Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Junguiana
versão impressa ISSN 0103-0825
Junguiana vol.34 no.2 São Paulo dez. 2016
ARTIGOS
Corrupção no Brasil: uma visão da psicologia analítica*
Corruption in Brazil: An Analytical Psychology view
Camila Souza Novaes**
Núcleo de Psicologia da Fundação Lar Harmonia em Salvador, Bahia
RESUMO
Nos últimos anos, a mídia internacional expôs vários escândalos relacionados à corrupção, que demonstraram não só a fragilidade dos sistemas políticos mas também a escala global da corrupção. A corrupção não é apenas um tema da moda, mas um fenômeno global gravíssimo que parece ter peculiaridades entre os países. No Brasil, a corrupção é um problema que oprime a sociedade, mas que parece estar diretamente relacionado à identidade coletiva do brasileiro e, para muitos, ela é intrínseca ao "jeitinho brasileiro".
Apesar de a corrupção ser um assunto de discussão recorrente para diferentes campos de estudo, a maioria das teorias existentes sobre a corrupção é unilateral e parcial. Elas se concentram em apenas uma parte do problema, colocando a responsabilidade ou na falta de moralidade de brasileiros e seus políticos ou na ineficiência do sistema judiciário. A opinião do público leigo é superficial e tende a concluir de maneira projetiva que a corrupção é responsável por todos os problemas do país. A psicologia analítica pode contribuir com novas abordagens para o estudo do fenômeno da corrupção. Aplicando valores psicoterapêuticos a questões políticas, esta pesquisa pode vir a ajudar psicoterapeutas a abrir um caminho de duas vias entre "realidades internas" e o "mundo da política", como propõe Andrew Samuels. Propõe-se aqui um olhar mais atento para a relação entre a realidade interna do povo brasileiro e o mundo da política no Brasil, particularmente a corrupção brasileira.
O objetivo deste artigo é analisar a corrupção em seus três diferentes (mas complementares) níveis: individual, cultural e coletivo. Discutimos os complexos culturais brasileiros e traumas culturais que já foram identificados por junguianos brasileiros e que possam estar relacionados ao atual cenário político-social do país, especialmente a versão brasileira do arquétipo do trickster (que parece estar oprimindo a psique brasileira) e o complexo cultural do malandro, que não foi ainda analisado em detalhe. Argumenta-se também que a corrupção política deve ser vista não apenas como um ato egoísta de um indivíduo, mas de forma mais ampla, como um construto social e também como algo relacionado à corrupção da própria natureza humana.
Palavras-chave: Corrupção, complexo cultural, trauma cultural, malandro, bem e mal.
ABSTRACT
In recent years, international media has exposed several corruption-related scandals, which have shown not only the fragility of political systems but also the global scale of corruption. Corruption is more than a trending topic, it is a global phenomenon with severe consequences that seems to have particular distinctions from country to country. For example, in Brazil, corruption is a widespread and a pressing social problem that seems to be directly connected with the Brazilian collective identity and, for many, is intrinsic to the "Brazilian way" (jeitinho brasileiro).
Although corruption has been a matter of discussion for many different fields of study, most existing theories of corruption are unilateral and partial as they focus on just a part of the problem, placing the responsibility on either the lack of morality of Brazilians and their politicians, or on the inefficiency of the judicial system. People's opinion and current interpretive theories are superficial and tend to conclude that corruption is responsible for all social problems in Brazil. Analytical Psychology can contribute with new approaches to the study of the corruption phenomenon. By applying psychotherapeutic values to political issues, I believe this research can help psychotherapists to open a two-way path between "inner realities" and the "world of politics" as Andrew Samuels proposes. This research proposes a closer look at the relationship between the "inner reality" of the Brazilian people and the "world of politics" in Brazil, particularly focusing on Brazilian corruption.
The objective of this research is to analyse corruption in its three different but complementary levels: individual, cultural and archetypal. I discuss the Brazilian cultural complexes and cultural traumasthat were alreadyidentified by Brazilian Jungians and that might be related to the current social-political scenario of the country. I argue that one of those complexes has not been completely identified yet: the Brazilian version of the trickster archetype that seems to be opressing the Brazilian psyche, the cultural complex malandro. I also argue that political corruption must be seen not only as a selfish act of an individual, but more broadly, as a social construct and also as something related to the corruption of human nature itself.
Keywords: corruption, cultural complex, cultural trauma, trickster, good and evil.
1. Introdução
A corrupção é um fenômeno global. Ouvese falar todos os dias sobre corrupção nos jornais e nas ruas. A corrupção foi considerada o problema número 1 do Brasil em pesquisa do Instituto Datafolha (MENDONÇA, 2015). Além disso, "a corrupção é o problema global mais frequentemente discutido do mundo", na frente de mudança climática, pobreza extrema e fome, desemprego e custos de alimentos e energia (SCOTT, 2009). A corrupção ameaça a segurança e o modo de viver de cidadãos no mundo todo. A corrupção custa vidas, especialmente quando alguém morre por falta de medicação ou atendimento porque um político corrupto desviou o dinheiro de um hospital público.
O Código Penal Brasileiro (Lei 2.848/1940) subdivide a corrupção em dois tipos: ativa e passiva. Corrupção ativa (Art. 333) é definida como "oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício". Corrupção passiva (Art. 317) é definida como:
solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.
Em ambos os crimes, a pena é de prisão de dois a doze anos e multa.
O fenômeno da corrupção é um tema de atualidade óbvia. Entretanto, poucos psicólogos escreveram de maneira aprofundada sobre o assunto, não chegando nem a uma dúzia. Apenas um texto aborda a corrupção do ponto de vista da psicologia analítica: o capítulo Corrupção, sintoma de um complexo cultural no Brasil?, de Denise Ramos (2004). A análise subjetiva da corrupção parece quase ignorada, de modo que relevantes questões psicológicas subjacentes ao fenômeno permanecem sem resposta. Além de um problema político, o que seria a corrupção sob o ponto de vista do inconsciente? Seria ela uma doença, um sintoma? A mídia muitas vezes se refere à corrupção como um câncer na sociedade brasileira. Entretanto essa é uma metáfora extremamente negativa, afinal, diante do cenário atual desse fenômeno no país, o "paciente Brasil" estaria em estágio avançado de câncer, possivelmente uma metástase. Sobraria pouca esperança e futuro diante de um diagnóstico terrível como esse.
A descoberta do inconsciente trouxe consigo uma tremenda revolução de valores. Erich Neumann (1990) fez "a primeira tentativa notável de apresentar os problemas éticos suscitados pela descoberta do inconsciente" (JUNG, 2000, v. 18, par. 1420). Alarmado com os efeitos terríveis das guerras mundiais, Neumann propõe uma distinção entre a velha ética e a nova ética. A velha ética é baseada na oposição entre bem e mal, luz e escuridão – uma concepção dualista do mundo. Com origem religiosa judaico-cristã e grega, a velha ética tem uma tendência ascética e persegue uma perfeição ilusória, reprimindo o lado escuro. Para Jung, buscar a perfeição é legítimo e inato ao homem, uma peculiaridade que fornece à civilização suas raízes mais fortes. No entanto, o homem "é obrigado a suportar, por assim dizer, o oposto do que intenciona, em benefício da sua inteireza" (JUNG, 1982, v. 9/2, par. 123), o que, durante a guerra, mostrou ter resultados catastróficos.
Neumann propõe uma nova atitude para com o mal, pois a velha ética estava se deteriorando e revelou-se insuficiente para resolver o problema moral do homem moderno. A nova ética de Neumann pressupõe um indivíduo que é moral dentro dos padrões da velha ética, mas vai mais longe: seu objetivo não é a perfeição, mas a totalidade. Ele substitui a antiga oposição entre o bem e o mal, com a integração da sombra. A perfeição não contém o que não foi aceito pelo ego, mas a totalidade abarca a imperfeição da sombra. Jung endossa a opinião de Neumann, dizendo que "a integração da personalidade é inconcebível sem a relação responsável, ou seja, moral das partes entre si" (JUNG, 2000, v. 18, par. 1412). Jung afirmou ainda que:
[...] a sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. (1982, v. 9/2, par. 14)
O processo de individuação é um desafio ético, que exige comprometimento para consigo mesmo e também para com a norma coletiva. "A união entre consciência e inconsciente, ou seja, o processo de individuação, [...] é o cerne do problema ético" (JUNG, 2000, v. 18, par. 1419).
Este artigo é estruturado em definições, causas e consequências da corrupção sob a perspectiva da psicologia analítica, em seus três diferentes (mas complementares) níveis do inconsciente: individual, cultural e coletivo.
2. Nível individual da corrupção
2.1. Definições
A corrupção pode ser descrita como um "comportamento desviante" das normas legais e valores morais, "que se manifesta sob a forma de um abuso de função na política, sociedade ou economia em favor de outra pessoa ou instituição" (RABL, 2008, p. 25). Se refere a processos de decisão em situações de dilemas éticos e também a estratégias de justificativa que os indivíduos corruptos utilizam. Por exemplo, o indivíduo corrupto pode optar por um suborno para fechar um negócio difícil ou para sair de uma dificuldade financeira. Nessas situações, o indivíduo tende a evitar lidar com a própria incompetência ou sentimento de inferioridade – uma fuga dos próprios conteúdos inconscientes desagradáveis. Do ponto de vista da psicologia analítica, a corrupção pode ser compreendida no indivíduo corrupto como um mecanismo de defesa contra os efeitos maléficos da sombra. Seria apenas uma maneira fácil e preguiçosa de resolver os problemas. Nesse nível de análise, a corrupção está relacionada a características individuais da personalidade, um ato egoísta de um indivíduo.
2.2. Causas
A corrupção representa uma tendência arquetípica do ego a inflação e transgressão de regras sociais em detrimento do interesse coletivo. Ela parece nascer de uma insatisfação do ego consigo mesmo, com sua inferioridade. O ato da corrupção requer uma sensação de imenso poder de maneira a justificar o enorme desejo por ganho pessoal por meio da transgressão de regras. O indivíduo corrupto coloca as suas necessidades acima da sociedade inteira, desconsiderando as consequências da sua ganância. Identificado com o Self, o indivíduo corrupto parece não ter limites. Quando um ato de corrupção é perpetrado, não há comprometimento com o bem-estar da nação ou mesmo com o "amor ao próximo". Corrupção é um ato hedonista, no qual o ter (seja dinheiro ou poder) é colocado acima do ser.
O político corrupto parece se considerar como um deus. Ele rouba, pois se acha superior às outras pessoas.
No campo da política, o líder político que inflou sua personalidade através da identificação com o seu ofício ou que sente que representa a vontade coletiva experimenta um sentimento de confiança, onipotência e megalomania que beira o divino. (ODAJNYK, 2007, p. 22)
Indivíduos corruptos parecem não fazer nenhum esforço para a "nova ética". Para eles, o que importa é a obtenção de mais poder ou dinheiro, independentemente dos meios, mesmo que seja de forma destrutiva – Ashforth e Anand (2003) utilizam o termo "corrupção suicida". Parece não haver limites para a ganância. Na tentativa de ser como deuses, os políticos enganam apenas a si mesmos. Jung afirma: "[...] quem engana os outros engana a si mesmo, e vice-versa. Não se consegue nada com isso, muito menos a integração da sombra" (JUNG, 2000, v.18, par. 1414).
Quando a corrupção se torna um comportamento padrão, uma inversão moral significativa ocorre. Ashforth e Anand chamaram esse processo de "normalização da corrupção" e descreveram-no como a forma por meio da qual os atos de corrupção se tornam
incorporados nas estruturas e processos da organização, internalizados pelos membros da organização como admissível e até mesmo como comportamento desejável, e repassados para as gerações seguintes de membros. (ASHFORTH; ANAND, 2003, p. 1)
O modelo de normalização de Ashforth e Anand é uma tentativa de explicação de como indivíduos honestos se envolvem em corrupção sem experimentar conflitos. Esse modelo pode nos ajudar a entender a corrupção como um processo psíquico.
A racionalização, um dos elementos da normalização, seria "o processo pelo qual os indivíduos que se envolvem em atos de corrupção utilizam narrativas socialmente construídas para legitimar os atos aos seus próprios olhos" (ibid., p. 3). Os autores acreditam que uma compartimentalização de identidades é responsável pela separação entre atos de corrupção praticados por um indivíduo no contexto de uma organização e sua exibição de moralidade fora dela. Segundo os autores, uma pessoa que mesmo em circunstâncias normais é considerada ética pode ser influenciada por e agir em conformidade com o que é esperado dela em um ambiente corrupto por conta da transmissão de valores. Essa compartimentalização auxilia esses indivíduos a se envolverem em corrupção sem experimentar conflitos. Em uma visão junguiana do que os autores sugeriram, podemos dizer que diferentes personas estão sendo utilizadas pelo mesmo indivíduo em diferentes contextos e, além disso, que as personas estão em oposição: a persona do corrupto e a persona ética.
2.3. Consequências
Ashforth e Anand (ibid., p. 5) destacam que os criminosos de colarinho branco são considerados indivíduos psicologicamente normais. Entretanto, eles afirmam que "indivíduos corruptos tendem a não se ver como corruptos". Ao negar tal rotulação, esses indivíduos "evitam os efeitos adversos de uma identidade social indesejável" (ibid., p. 15). Em uma interpretação junguiana, dois lados da personalidade do indivíduo corrupto parecem se desenvolver de maneira terrivelmente distante, evidenciada pelo fato de que
a maioria dos indivíduos envolvidos em atos de corrupção tende a não abandonar os valores que a sociedade defende; eles continuam a valorizar a justiça, honestidade, integridade e assim por diante, mesmo quando eles se envolvem em corrupção. (ibid., p. 15)
Essa é uma dissociação neurótica, pois está relacionada a uma "discrepância entre a atitude consciente e a tendência inconsciente" (JUNG, 1988, v. 16, par. 26).
Os indivíduos corruptos vivem em uma dissociação, como Dr. Jekyll e Mr. Hyde. No entanto, esses estados são vividos dentro da percepção de normalidade. O indivíduo corrupto pode ser um pai amoroso, um vizinho atencioso ou mesmo religioso fervoroso (ASHFORTH; ANAND, 2003, p. 3). Em políticos, esse lado pode ser extremamente carismático, derivado de uma personalidade mana. Entretanto, o político corrupto tem também um sósia maléfico dentro de si. A corrupção revela uma dissociação neurótica diante de um dilema ético. É um mecanismo de defesa contra o lado negro do mal da personalidade e representa uma recusa à individuação enquanto realização moral.
A individuação é um processo consciente de diferenciação das normas coletivas, nas quais é preciso construir um caminho individual para o desenvolvimento da personalidade. Até certo ponto, isso está na verdade em oposição às normas coletivas, no entanto, seguir apenas as próprias normas é individualismo, não individuação. O individualismo é, segundo Jung, "patológico e hostil à vida", uma vez que entra em conflito com a norma coletiva. "Individualismo significa acentuar e dar ênfase deliberada a supostas peculiaridades, em oposição a considerações e obrigações coletivas." No entanto, o objetivo da individuação é tornar-se uma unidade indivisível, um "todo" em uma relação ótima com a sociedade:
Individuação significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social. (JUNG, 1981, v. 7, par. 267)
As características individualistas e narcísicas do sujeito corrupto coincidem com a projeção da sociedade de não-conformidade com a norma social. A sociedade usa seus políticos para reafirmar sua própria integridade e honestidade. Existe uma enorme recusa por parte dos cidadãos em reconhecer que o lado desprezível que veem nos políticos também faz parte das próprias sombras. Talvez essa ruptura seja iniciada exatamente pela culpa e vergonha (JACOBY, 1996). Indivíduos corruptos parecem estar distanciados de seus próprios processos de individuação pessoal, pois eles estão identificados com a sombra coletiva do mal projetado sobre eles. Ser pego pode ser uma maneira de sair desse processo e também um alívio. Mas quando confrontados com a sua culpa e a vergonha da exposição pública, eles têm a oportunidade de voltar para o caminho pessoal da individuação. Segundo John Beebe (1992, p. 67), a vergonha pode ser um caminho para a cura, mas apenas se vivida com integridade.
A corrupção tem como consequência uma atrofia da personalidade individual, pois os políticos corruptos servem a um propósito coletivo de projeção do nosso mal e deixam de viver os próprios processos de individuação. Quando seus atos vêm a público pela mídia, surge a vergonha e a culpa de terem pecado. Metaforicamente, eles morderam a maçã podre da corrupção e foram expulsos do paraíso fiscal.
3. Nível cultural da corrupção
Freud e Jung fizeram diversas análises de fenômenos sociais ao longo das suas obras. Jung foi particularmente influenciado pela Völkerpsychologie, a psicologia do povo, de Wilhelm Wundt. Foi uma teoria que obteve relativo sucesso até ser associada ao nazismo (SHAMDASANI, 2003). As análises psicológicas de acontecimentos sociais de Jung foram bastante polêmicas. Os junguianos precisam se perguntar se a psicologia junguiana está de fato preparada para fazer análise de culturas. Será que nós podemos utilizar a psicologia individual para explicar fenômenos sociais? Ou seja, seria possível analisar um grupo, uma cultura, como se fosse um indivíduo, fazendo uma simples transposição de conceitos (LU, 2013)? A antropomorfização de culturas e/ou países é extremamente complexa e tem de ser feita com cautela. Muitos junguianos têm feito essa transposição de teorias sem o devido cuidado e colocando o Brasil no divã. Se assumirmos que o Brasil é um paciente, estaríamos prontos para falar sobre a individuação de países? Como seria isso?
Para falar de características subjetivas de um grupo, tem-se que considerar um terceiro nível de inconsciente – na verdade, uma faixa de elementos intermediária entre o inconsciente pessoal e o coletivo –, que seria o inconsciente cultural. Joseph Henderson é tido como um dos primeiros a falar sobre isso (SINGER, 2012), na década de 1960. Entretanto foi um brasileiro, chamado Arthur Ramos, que lançou esse conceito na década de 1930, influenciado pelas ideias de Jung (ARAÚJO, 2002). Só que ele o chamou de inconsciente folclórico. Essas três camadas do inconsciente permitem uma análise do fenômeno da corrupção sob o ponto de vista subjetivo, que escapa às outras ciências.
3.1. Definições
A relação que um indivíduo tem com a corrupção não é a mesma se ele vive em um lugar onde a corrupção é endêmica ou se vive em um lugar onde a corrupção está sob controle. A corrupção é, então, relativa: varia de acordo com o tempo e o espaço. Ou seja, o que era considerado um favor no passado hoje pode ser tido como corrupção. O que é corrupção aqui pode não ser em outro país. Nesse nível de análise, a corrupção é um construto social.
Porque os brasileiros se queixam tanto da corrupção? Ouvimos diariamente frases como: "O brasileiro é corrupto"; "Só podia ser no Brasil"; "Isso é culpa do jeitinho brasileiro". Os brasileiros são mesmo corruptos? Somos imorais? Antes de respondermos essas perguntas, precisamos pensar no que é ser brasileiro. Todas as características que podem vir à mente ao nos questionarmos não necessariamente estão ligadas a ser corrupto. Muitas pessoas até ligam o jeitinho brasileiro à corrupção, mas essa é uma conexão que pode ser injusta. Roberto DaMatta (1986) define jeitinho como um "modo de navegação social", "um modo de satisfazer nossas vontades e desejos, mesmo que isso vá de encontro às normas do bom senso e da coletividade em geral". Só que o jeitinho brasileiro não serve apenas para passar a perna nos outros. O jeitinho é também o que está por detrás da expressão "onde come um, comem dois". É jeitinho para sobreviver, que está ligado à capacidade de resiliência do brasileiro diante da fome, da pobreza e da falta de recursos (NOVAES, 2016).
3.2. Causas
Diversos autores junguianos têm se debruçado sobre as questões sociais do Brasil, examinando a "alma brasileira" (BOECHAT, 2014; GAMBINI, 2000, 2004; BRIZA, 2006). Entretanto, essa expressão tem sido utilizada com significados diferentes entre os autores: psique coletiva brasileira, inconsciente cultural brasileiro e Self grupal do Brasil.
O conceito que os junguianos estão utilizando atualmente para se referir a fenômenos sociais é o de complexo cultural, que se refere a
[...] um agregado emocionalmente carregado de memórias históricas, emoções, ideias, imagens e comportamentos que tendem a se agrupar em torno de um núcleo arquetípico que vive na psique de um grupo e é compartilhado por indivíduos dentro de um coletivo identificado. (SINGER, 2012, p. 5)
Nós poderíamos, então, dizer que as causas da corrupção na nossa cultura estão ligadas à constelação de complexos culturais. Como Jung afirma que na origem de um complexo está um trauma (1991, v. 8, par. 204), outra causa da corrupção estaria, então, nos traumas coletivos sofridos pelos brasileiros ao longo da história. E uma terceira causa estaria no tipo psicológico do Brasil, como veremos adiante.
Alguns junguianos brasileiros já fizeram o diagnóstico de alguns complexos culturais do Brasil. Eles relacionaram esses complexos a diferentes problemas brasileiros, porém todos eles estão relacionados ao problema da corrupção. Vejamos alguns exemplos.
Segundo Boechat (2014, p. 72), somos "um país em busca de identidade", pois "a alma brasileira está em processo dinâmico de formação, não é um todo acabado". Segundo Briza (2006), "nosso ego cultural ainda está frágil, está em desenvolvimento". O complexo brasileiro de identidade pode ser representado por uma figura conhecida como gigante adormecido, extraída do nosso hino nacional: "Gigante pela própria natureza [...]. Deitado eternamente em berço esplêndido" (DAMATTA, 1991, p. 3). Essa figura é popularmente associada aos cidadãos brasileiros que permanecem "dormindo", alienados às questões políticas do país. Com dimensões continentais, o Brasil é o quinto país em tamanho e o sétimo em riqueza, mas não se encontra nem perto de alcançar suas potencialidades. O ego coletivo parece muitas vezes se encontrar em um estado letárgico, em contraposição à imagem de força e potencialidade da águia americana ou do tigre asiático, por exemplo.
Os brasileiros possuem um complexo de inferioridade bastante expressivo. Esse complexo foi primeiramente "diagnosticado" por Nelson Rodrigues:
Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos "os maiores" é uma cínica inverdade. (RODRIGUES, 1993, p. 62)
No meio junguiano, esse complexo foi descrito também por Denise Ramos (2004), Byington (2013) e Câmara (2013), que ratificaram a denominação dada por Nelson Rodrigues. O termo vira-lata inspira simplicidade, passividade e pouco valor (CÂMARA, 2013), entretanto ele tem características como resistência e forte instinto de sobrevivência. Outras denominações foram sugeridas (com características similares), como "complexo de cucaracha", por Denise Ramos, e "complexo do sul", por Gustavo Barcellos (2012). Nós compartilhamos esse complexo de inferioridade com outros países da América Latina, mas lá eles ganharam nomes diferentes por conta de suas raízes históricas distintas.
A autoestima dos brasileiros é, em geral, baixa, o que nos faz acreditar que não podemos nem competir com países ricos. Uma visão estereotipada de nós mesmos faz com que vejamos apenas características negativas: inércia, alienação, desonestidade, incompetência, individualismo e outras até piores (RAMOS, 2004), o que levou Nelson Rodrigues a cunhar a célebre frase: o brasileiro é "um narciso às avessas, que cospe na própria imagem" (1993, p. 60). Mas temos diversos aspectos positivos também: persistência, união, alegria, hospitalidade, criatividade, entre outras. Entretanto, o brasileiro oscila entre orgulho e vergonha de ser brasileiro, de ser quem é.
O complexo de inferioridade se mistura ao complexo racial no Brasil. O vira-lata é um cão sem pedigree, uma mistura de raças. Assim é o brasileiro, que muitas vezes carrega a própria miscigenação como estigma. Não há democracia racial no Brasil, entretanto o brasileiro não se reconhece como racista. O preconceito dos brasileiros é bastante peculiar, pois é disfarçado. Um dos pesquisadores que diagnosticou esse complexo cultural foi Walter Boechat (2012), que o chamou de "racismo cordial", assim como Roberto Leal (2009), que falou em "arquétipo do mestiço". Por exemplo, no Brasil ainda se vive uma realidade onde se tem (um ou mais) empregados domésticos em casa, um resquício dos tempos da escravidão. Trabalhamos demais para sustentar um modo de vida que não é realidade em nenhum país desenvolvido. A gente não faz, contrata alguém para fazer, pois a mão de obra é barata, apesar de desqualificada. As disparidades sociais ainda são muito grandes no Brasil.
Os brasileiros ainda se veem como um país do futuro, um puer. Comparado à "velha Europa", o Brasil é realmente um país jovem, no auge de sua adolescência. Segundo Briza (2006), "nosso país ainda não fez sua efetiva passagem para a fase adulta" e vive ainda em um estágio de dimensões mágicas, pois o "povo pede soluções e transformações mágicas". A imaturidade política do Brasil reflete esse complexo de puer. Entretanto, o velho rabugento, o senex, tem dado sinais de que começa a surgir na consciência dos brasileiros, pois as reclamações sobre a situação política do país têm crescido ultimamente. Mas será que é preciso perder a alegria para se tornar civilizado?
De civilizado, o trickster não tem nada. Ele é o trapaceiro, palhaço e pregador de peças. Ele representa uma expressão de tendências psíquicas inconscientes comuns a toda humanidade, referentes à mudança na ordem existente das coisas, confusão, brincadeira, dissimulação, caos, desordem, enganação, esperteza, comunicação e movimento. Características similares são encontradas em figuras do imaginário brasileiro, como o Saci-Pererê, Zé Carioca, Macunaíma, Boto-Cor-de-Rosa, Zé Pelintra, malandro e Didi Mocó.
O trickster brasileiro, o malandro, seria semelhante a Wotan para os alemães. Jung (1993, v. 10) apresentou o arquétipo de Wotan para descrever um fenômeno que estava oprimindo a Alemanha. Entretanto, essa não parece ser a melhor denominação para tal fenômeno. Se, por um lado, o conceito "constelação do arquétipo" e toda sua força e numinosidade justificam a sua aplicação, a ideia de que Wotan é específico da cultura alemã (não podendo se manifestar da mesma maneira no Brasil, portanto) inviabiliza sua denominação como arquétipo. Wotan poderia ser hoje qualificado como complexo cultural. A malandragem brasileira é uma expressão cultural local típica do arquétipo universal do trickster.
Tom Jobim descreveu o Brasil de uma maneira que se perpetuou ao longo dos anos: "O Brasil é de cabeça para baixo e, se você disser que é de cabeça para baixo, eles o põem de cabeça para baixo, para você ver que está de cabeça para cima". É esse aspecto do trickster que explica o fato de o segundo deputado federal mais votado no país ter sido um palhaço semianalfabeto, o Tiririca. O complexo cultural do malandro foi constelado como uma defesa contra a opressão (dos portugueses, da burocracia e da pobreza). Entretanto, a malandragem não é um sinônimo de corrupção, pois o trickster não é imoral ou criminoso (SAMUELS, 2004); ele apenas age sem consequências por pura inconsciência. Só que o trickster não gosta de trabalhar e no Brasil ele se tornou malandro profissional: o do colarinho branco.
Boechat chega a descrever brevemente o malandro brasileiro, apesar de não chamá-lo especificamente de complexo cultural. "O malandro aparece como num espectro que oscila desde o psicopata perigoso até personagens extremamente positivos" (2014, p. 13).
O trickster pode ser visto também como metáfora para analisar o sistema político. Andrew Samuels afirma que a política precisa de "ingenuidade, improvisação, flexibilidade, quebrar regras, ver as coisas de um modo diferente, fazer as coisas de um modo diferente, não ser rígida e estar aberta para mudanças" (2001, p. 93), características do trickster. Para Helena Bassil-Morozow (2015), o trickster é a solução para sistemas políticos muito rígidos, como na União Soviética. Aí está a "pegadinha do malandro": essas soluções não se aplicam ao Brasil! Nosso sistema já tem flexibilidade e improvisação demais! Temos, então, que ver o trickster como a possibilidade de mudança, de virar o jogo. No nosso caso, isso significa trazer mais organização ao que é caótico, mas sem perder a nossa alegria, nossa brasilidade. O brasileiro tem uma grande capacidade de encontrar soluções criativas para os problemas do dia a dia, mas falta aplicar isso à política de maneira produtiva.
A segunda causa está ligada aos traumas culturais brasileiros, que tiveram efeitos dissociativos na psique brasileira. É possível identificar pelo menos quatro principais traumas no Brasil ao longo de sua história: a colonização (ou melhor, sua invasão pelos portugueses), a escravidão, a ditadura e a opressão da pobreza e da fome. Traumas culturais são como narrativas-fantasmas, que ecoam negativamente nas gerações seguintes.
A terceira causa está ligada ao tipo psicológico brasileiro – uma generalização necessária aqui. Assim como Jung diagnosticou que o tipo psicológico dos alemães é predominantemente o pensamento introvertido e que o dos suíços é predominantemente a sensação introvertida, é possível deduzir que o tipo psicológico dos brasileiros é predominantemente o sentimento extrovertido, como também afirmou Denise Ramos (2004). Sérgio Buarque de Holanda (2004) há muito tempo diagnosticou essa característica em nós, ao afirmar que "o brasileiro é cordial". Cordial, nesse caso, não se refere à polidez do brasileiro, mas sim ao tom emocional de suas relações. O brasileiro demonstra hospitalidade, generosidade e afabilidade nas relações, mesmo nos negócios, entretanto abusa de seu sistema de relações pessoais. O brasileiro cordial age com o coração, mas não gosta de seguir regras. Isso aparece no nepotismo, por exemplo. Embora amigável, o brasileiro pode ser extremamente frio. Assim ele consegue fechar os olhos para as diferenças sociais. Segundo Von Franz (2007), o indivíduo que tem o pensamento introvertido como função inferior não gosta de pensar, especialmente filosofar, e é depreciativo: seu pensamento é negativo e rude.
3.3. Consequências
As consequências da corrupção no nível cultural são um profundo enraizamento do fenômeno na cultura brasileira, que desestimula os brasileiros a lutarem por um bem comum. Pior: vê-se características de passividade, entretanto o povo acaba fazendo o que quer para obter benefícios. Os complexos e traumas coletivos tendem a ameaçar a coerência do Self grupal devido à pouca idade e imaturidade da nação.
4. Nível coletivo da corrupção1
Segundo Dion (2010, p. 246), a "corrupção não é só um construto social, mas uma parte integral da própria cultura humana". De maneira semelhante, Rabl afirma que a
corrupção, de uma forma ou de outra, esteve presente ao longo da história. Ela pode ser encontrada em todo lugar, em todas as sociedades e todos sistemas econômicos, mesmo que mudem as manifestações, as frequências, os ní veis hierárquicos e as influências culturais. (RABL, 2008, p. 17)
Essas características coletivas da corrupção apontam para tendências arquetípicas. Nesse nível de análise, a corrupção política está ligada à corrupção da própria natureza humana. Focaremos aqui na relação da corrupção com o bem e o mal, opostos absolutos que não podem ser relativizados culturalmente.
O papel do mal na psique foi extensamente examinado por Jung, especialmente por meio do conceito de opostos. Para ele, o bem e o mal são conceitos inefáveis e atemporais. Consequentemente, ninguém sabe o que eles realmente são, mas nós os reconhecemos abstratamente. Entendemos esses conceitos apenas em comparação a certos padrões em determinados lugares – "O que ao nosso povo parece mal pode ser considerado bom por outro povo", diz Jung sobre o caráter aparente relativo do bem e do mal (1993, v. 10, par. 862). Mesmo considerando o bem e o mal como princípios que resultam de julgamento ético, ele também os concebe nas suas raízes ontológicas, como aspectos de Deus e que contêm um caráter numinoso. O bem e o mal são supraordenados, portanto maiores do que um único ser humano. Nesse sentido, o bem e o mal não são relativos. A corrupção não é muito diferente de qualquer outro mal causado pelo ser humano, é apenas uma expressão particular do mal. Os brasileiros pensam estar falando mal deste ou daquele partido, quando na verdade estão falando do mal que existe dentro deles mesmos, dentro de cada ser humano.
Considerando a teoria dos opostos de Jung, podemos utilizar o oposto da corrupção para tentar compreendê-la. Entre seus antônimos estão: honestidade, moral, ética, pureza, integridade, consciência moral. Dentre esses, focaremos dois: integridade e consciência moral.
John Beebe (1992) deu à integridade um status maior dentro da psicologia analítica, colocando-a como objetivo moral a ser alcançado pelo indivíduo, de maneira semelhante ao processo de individuação. A integridade seria, então, mais que um movimento em direção à totalidade; seria, antes, um movimento em direção à totalidade moral (moral wholeness). O conceito de integridade é complexo e contém diferentes elementos, como:
Responsabilidade, retidão, ficar de pé, intocado, intacto, completude, perfeição, honestidade, obrigação moral, prazer, harmonia psicológica interna, continuidade, eros psicológico e ético, sinceridade, castidade, virgindade, obediência, consciência moral, prudência, pureza, constância, amabilidade e santidade. (ibid., 1992)
Podemos acrescentar a essa lista mais alguns elementos que também estão relacionados à integridade: o todo, a unidade, a coerência, a veracidade, o não violado, sem danos. A maioria desses elementos pode ser encontrada em sua caracterização oposta na ideia de corrupção: irresponsabilidade, vergonha, maculação, fragmentação, putrefação, ruptura, completude, imperfeição, desonestidade, imoralidade, dissociação, dolo, violação, inconsciência, assunção de riscos, impureza, maldade e assim por diante.
Segundo Tony Dungy (2011), integridade é a escolha entre o que é conveniente e o que é certo: "Integridade é o que você faz quando ninguém está olhando; é fazer a coisa certa o tempo inteiro, mesmo que isso aja em sua desvantagem". Se compararmos, veremos que corrupção fica no seu extremo, na escolha do que é conveniente para si, mas não do que é certo. A corrupção está, então, relacionada a sucumbência às fraquezas humanas naturais. Condizente, Celia Moore (2009, p. 37) entende que a corrupção pode ser definida como um "processo que perverte a natureza original de um indivíduo ou grupo de um estado mais puro para um menos puro". Para a autora, a corrupção é uma "deterioração moral", assim como uma "perversão ou deterioração da integridade". A tendência à integridade seria então um movimento em oposição a uma tendência à ruptura. Integridade e corrupção teriam, sim, algo de semelhante às pulsões de vida e de morte de Freud ou aos conceitos junguianos de progressão e regressão da libido – entretanto, estaríamos falando de aspectos morais desses conceitos.
A consciência moral, um outro antônimo para a palavra corrupção, foi descrita por Jung como um fator psíquico autônomo (1993, v. 10, par. 842), sendo esse uma forma especial de conhecimento e de consciência (ibid., p. 825). Na versão em português de suas obras completas, a palavra alemã Gewissen foi traduzida como consciência psicológica (conscience, na versão inglesa) para se diferenciar da palavra consciência (Bewusstsein em alemão e consciousness em inglês), que descreve o construto da psicologia que se opõe a inconsciente. Entretanto, o termo consciência psicológica não expressa o caráter moral do conceito, portanto a autora preferiu utilizar a expressão consciência moral. Enquanto em alemão e em inglês a separação entre esses conceitos é bem clara, em línguas latinas não há tal distinção. Essa curiosidade talvez indique que um conceito não pode ser concebido sem o outro, o que pode ser endossado pela descrição de conscience de Murray Stein: "É uma função autônoma da psique e provavelmente é fortemente relacionada com a função inata da consciência de fazer descriminações sobre a realidade" (1995, p. 23).
A consciência moral não pode ser entendida apenas em seu aspecto psicológico, mas também teológico. A consciência moral pode ser entendida como a voz de Deus, um imperativo numinoso. De acordo com Jung (1993, v. 10, par. 835), se considerarmos que existe uma consciência moral "correta", existiria também "[...] uma 'falsa' consciência, que exagera, deturpa e transforma o bem em mal e vice-versa [...]". A corrupção é então o que acontece quando não se ouve a voz da consciência, a voz de Deus, mas a voz do diabo.
5. Conclusão
Como contribuição ao estudo da corrupção do ponto de vista da psicologia junguiana, proponho definições nos três níveis do inconsciente. No nível individual, a corrupção representa uma tendência arquetípica do ego à inflação e transgressão de regras sociais em detrimento do coletivo; um tipo de dissociação neurótica diante de um dilema moral (um conflito com a sombra); e um mecanismo de defesa, mas também uma recusa à individuação enquanto objetivo ético. No nível cultural, representa um sintoma causado por complexos culturais e traumas transgeracionais, além de uma expressão da função inferior coletiva. No nível coletivo, representa uma propensão à ruptura, uma tendência contrária à integridade moral e uma expressão do mal na sociedade.
Os benefícios imediatos da corrupção podem ser facilmente visualizados sob a forma de enriquecimento e poder. Entretanto, a compreensão dos benefícios a longo prazo está ainda por vir. A corrupção é um mal necessário para o amadurecimento da sociedade brasileira, pois revela uma grande crise moral que precisa ser superada. A compreensão das obrigações éticas de cada cidadão requer um processo consciente de desenvolvimento moral.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, F. C. D. Da cultura ao inconsciente cultural: psicologia e diversidade étnica no Brasil contemporâneo. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, v. 22, n. 4, p. 24-33, 2002. [ Links ]
ASHFORTH, B. E.; ANAND, V. The normalization of corruption in organizations. Research in organizational behavior, v. 25, p. 1-52, 2003. [ Links ]
BARCELLOS, G. South and the soul. In: AMEZAGA, P. et al. Listening to Latin America: exploring cultural complexes in Brazil, Chile, Colombia, Mexico, Uruguay and Venezuela. New Orleans: Spring Journal, p. 17-30, 2012. [ Links ]
BASSIL-MOROZOW, H. The trickster and the system. Hove: Routledge, 2015. [ Links ]
BEEBE, J. Integrity in depth. College Station: Texas A&M University Press, 1992. [ Links ]
BOECHAT, W. Cordial racism: race as a cultural complex. In: AMEZAGA, P. et al. Listening to Latin America. New Orleans: Spring Journal, p. 31-50, 2012. [ Links ]
BOECHAT, W. A alma brasileira: luzes e sombra. Petrópolis: Vozes, 2014. [ Links ]
BRIZA, D. H. R. A mutilação da alma brasileira: um estudo arquetípico. São Paulo: Vetor, 2006. [ Links ]
BYINGTON, C. A. B. A identidade brasileira e o complexo de vira-lata. Junguiana, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 71-80, jan-jun 2013. [ Links ]
CÂMARA, E. F. S. Dom Pedro II e a psicologia da identidade brasileira. São Paulo: Sociedade, 2013. [ Links ]
DAMATTA, R. O faz o Brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. [ Links ]
DAMATTA, R. Carnivals, rogues, and heroes: an interpretation of Brazilian dilemma. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1991. [ Links ]
DION, M. Corruption and ethical relativism: what is at stake? Journal of financial crime, v. 17, n. 2, p. 240-250, 2010. [ Links ]
DUNGY, T. Uncommon. Winter Park: Tyndale House Publishers, 2011. [ Links ]
GAMBINI, R. Indian mirror: the making of the Brazilian soul. São Paulo: Axis Mundi – Terceiro Nome, 2000. [ Links ]
GAMBINI, R. A alma ancestral do Brasil. CURSO DE PSICOLOGIA JUNGUIANA, out. 2004. Disponível em: <http://psiquejung.blogspot.co.uk/2004/10/alma-ancestral-do-brasil.html>. Acesso em: 02 abr. 2015. [ Links ]
HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 141-151. [ Links ]
JACOBY, M. Shame and the origins of self-esteem. East Sussex: Routledge, 1996. [ Links ]
JUNG, C. G. Estudos sobre psicologia analítica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1981. (Obras completas, v. 7). [ Links ]
JUNG, C. G. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1982. (Obras completas, v. 9/2). [ Links ]
JUNG, C. G. A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1988. (Obras completas, v. 16). [ Links ]
JUNG, C. G. A dinâmica do inconsciente. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1991. (Obras completas, v. 8). [ Links ]
JUNG, C. G. Psicologia em transição. Petrópolis: Vozes, 1993. (Obras completas, v. 10). [ Links ]
JUNG, C. G. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 2000. (Obras completas, v. 18/2). [ Links ]
JUNG, C. G. The collected works of C. G. Jung: complete digital edition. Princeton: Princeton University Press, 2014. [ Links ]
JUNG, E. (1995). Animus e anima. São Paulo: Cultrix. [ Links ]
LEAL, R. C. Notas sobre a psique brasileira: o arquétipo do mestiço. In: CONGRESO LATINOAMERICANO DE PSICOLOGIA JUNGUIANA. Anales... Santiago: Bachino, M.; Montt, I,. 2009. p. 308-314. [ Links ]
LU, K. Can individual psychology explain social phenomena? An appraisal of the theory of cultural complexes. Psychoanalysis, Culture & Society, v. 14, n. 4, p. 386-404, 2013. [ Links ]
MENDONÇA, R. Pela 1ª vez, corrupção é vista como maior problema do país, diz Datafolha . Folha de São Paulo, 29 de nov. de 2015. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/11/1712475-pela-1-vez-corrupcao-e-vista-como-maior-problema-do-pais.shtml>. Acesso em: 05 mar. 2016. [ Links ]
MOORE, C. Psychological perspectives on organizational corruption. Charlotte: Information Age Publishing, 2009. p. 35-71. [ Links ]
NEUMANN, E. Depth psychology and a new ethic. Boston: Shambhala, 1990. [ Links ]
NOVAES, C. Corrupção e a deturpação do jeitinho brasileiro. Jornal Harmonia, ano XIII, n. 151, jun. 2016. [ Links ]
ODAJNYK, V. W. Jung and politics: the political and social ideas of C. G. Jung. Lincoln: Authors Choice Press, 2007. [ Links ]
RABL, T. Private corruption and its actors. Lengerisch: Pabst Science Publishers, 2008. [ Links ]
RAMOS, D. G. Corruption: symptom of a cultural complex in Brazil? In: SINGER, T.; KIMBLES, S. L. The cultural complex: contemporary Jungian perspectives on psyche and society. Hove and New York: Brunner-Routledge, 2004. p. 102-123. [ Links ]
RODRIGUES, N. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. [ Links ]
SAMUELS, A. Politics on the couch. London: Profile Books, 2001. [ Links ]
SAMUELS, A. The political psyche. Nova York: Routledge, 2004. [ Links ]
SCOTT, J. C. Handling historical comparisons cross-nationally. In: HEIDENHEIMER, A. J.; JOHNSTON, M. Political corruption: concepts & contexts. 3. ed. New Jersey: Transaction Publishers, 2009. [ Links ]
SHAMDASANI, S. Jung and the making of modern psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. [ Links ]
SINGER, T. Introduction. In: AMEZAGA, P. et al. Listening to Latin America. New Orleans: Spring Journal, 2012. p. 1-13. [ Links ]
STEIN, M. Jung on evil. East Sussex: Routledge, 1995. [ Links ]
VON FRANZ, M.-L. A função inferior. In: VON FRANZ, M.-L.; HILLMAN, J. A tipologia de Jung. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 2007. [ Links ]
Endereço para correspondência
Camila Souza Novaes
E-mail: cammys28@hotmail.com
Recebido em: 7/3/2016
Revisão: 16/8/2016
* Material apresentado originalmente em inglês, com o título "Corruption: Brazilian experience and post-Jungian perspective", sob a forma de palestra na conferência "Analysis and activism: social and political contributions of Jungian Psychology", um evento da International Association of Analytical Psychology (IAAP), em Roma, 2015. O tema deste artigo faz parte da tese de doutoramento da autora (em andamento) pela Universidade de Essex na Inglaterra, sob a supervisão de Andrew Samuels.
** Psicoterapeuta junguiana. Doutoranda pela Universidade de Essex na Inglaterra (Departamento de Estudos Psicanalíticos), e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Núcleo de Estudos Junguianos). Coordenadora do Núcleo de Psicologia da Fundação Lar Harmonia em Salvador, na Bahia.
1 Nesse nível do inconsciente, não é possível falar em causas ou consequências, por conta do fenômeno da acausalidade.