões sobre o processo de subjetivação dos sujeitos contemporâneos.

Na primeira parte, fazemos uma síntese do fenômeno de constituição do sujeito com o objetivo de utilizá-lo como referência para entender como ocorre o processo de subjetivação e o estabelecimento do laço social.

Na segunda parte, apresentamos o pensamento de Dany-Robert Dufour em seu livro A arte de reduzir as cabeças (2005), que afirma que a posição subjetiva dos sujeitos na contemporaneidade é essencialmente psicótica.

Na terceira parte, expomos a interpretação alternativa de Jean-Pierre Lebrun no livro O mal-estar na subjetivação (2010), que coloca os sujeitos na posição subjetiva de fóbicos da alteridade.

E à guisa de conclusão, evidenciamos como essa interpretação aponta para uma possível saída da posição de alienação em que se encontra o sujeito contemporâneo, além dos desafios que isso representa para a clínica psicanalítica na medida em que se propõe a ajudar os sujeitos a retomar o processo de subjetivação.

 

Sobre a constituição do sujeito

A pulsão humana se desenvolve num circuito de três tempos: (a) o tempo ativo, que se refere à pulsão invocante da mãe; (b) o tempo reflexivo, que corresponde ao autoerotismo, no qual o bebê suga o polegar; e (c) o tempo dito passivo, no qual o bebê oferece o seu corpo ao gozo da mãe, o Outro experiente apontado por Lacan no Seminário 11 (1964).

O chamado novo sujeito emerge após o ingresso no terceiro tempo do circuito pulsional, que remete à alienação de si mesmo em favor do Outro (FREUD, [1915] 1996; LACAN, [1964] 1985; LASNIK, 2004; CAMPANÁRIO, 2008). Ingressar nesse terceiro tempo é fundamental para que bebê seja inserido na linguagem. Porém, ao falar, ele sofre uma perda do prazer associado à lalação.

Nesse processo, a mãe funciona como o Outro portador da linguagem. É preciso que ela abandone a posição de outro, de mãe fálica, para que o filho possa falar, ou seja, a mãe precisa deixar de ser apenas corpo (outro) para se colocar como representante da cultura (Outro).

Em outras palavras, quando o bebê realiza o terceiro tempo do circuito pulsional, a mãe precisa acolher o corpo oferecido e se portar de modo que o narcisismo do filho seja preservado. Ou seja, o movimento de alienação tem que ser acompanhado por um movimento de alterização para que esse sujeito se constitua como portador da linguagem barrando o Outro.

A erotização do corpo do bebê precisa ocorrer na medida certa, para que não se caia no extremo gozo do Outro, pois, no movimento de alienação, o bebê se coloca na posição de objeto de desejo no fantasma materno (objeto a1), situação que não pode persistir (CAMPANÁRIO; PINTO, 2006). É fundamental que a mãe se furte ao seu saber enquanto Outro e que suponha um saber no seu filho, ou seja, que ela acredite que nele há um sujeito e acolha suas mensagens orais e corporais como criações dele.

As mães fazem isso por meio do ‘manhês’, modo de vocalizar no qual utilizam sua própria voz para dar voz ao filho, falando como se fosse ele. Com esse gesto, a mãe cunha o Nome-do-Pai (não-do-pai)2 dando inserção ao terceiro na relação mãe-filho e possibilitando a triangulação edípica. A inserção simbólica do pai ocorre por meio da inserção da linguagem, que é a primeira representação da lei e da castração. Falar é entrar na ordem do desejo, que faz surgir o princípio da realidade.

Se o Outro não é barrado, não surge o sujeito dividido e separado da mãe, então ocorre o que Lacan ([1964] 1985) denominou holófrase (CAMPANÁRIO; PINTO, 2006): uma fusão de significantes, representada por S1 S2,3 que impossibilita o advento de um sujeito que seja capaz de fazer uso da fala em nome próprio. A mãe e o bebê formam um amálgama, e daí pode resultar um fenômeno psicossomático (erupções na pele, por exemplo), uma debilidade ou uma psicose.

No caso da debilidade, a criança está situada no lugar de objeto de desejo da mãe, ou seja, psicotizada, o que torna difícil o advento da metáfora paterna, de modo que a criança não tem como interpretar o que ela significa no campo do desejo do Outro. Esse Outro é, então, tomado como um guru ou mestre, portador de uma verdade absoluta.

Logo, não basta que o bebê entre no terceiro tempo do circuito pulsional, pois, para se tornar um sujeito autônomo, ele precisa abandonar essa posição de alienação. E para deixar essa posição subjetiva de alienação, é preciso a inserção de um terceiro – o pai, que primeiro se coloca por meio da linguagem.

A linguagem é o que protege o sujeito do real do inconsciente, no sentido lacaniano, entendido como a pulsão isenta de qualquer representação, que é o motor da angústia. A linguagem é como uma tela de proteção que atribui símbolos para representar as pulsões. Metaforicamente podemos dizer que, se essa tela é densa, temos uma estrutura neurótica, na qual de alguns poucos furos pode emergir o real do inconsciente recalcado, que se manifesta nos sintomas, nos sonhos, nos chistes e nos atos falhos, por meio dos quais o neurótico se defende do real.

No caso da psicose essa tela é muito esburacada: o real escapa com mais facilidade; daí se diz que o inconsciente se encontra a ‘céu aberto’. As atuações e os delírios caracterizam as estratégias de defesa do psicótico em relação a esse real não simbolizado.

Em síntese, podemos dizer que a constituição do sujeito ocorre por meio de quatro elementos: a suposição de um sujeito, o estabelecimento da demanda do sujeito, a alterização e a alternância presença/ausência (CAMPANÁRIO, 2008).

A suposição do sujeito e o estabelecimento da demanda são funções maternas e contribuem substantivamente para a constituição do sujeito. Já a alterização e a alternância presença/ausência barram o sujeito. Além disso, são funções paternas, pois aqui se insere o terceiro na relação mãe e filho, e a criança constata que a mãe se ausenta para estar com o pai ou realizar outras coisas que não sejam cuidar dela.

Segundo Campanário (2008), as funções maternas preparam o indivíduo para ingressar no complexo de Édipo. E nesse momento deveria agir a “mãe suficientemente boa” no sentido winnicottiano: aqui temos o 1o tempo do complexo de Édipo, no qual o pai está encarnado na mãe.

Já as funções paternas se situam no âmbito do 2o tempo do complexo de Édipo, no qual emerge o pai heroico e castrador, responsável pela alterização e, no 3o tempo, quando a criança percebe que o pai é o dono sexual da mãe. No 2o e no 3o tempos é preciso, primeiro, que o “pai seja suficientemente mau” para barrar o sujeito e, em seguida, “suficientemente falho” para ser barrado, o que permite ao sujeito fazer uma travessia completa do complexo de Édipo.

Ao apresentar os três tempos do Édipo no processo de constituição do sujeito, Campanário (2008) indica uma interessante referência para analisar o laço social e o processo de subjetivação na contemporaneidade.

Dany-Robert Dufour em A arte de reduzir as cabeças (2005) afirma que o sujeito pós-moderno está preso no 1o tempo do Édipo, na posição subjetiva fusional com a mãe, que é psicotizante. Jean-Pierre Lebrun em O mal-estar na subjetivação (2010) apresenta uma interpretação alternativa, pois coloca os sujeitos estagnados no 2o tempo do Édipo, na posição subjetiva de fóbicos da alteridade, fruto do deslocamento da autoridade paterna pela autoridade da ciência.

Essas elaborações colocam em jogo possíveis saídas para a posição de alienação em que se encontra o sujeito contemporâneo. Além do mais, trazem desafios para a clínica psicanalítica na medida em que apontam para a necessidade de auxiliar esse sujeito a retomar o seu processo de subjetivação.

 

A sociedade contemporânea e a debilidade dos sujeitos: psicóticos?

De acordo com Dufour (2005), atualmente assistimos à destruição do duplo sujeito da modernidade: o sujeito crítico (kantiano) e o sujeito neurótico (freudiano) estão dando lugar ao sujeito “pós-moderno”. O sujeito crítico kantiano se caracteriza pelo esclarecimento, ou seja, pela sua capacidade de fazer uso público de sua razão em todos os domínios, preservando a justiça entre os homens. Esse sujeito também é o neurótico freudiano: submetido à moral, também está submetido à culpabilidade. O sujeito kantiano e o sujeito freudiano se complementam, pois o neurótico, por estar encistado na repetição, é um dos melhores incitadores à crítica que existe: basta lembrar a histérica, que, segundo Lacan, pressiona o mestre para que ele produza um saber.

Tal sujeito vem sendo recusado em favor de um sujeito precário e acrítico, que vive em um estado de angústia borderline. O contexto no qual esse sujeito está inserido se caracteriza por elementos significativos como:

[...] o desenvolvimento do individualismo, a diminuição do papel do Estado, a supremacia da mercadoria em relação a qualquer outra consideração, o reinado do dinheiro, a sucessiva transformação da cultura, a massificação dos modos de vida combinando com a individualização e a exibição das aparências, o achatamento da história na imediatez dos acontecimentos e na instantaneidade informacional, o importante lugar ocupado pelas tecnologias muito poderosas e com frequência incontroladas, a ampliação da duração da vida e a demanda insaciável de plena saúde perpétua, a desinstitucionalização da família, as interrogações múltiplas sobre a identidade sexual, as interrogações sobre a identidade humana (fala-se, por exemplo, hoje de uma personalidade animal), a evitação do conflito e a desafetação progressiva em relação ao político, a transformação do direito em um juridismo procedimental, a publicização do espaço privado (que se pense na onda dos webcams), a privatização do domínio público [...] (DUFOUR, 2005, p. 25).

Para Dufour (2005, p. 27 e 33), o sujeito é primeiro o assujeitado, o submisso, que é definido pelo Outro, pois ele “[...] é uma substância que não tira sua existência de si mesma, mas de um Outro ser”. O autor considera esse Outro no sentido lacaniano e conclui que “[...] o sujeito é tanto a sujeição quanto o que resiste à sujeição [...] o sujeito é o sujeito do Outro e é o que resiste ao Outro”.

Em outras palavras, não é possível deixar a submissão ao Outro sem antes ter nela entrado. O Outro está sediado no centro dos sistemas simbólicos, mas é imaginário: sem ele não há acesso à simbolização, e não se constrói uma espacialidade e uma temporalidade. Assim, a modernidade seria um espaço coletivo no qual as várias ocorrências do Outro definem o sujeito: o Estado, a nação, Deus, por exemplo.

Assim, Dufour (2005) chama atenção para o esgotamento dessas figuras do Outro na pós-modernidade e suas consequências para as estruturas psíquicas, apontando ainda o declínio da figura do pai na modernidade ocidental.

Do ponto de vista psicanalítico, poderíamos dizer, hipoteticamente, que na modernidade o indivíduo se encontrava na posição subjetiva do 2o tempo do Édipo, marcado pelo pai onipotente e privador, que simbolicamente se manifestava na figura do Estado e outros aparelhos opressores: o Outro aqui se apresenta no lugar da lei e é representado pelo pai. Já na pós-modernidade, o indivíduo parece ter regredido para o 1o tempo do Édipo, marcada pela indistinção fusional entre mãe e criança.

Do ponto de vista simbólico, temos hoje representações acolhedoras e isentas da autoridade paterna, que apontam para essa indistinção: o Outro, absoluto e onipotente – representado pela mãe – aparece como o lugar do prazer, que impede que a falta se manifeste. O mercado seria uma dessas representações, pois apresenta para o sujeito um acolhimento de suas demandas e uma via para esse prazer.

Quando desenvolve suas considerações sobre o mercado, Dufour (2005) afirma que o ternário cedeu lugar à relação dual, como é a relação mãe e filho, reforçando uma posição subjetiva psicotizante.

Na sua visão, na contemporaneidade, a constante troca mercadológica está contribuindo para dessimbolizar o mundo: na troca o valor simbólico é desmantelado, e resta somente o valor monetário, deslocando a transcendência em favor da aparência.

Assim, é possível constatar que, anteriormente pautada pelo mito neurótico e marcada pelo pai castrador, a sociedade agora parece ter assumido a face psicotizante da mãe, que se funde ao seu filho numa holófrase, impedindo a inserção da metáfora paterna e tornando o indivíduo débil.

Esse indivíduo não tem uma voz própria e apresenta dificuldades de simbolizar, bem como de se projetar no futuro, uma vez que vive um eterno presente devido a sua impossibilidade de se fixar num tempo e num espaço.

Dessa forma, a sociedade contemporânea cria situações psicotizantes, nas quais o indivíduo é a presa do desejo do Outro e não consegue interpretar adequadamente o que significa para esse Outro.

As palavras de Dufour (2005, p. 92-93) confirmam isso:

É na direção de uma condição subjetiva definida por um estado limite entre neurose e psicose que doravante se define o sujeito pós-moderno, cada vez mais tomado entre melancolia latente (a famosa depressão), impossibilidade de falar na primeira pessoa, ilusão de todo-poder e fuga para frente nos falsos self, nas personalidades de empréstimo, inclusive múltiplas, oferecidas em profusão pelo Mercado. Em Outro s termos, a pós-modernidade veria o declínio do que Freud chamava de neuroses de transferência em proveito das psiconeuroses narcísicas, contra as quais a última proteção fica sendo, com frequência, a perversão (grifo do autor).

Assim, os traços psicóticos circundariam hoje alguns dos novos sintomas contemporâneos como a melancolia, as atuações que atingem os Outro s e a si próprio e a necessidade de exposição da vida íntima. Além disso, os traços perversos também aparecem, pois se manifestam muitas vezes como proteção em relação a esses sintomas de natureza psicótica.

O fracasso da função paterna aqui impede uma travessia bem-sucedida do Édipo, o que produz sujeitos sem consistência superegoica, insensíveis à intermediação simbólica e invulneráveis ao trauma. Imunes à culpabilidade, seu único freio é a vergonha. Dufour (2005) considera que o bando, as gangues, as seitas, a adição, os atos de violência são formas pós-modernas de remediar a falta do Outro.

Na nossa visão, seria mais necessário dizer que os indivíduos buscam um Outro que faça suplência da função paterna, uma vez que o lugar dele está ocupado pela mãe. Ademais, é importante perceber que as posições subjetivas variam, pois alguns indivíduos procuram substitutos simbólicos para o pai, e outros, para a mãe.

Nos dois casos, tentam aplacar a ansiedade e a angústia trazidas pela sociedade pós-moderna, mas ironicamente se alienam e abrem mão da possibilidade de alteridade, pois esses refúgios se constituem em Outros. Do ponto de vista da clínica, talvez seja importante tentar identificar em que posição subjetiva o sujeito se encontra: buscando a mãe ou buscando o pai.

 

Fóbicos da alteridade: algumas considerações sobre possíveis saídas para o sujeito pós-moderno e a renovação da clínica psicanalítica

A hipótese de que o sujeito pós-moderno regrediu do 2o para o 1o tempo do Édipo, levanta a seguinte questão: como fazer esse sujeito retornar ao 2o tempo e passar para o 3o tempo completando sua travessia edípica?

Em O mal-estar na subjetivação Jean-Pierre Lebrun (2010) faz considerações relevantes sobre esse problema. Fazendo uma leitura um pouco diferente de Dufour (2005) sobre o mal-estar contemporâneo, Lebrun (2010) acredita que não há caminhos para voltar, pois a sociedade tradicional foi colocada em xeque: o sujeito pós-moderno não aceita mais o pai no lugar do Outro opressor.

No entanto, na sua visão, esse declínio da autoridade paterna, ainda que tenha causado disfunções psíquicas e sociais, tem um lado positivo.

Lebrun (2010, p. 16) se coloca contra aqueles que

[...] tiram proveito desse declínio e de seus efeitos de abrandamento, senão da decomposição do laço social, para preconizar a solução de um retorno ao poder forte,

Atualmente observamos isso nos movimentos neoconservadores e neofascistas. Mas como garantir a autoridade necessária à preservação da civilização numa sociedade pós-hierárquica?

Lebrun, então, retoma Freud para lembrar que o pai morto é o ponto de partida para a constituição da sociedade, ou seja, a morte simbólica do pai onipotente e privador do 2o tempo do Édipo é o que permite que o indivíduo passe ao 3o tempo do Édipo, no qual o Outro é barrado. Lebrun (2010) retoma Lacan para lembrar que o pai é na verdade o representante da linguagem, pois, para

[...] habitar o mundo mediatizado pelas palavras, o sujeito teve de consentir em perder o gozo imediato das coisas (LEBRUN, 2010, p. 29).

O Nome-do-Pai (o não-do-pai) é necessário

[...] tão somente como desencadeador do processo de metaforização próprio do humano, o qual quase imediatamente se tratará de ser dispensado (LEBRUN, 2010, p. 30).

No entanto, isso não explica como na sociedade contemporânea, na qual a figura paterna se encontra em declínio, será transmitida aos indivíduos a renúncia pulsional necessária para seu ingresso no social. Em outras palavras, o não precisa vir de outros lugares: a chave é como nos liberar do patriarcado e, ainda assim, continuar humanos, pois a liberação do pai não deve ser confundida com a liberação da terceiridade, que é a garantia da alteridade.

Na visão de Lebrun (2010), com os progressos da vida moderna, a religião foi deslocada pela ciência, pois o ato criador não é mais o de Deus, mas de um homem que faz a racionalidade científica substituir e triunfar sobre a crença. Com a declaração de Nietzsche “Deus está morto”, paira uma incerteza sobre a autoridade divina, que passa a ser vista como aquela que falha, enquanto a ciência se coloca como infalível.

Assim, de acordo com Lebrun (2010), em torno do pai da religião, instala-se a incerteza, e o pai da ciência se revela como absoluto. Ora, a ciência infalível não é um bom pai, pois só passamos para a 3a fase do Édipo porque o pai falha, a diferença sexual existe, e a castração é compreendida como inevitável. Então, no lugar da repressão tirânica, temos a liberdade sem limites.

Para Lebrun atualmente é o próprio sujeito que precisa encontrar seus limites. O problema é que se liberar

[...] do Pai e confrontar com o rigor da ciência pode de imediato levar a correr o risco da confrontação com o Outro, e constituir, nesse caso, fóbicos da alteridade, ao mesmo tempo assujeitados a gozos regressivos (LEBRUN, 2010, p. 62).

Em outras palavras, Lebrun não apoiaria a hipótese colocada por Dufour de que os indivíduos no social teriam regredido ao 1o tempo do Édipo. Para o autor, eles continuam no 2o tempo, porém paralisados numa fobia, ou seja, pedindo limites, mas temendo esses limites.

O “pai da ciência” é muito absoluto para ser enfrentado, mas o que deveria ser transcendido é justamente isto: encontrar a falha desse pai e superar a fobia da alteridade.

Nas palavras do autor:

Sem estar no registro da psicose, o sujeito se encontra como que sem suporte subjetivo: ele não pode se desprender do Outro e se encontra sem saber como que obrigado a uma posição de “servidão voluntária”, em uma posição de submissão ao Outro, ao mesmo tempo em que constrangido a uma onipotência impossível de se satisfazer, tudo isso por não ter encontrado seu ponto de apoio na terceiridade (LEBRUN, 2010, p. 67).

O sujeito pós-moderno estaria num estado borderline, no sentido de uma experiência-limite, que prolonga o estado de latência indefinidamente, mas que é não exatamente neurose, psicose ou perversão, e sim uma fobia pela sua incapacidade de assumir por si mesmo uma subjetivação. Ou seja, trata-se de um sujeito que paralisa sua constituição e fica à deriva, num estado de errância, uma incapacidade de se fixar no que quer que seja.

Seria, segundo Lebrun (2010), um desabonado do inconsciente, que se situa unicamente na linguagem: não se destaca aqui um significante-mestre (S1), que intervém no saber inconsciente (S2) fazendo cair o objeto pequeno a, causa do desejo e que faz surgir o sujeito dividido () castrado pelo pai. Instaura-se, assim, um mal-estar na subjetivação.

Lebrun lembra que no seminário de 1974, Les non-dupes errent (Os não tolos erram), Lacan aponta um muro de linguagem que se opõe à fala e demonstra que, em oposição ao Nome-do-Pai (não-do-pai), teria surgido um “nomear para”: o pai não mais nomeia o sujeito para que assuma uma identidade e realize seu processo de subjetivação, pois, com esse nomear para alguma coisa, que pode ser feito pela própria mãe, o sujeito não mais se constitui, mas é constituído.

Segundo Lebrun (2010, p. 81), trata-se de

[...] tomar a via mais fácil, aquela que lhe permitiria fazer a economia da subjetivação e da confrontação com a alteridade, aquela que o autorizaria a pôr em risco a subjetivação.

No entanto, o autor enfatiza que o caminho é não resgatar a autoridade paterna tradicional, relativa ao patriarcado, mas reintroduzir a dimensão do furo que faz cair o objeto pequeno a, mobilizando o desejo.

O próprio Lacan teria indicado a saída com a pluralização do Nome-do-Pai (não-do-pai), que dispensa o Nome-do-Pai, mas se serve dele, mostrando que não há um único significante para o Nome-do-Pai, um único pai para todos, ou uma única maneira de introduzir o sujeito na linguagem.

Lebrun chega a essa conclusão indicando que cabe ao sujeito reencontrar um uso para o Nome-do-Pai, pois ele estaria em cada um, mas inoperante. Porém, para que isso ocorra, o sujeito:

[...] deveria inicialmente romper com a manutenção dessa latência, levantar a hipoteca, renunciar ao engodo do mecanismo que lhe marcou esse lugar, e então colocar seriamente nisso algo de seu ali onde ele precisamente foi autorizado a se ausentar, dito de Outro modo, ser-lhe-ia preciso enfim consentir em subjetivar, o que precisamente, numa tal conjuntura, ele havia podido e querido até então evitar (LEBRUN, 2010, p. 92).

Lebrun concorda que as crianças da ciência são inclinadas a ser tão somente crianças da mãe, mas que o desafio delas seria fazer de sua errância um projeto singular, reativando seus “Nomes-do-Pai” (nãos-do-pai). O sujeito precisa se assumir como um sujeito capaz de criação, e não apenas de reprodução. E isso coloca novos desafios para a clínica psicanalítica. Como se estabelece a transferência com os sujeitos contemporâneos? Tal sujeito encontraria saída no dispositivo da associação livre?

Na verdade, esse sujeito necessita reatar com a fala, então o analista, segundo Lebrun, precisa correr o risco de antecipar a emergência de uma verdadeira demanda, saindo do seu silêncio. E mais do que emprestar seu corpo, ele está desafiado a emprestar seu aparelho psíquico para que esse sujeito aprenda a subjetivação: é o caso de ser sujeito suposto saber pai mas também mãe.

A análise de Lebrun é muito pertinente e relevante, pois indica novas saídas. No entanto, Dufour (2005) talvez também tenha razão quando considera determinados casos. De qualquer forma, o que importa é considerar que essas interpretações criam leituras possíveis para as posições subjetivas ocupadas pelos sujeitos atualmente, o que pode ser útil na clínica do ponto de vista das intervenções que o analista pode realizar. No que se refere ao mundo social, acreditamos que as versões apresentadas representam bem as posições subjetivas da mente coletiva diante dos acontecimentos que hoje enfrentamos na sociedade contemporânea e que desafiam a clínica psicanalítica.

 

Referências

CAMPANÁRIO, I. S. Espelho, espelho meu. A psicanálise e o tratamento precoce do autismo e outras psicopatologias graves. Salvador: Ágalma, 2008.         [ Links ]

CAMPANÁRIO, I. S.; PINTO, J. M. Nos limites da linguagem. A holófrase e sua incidência na clínica da primeira infância. Reverso, Belo Horizonte, v. 28, n. 53, p. 51-60, 2006. Publicação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.         [ Links ]

DUFOUR, D. R. A arte de reduzir as cabeças. Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Zahar; Companhia Freud, 2005.         [ Links ]

FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). In: ______. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 123-144. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (Coleção Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LEBRUN, J. P. O mal-estar na subjetivação. Porto Alegre: CMC, 2010.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Governador Mário Covas, 27/202 - Castelo
30840-505 - Belo Horizonte - MG
E-mail: apppaula@face.ufmg.br

Recebido em: 05/03/2015
Aprovado em: 17/03/2015

 

 

SOBRE A AUTORA

Ana Paula Paes de Paula
Professora da UFMG.
Candidata em formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

 

 

1O objeto pequeno a em Lacan remete à primeira satisfação obtida pelo bebê em relação de desamparo que vem ao mundo, que é a primeira mamada. Essa experiência única e insubstituível vai marcar o sujeito como signo do objeto do desejo em toda a sua vida.
2 Em francês grafa-se a expressão “Nome-do-Pai” como “Nom-du-Père”; “nom” quer dizer “nome”, mas ocorre aqui uma homofonia com “non”, que quer dizer “não” em francês. Daí Lacan realiza um jogo com as palavras: “Nome-do-Pai” equivale a “não-do-pai”.
3 S1 representa os vários significantes que circundam o bebê, como um enxame, do qual um se destaca e se coloca como S2. A holófrase seria a ausência de um intervalo entre S1 e S2, que possibilitaria a emergência de um sujeito dividido, ou seja, separado da mãe. Pode-se dizer que ela é Outro nome para a foraclusão do Nome-do-Pai (CAMPANÁRIO; PINTO, 2006).

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