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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.43 no.82 Belo Horizonte jul./dez. 2021

 

PSICANÁLISE E CULTURA

 

O encontro entre as epistemologias freudiana e frankfurtiana: bases para a construção do conhecimento crítico

 

The encounter between freudian and frankfurt epistemologies: bases for the construction of critical knowledge

 

 

Ana Paula Paes de Paula

Professora titular da FACE-CEPEAD-UFMG. E-mail: appp.ufmg@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo evidencia características da epistemologia freudiana, em particular seu acolhimento do erro e o esclarecimento que realiza da dinâmica psíquica da ideologia, para em seguida mostrar os pontos de cruzamento entre essa epistemologia e a frankfurtiana na construção do conhecimento crítico. O objetivo é salientar que a epistemologia freudiana é intrinsecamente constitutiva da epistemologia frankfurtiana e revelar o modo como a compreensão da teoria crítica passa por uma leitura atenta da metapsicologia e da epistemologia freudianas, recorrendo principalmente aos trabalhos de Paul-Laurent Assoun, Hilton Japiassu e Sérgio Rouanet.

Palavras-chave: Epistemologia freudiana, Teoria crítica, Escola de Frankfurt.


ABSTRACT

This article highlights characteristics of Freudian epistemology, in particular its acceptance of error and the clarification it realizes of the psychic dynamics of ideology, to then point out the points of intersection between this epistemology and the Frankfurt one in the cons-truction of critical knowledge. The objective is to point out that Freudian epistemology is intrinsically constitutive of Frankfurtian epistemology, revealing that the way in which the understanding of critical theory goes through a careful reading of Freudian metapsychology and epistemology, using mainly the works of Paul-Laurent Assoun, Hilton Japiassu and Sérgio Rouanet.

Keywords: Freudian epistemology, Critical theory, Frankfurt School.


 

 

Neste artigo, busco evidenciar as características da epistemologia freudiana, em particular seu acolhimento do erro e o esclarecimento que realiza da dinâmica psíquica da ideologia, para em seguida mostrar os pontos de cruzamento entre essa epistemologia e a frankfurtiana na construção do conhecimento crítico.

O objetivo é não só salientar que a epistemologia freudiana é intrinsecamente constitutiva da epistemologia frankfurtia-na, mas também revelar o modo como a compreensão da teoria crítica passa por uma leitura atenta da metapsicologia e epistemologia freudiana. Para isso, recorro principalmente aos trabalhos de Paul-Laurent Assoun, Hilton Japiassu e Sérgio Rouanet.

Tanto Paul-Laurent Assoun quanto Hilton Japiassu insistem em dizer que a epistemologia freudiana se caracteriza por um monismo radical, não admitindo um dualismo, o que significa que Sigmund Freud recusa a separação entre alma e corpo, entre inorgânico e orgânico e entre ciências da natureza e ciências do espírito, que para ele estariam fortemente relacionadas.

Assim, no trabalho de constituição da metapsicologia, que é o cerne da identidade epistêmica freudiana, não se descartam as referências à física e à química, com destaque para o princípio da conservação da energia, que inspira Sigmund Freud quanto ao funcionamento do aparelho psíquico no Projeto para uma psicologia científica, de 1895.

Nesse trabalho, Freud faz uma demonstração emblemática de como se aprofunda no modelo de psiquismo, do qual deriva sua primeira tópica (pré-consciente, consciente e inconsciente) e deixa claro que não há como tratar do fenômeno senão aliando suas características naturais, como a circulação da energia no aparelho psíquico, à própria linguagem, que remete ao simbolismo e torna as ações humanas sujeitas à interpretação.

Assim, enquanto ciência que estuda os processos inconscientes, a psicanálise freudiana também faz apelos à filosofia na constituição de sua metapsicologia, evocando a teoria kantiana sobre o conhecimento. Ao abordar o inconsciente, a psicanálise freudiana trata do incognoscível, que coloca em questão o seu materialismo, dando lugar a um agnosticismo vigilante. Para ir além desse agnosticismo, Sigmund Freud se desloca para a constituição de uma metapsicologia que possa codificar o estudo dos processos inconscientes.

Digna de nota ainda é a influência exercida por Ernst Mach (1905) com sua obra Conhecimento e erro, que faz um passeio especulativo pelo pensamento, sem descartar a ciência, apontando o caráter provisório do saber. A passagem de Sigmund Freud por Ernst Mach constitui uma etapa da construção de seu edifício epistemológico, que evidencia sua maneira de pensar.

Freud se opõe à ciência tradicional, que concebe uma totalidade do mundo a partir de alguns conceitos fundamentais constituindo um sistema acabado, e propõe a ciência da psicanálise, que é sempre inacabada e pronta a retificar ou modificar suas teorias

Para Paul-Laurent Assoun (1983), a tradição epistemológica que penetra a metapsicologia freudiana consiste em uma construção fundada no trabalho constante de imaginação científica, que adapta pensamentos a pensamentos (aspecto especulativo), mas os correlaciona com a investigação do material experimental (adaptação dos pensamentos aos fatos).

A metapsicologia constituída por Freud se organiza em dois eixos: o espaço e o tempo. No que se refere ao espaço, há as tópicas freudianas e no que se refere ao tempo, emergem os problemas da dinâmica, que, para além da topologia, envolve o campo de forças que se estabelece na psique e explica o funcionamento do recalque.

Além desses dois eixos, há a dimensão econômica, que sustenta a teoria da libido, tratando a tendência do aparelho psíquico de manter tão baixa quanto possível a quantidade de excitação nele presente (princípio da inércia), ou pelo menos mantê-la constante (princípio da constância), tendo em vista o gerenciamento do prazer.

Para Hilton Japiassu (1998), o modelo de psiquismo de Sigmund Freud tem todas as características de um modelo científico, porém a realidade ou a verdade do psiquismo não é suscetível de verificação, uma vez que o imediato vivido nos é inacessível.

Tudo que o psicanalista tem a sua disposição é o relato do seu paciente, cujo sentido só é apreensível por meio de uma interpretação que seja aceita por esse paciente e que ainda esbarra na dificuldade de haver a hipótese de uma interpretação negada devido à resistência do próprio paciente, condição que, inclusive, é muito comum nas neuroses.

Assim, para Japiassu (1998), diante de um saber que não tem condições de ser verificado ou falsificado objetivamente, o que existe são os seguintes critérios: a verossimilhança da interpretação e sua possibilidade de integrar os fenômenos a serem explicados. Ou seja, as interpretações são colocadas e, caso sejam aceitas ou capazes de vencer as resistências do paciente, podemos dizer que são válidas.

A interpretação nunca tem o estatuto de uma verdade definitiva e, para ser eficaz, necessita ser "verdadeira" de uma certa forma. Em outras palavras, uma interpretação que não faz sentido em um contexto não está necessariamente errada, pois pode fazer sentido em outro contexto, com adaptações.

Essa proposta de Sigmund Freud trata de outra lógica de pensamento que é bastante adequada para tratar os fenômenos humanos e sociais, dada a sua dinâmica e contingência. Aliás, nas ciências sociais, quando trabalhamos no registro da hermenêutica, podemos dizer que os critérios apontados por Hilton Japiassu também são válidos.

Paul-Laurent Assoun sustenta que o fato de a psicanálise freudiana não ser susceptível de verificação e validação empírica é justamente aquilo que a diferencia. Assim, as ciências sociais atualmente oscilam entre dois modelos: o positivista (explicativo) e o interpretativo (compreensivo). (Dosse, [1995] 2003).

O modelo interpretativo tem suas inter-relações com a psicanálise, inclusive há um esforço dos hermeneutas (Assoun, 1983) para evidenciar que a interpretação é uma variante da explicação. No entanto, não podemos deixar de lado a perspectiva dialética, que não se esgota nas relações de causalidade, pois tem como ingredientes principais as relações de contraditoriedade, que também têm uma forte presença na psicanálise.

Em outras palavras, não basta explicar, interpretar e compreender, pois uma epistemologia crítica envolve principalmente a dialética, ou seja, é preciso admitir, como Sigmund Freud fez muitas vezes, que os fenômenos são isto e aquilo ao mesmo tempo.

A autonomia da identidade epistemológica freudiana transparece, segundo Paul-Laurent Assoun (1983), na técnica utilizada por Sigmund Freud em sua ciência, que é heurística, pois ele não utiliza a perspectiva experimental, ou seja, não recorre às experiências in vivo: confirmar a teoria para Sigmund Freud é revelar materialmente o "vestígio" na estrutura.

Em outras palavras, Sigmund Freud privilegiava o fato isolado - que seria o vestígio - em detrimento das estatísticas generalizantes, e preferia a observação à experimentação.

Paciência, senhoras e senhores! Penso que suas críticas perderam o rumo. É verdade que a psicanálise não pode vangloriar-se de jamais haver-se ocupado de trivialidades. Pelo contrário, o material para sua observação é geralmente proporcionado pelos acontecimentos banais, postos de lado pelas demais ciências como sendo bastante insignificantes - o refugo, poderíamos dizer, do mundo dos fenômenos. [...] Assim sendo, não subestimemos os pequenos indícios: com sua ajuda podemos obter êxito ao seguirmos a pista de algo maior. (Freud, [1915] 1996, p. 36-37).

Podemos dizer que a psicanálise se situa no lugar de cruzamento entre a tópica, a dinâmica e a economia, de modo que é uma construção sempre inacabada e provisória, apontando para um indeterminismo (Birman, 2009) que singulariza sua epistemologia.

Rouanet (1985) afirma que o ineditismo da epistemologia freudiana está na consideração do erro como parte do processo de conhecimento, que imbrica sabido e não sabido e consciência e não consciência. Na raiz do distúrbio econômico (do ponto de vista energético) dessa insatisfação, estaria uma dialética da presença e da ausência, que se manifesta por uma fuga do indivíduo tanto de uma percepção interna ameaçadora, que é a base do recalque, quanto de uma percepção externa traumatizante, ambas geradoras de desprazer.

O sintoma apresentado seria uma manifestação do passado psíquico permanecendo sobre o presente. Assim, o recalque ocorre quando a gratificação de um impulso seria geradora de prazer e desprazer ao mesmo tempo e seu mecanismo é separar a coisa (imagem) de sua representação (palavra), que fica retida no inconsciente. O recalque obedece às exigências da civilização, que se colocam contra os impulsos do indivíduo.

O trabalho da psicanálise seria, então, por meio da associação livre e do trabalho da hermenêutica, restabelecer no indivíduo a consciência das situações vividas, ou seja, fazê-lo perceber o próprio mecanismo do recalque.

O êxito de Sigmund Freud está no fato de colocar lado a lado, dialeticamente, o modelo teórico energetista e a exigência hermenêutica, que a princípio poderiam parecer dimensões incompatíveis. Por outro lado, Sigmund Freud vai além dos interesses técnico (instrumental) e prático (compreensivo), para abranger também um interesse emancipatório.

Para Sérgio Rouanet (2001), o interesse emancipatório, que se expressa no pensamento crítico, se apresenta quando ocorre um erro lógico ou psicológico, pois para identificar o erro o pensamento percorre a cadeia associativa para encontrar as conexões deficientes. O interesse técnico se restringe às vias mais diretas de realização dos atos e o interesse prático amplia a rede associativa do sujeito por meio da compreensão, ou seja, a hermenêutica, mas é o interesse emancipatório que realiza o verdadeiro salto e as necessárias rupturas.

Para além da hermenêutica, a epistemologia freudiana inclui uma forma de pensar que é dialética: partindo de um vestígio, um fato isolado, um erro lógico ou psicológico, uma contradição, ela percorre a cadeia associativa cognitiva até encontrar onde estão as incoerências e atingir uma interpretação que seja uma explicação para isso, ou seja, encontrar um esclarecimento, que é a tônica da emancipação.

É importante notar que a dialética e a crítica se entrelaçam: a forma de pensar, a lógica dialética, é a operação que concretiza a visão de mundo, a emancipação. A operação pode ser chamada de crítica, pois é em um só gesto pensamento e ação, no sentido da práxis: daí dialética e crítica serem tomadas como sinônimos.

Sérgio Rouanet (2001) ainda pontua que o interesse técnico, que é instrumental e busca satisfação, tende a se deter diante de associações desagradáveis, o que não ocorre com o interesse prático e principalmente com o interesse emancipatório, pois estes se colocam em oposição ao princípio do prazer, uma vez que procuram a elucidação, se aproximando mais do princípio da realidade. Além disso, ele acrescenta que o interesse emancipatório, que guia o pensamento crítico, não apenas encontra conexões defeituosas, mas também cria novas conexões. Assim, a psicanálise não apenas se desenvolve por meio do pensamento crítico, como também procura levar essa forma de pensamento para o analisando, como maneira de compreender e enfrentar seus sintomas para superá-los.

Sérgio Rouanet (2001) evidencia que o pensamento freudiano também nos possibilita desvendar a dinâmica psíquica da ideologia. Diante de conexões desagradáveis, a tendência do indivíduo é realizar falsas conexões que sejam mais prazerosas. Surgem, então, alguns mecanismos de defesa, como a racionalização, por meio da qual o indivíduo propõe uma falsa correlação, atribuindo a seus atos motivações psíquicas e socialmente aceitáveis. Há também o isolamento, que consiste em reprimir ou romper as relações associativas.

Outro mecanismo seria a projeção, que falsifica o pensamento na medida em que inverte as relações de causa e efeito, atribuindo por exemplo, um sentimento que é seu a outra pessoa.

Além disso, as formas de funcionamento dos processos psíquicos primários, o deslocamento e a condensação, que consistem em operações do inconsciente, também atuam falsificando o pensamento. Dessa forma, o que ocorre é que o Eu abre uma via para que essa gramática privada - a gramática do inconsciente - passe a reger a atividade intelectual.

Para Sérgio Rouanet (2001), o mecanismo do recalque e a operação ideológica têm algo de análogo e ambos passam pelo pensamento crítico para alcançar o nível emancipatório. É exatamente neste ponto que as epistemologias crítica frankfurtiana e freudiana se encontram: onde a operação ideológica e o recalque são análogos, ou seja, onde a cultura e o psiquismo se articulam.

Com os ensaios Totem e tabu ([1913] 1996), Psicologia de grupo e a análise do ego ([1921] 1996), O futuro de uma ilusão ([1927] 1996) e O mal-estar na civilização ([1929-1930] 1996), entre outros escritos, Sigmund Freud ainda vai além, realizando uma crítica sistemática da cultura, que inspirou os frankfurtianos.

Sérgio Rouanet (2001, p. 11) afirma que

[...] o freudismo não é, para a Escola de Frankfurt, uma influência: é uma interioridade constitutiva, que habita seu corpo teórico e permite à teoria crítica pensar seu objeto, pensar-se a si mesma e pensar o próprio freudismo enquanto momento da cultura.

Em outras palavras, o freudismo está incrustrado no pensamento da Escola de Frankfurt. A presença de Sigmund Freud se faz sentir em cada um dos momentos da reflexão frankfurtiana - a crítica da cultura, a teoria da personalidade e o estatuto do conhecimento - mas funciona de forma distinta em cada um dos autores da Escola, caminhando da síntese freudo-marxista dos anos 1920 e 1930 para a epistemologia dialógica de Jürgen Habermas.

Assim, a epistemologia freudiana está incrustrada na epistemologia crítica frankfurtiana. Ambas são dialéticas enquanto forma de pensamento e crítica na sua forma de ver o mundo, considerando que dialética e crítica são uma só operação, pois é a dialética que abre o caminho para a emancipação. Por outro lado, ambas também estão enraizadas no solo do humanismo.

Sérgio Rouanet afirma que o freudismo contribui para a formação da teoria crítica e proporciona elementos para sua crítica da cultura: as afinidades eletivas entre as duas formas de reflexão são tamanhas, que é possível dizer que

[...] a Escola de Frankfurt teria absorvido do freudismo não somente certos instrumentos de análise, como, até certo ponto, o próprio 'estilo' que dá contornos específicos à teoria crítica. (Rouanet, 2001, p. 99).

Os pontos de cruzamento entre epistemologia crítica e epistemologia freudiana envolvem questões epistêmicas, metodológicas e filosóficas.

No plano epistemológico, a intersecção entre o freudismo e a teoria crítica se revela na hostilidade que ambos cultivam em relação ao positivismo. Sérgio Rouanet reconhece que os detratores de Sigmund Freud tentaram propagar a tese de que seu pensamento seria uma continuação do cientificismo do século XIX, que tem de verdadeira, como argumentei anteriormente, o fato de Sigmund Freud ver na psicanálise uma ciência natural.

No entanto, se ater a esse ponto é uma simplificação, pois

[...] toda a démarche psicanalítica é uma interminável refutação, em sua teoria e sua prática, da razão positivista. Ela se opõe, ponto por ponto, à descrição feita por Horkheimer da teoria tradicional. (Rouanet, 2001, p. 101).

O freudismo, assim, decreta a caducidade de dois critérios positivistas: as leis da lógica formal e a verificabilidade.

A questão é que uma

[...] proposição psicanalítica é assim inverificável exatamente como uma proposição formulada pela teoria crítica. (Rouanet, 2001, p. 101).

No plano metodológico, tanto teoria crítica quanto psicanálise procedem de acordo com uma crítica imanente de seu objeto. Sérgio Rouanet (2001) evidencia que a crítica transcendente se opõe à crítica imanente, pois não está interessada no conteúdo de um objeto da cultura (obra de arte ou reflexão filosófica, por exemplo), mas apenas na sua localização no espaço das superestruturas (cultura e ideologia).

A crítica transcendente seria uma espécie de pensamento topológico que situa o objeto, mas não capta sua essência, enquanto a crítica imanente mergulha no objeto, procurando examinar seu conteúdo de verdade, tendo em vista sua interação com o todo. O particular, o vestígio, seria a via através da qual a crítica consegue aceder ao todo.

A crítica imanente também é dialética, pois compreende que precisa se relativizar e buscar as contradições, pois ela própria, apenas como mergulho no objeto, é insuficiente.

A psicanálise é uma manifestação exemplar da crítica imanente, pois ao pensamento topológico de seus antecessores, para quem o sonho, o ato falho, o sintoma e a fantasia nada significam, Sigmund Freud opõe a descoberta de que são dotadas de uma coerência interna, portanto são verdadeiras, independentemente da irracionalidade aparente de seu conteúdo manifesto.

Um sonho não seria, assim, um tecido de ilusões, mas a via real que possibilita o acesso ao inconsciente. Um chiste e um ato falho também são formações do inconsciente. Todas essas formações do inconsciente podem ser desvendadas como conteúdo que contém mentiras e verdades, por meio da psicanálise, com o uso do método da associação livre e da interpretação. Assim, há um paralelismo entre a hermenêutica freudiana e a crítica imanente frankfurtiana. O método consiste em

[...] levar tão a sério o particular - mesmo o mais insignificante - que este acabe falando, e nesta fala revele aquilo que o transcende. (Rouanet, 2001, p. 107).

No plano filosófico, o ponto de cruzamento entre a psicanálise e a teoria crítica é a questão da não identidade. Para Sérgio Rouanet (2001), esse postulado tem capital importância na teoria crítica e em Sigmund Freud assume sua forma mais inflexível: trata-se da tese da impossível reconciliação entre os interesses do indivíduo e os da civilização. Emerge, assim, uma dialética sem síntese, pois no plano terapêutico Sigmund Freud reconhece que não há possibilidade de cura integral e no plano sociológico, condena o indivíduo socializado à renúncia e à repressão. O indivíduo não pode sobreviver no estado de natureza, mas não pode ser feliz no estado social: essa é a chave do mal-estar na civilização. (Freud, [19291930] 1996).

Assim, nem o freudismo, nem a teoria crítica fazem promessas para a felicidade humana, mas ambos partilham de um modesto otimismo, pois afirmam que

[...] o homem não é livre; mas pode tornar-se livre. Não é racional; mas pode tornar-se racional. (Rouanet, 2001, p. 112).

Em síntese, a teoria crítica tem em comum com a psicanálise um pressuposto epistemológico (a recusa do positivismo), uma metodologia (a crítica imanente) e um postulado filosófico (o princípio da não identidade):

Tudo leva a crer que a teoria crítica teria absorvido da psicanálise mais do que seus instrumentos de investigação, e se teria deixado impregnar, talvez involuntariamente, em sua própria essência, por algumas características centrais do pensamento de Freud. Se essa tese é verdadeira, o freudismo teria fornecido à teoria crítica, mais do que algumas de suas características, a sua differentia specifica; o seu próprio estilo, vale dizer, a sua forma de pensar. (Rouanet, 2001, p. 116).

Em outras palavras, partindo de Sérgio Rouanet, arrisco-me a afirmar que um entendimento amplo da epistemologia crítica frankfurtiana não é possível sem um conhecimento aprofundado da epistemologia freudiana. A crítica frankfurtiana da cultura, por exemplo, está completamente enraizada na visão pessimista básica de Sigmund Freud de que a civilização só é possível ao preço da mutilação do homem.

A noção dialética de que a cultura é reflexo da opressão econômica (em Karl Marx) e da dinâmica pulsional (em Sigmund Freud) e ao mesmo tempo promessa de felicidade, ou seja, de um mundo que não seja regido pelo valor de troca e pela repressão pulsional, é, em última análise, uma derivação da crítica freudiana da civilização.

Para Sérgio Rouanet, a teoria crítica é a psicanálise da modernidade, pois toda a crítica frankfurtiana da cultura deriva de duas categorias psicanalíticas: a identificação e a projeção.

Por meio da falsa identificação, integra-se todos os indivíduos no sistema. Nisso também reside o fenômeno da imitação, a mímesis, por meio da qual o indivíduo se assimila à realidade que percebe, ainda que não se identifique totalmente com ela. Através da falsa projeção, o indivíduo expulsa de si sentimentos e desejos que não admite em si mesmo, localizando-os no exterior. O indivíduo, então, constrói uma realidade delirante, se mostrando incapaz de uma reflexão subjetiva que o faria colaborar com a construção do real. Teríamos, assim, o indivíduo que se deixa integrar à cultura dominante (falsa identificação) e que abre mão da sua própria capacidade de criação (falsa projeção).

A falsa identificação e a falsa projeção impedem a autonomia do sujeito e obliteram sua percepção do real. O antídoto para isso seria a crítica, pois assim como a psicanálise, a teoria crítica faz uma rememoração, não só dos vínculos esquecidos, mas principalmente dos conteúdos, tentando recuperar o passado.

Além disso, enquanto a interpretação psicanalítica se preocupa com o recalque, a crítica da cultura se volta para a repressão, pois o recalque é um fenômeno do inconsciente, e a repressão, um fenômeno da sociedade. A crítica da cultura e a interpretação analítica têm em comum lembrar o esquecido e conscientizar o inconsciente.

Em síntese, a epistemologia frankfurtiana e freudiana não supõem somente a descoberta do existente, mas do potencial e das tendências que habitam o sujeito. Trata-se de uma estratégia teórica que privilegia o particular, evitando sua dissolução em "grandes sínteses" e tomando posição em favor da crítica imanente, recusando totalizações em nome do princípio da não identidade, ou, seja, recusando a assimilação irrefletida do sujeito à realidade em que ele vive.φ

 

Referências

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Recebido em: 30/01/2021
Aprovado em: 16/04/2021

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