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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.38 no.71 Belo Horizonte jun. 2016
CULTURA E PSICANÁLISE
O olho, o olhar e o mau-olhado
The eye, the look and the evil-eye
Dimas Barreira Furtado
I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Este texto pretende apresentar uma visão geral das principais proposições de Lacan, especialmente no seu seminário de 1964, a distinção entre a função do olho e a do olhar, e nesta, a ênfase dada por ele à sua função paralisante e mortal; passando, então, ao poder do mau-olhado e a seus antídotos, presentes em todas as culturas. Trata ainda das tentativas de proteção contra o mau-olhado.
Palavras-chave: Olho, Olhar, Pulsão escópica, Mau-olhado, Benzeção.
ABSTRACT
This paper discusses an overview of the main propositions of Lacan, especially in his seminar 1964, on the scopic drive, in which he emphasizes on the distinction between the function of the eye and what it conveys through the look. A look that brings a mortal and paralyzing function, which in turn, breeds the power of the evil eye and their antidotes. Look and evil-eye which seem to be present in all cultures.
Keywords: Eye, Look, Scopic drive, Evil-eye, Blessing.
Teu olhar mata mais do que bala de carabina
Que veneno e estriquinina
que peixeira de baiano
Teu olhar mata mais que atropelamento de automóver
Mata mais que bala de revórver.
BARBOSA, ADONIRAN.
Tiro ao álvaro, 1960.
Neste trabalho, pretende-se apresentar uma visão geral sobre a pulsão escópica na concepção de Lacan. Além de se deter nesse tema em várias ocasiões, ele o considera especialmente em O estádio do espelho (LACAN, [1949] 1998) e A agressividade em psicanálise (LACAN, [1948] 1998). Também no Seminário, livro 10: a angústia (Lacan, [1962-1963] 2005), quando estabelece a íntima relação da angústia com o olhar, especialmente o olhar do Outro. E ainda, no Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, [1964] 1985), no qual se encontra uma seção inteira, que recebeu o título de O olhar como objeto a minúsculo.
Procura-se, pois, entender as distinções que ele faz entre o olho e o olhar, sua ligação com conceitos fundamentais como castração e angústia. Incluem-se também considerações sobre um dos aspectos explorados por ele – o mau-olhado – o poder do olho, tal como é visto em muitas culturas, de fazer mal, de gerar quebranto, de causar a parada ou a morte:
Os poderes que lhe são atribuídos, de fazer secar o leite do animal sobre o qual ele cai – crença tão disseminada em nosso tempo quanto em qualquer outro, e nos países mais civilizados – de trazer a doença, a má sorte, esse poder, onde podemos melhor imaginá-lo senão na invídia? (LACAN, [1964] 1985, p. 112).
No Seminário 11 Lacan começa aquela seção reportando-se ao livro O visível e o invisível, de Maurice Merleau-Ponty, recém-editado à época, e nos faz acompanhar uma longa referência sobre a A carta sobre os cegos para uso do que enxergam, de Diderot.
Outra referência importante é a tragédia sofocliana Édipo Rei – exceto as numerosas referências, como seria quase de se esperar, quando trata da angústia, da castração, do objeto a e de outros conceitos fundamentais. Vale lembrar sua sugestão, se quisermos dizer, brincalhona, de tomarmos o cego Tirésias como patrono dos psicanalistas. Especificamente a respeito do ver e não ver, ou, do não ver e ver, lembra:
A tradição chega até a dizer que é a partir desse momento [já cego e exilado] que ele se torna realmente vidente. Em Colono1, Édipo enxerga tão longe quanto se pode enxergar, e com tanta antecipação que vê o futuro destino de Atenas (LACAN, 1962-1963/2005, p. 180).
Ainda em Édipo Rei, Lacan nos remete ao papel do cego Tirésias (SÓFOCLES, [431 a.C.] 1998, p. 31) a tentar abrir os olhos do povo tebano e do próprio Édipo, para o fato de ele, o rei, ser o responsável pelas desgraças que se abatem sobre o povo, por causa de seus pecados inomináveis.
Sobre a questão do mau-olhado ou do poder de encantamento dos olhos, Freud não parece ter se aprofundado. Porém, isso não quer dizer absolutamente que lhe passassem despercebidos.2
Veja-se um trecho do bardo inglês, muito citado por ele. Na segunda conferência, a primeira entre três sobre as parapraxias, encontra-se uma preciosa citação de um trecho da fala de Pórcia, em O mercador de Veneza, que, se bem não seja exatamente para analisar a questão escópica, mas apenas o poder de encantamento dos olhos, merece repetir:
Malditos sejam vossos olhos! Encantaram-me e partiram-me em duas partes: uma é vossa e outra é meia vossa; quero dizer, minha; mas, sendo minha, é vossa e, desse modo, sou toda vossa (FREUD, [1915-1916] 1976, p. 53-54).
Tanto em Lacan quanto em Freud encontra-se, pois, uma verdadeira teoria psicanalítica a respeito do olhar. Sem dúvida, como acontece em sua obra, Lacan parte dos fundamentos e dos avanços conseguidos pelo Mestre e consegue aprofundar e ir além em alguns pontos. É bem o caso da pulsão escópica. Dois aspectos talvez possam ser definidos como os mais importantes na contribuição lacaniana para o tema.
O primeiro deles, discutido nos anos iniciais do seu ensino, encontra-se em O estádio do espelho (1949) e em outros textos da mesma época. Aí estão dois elementos derivados especialmente da dimensão imaginária, a primeira do conjunto de registros, ao lado do simbólico e do real.
Decorrente da relação especular responsável pela constituição do sujeito e por sua compreensão do seu corpo como inteiro, tal compreensão faz parte do sujeito e é também responsável pela sua própria constituição. O processo se dá pelo olhar da criança, diante de um espelho, antes mesmo de andar e de falar, descobrindo refletida sua própria imagem e, assim, com efusiva alegria, descobrindo-se como inteiro. O olhar do adulto – outro e Outro, noções que mais tarde serão desenvolvidas – que a acompanha e provavelmente a segura ou ampara, confirma a constatação infantil.
Paralelamente ao processo de identificação especular, Lacan aponta a importância de outra dimensão, também parte fundamental da constituição e igualmente especular: a agressividade. Agressividade em relação ao seu outro, em relação ao seu semelhante, com o qual e no qual se enxerga como igual, como melhor ou pior – e provavelmente como concorrente. Afeto que acompanhará para sempre o adulto, como muito bem se sabe.
No Seminário 11 Lacan começa sua análise sobre o olhar com a referência ao sonho do velório do filho (Freud, em A interpretação dos sonhos), com a solicitação do olhar do pai – além da própria invocação: “Pai, não vês que estou queimando?” Pai, acorde, abra os olhos, olhe, não me deixe “morrer uma segunda vez”!
Poderíamos, pois, examinar cada um desses objetos separadamente, mas trataremos apenas do olhar. Lacan parte diretamente da lição de Freud sobre a pulsão escópica, das posições ativa, passiva e reflexiva, para construir e apresentar sua contribuição sobre o tema. Ainda nesse seminário, ele apresenta o raciocínio: o olho não se confunde com o olhar, cada um tem sua função.
Em referência à posição de Merleau-Ponty em O visível e o invisível, diz Lacan que o visível está na dependência do olho: “[...] a dependência do visível em relação àquilo que nos põe sob o olho de quem vê” (LACAN, [1964] 1985, p. 73). Ainda tomando referências daquele filósofo, Lacan destaca a ligação, a dependência mesmo da estética em relação ao olho. Nessa linha, enquanto distinguindo o olho do olhar, não poderia ser esquecida a patente importância do olho para qualquer processo de percepção e para a fenomenologia da percepção, com sua função “reguladora da forma”.
Não mais separando o olho do olhar, ou melhor, num terreno em que não há propriamente oposição entre eles mas conjugação e soma de efeitos, e ainda que apenas en passant, Lacan trata da importância do olho e do olhar nas relações entre os seres – animais ou humanos. A grande distinção apontada por ele é que os humanos não se limitam ao terreno do imaginário, pois sabem controlar a máscara, o que não se dá com os demais animais.
Submersos no campo da imagem, os animais a têm presente e senhora em suas relações de confronto de poder, de acasalamento, de luta, entre diferentes espécies ou no interior da mesma espécie.
Já os humanos usam a máscara, se assim lhes convier. Não precisam – ainda que isso também aconteça – se submeter a ela. O simbólico entra em jogo, o que pode alterar todo o processo.
Na mesma linha, Lacan cita a polêmica entre os pintores gregos Zêuxis e Parrásios, que sugere o interesse dos humanos pelo que está oculto a seus olhos.
O olho e o olhar são personagens fundamentais no processo da constituição do sujeito, como no Estádio do espelho, como o são também no estudo que se lhe segue sobre a Agressividade: no esquema L, em que só é considerado o imaginário, e da mesma forma naqueles em que entra também o simbólico. O a – a’ daquele esquema é simplesmente olho e olhar, olhar e olho.
Com respeito ao olhar é preciso enfatizar a distinção entre olhar e ser olhado. E ainda fazer-se olhar ou dar-se a ver. Apesar de fazerem parte da mesma pulsão, como Freud marcou, e de terem relação um com outro campo, convém distingui-las.
As posições ativa e passiva do olhar, mesmo quando não chegam às posições extremas do voyeur ou do exibicionista, apresentam distinções claras. A terceira posição é a reflexiva, na qual cabe destacar a diferença entre o sujeito se pôr na posição de ser olhado, como ato consciente ou não, daquela outra situação em que, à sua revelia, se assim podemos nos expressar, ser ou passar a ser visto, a ser olhado.
Nesse ponto, é impossível esquecer a relação com o narcisismo, questão tão importante na realidade psíquica, objeto de muitos estudos da psicanálise, desde seus primórdios. Narcisismo que nasce do mito do jovem a se olhar e se admirar no espelho de um lago.
Para passar da dimensão ativa para a passiva, tomemos emprestadas as palavras de Samuels, em A arte e a posição do analista. Elas expressam bem essa distinção:
Entro num parque e vejo as árvores que vejo sempre, a fonte que eu reconheço e as multidões que estão sempre ali. Em suma, tudo é familiar e a cena inteira é regulada pela minha intencionalidade e por meu ponto de vista. Entretanto, de repente, surge um rosto que se volta para mim e me encara. Agora sou o objeto do olhar do Outro e alvo de desejos e julgamentos desconhecidos. Não sou mais o olho, ou o ‘eu’ da consciência [...] (SAMUELS, 1997, p. 200).
Lacan fala de um “empuxo daquele que vê”, fenômeno que parece ser de fácil constatação no nosso dia a dia. E mais, ainda nos caminhos de Merleau-Ponty: a preexistência de um olhar – “[...] eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte”.
Somos “seres olhados no espetáculo do mundo” (LACAN, [1964] 1985, p. 73). Mundo que é, em mais um de seus neologismos, omnivoyeur, que olha (espreita, talvez) tudo.
Dessa forma, constata-se que a posição passiva, de um ponto de vista cronológico e lógico, é a primeira. Primeiro, somos olhados, o mundo nos olha,3 ainda que chame a atenção a precocidade com que os bebês humanos passam a olhar para o rosto e os olhos dos adultos que os assistem.
No sentido ativo, daquele que olha, é interessante lembrar a expressão de Agostinho. Ele se refere a uma “concupiscência do olhar”. Lacan marca o desejo, e como tal, a queda que sofre esse desejo, uma vez que nunca é totalmente atendido.
E marca também, no mesmo trecho, a alienação em que cai o sujeito:
[...] o olhar opera numa certa queda, queda de desejo, sem dúvida, mas, como dizer? O sujeito não está aí de modo algum, ele é teleguiado (LACAN, [1964] 1985, p. 111).
No Seminário 11 Lacan se pergunta se não haveria satisfação em estar sob certo olhar, sem que isso nos seja mostrado. Fala da “[...] satisfação de uma mulher em se saber olhada, com a condição de que não se mostre isso a ela” (LACAN, [1964] 1985, p. 76).
O dar-se a ver, a provocação do olhar do outro são fenômenos frequentes. Não talvez exclusivamente de mulheres, como o exemplo dado por Lacan, mas quase uma característica dos histéricos. Fenômeno cada vez mais intenso e mais abrangente nos dias atuais.
Isso, porém, não contradiz outro aspecto ligado ao olhar, que é sua relação com a angústia. Há forte ligação do olhar, do ser olhado, com a angústia. E com o objeto a. O que acontece especialmente na dimensão passiva.
No seminário sobre a angústia, ele antecipa (o que iria desenvolver no ano seguinte) que o olhar está sempre presente nas manifestações da angústia. Sem o objeto a, diz ele, não há angústia. O modelo proposto, do olhar como o auge da angústia, é o momento em que Édipo arranca seus olhos das órbitas (LACAN, [1962-1963] 2005, p. 180).
Ele faz esse sacrifício já que seus olhos foram a causa da sua queda: ele queria saber. Ele queria saber o que havia acontecido. (Note-se a relação entre olhar e querer saber, e talvez entre ver e saber):
No entanto [com os olhos já arrancados de suas órbitas], não deixa de vê-los, de vê-los como tais, como o objeto-causa enfim desvelado da concupiscência derradeira, suprema, não culpada, mas fora dos limites – as de ter querido saber (LACAN, [1962-1963] 2005, p. 180).
Por que o olhar, o ser olhado pode ser portador da angústia? O olhar, aquele que atinge o sujeito, seria da ordem do real, da irredutibilidade do real, explica Lacan, o etwas [alguma coisa] do texto freudiano (LACAN, [1962-1963] 2005, p. 178).
Há distinção na angústia do neurótico em relação àquela do psicótico. Isso está bem claro em texto de Quinet, em que ele se utiliza da imagem da tela, disponível para o neurótico, mas que falta ao psicótico:
Como podemos entender o olhar no sentido psicanalítico? O lugar mais óbvio para observá-lo é na psicose, quando há uma falha do olhar. Para os neuróticos, o olhar como um objeto não tem consistência, não tem substância. Ele não aparece, não pode ser visto. Mas, para os psicóticos, olhar pode às vezes ser sentido e visto, porque a tela falha, o que é outro modo de se dizer que o complexo de Édipo falha (QUINET, 1997, p. 161).
Uma vez estabelecido o desejo, na pulsão escópica, no ‘apetite do olho’ Lacan explica a presença do objeto a, da falha, do logro. No Seminário 11 ele procura esclarecer a função do logro no olhar. O caso de Zêuxis e Parrásios é um exemplo. A cortina da pintura de Parrásios constitui um logro para o olho do seu amigo e contendor.4
Falta, objeto a, desejo, logro, desejo. O olhar se mantém sempre parcialmente na ignorância:
Na medida em que o olhar, enquanto objeto a, pode vir a simbolizar a falta central expressa no fenômeno da castração, e que ele é objeto a reduzido, por sua natureza, a uma função punticforme, evanescente – ele deixa o sujeito na ignorância do que há para além da aparência – [...] (LACAN, [1964] 1985, p. 77).
Em outros pontos, fala da nadificação a que é submetido o sujeito, relacionando-o mais uma vez ao escotoma. Tomando como exemplo uma pintura de Holbein (Os embaixadores), a partir da qual tinha exemplificado a anamorfose empregada na pintura, Lacan traduz essa nadificação como
[...] a encarnação imajada do menos-fi [(- φ)] da castração, a qual centra para nós toda a organização dos desejos através do quadro das pulsões fundamentais (LACAN, [1964] 1985, p. 88, grifo do autor).
A questão do logro manifesta o que Lacan classifica como ‘dialética do olho e do olhar’, em “que não há de modo algum coincidência, mas fundamentalmente logro”; há sempre um “trompe-l’oeil”, justamente um recurso usado na pintura para criar uma determinada ilusão.
E exemplifica:
Quando, no amor, peço um olhar, o que há de fundamentalmente insatisfatório e sempre falhado, é que – Jamais me olhas lá de onde te vejo. [...]
Inversamente, o que eu olho não é jamais o que quero ver (LACAN, [1964] 1985, p. 100, grifos do autor).
Apesar de dar especial atençãoao papel pacificador da pintura no Seminário 11, Lacan destaca a universalidade do mau-olhado, presente em todas as culturas, antigas ou atuais, do Oriente ao Ocidente. Passa pela Bíblia, onde diz haver dezenas de referências a mau-olhado, sem, no entanto, ser encontrada uma única ao bom olho, ao olho que bendiz.
E atribui ao olhar esse poder separador, o poder de tirar a vida:
Que dizer? – senão que o olho leva consigo a função mortal de ser em si mesmo dotado – [...] – de um poder separativo (LACAN, [1964] 1985, p. 112).
Por outro lado, como destaca Berressem (1997, p. 193), Lacan joga (podemos dizer que lembra) com um certo paradoxo, pois o fascínio do mau-olhado pode ser também conjurado pelo mesmo fascinum ou fascinus. De fato, o termo foi empregado por alguns autores latinos também no sentido de falo, de membro viril. Ou ainda como “deus do olhado” no emprego dado pelo escritor Petrônio à palavra “fascinus” (CRETELLA, 1953, p. 463). Ele cita também a ‘baskhanía’, o fascínio para os gregos (o olho invejoso, demoníaco, maldoso, demoníaco – Ophthalmós Báskhanos).
Lacan se refere a mecanismos comuns na dança e no ato de pintar, constituído pela “parada”, parada do movimento, da dança ou do pincel, como ato fascinatório.
O que é essa estancada, esse tempo de parada do movimento? Não é nada mais que o efeito fascinatório, no que se trata de despojar o mau-olhado do seu olhar, para conjurá-lo (LACAN, [1964] 1985, p. 114).
Note-se o “despojar o mau-olhado do seu olhar”.
E continua: “[...] o instante de ver só pode intervir aqui como sutura, junção do imaginário e do simbólico [...]” (LACAN, [1964] 1985, p. 114).
Apesar de evidentemente se tratar de fenômenos diversos, Lacan relaciona a função paralisante do olhar com a inveja. “[...] onde podemos melhor imaginá-lo senão na invídia?” (LACAN, [1964] 1985, p. 112). Mais uma vez, lembra a criancinha com o olhar cheio de inveja, dirigido ao irmão de leite, pendurado ao seio da mãe, relatado por Agostinho.5 Lembra que invídia, inveja e invejar, derivam de invidere, ver.
E explica a origem do processo:
O invejoso empalidece diante da inveja da completude que se fecha, e do fato de o a minúsculo, o a separado ao qual ele se suspende, poder ser para um outro a possessão com que este se satisfaz, a Befriedigung (LACAN, [1964] 1985, p. 112).
O objeto a se presentifica na inveja:
Para compreender o que é a invídia em sua função de olhar, não é preciso confundi-la com o ciúme. O que a criancinha, ou qualquer pessoa, inveja, não é de modo algum, necessariamente, algo que ela poderia ter vontade [...] A criança que olha seu irmãozinho, quer dizer que ela ainda precisa da teta? Todo mundo sabe que a inveja é provocada pela possessão de bens que não seriam, para aquele que inveja, de nenhum uso, [...] (LACAN, [1964] 1985, p. 112, grifos do autor).
O mau-olhado, também chamado quebranto ou espinhela caída,6 é o feitiço, o fascínio. Poderíamos dizer que se trata da dimensão ativa, consciente ou não, da função paralisante do olhar. Olhar que provoca efeitos negativos sobre pessoas, animais e plantas. Tais efeitos são de diversas naturezas.
O mau-olhado seca a planta, mata-a de um dia para outro, seca o leite do animal ou o faz adoecer e eventualmente morrer. Nas pessoas os efeitos vão desde um inexplicável estado de desânimo e apatia, uma diarreia ou indisposição na criança, a um ‘cobreiro’, etc.
Como seria de se esperar, as mesmas culturas que dão crédito ao mau-olhado, criaram remédios para ele. Contra os efeitos do mau-olhado, acreditam, só há um tipo de remédio: aquele que atua no mesmo “terreno”, no terreno da “eficácia simbólica”.
Esses antídotos podem ser, como diz Lacan, de natureza alopática ou homeopática. No primeiro grupo estão os chifres (evidente representação fálica), as conchas e muitos outros; na categoria dos homeopáticos, amuletos com forma de contraolho.
Note-se, porém, que, mesmo em se tratando da forma homeopática, o antídoto não constitui um novo olhar para destruir ou desfazer o primeiro. Trata-se de um olho, de um novo olho, enquanto o ‘bom olho’ é suprido por outros mecanismos.
O principal, além dos contraolhos referidos no texto lacaniano, é provavelmente a bênção, geralmente com ‘imposição das mãos’, e provavelmente sempre acompanhada de orações especialmente definidas para a situação e até mesmo para o efeito específico do mau-olhado que se quer anular, ou seja, em suas várias formas ou efeitos.
A benzeção, como é mais usualmente chamada em algumas regiões, constitui uma das manifestações do sincretismo religioso, que é aplicado na prevenção ou cura do mau-olhado. É fácil encontrar atualmente, nos sítios da internet, muitas fórmulas de orações específicas para cada forma do mau-olhado.
A bênção pode ser resumida pela frase “benza-o, Deus”, usada em muitas regiões, sempre que alguém elogia a beleza de uma criança ou planta. A falta desse cuidado pode deixar muito ansiosa a mãe ou a dona da planta e fazê-la, ela própria, ainda que tacitamente, pronunciar a frase exorcismo.
Outro recurso preventivo para afastar o mau-olhado da casa (ou ambiente de trabalho) e das pessoas que ali vivem ou trabalham, consiste na manutenção em locais bem visíveis da entrada, de determinadas plantas protetoras: comigo-ninguém-pode (Dieffenbachia seguine), cujo nome já diz bastante, guiné (Petiveria tetrandra), espada-de-são-jorge (Sansevieria trifasciata), pimenteira (Capsicum sp), arruda (Ruta graveolens).
Algumas dessas plantas estão presentes nos ritos da bênção ou do exorcismo, usadas como instrumento para aspergir água benta sobre o corpo ou parte do corpo do paciente.
Referências
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Endereço para correspondência:
E-mail: dimasfurtado@gmail.com
Recebido em: 10/02/2016
Aprovado em: 11/03/2016
Sobre o autor
Dimas Barreira Furtado
Sociólogo.
Bacharel em sociologia e política (UFMG).
Mestre em educação (UFMG).
Candidato em formação psicanalítica no CPMG.
1 Colono é outra tragédia de Sófocles, parte da trilogia que inclui também Édipo Rei e Antígona.
2 Além, é claro, da abordagem cuidadosa que fez sobre o olhar, quando trata a questão do estranhamento, do Umheilichkeit, em O estranho (FREUD, [1919] 1996).
3 A tecnologia permite atualmente que a criança seja vista antes mesmo do nascimento; e a reprodução da ultrassonografia do ventre materno é festivamente ‘compartilhada’ com os amigos do casal na internet.
4 Zêuxis reconhece sua derrota, dizendo que seu quadro enganou os pássaros, enquanto ele próprio foi enganado pelo de seu rival.
5 “Certa vez, vi e observei um menino invejoso. Ainda não falava e já olhava pálido e com rosto amargurado para o irmãozinho colaço. Quem não terá testemunhado isso?” (Confissões, cap. VII - https://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho_-_confissoes.pdf
6 Quebranto deriva de quebrantar e este, por sua vez, de quebrar. Uma provável alusão ao fato de o mau-olhado poder quebrar, dobrar a resistência, a força de sua vítima. Em “espinhela caída” o termo diz tudo.