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Junguiana
versão impressa ISSN 0103-0825
Junguiana vol.34 no.2 São Paulo dez. 2016
ARTIGOS
Sandplay: conflito e criatividade plasmados na areia
Sandplay: conflict and creativity embodied in the sand
Patrícia Dias Gimenez*
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica
Associação Internacional de Psicologia Analítica
RESUMO
O artigo tem como objetivo refletir sobre a prática clínica do analista que trabalha com imagens, com foco principalmente no sandplay, o "brincar na areia", técnica criada por Dora Kalff na Suíça e trazida ao Brasil por Fátima Salomé Gambini.
A partir de um trecho de uma crônica do escritor brasileiro Rubem Alves, a autora defende a possibilidade e a necessidade de ampliarmos nosso olhar de analistas. O texto ressalta a importância de o analista junguiano exercitar seus "olhos brincalhões" (termo utilizado por Rubem Alves na crônica), isto é: o analista precisa trabalhar para conquistar um olhar amplo e não limitado à necessidade de interpretação imediata do símbolo. Para isso, o analista precisa investir no desenvolvimento da sua capacidade imaginativa e precisa conquistar uma liberdade imaginativa para possibilitar o contato criativo do paciente com suas imagens inconscientes plasmadas na areia.
A autora defende que o analista junguiano que trabalha com imagens, seja com sandplay, barro, pinturas ou no trabalho com sonhos, vive um eterno processo de vir a ser um analista. Ele nunca está pronto, está constantemente em formação, está sempre aprendendo com as imagens.
Palavras-chave: Sandplay, imagem, símbolo, capacidade imaginativa.
ABSTRACT
In this article, the author aims to reflect on the clinical practice of the analyst who works with images, focusing mainly on sandplay, "play in the sand", technique created by Dora Kalff in Switzerland and originally brought to Brazil by Fatima Salome Gambini.
Having a chronicle by Rubem Alves (a Brazilian writer) as starting point, the author defends the possibility and the need to broaden our horizonz as therapists. She emphasizes the importance of doing the exercise of "playful eyes" by Jungian therapists – a term used by Rubem Alves in his chronicle. She highlights that one needs to make an effort to achieve a broad look, instead of remaining limited to the need of the immediate symbol interpretation. For this, the analysts should invest in developing their imaginative capacity and must earn an imaginative freedom in order to enable the creative contact of the patient with his/ her unconscious images embodied in sand.
The author argues that the Jungian therapist who works with images, through sandplay, clay, painting or dreams, experience a never-ending process of becoming a therapist. They are never complete, so, they are in a constant training process, always learning from the images.
Keywords: sandplay, image, symbol, imaginative capacity.
Começo minha reflexão compartilhando um trecho de uma crônica que é minha maior inspiração para a escrita deste artigo:
A complicada arte de ver
Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões – é uma alegria!
Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica.
De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas.
Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro:
'Rosa de água com escamas de cristal' (apud ALVES, 2004). Não, você não está louca.
Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver."
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.
William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê" (apud ALVES, 2004). Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado.
Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra" (apud ALVES, 2004). Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema. Há muitas pessoas de visão perfeita que nada veem.
"Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios" (apud ALVES, 2004), escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido.
Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu:
"Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram" (apud ALVES, 2004).
[…] A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática.
Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas – e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre.
Os olhos não gozam […], mas quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que veem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. […] (RUBEM ALVES)
A meu ver, os olhos de um analista que trabalha com sandplay precisam frequentar muito a caixa de brinquedos, se permitir brincar para possibilitar o brincar na areia. O analista precisa exercitar o "psiquiar", termo forjado por Rafael López-Pedraza, analista junguiano venezuelano, em seu seminário Sobre Eros e Psique (2010), que traz a ideia de gerar movimento psíquico, imaginar, movimentar águas psíquicas…
Comecei a trabalhar com sandplay pouco tempo após ter me formado, em 1993. Meu supervisor (hoje meu colega na SBPA) Rodney Taboada insistia para que eu conhecesse a Fátima Salomé Gambini, a analista brasileira que mais havia se aprofundado no trabalho com sandplay e que viveu um longo processo analítico, com direito a muitas trocas, com a criadora da técnica, Dora Kalff.
Levei algum tempo para procurar a Fátima. Antes disso, explorei por conta própria esse material, me baseando nos livros que havia comprado em São Francisco (ainda não havia nada publicado em português na época), nas trocas com meu analista Antônio Carlos Garcia (que chegou a trabalhar com a "caixa de areia") e nos estudos com uma colega de faculdade que também se interessava por sandplay. Na época, usávamos o termo caixa de areia.
Devorei os livros, comprei uma porção de miniaturas e me pus a atender as crianças, meus primeiros pacientes. Desde o início, no consultório, me propus a trabalhar com a imagem. Não consigo conceber um trabalho totalmente verbal – embora vira e mexe encontre algum paciente que me desafia a viver um processo só verbal. Mas mesmo que use muito pouco, acho sempre importante estimular o contato com a imagem por meio do sandplay, do barro, da aquarela, do giz de cera ou lápis de cor, o que for! Na verdade, busco o material com o qual o paciente sinta maior afinidade. Acho rico, em alguns momentos do processo, buscarmos imagens; tenho com isso a sensação de ir diretamente à fonte.
É claro que, ao trabalhar com sonhos, também estamos trabalhando com a imagem e bebendo da fonte. Mas são processos diferentes e, a meu ver, complementares. Reconhecer a importância de lembrar meu sonho, "pescá-lo" ao amanhecer, anotá-lo (ou desenhar, pintar, esculpir inspirado no sonho) exige uma postura ativa da minha consciência. É um exercício de acolher a imagem.
No sandplay ou quando pintamos, vivemos o exercício de colher a imagem acordados, indo de forma ativa em uma direção complementar ao sonho, em busca desse contato com a fonte, com o inconsciente. É uma busca para estabelecer essa ponte, essa função transcendente. Não entendo nada de engenharia, mas, nas pontes, sempre vejo o processo de construção acontecer a partir dos dois pontos que vão se unir em algum lugar no meio do caminho. Essa parece ser uma boa imagem do trabalho em análise junguiana com sonhos e sandplay.
A biografia de Jung e sua busca nessas duas direções é, para mim, o grande exemplo desse processo de investir nos dois sentidos: acolhendo a produção espontânea do inconsciente ao coletar os sonhos e, por outro lado, buscando essas imagens, exercitando a consciência para mergulhar em imagens inconscientes e trazer tesouros para a terra firme da consciência. Jung viveu tudo isso intensamente, não apenas no âmbito da mente, mas trabalhou literalmente com o corpo e a alma ao esculpir, pintar muito e investir com tanta dedicação no seu altar interior descrito no precioso Livro Vermelho.
Foi o atendimento de uma criança que me inspirou a trabalhar com areia e miniaturas. Antes disso, desde o meu encontro com Anna Barros, minha primeira analista junguiana de verdade, já havia ressuscitado em mim o contato com os pincéis, tintas, barro e lápis de cor que tinha tido a sorte de vivenciar durante toda a minha infância e adolescência. Então, quando comecei a trabalhar no meu consultório, assim que me formei, não tinha como não levar esse material para lá e utilizá-lo com as crianças que começava a atender. Mas justamente a criança que me encorajou a conhecer o sandplay não se interessava por nenhum material artístico. E ela se interessou muito por sandplay. Desde o início, pude perceber a riqueza do material, a facilidade com que as crianças mergulhavam nas imagens na areia e nas histórias que elas lhes inspiravam. As crianças foram minhas mestras no sandplay naquele começo de carreira.
Só depois encontrei a Fátima e pude viver com ela um longo processo. Esse encontro provocou profundas mudanças na minha vida e no meu trabalho.
O que mudou radicalmente para mim naquele encontro com as areias da Fátima foi descobrir a areia como o essencial no processo de sandplay... E a liberdade de brincar, tema tão importante hoje em dia, quando estamos, por um lado, por meio da neurociência, descobrindo a importância do brincar na infância; e, por outro lado, com a educação impedindo as crianças de brincar, obrigando-as a começar precocemente seu desenvolvimento intelectual em detrimento do brincar. Nesses 20 e poucos anos de trabalho na areia, já sinto a diferença na forma de brincar das crianças: não sei se o que atrapalha mais é o excesso de estímulo intelectual precoce, a ação dos iPads, iPhones e afins, ou a falta de espaço/tempo para o livre brincar. Isso é muito triste de se constatar e penso que está diretamente relacionado aos diagnósticos de TDAH e depressões na infância e adolescência.
Tema importante que exige mergulhos mais profundos...
Voltando às areias, quando encontrei a Fátima, estava começando a trabalhar na minha tese de mestrado sobre o uso de sandplay e sonhos em processos de escolha profissional. Foi muito precioso esse aprendizado com ela e suas areias e serei eternamente grata à vida e a ela por esse encontro. Fátima me ensinou na prática, em meu processo, e ela não foi "boazinha" comigo: me confrontava, me desafiava a buscar a minha forma de expressão e reflexão, tanto na vida como na prática com sandplay. Pude tê-la a meu lado durante o processo do mestrado, da minha formação na SBPA, nas minhas gravidezes e partos, na defesa da minha monografia, assim como no primeiro trabalho que me aventurei a apresentar no primeiro congresso latino-americano.
Sou grata porque nunca senti nesse apoio, nesse espaço de reflexão que experimentei com ela, a necessidade de dirigir ou controlar minha forma de viver o sandplay. Minha forma de viver o sandplay é diferente da que ela encontrou para si, assim como cada analista deve encontrar a sua própria forma de vivê-lo para que seja autêntica. Fátima era uma pessoa extremamente introvertida. Ficava muito confortável na sua minúscula sala repleta de miniaturas e relativamente confortável em grupos pequenos e conhecidos. Mas ela não gostava de se expor, de falar em público. Era dentro do seu consultório que falava com a autoridade de quem viveu um mergulho profundo nas areias e na cultura e psique brasileiras. E era extremamente generosa nesse espaço livre e protegido que criou. Sou mesmo muito grata.
Mas desde 2005 não tenho sua companhia para mergulhar nas areias… Ela mergulhou em outra direção. Em um primeiro momento, foi muito dolorido me ver só mas, aos poucos, entendi que deveria seguir meu caminho, viver outros encontros e me apropriar ainda mais da minha experiência para poder trocar, ensinar, aprender...
Agora me dou conta de que foram dois anos vivendo o sandplay sozinha, dez anos em sua companhia e mais 11 anos só novamente. Hoje vivo com meus pacientes o que vivi com Fátima, o que ela me proporcionou: mergulhos em seus processos na areia, em suas imagens plasmadas na areia – a possibilidade de viver seus conflitos na areia e, por meio de um criar contínuo, encontrar caminhos criativos em suas vidas.
Nesse caminhar sozinha, um dos aspectos que mais me inspiram é a percepção de uma tendência a "engessar o olhar" que sinto na psicologia. Na verdade, percebo isso desde a minha formação na faculdade de psicologia. Trabalho com muitos estudantes de psicologia e com psicólogos recém-formados, em análise, supervisão ou grupos de estudo. E percebo neles o mesmo processo que aconteceu comigo – um "engessamento" do olhar: treinados para identificar o que a imagem revela no que se refere à patologia, exercitamos um olhar parcial, que não olha a totalidade e que muitas vezes não conecta a imagem criada e o indivíduo que criou a imagem. Esse pathos que aprendemos na faculdade não é o pathos ao qual James Hillman se refere como possibilidade de trabalho com a alma. Não é o pathos que pode gerar movimento psíquico. Pelo contrário, é o pathos que paralisa, petrifica a alma. É nossa herança da medicina focada na patogênese, na busca do "agente patológico", que absorvemos na formação como psicólogos, e não na salutogênese (gênese da saúde), nas nossas forças de cura e no potencial para a individuação que existe em nosso corpo, alma e espírito. Geralmente, não aprendemos na faculdade a confiar nessas forças de criação, na capacidade de nos reinventarmos, na psique e sua eterna busca circular, vivenciando vida-morte-vida. Paralisamos na polaridade morte por temê-la, por ter tanto medo de errar e buscar um diagnóstico preciso.
"Brincar" com a imagem não é permitido ou exercitado na faculdade. Olhar uma imagem e buscar inicialmente a norma, a média que a estatística diz, não faz sentido para mim hoje, mas foi como aprendi e como muitas vezes o olhar do psicólogo é ensinado e treinado. Sinto que estamos sempre presos ao paradigma da ciência e seus métodos baseados na norma e não no indivíduo, não no processo de individuação. Ainda somos assombrados pelo temor de sermos considerados místicos e, com isso, sermos desvalorizados. O "lodo negro do misticismo" que tanto assombrou Freud também assombrou Jung e nos assombra.
Quando escrevi minha tese de mestrado sobre sandplay e escolha profissional, na Universidade de São Paulo, muitas vezes entrei em confronto com minha orientadora, que achava inadequado utilizar o termo "brincar" em um texto acadêmico. Eu não conseguia entender por que o termo "brincar" não é adequado se estou falando sobre uma técnica inspirada no brincar das crianças. Por que brincar não pode ser levado a sério?
Por isso, hoje me dedico a exercitar meus olhos brincalhões por meio das imagens que se constelam na areia, na aquarela, no barro, nos contos de fadas e mitos que me inspiram. Isso exige, antes de tudo, a conquista de um espaço interno de exploração. Preciso me autorizar a isso e compreender que ninguém poderá me dar esse aval. Eu devo conquistá-lo em minha busca, em minha experiência. Preciso não estar presa ao que é considerado correto sob o ponto de vista do outro que está fora. Preciso me conectar ao outro que está dentro para realmente me conectar ao outro que está diante de mim. E, por sua vez, ajudá-lo a se conectar ao outro que vive dentro dele. Preciso não cair na tentação de definir parâmetros rígidos para olhar e compreender uma imagem. Preciso não ter medo de errar, poder experimentar... Esse é o princípio do brincar!
Nesse sentido, o compromisso no processo de aprendizagem do sandplay é o mesmo compromisso ético que me leva a ser uma analista; é o compromisso ético com meu processo de individuação e com o processo de individuação do meu paciente, supervisionando ou aluno. Nossos caminhos são diferentes, cada um tem o seu. Não posso simplesmente ensinar sandplay, preciso viver o contato com as imagens psíquicas, preciso "psiquiar" e ajudar quem está vivendo seu processo de autoconhecimento ao meu lado a confiar no seu contato com suas imagens, a "psiquiar" também. Confiar, para mim, é a palavra-chave: con + fiar = fiar junto, criar um fio único dentro de mim, o fio que me conecta ao que é maior que minha consciência, mas que se revela por meio dela, que deve ser capaz de conceber, acolher, nutrir e mandar para o mundo.
Esse exercício dos olhos brincalhões e não me guiar apenas pelo aprendizado intelectual e instrumental do sandplay está relacionado ao estudo da antroposofia, filosofia embasada por Rudolf Steiner, contemporâneo de Jung que inspirou a criação de vários campos de conhecimento, como a pedagogia Waldorf, a medicina antroposófica, a agricultura biodinâmica, a economia viva etc.
Steiner foi profundo conhecedor da obra de Goethe e criou a proposta da observação goetheana, inspirado nas descrições que figuravam na obra de Goethe sobre sua prática de observação da natureza. Na antroposofia, esse exercício do olhar de forma fenomenológica, sem julgamentos, observando seja uma planta ou uma criança dentro do contexto escolar, seja um conto de fadas ou uma obra de arte, é um exercício meditativo, com o objetivo de ampliar a capacidade de olhar para ampliar o pensar, o sentir e o querer.
Nesses últimos anos, tenho feito vários cursos e vivências baseados na observação fenomenológica proposta por Steiner e cada vez mais percebo a riqueza desse exercitar para o meu ofício de analista que trabalha com imagens. Resumindo muito e correndo o risco de descrever essa proposta de forma mais simplista do que ela é (considerando que, como exercício, ela é mesmo muito simples, mas conforme o grau de envolvimento com ela, podemos vivenciá-la de forma profunda), gostaria de expor os quatro passos do exercício que tenho vivenciado no sandplay. Para isso, vamos observar juntos uma cena na areia.
A descrição que farei é uma adaptação ao sandplay das práticas de observação fenomenológica que vivi com contos de fadas, criações na areia e árvores. É minha licença poética que quero, aqui, compartilhar.
Num primeiro passo, nos propomos a identificar na cena os aspectos relacionados ao elemento terra. O que isso significa? Vamos usar nossa sensação (em linguajar junguiano), vamos descrever os elementos da cena detalhadamente sem recorrer a termos que nos levem a julgamentos e comparações. Não importa se a cena é caótica ou organizada, bonita ou feia, que seriam julgamentos de valor. Naturalmente pensamos dessa forma, mas nesse passo precisamos nos libertar de tais parâmetros e observar a cena como única em si mesma. Com isso, buscamos estabelecer a base da nossa observação, descrever a terra sobre a qual e a partir da qual a cena se desenrola. O leito sobre o qual nosso rio vai correr. Podemos até desenhar a cena inteira ou algum detalhe que nos chame a atenção.
Em um segundo momento, nos propomos a olhar a partir do elemento água: nosso sentimento será nosso guia para observar a cena. Qual é o fluxo revelado nessa cena? Como sentimos que ela flui? Conseguimos identificar se ela começa em algum ponto? Qual seria a "semente" da qual brota a cena? Qual seria sua nascente e em que direção ela flui? Posso também buscar em minha lembrança da sessão como essa cena foi montada (eu, particularmente, não gosto de anotar a cena, guardo somente minha observação). Como começou a montagem da cena? Como a areia foi escolhida (seca ou molhada)? Ele/ela sentiu a necessidade de tocar a areia? Ou escolheu apenas pelo olhar, de certa distância? Como, diante das miniaturas, elas foram sendo escolhidas? Como foi feita a montagem da cena: de pé, entre as miniaturas, ou sentado/a diante de mim, já nas poltronas, trazendo a areia a sua frente? Montou a cena desde o início da sessão, no decorrer da sessão ou somente no finzinho, quando percebeu que a sessão estava acabando? Usou todas as miniaturas que escolheu ou alguma foi deixada de lado? São muitas as lembranças a serem revisitadas e sentidas, mas o essencial nesse passo é como "sinto" que foi a construção da cena, do início ao fim. Posso também, ao vivenciar esse passo, me dar conta de que há muitas lacunas em minha memória quanto à confecção da cena e preciso aceitar esse fato sem me julgar: posso ter me distanciado um pouco no momento da criação da cena para deixar meu paciente mais à vontade, posso ter voltado minha atenção para outra direção, posso não ter me sentido à vontade… São possibilidades de observação a serem colhidas com respeito e não com crítica.
Em um terceiro momento, observarei sob o prisma do elemento ar, com o meu pensar. Preciso aqui fazer o difícil exercício de ir na direção contrária ao fluxo, o que exige muito do meu pensamento, da minha memória. Preciso confiar na minha memória. Parto do momento final da sessão ao entender a cena como terminada e volto no caminho da construção da sessão, da cena. Faço uma retrospectiva do processo de criação da cena. O exercício anterior me prepara para esse: vou buscar nesse retorno à fonte, à origem da cena, qual seria o gesto da cena. Posso até vivenciar no meu corpo, em um desenho ou em uma cena na areia um gesto inspirado nela. Indo no contrafluxo, busco estar atenta às imagens, sensações e sentimentos aos quais a cena me remete. Contra a correnteza, fico atenta se consigo "pescar algum peixe", algum alimento novo. É nesse momento que mergulho também no simbolismo de alguns elementos da cena. Caso não conheça, pesquiso. É quando tenho condição de ler sobre o simbolismo de forma mais precisa, filtrar o que alimenta minha observação e dispensar o que não interessa.
Chego então ao quarto passo desse exercício: o elemento fogo será meu guia, minha intuição me guiará. Nesse momento, me calo, preciso silenciar. Depois do esforço feito, preciso parar, calar a mente, respirar e esperar que algo se manifeste: uma imagem, uma sensação, um sentimento... algo. Espero que a cena se/me revele. Algumas vezes faço esse exercício antes de dormir e peço por um sonho que me ajude a compreender algo na cena que não consegui ainda identificar. Levo a questão para o sono – como dizem na antroposofia. Ao exercitar minha observação antes de dormir, como exercício meditativo, estou realmente "levando para o sono" a imagem inspiradora e pedindo inspiração ao meu inconsciente, buscando ativamente inspirar meus sonhos.
São somente quatro passos, mas é um caminho árduo e profundo se feito com disciplina e entrega. Claro que não consigo me dedicar dessa forma a todas as cenas de todos os pacientes, mas procuro vivenciar esse exercício em algumas. É um exercício que me possibilita um mergulho na cena. Preciso e posso perceber como ela me toca, no que me é familiar, em que consigo empatizar com ela ou onde ela me é totalmente estranha e tenho dificuldade para empatizar. Posso trabalhar o que é meu nessa observação e o que é do paciente, além daquilo que acontece nesse espaço intermediário: o que é meu, o que é dele e o que é nosso.
Fátima era uma grande observadora de cenas… Ela contava que costumava ficar horas, sozinha, observando uma cena específica. Voltava ao seu consultório à noite e se permitia ficar lá um bom tempo, observando a cena real – isso era possível porque ela não as desmontava, considerando que tinha muitas mesas de areia. Normalmente trabalhamos somente com duas mesas de areia, o que nos permite manter uma molhada e uma seca. E só. Essa foi a orientação que ela mesma me deu: não me permitir ficar em contato com a cena viva por muito tempo pois isso nos causa grande desgaste, tanto físico como psíquico. Mas ela ficava.
Hoje, vivenciando esse exercício de observação goetheana, percebo que talvez ela também buscasse algo semelhante ao que busco agora. Ela provavelmente tentava entender, perceber, sentir e intuir o que a cena lhe revelava. O que acho interessante também nesse exercício é que ele me permite mergulhar profundamente, mas não de uma só vez, não em um só dia: não preciso me exaurir. Posso fazer com calma. Posso observar uma cena por um mês, exercitando um desses passos a cada semana, permitindo um lento processo alquímico, vivenciando etapas com calma e dedicação, cozinhando em banhomaria. Mas, para isso, tenho que trabalhar minha ansiedade e acreditar que pouco é muito, o que é bem difícil nos dias de hoje.
Lembro aqui mais uma vez o analista Rafael López-Pedraza (2010), que, no texto citado anteriormente, discorre sobre a necessidade de vivermos a espera no cultivo da alma. É preciso forjar a alma do analista que trabalha com imagens e isso exige espera, a paciência atenta dos alquimistas na opus alquímica. É preciso estar atento para não cair na armadilha da mediocridade e para "excluir o que poderia desvirtuar a verdadeira iniciação" (LÓPEZ-PEDRAZA, 2010, p. 38), revela López-Pedraza ao falar do trabalho do analista. Ressalta no seu texto que, se não dermos atenção à verdadeira espera, podemos vivenciar na psicoterapia o que ele denomina "mimetismo psicopático", que acontece quando seguimos de forma medíocre os slogans e as receitas para viver. Ao observarmos uma imagem no sagrado ofício da análise que busca "fazer alma", precisamos cultivar a espera. Primeiro em nós mesmos e, se isso nos for possível ou quando isso for possível, poderemos vivenciar essa espera com nosso paciente para que a imagem se revele após um esforço contínuo. Ela não se desvelará magicamente. É preciso um esforço contínuo, é preciso esse cultivo.
Outra questão importante para mim nesse exercício dos olhos brincalhões tem sido a fotografia. Já há algum tempo, adquiri o hábito de pedir aos pacientes que fotografem sua cena quando terminada, antes de ela ser fotografada por mim. Para mim, esse é o fim da sessão. Depois, eles saem deixando a cena intacta e sou eu que vou fotografar. Aqui é importante ressaltar que não tenho como prática, em geral, comentar a cena no fim da sessão. Isso não é uma regra, é a minha forma de viver o sandplay, pois entendo que o mais importante na prática é poder, por meio dela, ajudar a liberar o contato do paciente com suas imagens, é ajudá-lo a confiar nesse fluxo de imagens que buscamos estabelecer por meio das cenas, é ajudá-lo a movimentar suas "águas psíquicas". E como ressaltei acima, preciso ajudá-lo a confiar na espera. Acho realmente mais importante, em um primeiro momento, poder liberar esse fluxo que exige confiança na própria psique e na forma como eu, na condição de analista, estarei acolhendo suas imagens. Especialmente no início de um processo terapêutico, muitas vezes não acho produtivo comentar a cena, pois é nesse momento, quando o paciente costuma estar ainda reconhecendo o terreno, construindo o vínculo comigo e com a areia/miniaturas, que se dá o efeito de ativação de um pensar que pode atrapalhar ou até mesmo interromper o fluxo. Na sessão seguinte, ele provavelmente pensaria mais ao se ver diante das miniaturas e areia. E é justamente isso que eu não quero: o pensar que trava! Quero conquistar um pensar mais amplo, que acolhe. Quero que ele confie cada vez mais e vá se soltando aos poucos. Mas, ao terminar a sessão, peço a ele que fotografe a cena quantas vezes quiser, dos ângulos que achar adequado. Pode parecer não muito importante, mas percebi nessa prática que posso, por meio desse simples exercício, apreender o olhar do paciente para sua própria cena. É verdade que alguns estranham o pedido no início... Fazem poucas fotos, de uma forma tímida. Mas, aos poucos, vão se soltando e esse é um primeiro exercício de olhar sua produção de forma lúdica e livre. Depois, quando eu for compartilhar a sequência de cenas com ele, exercitar o nosso olhar para a sequência de cenas no fim de um processo breve como o de escolha profissional, ou no fim da análise, será muito rico perceber o que ele achou importante fotografar e, depois, o que eu fotografei da cena e, juntos, colhermos nossas impressões acerca das cenas.
Como conclusão, gostaria de acrescentar que, ao exercitarmos nossos olhos brincalhões ao observarmos uma sequência de cenas na areia (ou no barro, na aquarela, no desenho ou outro material artístico produzido por nosso paciente), vivenciamos o conflito inerente à riqueza de possibilidades que as imagens sempre nos trazem. Esse conflito é enriquecedor para nós, analistas, e, consequentemente, para nossos pacien tes. Quando nos é possível sustentá-lo ao nos vermos diante de uma imagem psíquica e não nos obrigarmos a decifrá-la, "resolvê-la" rapidamente e, dessa forma, nos permitirmos silenciar, acionar nosso ouvido interno, ampliar nosso olhar e colher sentimentos e impressões, acredito que estaremos realmente auxiliando nossos pacientes a construir uma relação mais saudável com suas imagens psíquicas, com seu inconsciente – objetivo maior do nosso trabalho, ao meu ver. Poderemos, assim, ajudá-lo a restabelecer uma confiança nessas imagens e na capacidade que cada um traz em si para lidar com elas criativamente. E estaremos sendo fiéis ao eterno processo de vir a ser um analista que trabalha com imagens!
Referências bibliográficas
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Endereço para correspondência
Patrícia Dias Gimenez
E-mail: patgimenez@uol.com.br
Recebido em: 7/3/2016
Revisão: 19/7/2016
* Analista junguiana e membro analista da SBPA/IAAP. Mestre em psicologia social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Trabalha com sandplay em clínica particular há 23 anos.