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Junguiana
versão impressa ISSN 0103-0825
Junguiana vol.35 no.2 São Paulo 2017
O quarto de Jack: tecendo símbolos da relação primal à luz da teoria de Erich Neumann
"Room": forging symbols from the primal relationship according to the Erich Neumann's Theory
"La Habitación": tejiendo símbolos de la relación primal a la luz de la teoría de Erich Neumann
Paulo Henrique Nogueira Lima*; Thais Cristina Rades**
RESUMO
Este ensaio propõe a análise simbólica da obra cinematográfica "O quarto de Jack", entendendo-a como uma alegoria para explicitar a relação primal entre mãe e bebê, descrita por Neumann. Elementos dessa história, tais como a inconsciência do mundo externo pela criança e o período de isolamento em que se mantém circunscrito a seu mundo privado, semelhante a um útero psíquico, característico desta fase, levaram-nos a concluir que ela pode ser considerada um excelente representante simbólico desta teoria, tanto pelos aspectos visuais e linguísticos quanto pelo desenvolvimento cronológico.
Palavras-chave: Relação primal, desenvolvimento infantil, psicologia analítica.
ABSTRACT
This essay suggests the symbolic analysis of the cinematographic work "Room", as an allegory to explain the primal relationship between mother and baby, described by Neumann. Features of this novel - as the child's unconsciousness of the external world and the confinement in which his world is circumscribed, similar to a psychic uterus of this phase - led us to the conclusion that "Room" can be considered an excellent symbolic nominee of this theory, as much by its visual and linguistic aspects as by the chronological development.
Keywords: Primal relationship, child development, analytical psychology.
RESUMEN
Este ensayo propone un análisis simbólico de la obra cinematográfica "La habitación", entendiéndola como una alegoría para explicitar la relación primal entre madre y bebé, descrita por Neumann. Características - tales como la inconsciencia del niño en relación al mundo externo y el período de aislamiento en que se mantiene circunscrito en su mundo privado, semejante al útero psíquico característico de esa fase -, nos han llevado a concluir que esta obra puede ser considerada una excelente representante simbólica de esa importante teoría, tanto por los aspectos visuales y lingüísticos, como por el desarrollo cronológico.
Palabras claves: Relación primal, desarrollo infantil, psicología analítica.
1. Introdução
A ideia de produzir este ensaio se concretizou pela possibilidade de exemplificar a teoria sobre o desenvolvimento emocional da criança sob a ótica de Erich Neumann. Partindo da proposição da disciplina Psicoterapia da criança e do adolescente, pertencente à grade curricular do curso de Psicologia do Centro Universitário São Camilo, teceu-se a construção de uma análise simbólica dos elementos constitutivos de uma obra literária e de sua adaptação cinematográfica.
O livro "O quarto", de Emma Donoghue, lançado em 2010 e nomeado pela revista The New York Times1 como um dos 10 melhores livros de seu ano, assim como o filme, "O quarto de Jack", dirigido por Lenny Abrahamson (2015), produzido e indicado a quatro categorias do Oscar em 2016, inspirado no livro e com roteiro da autora, conta a história de Joy, uma jovem raptada e mantida em cativeiro por sete anos, dos quais cinco passou com seu filho Jack, resultado de um dos estupros cometidos pelo sequestrador. Encontramos na história uma riqueza de caracteres simbólicos, sobre a relação mãe-filho, presentes tanto no livro quanto no filme, e que inspiraram a produção desse ensaio. Propomo-nos então a levar o leitor, não a uma análise de fatores concretos, mas às suas possibilidades de interpretações metafóricas.
Assim, uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto "inconsciente" mais amplo, que nunca é precisamente definido ou inteiramente explicado. E nem podemos ter a esperança de defini-lo ou explicá-lo. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida às ideias que estão fora do alcance da nossa razão. (JUNG, 2008, p. 19).
Dessa forma, o presente ensaio ousa buscar nesta obra literária e em sua adaptação cinematográfica, os símbolos que expressem a ideia daquilo que Neumann (1995) chamou de relação primal, uma complexa ligação que se dá entre mãe e bebê, que vai do nascimento até aproximadamente seu primeiro ano de idade, quando o ego começa a nascer para o mundo. Seguiremos então uma interpretação da história do quarto por meio dos pressupostos da psicologia analítica de Jung e Neumann.
2. O quarto
Um pedaço de parede e tudo se apaga. Um pedaço de balde e tudo se apaga. Um pedaço da privada e tudo se apaga. Um pedaço da pia e tudo se apaga. Um pedaço da prateleira e tudo se apaga. Um pedaço de folha e tudo se apaga. Um pedaço de colchão e tudo se apaga. Acende-se o abajur, apaga-se o abajur, acende-se o abajur, apaga-se o abajur. O filme de Lenny Abrahamson (O quarto, 2015) traz, em sua primeira cena, justamente a imagem do que pode ser comparado ao início da percepção do mundo pelo do ego da criança, uma percepção ainda oscilante e cambiante. Jack, ao se dar conta de que está completando cinco anos, relembra de seus aniversários anteriores, fazendo uma contagem regressiva: 4,3,2,1... E, então, diz "mas eu já fui menor do que 0?". Ao levantar esse questionamento, percebemos a analogia com a pergunta que estamos tentando responder nesse ensaio: o que éramos nós antes de uma individualidade e de termos um ego?
Scott (1948 apud Neumann, 1995, p. 13) parece concordar com a ideia de que o desenvolvimento do ego não acontece de maneira linear e gradativa, mas de maneira cíclica e alternada, quando diz que "uma parte da imagem corporal, do ego em desenvolvimento, consiste numa percepção constantemente cambiante do mundo".
Um lugar escuro, sem cor, sem vida e sem espaço nenhum além daquele em que cabem sua mãe e a si próprio. Uma prisão, assim é o quarto em que Jack nasceu e desde então nunca saiu. O espectador vivencia um contraste entre a sensação de estar sufocado e a estranha naturalidade com que Jack vive lá dentro. Pelos olhos dele o quarto é um lugar aconchegante, completo e íntimo. Neste pequeno cômodo encontramos então todos os elementos de um dos símbolos mais importantes, o qual iremos explorar. Que símbolo é esse? Ora, o que pode ser mais escuro e não menos aconchegante, apertado e tão íntimo, vazio e ao mesmo tempo tão completo, do que o útero materno? Porém, nesse caso, mais do que um útero fisiológico, se trata aqui de um útero psíquico do qual nascerá o ego da criança.
Após o seu nascimento, a criança se encontra ainda tão conectada com a mãe que se infere a ideia de que seu ego esteja ausente. É dessa primeira conexão, desse útero psíquico, que Neumann (1995) propõe que nascerá o ego. Para o bebê, antes do término dessa fase, não existe ainda consciência do mundo externo, nem de sua mãe ou de si mesmo. Por isso Neumann (1995) designou como símbolo representante dessa relação primal o uroboros, a serpente que, engolindo a própria cauda, forma em si uma circunferência. O uroboros é um símbolo perfeito para esse útero psíquico já que no momento em que a cabeça engole a cauda, deixa de existir início e fim, e com as extremidades se unindo anulam-se as polaridades. Ou seja, por estar contida nesse uroboros, a criança não possui a separação consciente-inconsciente, ego-Self, dentro-fora, sujeito-mundo. Ou seja, quarto e mãe servem como vaso urobórico, onde, imerso em seu inconsciente, está Jack, ainda ignorando a existência do mundo externo. Além da ausência de polaridades, o indivíduo imerso no uroboros apresenta também uma ausência de percepção têmporo-espacial experimentando uma noção de ser infinito quanto às suas dimensões:
A criança tem uma imagem corporal ainda indiferenciada e por isso mesmo tão grande e ilimitada quanto o cosmos. Sua configuração particular encontra-se de tal forma fundida com o mundo, e daí com tudo aquilo que chamamos de externo, que sua extensão poderia ser chamada de cósmica. (NEUMANN, 1995, p. 13).
Jack, em correspondência com essa percepção espacial, responde quando lhe perguntam se o quarto não era muito pequeno - "Não, ele ia em todas as direções e chegava até o fim. Nunca acabava".
Porém, não é o ego da mãe que estará presente nessa relação primal, e sim, uma parte do seu inconsciente, principalmente o seu Self, bem como o arquétipo da Grande Mãe. Assim, dentro da cobra urobórica estará uma parte da mãe e todo o psiquismo da criança. Mais uma vez encontramos no filme uma ótima imagem que lembra exatamente essa relação: em uma passagem, quando aparecerem Jack e sua mãe envoltos em uma cobra de brinquedo.
Nessa relação primal, a mãe também vive, da mesma forma que a criança, numa realidade unitária arquetipicamente determinada, porém só uma parte de si entra nela, porque seu relacionamento com o filho domina apenas um segmento da sua existência total. A criança, no entanto, encontra-se totalmente imersa nesse reino, sendo que, para ela, nesse caso, a mãe representa tanto o mundo como o Self.
(NEUMANN, 1995, p. 13).
Em outra cena, sua mãe tenta lhe explicar que nem sempre esteve dentro daquele quarto. Usando o exemplo de Alice no País das Maravilhas, diz que, assim como a Alice nem sempre esteve dentro do buraco, também ela teve outra vida lá fora. Explica que fora do quarto ela era uma menina chamada Joy, que tinha pais e morava numa casa com eles. Neste trecho podemos aludir a relação do quarto com o uroboros, porque fora dele está o ego e as personas da mãe, e dentro está o arquétipo da Grande Mãe.
Na relação primal é o arquétipo da Grande Mãe, juntamente com o Self da mãe, que auxiliam o filho a criar um ego. Dentro do uroboros está o filho, mas não o seu ego, e sim o seu Self. Conforme Neumann (1995), o Self da mãe estimula o Self do filho para que este gere um ego de dentro de si mesmo. É justamente isso que vemos no filme, a mãe de Jack preparando-o para que ele possa entrar em contato com o mundo externo, já que é a consciência e a relação com o mundo que caracterizam o ego.
É interessante ainda pensar na imagem do buraco em que a Alice cai, trazida pelo filme, porque, segundo Neumann (2013, p. 31), esse útero psíquico, que guarda o filho, muitas vezes é representado por figuras alegóricas como buracos e cavernas: "Todas as coisas profundas - abismo, vale, solo, assim como o mar e o fundo do mar, fontes lagos e poços, a terra, o mundo interior, a caverna, a casa e a cidade - são partes desse arquétipo".
Isso sem falar que a própria estrutura física do quarto remete muito à ideia de uma caverna, tanto pelo fato de ser extremamente escuro, quanto pela maneira como a luz entra no local, através de uma claraboia no teto.
Mas, "Eu quero ter quatro anos de novo...", é o que Jack diz à sua mãe ao descobrir a existência de um mundo real fora do quarto. Ele chora, resiste e diz que não quer acreditar nesse "mundo fedido". Sua reação exprime exatamente o que Neumann (1995) diz ser a natural atitude do Self do filho diante da eminente separação do Self materno. Essa resistência por parte do Self é quase que um instinto de autopreservação, numa tentativa de se manter conectado à mãe, nesse uroboros. Neumann (2013, p. 47) traz a analogia do pântano para representar o poder dessa conexão primal: "O mesmo se aplica à unidade da vida no interior do uroboros, que, tal como o pântano, gera, dá à luz e mata no círculo sem fim do eterno estar-enterrado-dentro-de si-mesmo".
Ao saber da existência das duas realidades, uma interna e outra externa, Jack se angustia e começa a chorar. Neumann (1995) diz ainda que a primeira sensação que o ego vivencia é a da angústia pela experiência conflituosa entre as polaridades (dentro e fora, eu e tu, Self e persona). Essa angústia é o cerne de todas as aflições da vida adulta, caracterizada pela incapacidade do ego de se identificar por completo com nenhuma dessas polaridades. Se o uroboros representava então a ausência de polaridades, o ego é representado por esse eterno conflito e incapacidade de conciliação entre as polaridades.
Na cena seguinte, Jack estava dormindo quando o abajur acende sozinho, bem acima da sua cabeça, e permanece aceso, então ele repousa sua mão sobre a luz do abajur. Em comparação com a primeira cena do filme em que o abajur fica piscando (onde a luz da consciência do ego ainda está oscilando) aqui a luz acende e permanece acesa. Ou seja, o ego acordou. Agora que há a consciência do dentro e do fora, o ego está aceso. Podemos dizer também que a luz do mundo externo está adentrando a caverna do uroboros e alcançando o ego.
3. A subida do ego
Neumann (1995, 2013) discorre sobre o fato de que, à medida que o ego vai se desenvolvendo e inicia sua partida rumo a saída da caverna, preparando-se para se desligar completamente da relação primal, o arquétipo da mãe, por consequência, também se desligará desta relação. Então, enquanto o ego da criança está nascendo para o mundo externo, o arquétipo da mãe está morrendo para a relação primal. Essa dinâmica também acontece no filme, ainda nessa cena em que o abajur fica aceso, a mãe de Jack não encontra forças para se levantar e passa o dia todo deitada, e Jack fala: "você é a melhor em ler, contar histórias e em várias outras coisas, exceto quando está em um dia de morta". Ou seja, na mesma cena em que vemos o ego de Jack acendendo (como o abajur) e nascendo, vemos o arquétipo da mãe morrendo. Neumann descreve como necessário ao nascimento do ego para o mundo consciente e masculino (fora do mundo inconsciente materno) a morte simbólica da mãe, ou, em outras palavras, a subjugação do inconsciente pelo consciente:
Umas das partes do mito da luta do herói com o dragão é a conquista ou o assassinato da mãe. A masculinização bem sucedida do ego encontra expressão em sua combatividade e prontidão para expor-se ao perigo simbolizado pelo dragão. Foi a identificação do ego com o lado masculino da consciência que primeiro estabeleceu a divisão psíquica em opostos, o que permite que o ego enfrente o dragão do inconsciente. Essa luta é representada como penetração na caverna, descida ao mundo inferior, ser engolido, ou enfim, incesto com a mãe. (NEUMANN, 2013, p. 122).
Mais surpreendente ainda é encontrar uma cena em que, depois de sair do quarto, Jack brinca que está 'sendo engolido para dentro do abismo'. Podemos considerar que essa brincadeira se trata de uma re-elaboração simbólica da luta e conquista sobre o inconsciente materno.
O Self materno não apenas estimulará o Self do filho a gerar um centro da consciência, o ego, como "ensinará" que a função desse ego deverá ser mediar a relação entre o mundo interno e o externo. Assim, o Self materno mostrará para o ego do filho que este deve estabelecer relação com um "tu". O próprio ego só se estabelece como tal a partir do momento em que ele concebe a realidade de um "tu" e se torna apto a se relacionar com ele. Em outras palavras, podemos dizer que a primeira ação do ego após seu nascimento, deverá ser a de estabelecer relação com o "tu", e quem estimulará essa dinâmica será o Self da mãe. Segundo Neumann (1995, pág. 14), "Na primeira fase da infância, a tendência que o Self tem para relacionar-se com um 'tu' é 'dada', e do nosso ponto de vista, externalizada, pela mãe".
No filme encontramos justamente isso, a mãe de Jack não só o torna consciente do mundo externo, como faz com que ele saia do quarto e ainda diz que a primeira coisa que ele precisará fazer é se comunicar com alguém e levar a mensagem de que existe esse quarto, essa prisão. A função de Jack ao sair era então levar a mensagem sobre a existência do quarto para o mundo externo, ou seja, a função do ego é estabelecer relação e comunicação entre o mundo interior e o exterior. Apavorado diante da ideia de ter que deixar a sua mãe, Jack se nega a sair do quarto. Para minimizar a angústia do filho, Joy diz que uma parte dela irá junto com ele, dando-lhe um dos seus dentes. Jack o coloca dentro de sua boca e, agora, pelo pedaço de sua mãe que ele tem dentro de si, está pronto para sair. Neste trecho, a simbologia percebida representa outra característica da relação-primal descrita por Neumann:
Ao longo do desenvolvimento da criança, o Self encarnado na mãe da relação primal, ou, para formulá-lo de maneira mais cautelosa, o aspecto funcional do Self encarnado na mãe, que na relação primal torna-se experiência formativa para a criança, deve gradualmente "deslocar-se" para o interior da criança. (NEUMANN, 1995, p. 13).
Além do dente, sua mãe diz que não precisa ter medo porque ela será como uma voz em sua cabeça lhe dizendo o que precisa fazer, iluminando a ideia que nosso Self frequentemente se expressa através de uma "voz em nossa cabeça", principalmente em nossos sonhos. Jung fala sobre o caráter dessa voz:
O que a voz diz, possui, de fato, um caráter de verdade irrefutável, de modo que é quase impossível não reconhecê-la como uma conclusão de uma prolongada e inconsciente meditação e ponderação de diversos argumentos. Frequentemente a voz provém de um indivíduo imperioso, de um chefe militar, por exemplo, ou do capitão do navio, ou ainda de um médico. (JUNG, 2011, p. 56).
Depois que Jack sai do quarto ele traz uma fala extremamente significativa a respeito do que ele observa de diferente entre o quarto e o mundo externo - "Tem muitos lugares nesse mundo, mas tem menos tempo, porque o tempo tem que ser bem espalhado para ficar um pouco em todos os lugares".
Nesse momento aparece o ego elaborando sua percepção do tempo e espaço, sendo essa, outra característica e função do centro da consciência, o de situar o ser no aqui e no agora. Comparado a percepção de mundo que Jack tinha quando estava no quarto, relatado no início do ensaio, com a que ele apresenta agora, observamos que, enquanto a primeira consistia em uma noção infinita e cósmica das dimensões espaciais, a segunda se caracteriza pela delimitação têmporo-espacial.
O filme de Lenny Abrahamson termina com a mesma profundidade simbólica com que começa. Em uma das cenas mais emocionantes do filme, Jack, nos minutos finais, volta até o quarto para, junto de sua mãe, se despedir dele. Se pensarmos que, do momento em que Jack sai do quarto até o final do filme, ele está em um processo de constante adaptação às exigências do meio externo - processo esse que Jung (2002) irá chamar de progressão da libido - então, o momento em que ele sente a necessidade de entrar mais uma vez no quarto pode ser comparado a uma necessidade de retomar o contato com os conteúdos urobóricos do inconsciente, ou, conforme nomeia Jung (2002) a regressão da libido. Jung ao usar o exemplo do mito do dragão baleia, descrito por Frobenius nos mostra como esse processo de regressão pode ser simbolizado como um retorno ao ventre do inconsciente:
O herói é o representante simbólico do movimento da libido. A entrada no ventre do dragão representa a direção regressiva. [...] A circunstância de o herói ser devorado e desaparecer inteiramente no ventre do dragão significa o alheamento completo da atitude com relação ao mundo exterior. O ato de dominar o monstro a partir de dentro representa o esforço de adaptação às condições do mundo interior. (JUNG, 2002, p. 27. [grifo nosso]).
O alheamento completo da atitude com relação ao mundo exterior, que no mito corresponde ao devoramento completo e desaparecimento do herói no ventre do dragão, no filme pode estar representado pelo ato de Jack não só entrar no quarto, mas querer que a porta ficasse fechada. As adaptações às condições do mundo interior, que no mito são expressas pelo domínio do monstro pelo herói, no filme pode ser simbolizado pelo pedido de Jack para que sua mãe também se despeça do quarto, ou seja, Jack como um herói representante do ego, termina, na história, da mesma maneira com que começou, desenvolvendo-se ciclicamente. Semelhante a um corpo que, pela sua energia cinética, mantém-se em movimento, desde que percorra um trajeto senoidal adequado, o ego, aqui, atingindo o máximo de seu estágio progressivo, só poderá continuar desenvolvendo-se caso se renda agora à regressão.
4. Conclusão
Para compreender um símbolo é necessário inclinar-se diante dele, e dar-lhe assim, o poder de nos afetar. É dispor-se a ouvi-lo e se alinhar a toda gama de expressividade que lhe é inerente, dando a ele a oportunidade e autoria da exteriorização de si mesmo. Foi o que fizemos com o filme de Lenny Abrahamson, na esperança de que ele se apresentasse a nós como um representante alegórico da relação que Neumann (1995) nomeou como primal, entre mãe e filho.
Inclinados, então, diante da íngreme descida que nos levaria até as profundezas do quarto, vislumbramos não apenas um, mas diversos símbolos que expressaram bem a teoria de Neumann. Estes se manifestaram a nós por via da linguagem, de imagens e até mesmo de referências a outras obras, encontradas tanto no filme quanto no livro. O próprio desenvolvimento cronológico da história parecia seguir os passos e caminhar em paralelo ao nascimento do ego para fora da caverna do inconsciente.
Muito provavelmente os objetivos do livro e do filme não fossem criar essas metáforas, tampouco assemelhá-las às obras de Neumann, mas assim como Jung (2015, p. 33) nos lembra, nem sempre captamos o sentido dos símbolos que se expressam através de nós: "Até um astrônomo, o famoso Fred Hoyle em Cambridge, escreve de modo bem ingênuo um livro sobre este motivo, uma novela, sem ter nenhuma idéia a respeito do que de fato escreve".
Tanto nesta obra cinematográfica quanto em tantas outras, podemos permitir a interpretação simbólica e, neste caso, possibilitando a análise de uma teoria de abordagem analítica. Assim, propusemos este ensaio que contribuiu para reflexão e ilustração da teoria de Neumann, no tocante ao funcionamento da relação primal, facilitando nossa própria aprendizagem mediante ao vasto campo de compreensão do desenvolvimento emocional humano.
Referências
DONOGHUE, E. O quarto. 6. ed. Campinas, SP: Verus, 2016. [ Links ]
JUNG, C. G. A energia psíquica. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. (Obras completas de C. G. Jung, v. 8/1). [ Links ]
JUNG, C. G. (Org.). O homem e seus símbolos. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2008. [ Links ]
JUNG, C. G. Psicologia e religião. 9. ed.Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. (Obras completas de C. G. Jung, v.11/1). [ Links ]
JUNG, C. G. Sobre sentimentos e a sombra. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. [ Links ]
NEUMANN, E. A criança. 10. ed. São Paulo, SP: Cultrix, 1995. [ Links ]
NEUMANN, E. História da origem da consciência. 14. ed. São Paulo, SP: Cultrix, 2013. [ Links ]
O QUARTO de Jack. Direção: Lenny Abrahamson. Roteiro: E. Donoghue. Los Angeles: Universal Pictures, 2015. (117 minutos), son., color., 35 mm. [ Links ]
Recebido em: 15/08/2017
Revisão: 13/11/2017
* Graduando em psicologia Centro Universitário São Camilo; E-mail: tintrap74@gmail.com
** Psicóloga Clínica. Doutoranda em Psicologia da Educação pela PUC- SP. Professora do curso de graduação em Psicologia do Centro Universitário São Camilo. E-mail: thais.rades@hotmail.com
1 http://www.nytimes.com/2010/12/12/books/review/10-best-books-of-2010.html.