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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.43 no.82 Belo Horizonte jul./dez. 2021
AUTOR CONVIDADO
Queerizar "o que não cessa de não se escrever" com Derrida
Queerizing "that which never ceases not being written" with Derrida
Fabrice BourlezI; Tradução: Bernardo Maranhão; Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello
IPsicanalista. Doutor em filosofia. Autor de Queer psychanalyse (Ed. Hermann, 2018). Professor na Esad, em Reims, na Sciences Po, em Paris, na Ensba, em Paris, e no IIP - Brasil. E-mail: fabrice.bourlez@gmail.com
RESUMO
O artigo propõe uma releitura de Derrida a fim de circunscrever as implicações políticas e éticas de uma clínica contemporânea na escuta da não relação sexual lacaniana e das teorias queer.
Palavras-chave: Desconstrução, Teorias queer, Derrida.
ABSTRACT
This article proposes a renewed reading of Derrida, in order to highlight the political and ethical implications of a contemporary clinic which is attentive to lacanian sexual no-relation and to queer theories.
Keywords: Deconstruction, Queer theories, Derrida.
Não há desconstrução sem inconsciente
Pensar a desconstrução a partir de um ponto de vista psicanalítico implica passar pelo trabalho de Jacques Derrida. A obra do filósofo mantém um intercâmbio constante com a psicanálise, tanto a de Freud quanto a de Lacan.1 A consideração do inconsciente por intermédio da linguagem lhe permite ao mesmo tempo prestar uma homenagem à prática e lhe fazer uma crítica ferrenha. As consequências para a práxis não são apenas teóricas: elas requerem uma renovação da ética que a anima e lhe permitem relançar o desejo que nela opera em direção ao contemporâneo. Dito de outro modo, o trabalho derridiano constitui um aliado muito útil para aqueles que, em uma perspectiva queer2 resolutamente situada para além do Édipo,3 desejam não apenas recusar os preconceitos homofóbicos ou contestar os diagnósticos transfóbicos, mas também desmontar os a priori heterocentrados em ação no campo psicanalítico. A desconstrução não significa, portanto, a interrupção do discurso psicanalítico. Ela envolve, mais exatamente, o esforço necessário ao analista para continuar a reformular as bases e os pontos de chegada de sua prática.
Dar uma definição clara e enxuta da desconstrução derridiana é algo que é fruto do contrassenso, assim como a dé-marche visa desfazer a estabilidade de um conceito para revelar, segundo o movimento próprio à différance, uma não identidade a si mesmo, uma inadequação em se dizer. Escrever différance com um a, como faz Derrida, visa deslocar o que se pensa no tempo e no espaço da leitura. O que importa depende menos de um sentido pleno, de uma significação rigidamente estruturada como uma linguagem, que do recalcamento sistemático da escritura como instrumento secundário, como simples materialidade a serviço do Logos. Ora, pelo viés da grafia, a coincidência do significante e do significado se recusa a toda unidade. Ao se diferir [en différant], distingue-se, faz-se uma diferença, mas impede-se também o aqui e agora de advir reportando a mais tarde. A impossibilidade gramatical da palavra, o lapsus calami voluntário que traça a sua potência conceitual, afasta-nos em definitivo de toda simplicidade feliz. O a obtura as concordâncias beatas. Ele arranha a continuidade do sentido. Limitemo-nos a propor que a desconstrução vale como exercício da différance, ou seja: uma prática de leituras e escrituras nas margens dos textos. O silêncio que tornara possíveis esses textos se faz ouvir. Ele se afirma. Por esse viés, um espaço se faz valer com relação aos conteúdos explícitos. Um impensado se deixa apreender no desvio de cada frase. Aquilo que estava excluído a priori retorna e redesenha os contornos do conteúdo e do continente.
Assim, em seu trabalho de releitura da história da filosofia, Derrida, sem dúvida, tomou muito de empréstimo à prática psicanalítica. Ele opera uma curetagem do pensamento, um soerguimento do recalcado, uma revelação do não dito, uma descoberta daquilo que vagava silenciosamente nas paragens dos textos, o que se mostra muito próximo do processo psicanalítico em si mesmo.4 Lacan nos exortava a "ouvir o dizer atrás do que se ouve". (Lacan, [1972] 2000, p. 449). De maneira concreta, isso tem como resultado retirar o sujeito das boas razões, das convicções, das escusas do texto de seu romance familiar para confrontá-lo com o real de seu gozo, com sua repetição sintomática, com aquilo que insiste e que ele se recusa, no entanto, a assumir.
Além disso, a liberdade de seu estilo de escrita, sua maneira de captar a homofonia significante no âmago dos conceitos, o estabelecimento de paralelos entre universos referenciais divergentes, tudo o que forma a riqueza jubilatória da criatividade derridiana não se inscreve no golpe aplicado na lógica do terceiro excluído e no princípio de não contradição aos quais nos autoriza a ciência que se esforça para escutar com rigor aquilo que se joga para cada sujeito no crisol de seus sonhos? Em suma, a desconstrução derridiana, como prática conceitual, como estilo de pensamento, como descentramento da linearidade discursiva, pode ser vista como herdeira direta da psicanálise. A psicanálise, assim como a desconstrução, só avança aos tropeços, a partir do rébus e do enigma daquilo que se recusa ao unívoco ou mesmo ao a priori. O desejo só se revela por clarões, por saltos, de banda. Portanto, não há desconstrução sem inconsciente.
Os se-dutores
No entanto, o movimento aberto pelo encaminhamento da desconstrução não se detém com deferência na soleira da descoberta freudiana. Esse movimento abarca em seu ímpeto os próprios textos analíticos para submetê-los à sua modalidade questionante. Se a obra de Derrida não é concebível sem a descoberta do inconsciente, sem idas e vindas no interior dos textos metapsicológicos, sem as trajetórias próprias às pulsões, ela nos aponta também a necessidade de desconstruir a própria teoria psicanalítica.
Com efeito, as abordagens freudo-lacanianas, por mais revolucionárias que tenham sido, continuam inscritas, segundo Derrida, na história da metafísica ocidental. Ainda que Freud identifique as manifestações do inconsciente para onerar toda unidade pensante e para mostrar como a libido desloca o domínio do sujeito; ainda que Lacan faça um retorno a Freud por intermédio do significante para se destacar de toda consistência imaginária e reconduzir a práxis à sua margem subversiva; em um caso como no outro, de acordo com a leitura derridiana, não se deixa de estar, ainda e sempre, atrelados ao triunfo da voz e da presença para si esquecida da escritura.
Além disso, desde seus primórdios, a psicanálise não é uma "talking cure"5? Entrar em análise, não é, antes de tudo, prestar-se a um tratamento pela fala? Não se dá aí a palavra, como se mantém uma promessa? Promessa de dizer tudo o que vem ao espírito sem se censurar. Percorrer o desfile dos significantes, não é, a cada vez, prestar lealdade à ordem simbólica e às leis da linguagem, bem como à sua movimentação pelo viés do significante dos significantes, a saber, o falo?
A clínica psicanalítica, nosso cotidiano na instituição e no consultório, não é senão elocução contrariada, sonhos narrados, frases suspendidas, lapsos nos quais uma palavra vem em lugar de outra, interpretações a suscitar o mal-entendido. E quando o silêncio ressoa no tratamento é sempre para melhor dar ouvidos à fala. Se o analista se cala, é para retirar o Eu da vacuidade de seu blá-blá-blá, do vazio de sua reformulação, a fim de que advenha o desejo do sujeito do inconsciente. Se o analisante fala, repete, repassa, é para ouvir os significantes que nomearão seu desejo. De ambos os lados do divã, do silêncio às palavras: "função e campo da fala e da linguagem". (Lacan, [1953] 1966).
Assim, sobre o campo de ruínas da Razão provocadas pelas deflagrações da descoberta freudiana, não deixa de dançar um Logos triunfante. Ora, nesse tempo do a posteriori, da recordação e do esquecimento, a mulher permanece como "um continente negro".6 Nesse espaço do fragmento, do detrito e do resto, o falo da antifilosofia não cessa de lançar suas redes simbólicas em torno do desejo.
Entendida nesse sentido, sistematicamente inserida na "influência da associação de palavras", tomada na "ordem da linguagem" e "suas leis simbólicas", encantoada entre mulher e falo, entre silêncio e fala, a psicanálise escapa dificilmente da acusação de "falogocentrismo". Esse colosso com pés de barro estrutura o pensamento ocidental desde Platão. A escritura derridiana não cessa de empreender infinitos desvios, de cavar incontáveis sulcos a fim de desconcertá-lo. Tal palavra-valise interroga: é preciso sempre que uma reflexão se erija?; por que o sentido deveria se desenvolver segundo uma linha reta, sustentada, orientada para a verdade?; e em que medida essa via, rígida e rigorosa, contribui para a exclusão das diferenças sob a unificação do mesmo?
No Ocidente, "de Sócrates e Freud e além", o homem grita. De medo de que lhe cortemos um pedaço, ele segura a escarradeira. A escritura derridiana, por sua vez, quer-se feminina. Ela recusa a ordenação do pensamento sob o jugo da presença a si mesma da voz. Essa voz, esse pensamento, essa presença a si, essa crença na verdade são, para Derrida, apenas ilusões dos filósofos, aqueles a quem se denominaria, de bom grado (e segundo uma etimologia latina relativa), de maus se-dutores: ao pé da letra, homens que conduzem a seu modo o conceito, abusando dele (se-ducere), apertam-no com suas elucubrações para que ele não fuja. Dedicar-se à escritura desconstrutiva é desarticular a grosseria inquieta do raciocínio, zombar de sua arrogância intimidante e propor outras modalidades de fazer sentido.
Também, segundo Derrida (1978, p. 44), "a escritura seria a mulher". Essa qualificação não deve, decerto, ser compreendida como uma essencialização diferencialista. Ela não deve ser posta do lado de uma escritura radicalmente feminina. Muito pelo contrário. Ela debocha da seriedade do pensamento psicanalítico que demanda às mulheres que permaneçam como mistério, ausência, vazio, falta ou véu. (Irigaray, 1974).
Relação em suspenso com a castração: não com a verdade da castração, na qual a mulher não crê, nem com a verdade como castração, nem com a verdade-castração. A verdade-castração é justamente o afazer do homem, o afazimento [l'affairement] masculino que nunca é suficientemente velho, suficientemente cético nem dissimulado, e que, em sua credulidade, em sua tolice (sempre sexual e que se dá a si mesma, na ocasião, a representação da mestria experta), castra-se de secretar o engodo da verdade-castração (É nesse ponto que seria necessário interrogar - descaroçar- o desdobramento metafórico do véu: da verdade que fala, da castração e do falogocentrismo no discurso lacaniano, por exemplo). (Irigaray, 1974, p. 47).
Nessa longa citação, Derrida vincula, de maneira bem explícita, a psicanálise ao falogocentrismo. Com esse conceito, ele não critica apenas a ilusão de um pensamento pensante. Ele esvazia não apenas as certezas pensantes, mas muitos outros engodos. Ele não apenas desperta os simulacros e os espectros para fazer tremer os bem-pensantes. Repontuar a história do pensamento, reescrevê-la para fazê-la balbuciar, tem implicações que concernem a uma renovação da feminilidade. Tal feminilidade não tem nada ver com algum eterno feminino. Derrida deseja que a história possa se reescrever para que os sem-nome nela tenham lugar, para que aquelas e aqueles que foram postas(os) em silêncio, amordaçadas(os) à força pela voz do sentido e da razão, redesenhem os contornos dos combates a serem travados. A perspectiva assim delineada se propõe como um feminismo renovado. Um feminismo assim concerne à prática psicanalítica tanto quanto possível.
Desconstruir a clínica?
Insistamos nesse paradoxo: ainda que o percurso derridiano se valha dos instrumentos psicanalíticos, ainda que se aproprie deles, ainda que utilize as engrenagens próprias à técnica analítica, esse percurso não cessa tampouco de descentrá-los, de contrariar seus subentendidos. A cada texto, Derrida remarca como o desejo analítico permanece tributário da voz de um sujeito presente a si mesmo, prisioneiro de um pensamento falocêntrico.
Desconstruir a psicanálise significa não destruí-la, mas abrir-lhe um campo de reflexões inéditas. Se não levar em conta a precedência da escritura sobre a voz, do rastro sobre o passo, das margens sobre o centro, a teoria arrisca reconduzir depressa demais, e apesar de si mesma, aquilo que ela supunha ter desarmado: a coerência de uma ordem, a certeza consciente, a presença para si de um sujeito. Dito de outro modo, a desconstrução evita que a psicanálise atole em uma metafísica da presença. Reler o texto psicanalítico à luz da différance é suspender, ao colocá-las em questão, suas certezas e pressuposições.
Isso vale em especial no campo das representações em matéria de gênero e de sexualidades. Em poucas palavras, para retomar a figura empregada por Derrida (1992, p. 95-115) em uma entrevista sobre a relação que a desconstrução mantém com o feminismo, os(as) clínicos(as) têm de tentar novas "coreografias".
Retomando as posições que desenvolvia em Eperons, Derrida insiste nesse texto para que as reivindicações sobre o lugar das mulheres não se esgotem nos movimentos paritários que, embora necessários, não bastam para inventar novos passos de dança e correm o risco de reproduzir as lógicas binárias, diferencialistas e mesmo fetichistas entre homens e mulheres. O falogocentrismo não ganhará nada por se mudar em ginecentrismo.
Por outro lado, pergunta o autor ao final do diálogo:
[...] e se atingíssemos aqui [...] a zona de uma relação com o outro em que o código das marcas sexuais não seria mais discriminante? Relação desde então não assexuada, muito longe disso, mas sexuada de outro modo, para além da diferença binária que governa a comodidade de todos os códigos, para além da oposição feminino/masculino, para além da bissexualidade também, da homossexualidade ou da heterossexualidade, o que dá no mesmo. É sonhando salvar pelo menos a chance dessa questão que eu gostaria de crer na multiplicidade de vozes sexuais marcadas, nesse número indeterminável de vozes emaranhadas, nesse móbile de marcas sexuais não identificadas cuja coreografia pode se dar sobre o corpo de cada 'indivíduo', atravessá-lo, dividi-lo, multiplicá-lo, seja ele classificado como 'homem' ou 'mulher' segundo os critérios em uso. [...] O desejo permanece por escapar à combinatória única e por inventar coreografias incalculáveis. (Derrida, 1992, p. 114-115).
Derrida insiste no fato de que esse sonho é para ser inscrito do lado não da utopia, mas no da abertura de novas configurações de sentido.
Como a psicanálise pode se valer desse sonho? Como sua prática da fala pode, segundo a etimologia da palavra, passar por uma escritura de novos coros, de novos grupos (khoreia-graphein)? Notemos que, para Derrida, não se trata de defender um retorno a um ideal qualquer de completude, nem de obturar, graças à multiplicação de gêneros e sexos, a incompletude de nossos corpos. Trata-se, antes, de não limitar a abordagem da psique a partir do binarismo hierarquizante em que se implica a diferença dos sexos como avatar dos dualismos próprios à história da filosofia.
A saída do falogocentrismo passa, portanto, por uma atenção voltada para a libido sexual tal como o próprio Freud (1905) podia desenvolvê-la em seus Três ensaios. Mas ao se levar em consideração essa libido e sua polimorfia não se pode deixar de fazer uma releitura dos a priori que configuram sua própria teorização. Eis aqui novamente o paradoxo da desconstrução derridiana (inteiramente) contra Freud e Lacan.
Certamente, Derrida se mantém no campo da teoria, da metapsicologia. Mas os(as) clínicos(as) que leem esses textos hoje podem retirar daí consequências para suas práticas. Aquelas e aqueles que se ocupam da loucura, da desrazão, do delírio e dos sonhos no cotidiano têm muito a ganhar ao tomar um tempo para o desvio derridiano. Este se pratica como uma possibilidade de reinventar os passos e as balizas que orientam a prática. Ou seja: guardar os aspectos corrosivos do inconsciente. Tornar a dourar o brasão do equívoco. Tocar no íntimo, no mais singular. Deslocar o império das normas sobre a clínica. Assumir a incidência política do ato analítico.
Não se trata, evidentemente, de editar manuais de psicopatologia ou inventar quadros diagnósticos a partir dos textos derridianos. O grande filósofo foi prevenido a ponto de não dar conselhos aos sucessores de Freud na matéria. Em contrapartida, sua maneira de 'des-articular' a inscrição da psicanálise no coração da metafísica ocidental ao acentuar seu vínculo com o falogocentrismo nos permite pensar nossa prática clínica não somente em suas implicações singulares no caso a caso, mas também suas repercussões políticas. Passar por Derrida para não mais confundir metafísica e metapsicologia corresponde a ousar se perguntar não apenas o que não cessa de não se escrever em nossos consultórios, mas também o que se escreve a partir dos nossos consultórios: no fim das contas, quais gestos, quais amores, quais formas de amizade, quais tipos de corpos, que tipo de família e de amor nós encorajamos?
Em que medida nossa prática pode não se submeter ao falogocentrismo? Como manter presente no espírito a recordação de que o encontro clínico não está aí para fixar as coisas e os seres, mas para relançar devires e metamorfoses do ser? Sem dúvida, ao descentrar as evidências orientadas, as certezas repetidas quanto ao que faz e distingue a masculinidade e a feminilidade, a heterossexualidade e a homossexualidade. Isso nos leva a esvaziar a heteronormatividade de nossos comportamentos, de nossos settings, de nossas anotações e de nossos casos clínicos, bem como de nossas intervenções no tratamento e fora dele. Não se trata tanto de que o analista não seja explicitamente LGBT-fóbico. Trata-se sobretudo de se inquietar com a soma de preconceitos dos analistas crescidos, educados, analisados a grandes golpes de pensamento straight,7 para retomar o título da obra de Monique Wittig (2001).
Queerizar o que não cessa de não se escrever
Na esteira de Derrida e de Foucault, as teorias queer desconstruíram o gênero e a binaridade dos sexos. Quebrando as referências fálicas, elas ressignificaram o ser homem e mulher. Elas fizeram valer pluralidades inéditas: novas nominações. Aqui, ainda, devir e não mais ser.
Rapidamente, a própria sigla LGBT (para lésbica, gay, bi, trans) não mais foi suficiente para dar conta das variações no campo das identidades sexuais. Outras letras iam sendo acrescentadas, Q para queer, I para intersexos, + +. O arco-íris das diversidades seria tão mais cintilante quanto mais os trabalhos teóricos e os engajamentos práticos recolocassem em causa as binaridades sociais, naturais, o repertório sexual. No campo dos corpos e das sexualidades, dos prazeres e dos textos, se imporia então um esforço de complexificação, de pluralização. Uma escritura de si ilimitada.
A ética é uma dança extenuante: musculamos as contradições, suportamos as tensões, levamos a suavidade ao extremo. Sem dúvida, algumas subjetividades podem valsear tranquilamente ao ronronar dos acordes vienenses. Ligeiras, elas evoluem ao passo cadenciado de um ritmo antiquado. Mas essas danças de salão não convêm a todo mundo. Hoje é necessário fazer alongamentos teóricos e clínicos para acolher os balés em todos os gêneros. Prestar atenção ao modo como as danças evoluem nas paragens dos textos freudianos e lacanianos consiste em mostrar como as coreografias das minorias não cessam de reinventar o passo do tratamento.
Mas Lacan não havia antecipado os desenvolvimentos do pensamento derridiano e dos queers? Não se aproxima ele particularmente de Derrida, ao barrar o artigo definido que designa A mulher para indicar um tipo de gozo suplementar com relação ao gozo fálico? A partir da invenção do objeto a8 e das tábuas da sexuação, não se valia Lacan de toda a perspectiva desconstrutivista? A sessão lacaniana não é aberta à singularidade do ritmo de cada um? Talvez.
No entanto, em sua tábua da sexuação, Lacan enquadrou os dois sexos. Ele chega, assim, a quatro fórmulas da sexuação que se repartem em um lado homem e um lado mulher. Ler Derrida com Lacan nos convida, na perspectiva queer que é a nossa, a multiplicar essa tábua da sexuação. Para se assegurar de estar fora do risco do pertencimento à metafísica da presença e para se precaver contra todas as essencializações binárias que dela decorrem é importante se inquietar com o deslizamento inevitável que uma tábua como essa implica: deslizamento do biológico ao simbólico e, em seguida, ao real. Perceber um pouco da justeza dos ritmos próprios às cadências dos sujeitos contemporâneos envolve pluralizar essas fórmulas, a escrevê-las sob o signo do infinito. A clínica contemporânea precisa seguir a escritura das sexuações queer e queerizar "o que não cessa de não se escrever". (Lacan, [1972-1973] 1975, p. 87). Partir do real dos gozos para além da distribuição binária é rever nossos a priori sobre a maneira como os corpos se vivem, se dizem e se escrevem.
Através das multiplicidades dos modos de gozo, o rigor da tábua aristotélica (da qual Lacan deduzira a sua) se pulveriza. O quadrado lógico se faz irrepresentável. As contingências corporais se veem ali fixadas e, portanto, impedidas de exprimir, cada uma a sua maneira, o ratear do sexual. Desse modo, se continuaria a "recorrer ao não todo, ou seja, aos impasses da lógica". (Lacan, [1972-1973] 1975, p. 87). É nesses impasses que se urde a escritura derridiana. Foge-se do mito das ficções dualistas para "fazer fixão outra do real". (Lacan, [1972-1973] 1975, p. 87). Para cada um, tenta-se enfrentar "o impossível que o fixa pela estrutura da linguagem. É também traçar a via pela qual se reencontra em cada discurso o real em que ele se enrola, e reenviar os mitos pelos quais ele se suplementa ordinariamente". (Lacan, [1972] 2000, p. 479).
O que isso quer dizer, precisamente? Que o trabalho de análise do gozo, saído da marcação de nossos corpos pela linguagem, desconstrói-se através dos movimentos de deriva abertos pela escritura derridiana. Que a espessura homofônica nos convide a renovar o sentido da letra. Que o fixar-se no dualismo da diferença nos precipite para o lado da ficção, cultural mas infundada, mais que para o lado da fixão em que se fixa a detenção do sentido próprio a cada um. Em O aturdito, Lacan recorda ainda que "dois" [deux] é equívoco: ele pode se ouvir e se escrever "deles" [d'eux]. (Lacan, [1972] 2000, p. 491).
Passar do "dois" [deux] ao "deles" [d'eux]. Quem são esses "deles" [d'eux]? E como rateiam na relação sexual? Em 1996, quando de sua primeira vinda à França em um colóquio internacional sobre "os estudos gays e lésbicos", Eve Kosofsky Sedgwick propôs uma definição das políticas queer. Ela relatava nessa ocasião "a diversidade das dimensões individuais que a identidade sexual é suposta organizar em um todo unívoco e sem falha". (Sedgwick, 1998, p. 115, grifos nossos). Agregar o queer é assumir a insensatez que faz ecoar sistematicamente a univocidade compacta da totalidade. Dito de outro modo, trata-se de se amarrar ao não-todo. Despojamo-nos, desse modo, das representações clássicas do sujeito, para apreender a constituição movente e plural de nossas subjetividades. A desconstrução derridiana da psicanálise encontra um terreno de inscrição concreto no campo das vidas queer.
Ela nos ajuda a abraçar "isso a que se poderia se referir o termo queer:
[...] as faltas ou os excessos de sentido quando os elementos constitutivos do gênero e da sexualidade de alguém não se restringem (ou não podem se restringir) a significações monolíticas". (Sedgwick, 1998, p. 115).
Os monolitos não se desfazem apenas por emprestarmos os ouvidos ao equívoco significante. É preciso levar em conta o jogo da escritura: "dois" [deux] se tornando "deles" [d'eux].
As aventuras e as experiências políticas, linguísticas, epistemológicas, figurativas vividas por aqueles e aquelas entre nós que amam se definir (entre tantas outras possibilidades) como lésbicas femininas e agressivas, bichas místicas(os), fantasistas, drag-queens e drag-kings, clones, couros, mulheres em smoking, mulheres feministas ou homens feministas, masturbadores(as), loucas, divas, snap!, viris submissos, mitômanos(as), transexuais, wanna-be, tias, caminhoneiras, homens que se definem como lésbicas, lésbicas que se deitam com homens... e também todos os que são capazes de amá-los(as), de aprender "deles" [d'eux]. (Sedgwick, 1998, p. 115, grifos nossos).
Esse inventário não dá consistência a nenhum rosto. A seu modo, ele renova, com a plasticidade pulsional, a polimorfia da sexualidade freudiana. Consciente da irredutibilidade e da incompletude, ele se desvia daquilo que é escondido pelo "dois" [deux], para ouvir os dizeres em todos os gêneros que vêm "deles" [d'eux]. E o que "não cessa de não se escrever" se revela decifrável através do movimento aberto pela différance.
Ao apagar a diferença dos sexos, "como no limite do mar um rosto de areia" (Foucault, [1966] 1990, p. 572), não se põe de lado, com uma virada de mão, o motor da psicanálise. Pelo contrário. Os clarões dos corpos continuam a brilhar à luz da impossibilidade da relação. Eros e Tânatos não cessam de se abraçar. Nesses lugares, flutuam nebulosas complexas onde ninguém está ao abrigo de hesitações, ambiguidades e enigmas. Os redemoinhos rompem as certezas. As ondas arrastam o que deve ser e o que é legítimo no movimento perpétuo de sua ressaca. O sentido submerge no Real. Os gozos irrompem. E, no horizonte, surge o desejo. Tal margem está sempre em evolução. Seus contornos reclamam uma perpétua reproblematização.
A borda nunca é um lugar de repouso completo. Ela nunca forma linha indivisível. É na borda que se colocam sempre os mais disruptivos problemas de topologia. Onde se colocaria o problema de topologia se não na borda? Seria alguma vez necessário se inquietar quanto à borda se ela formasse uma linha indivisível? Ademais, uma borda não é propriamente um lugar. Quanto ao que aí se passa, entre lugares, é sempre arriscado, em particular para o historiador, atribuir-lhe o ter lugar de um evento determinável. (Derrida, 1992, p. 100).
Sim, a desconstrução convida a psicanálise a dobrar a borda!9φ
Referências
DERRIDA, J. Chorégraphie. In: ______. Points de suspension. Paris: Galilée, 1992. p. 95-115. [ Links ]
DERRIDA, J. Eperons. Les styles de Nietzsche. Paris: Champs Flammarion, 1978. [ Links ]
DERRIDA, J. Être juste avec Freud. In: ______. Résistances de la psychanalyse. Paris: Champs Flammarion, 1992. [ Links ]
FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines (1966). Paris: France Loisir, 1990. [ Links ]
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LACAN, J. Fonction et champ de la parole et du langage (1953). In: ______. Écrits. Paris: Seuil, 1966. [ Links ]
LACAN, J. L'étourdit (1972). In: ______. Autres écrits. Paris: Seuil, 2000. [ Links ]
LACAN, J. Le séminaire, livre XX: Encore (1972-1973). Paris: Seuil, 1975. [ Links ]
SEDGWICK, E. K. Construire des significations queer. In: ______. Les études gay et lesbiennes. Colloque du centre Georges-Pompidou, 23 et 27 juin 1997. Paris: Centre Georges-Pompidou, 1998. [ Links ]
WITTIG, M. La Pensée straight (1981). Paris: Balland, 2001. [ Links ]
Recebido em: 01/03/2021
Aprovado em: 24/09/2021
1. As ocorrências são numerosas demais para que se possa listá-las exaustivamente. Recordemos a minima: Derrida, J. Freud et la scène de l'écriture. In: ______. L'écriture et la différence. Paris: Seuil, 1966; La carte postale de Socrate à Freud et au-delà. Paris: Flammarion, 1980; Résistances de la psychanalyse. Paris: Galilée, 1996; Etats d'âme de la psychanalyse. Adresse aux Etats Généraux de la Psychanalyse. Paris: Galilée, 2000.
2. A perspectiva queer passa, notadamente, pelo trabalho de Judith Butler, Teresa de Lauretis e Eve K. Sedgwick. Desde o início dos anos 1990, essas três autoras, na linha do trabalho de Monique Wittig em La pensée straight, abriram um campo de discussões à altura da tarefa de refletir de modo renovado sobre a relação entre corpos, poder e linguagem. Essas teorias renovaram as perspectivas feministas a partir da French Theory, à qual são associados os nomes de Derrida e de Lacan desde o célebre colóquio "fundador", de 1966, na Johns Hopkins University, em Baltimore. Quanto a isso, ver François Cusset, French Theory. Foucault, Derrida, Deleuze & Cie et les mutations de la vie intellectuelle aux États-Unis, Paris, La Découverte, 2005. Sobre a relação de "filiação" entre Derrida e as teorias queer nos Estados Unidos, ver: Berger, Anne-Emmanuelle. Le Grand Théâtre du Genre. Identités, sexualités et féminisme en Amérique. Paris: Belin, 2013. Sobre as relações entre teorias queer e psicanálise, ver: Saez, Javier. Théorie queer et psychanalyse. Paris: EPEL, 2005 e Bourlez, F. Queer psychanalyse. Clinique mineure et déconstructions du genre. Paris: Hermann, 2018.
3. Neste ponto, notemos que o trabalho de Deleuze e Guattari constitui também uma baliza decisiva. Ver DELEUZE, G.; GUATTARI, F. L'anti-Œdipe, capitalisme et schizophrénie I. Paris: Minuit, 1970.
4. Sobre as proximidades entre a perspectiva psicanalítica e o trabalho da desconstrução, remetemos ao excelente trabalho de Alfandary, Isabelle. Derrida-Lacan. L'écriture entre psychanalyse et déconstruction, Paris: Hermann, 2016.
5. Segundo a expressão da célebre paciente de Joseph Breuer, Anna O., ou Bertha Pappenheim, seu verdadeiro nome.
6. Ver FREUD, S. La vie sexuelle. Paris: PUF, 1969.
7. O pensamento straight constitui o a priori¸ o quadro reflexivo não questionado, no interior do qual todos os questionamentos se inscrevem. De operador distintivo biológico, Wittig faz da diferença (hétero) sexual uma categoria política. Nesse quadro, sua recusa da psicanálise é total. "Nossa recusa da interpretação totalizante da psicanálise faz dizer que negligenciamos a dimensão simbólica. Esses discursos falam de nós e pretendem dizer a verdade sobre nós em um campo apolítico como se nada daquilo que significa pudesse escapar ao político e como se pudessem existir, no que nos concerne, signos politicamente insignificantes". (Wittig, [1981] 2001, p. 45). Parece-nos que a leitura que Butler propõe entre Lacan, Foucault, Derrida e Wittig permite desconstruir tal recusa da psicanálise. Ver Butler, J. Le féminisme et la subversion de l'identité. Paris: La Découverte, 2015.
8. Isabelle Alfandary sublinha a proximidade entre a designação do objeto lacaniano, como real fora de sentido, e o a da différance.
9. No original: "Oui, la déconstruction invite la psychanalyse à virer de bord!". A expressão "virer de bord", oriunda do campo semântico da navegação, tem o sentido figurado de mudar de campo, de orientação ou de partido, mais ou menos como em português se diz "virar a casaca". (NT).