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Junguiana
versão impressa ISSN 0103-0825
Junguiana vol.35 no.2 São Paulo 2017
Processar, elaborar, digerir: transtorno alimentar na contemporaneidade, leitura arquetípica
Process, elaborate, digest: eating disorder in the contemporary world, archetypal view
Procesar, elaborar, digerir: trastorno alimentario en la conteporaneidad, leitura arquetípica
Claudia Morelli Gadotti*; Maria Beatriz Ferrari Borges**; Sonia Maria Duarte Sampaio***
RESUMO
O presente artigo propõe uma reflexão sobre a questão do feminino nos transtornos alimentares, correlacionando-os com a problemática da contemporaneidade. Inicialmente buscamos delimitar as características deste momento para depois ampliar nossa compreensão sobre como este contexto dialoga com a sintomatologia alimentar e o feminino arquetípico.
Palavras-chave: Transtorno alimentar, Feminino, Contemporaneidade, Anima, Elaboração simbólica.
ABSTRACT
This article proposes a reflection on the question of the feminine in eating disorders, correlating with the complexity of contemporaneity. The authors initially set out the characteristics of this moment and then they expand the understanding of how this social context dialogues with eating symptomatology and with the feminine archetype.
Keywords: eating disorder, feminine, contemporaneity, anima, symbolic elaboration.
RESUMEN
El presente artículo propone una reflexión sobre la cuestión del femenino en los trastornos alimentarios, correlacionando con la problemática de la contemporaneidad. Inicialmente buscamos delimitar las características de este momento para luego ampliar nuestra comprensión sobre cómo este contexto dialoga con la sintomatología alimentaria y el femenino arquetípico.
Palabras claves: Trastorno alimentario, femenino, contemporaneidad, ánima, elaboración simbólica.
1. Introdução
A partir do Iluminismo, o ser humano é fertilizado por ideias de filósofos que não mais colocam a motivação divina como determinante, e sim a razão e o conhecimento científico como possibilidades de desenvolvimento. A sociedade europeia iluminada pelos conceitos de igualdade, fraternidade e liberdade que tomaram conta da Europa a partir do século XVIII, transcende o período medieval, no qual a providência divina indicava qual a direção a seguir e se deixa influenciar por ideias de que a união entre conhecimento e virtude propiciaria a felicidade e paz tão almejada no período pós-Revolução Francesa.
Os novos tempos inspirariam um novo saber, a uma recusa do tradicional e sobrenatural e promoveriam um distanciamento de todas as antigas práticas religiosas. O que presenciamos a partir daí é uma valorização do ser humano como alguém capaz de conquistar a felicidade através não mais da fé e dedicação religiosa, mas sim através do culto à ciência e à razão. É o início do que conhecemos por Idade Moderna, cujo ápice ocorre com a Revolução Industrial, com a consolidação do capitalismo, com o desenvolvimento tecnológico que advém desta e com a formação do estado-nação.
O novo projeto moderno ocidental delimita a partir daí um novo estilo de vida, de postura e crenças. O deus venerado deixa de ser o cristão e passa a ser o deus da produtividade e da razão. No entanto, o mito moderno, assim como o cristão, torna-se também um mito monoteísta, pois passa a disseminar a forte crença de que existe somente uma única possibilidade de se alcançar a emancipação humana, isto é, através da ciência e do trabalho. A busca pela realização individual e pelos caminhos que levam a ela são determinados pela racionalidade e tudo que é distante desta nova perspectiva transforma-se em superstição, ignorância ou infantilismo, o que acaba perpetuando uma atitude excludente por parte de uma sociedade cada vez mais patriarcal. O mundo ocidental vai aos poucos se distanciando de eras precedentes, de culturas que não sofreram as mesmas transformações e, consequentemente, acaba promovendo uma ruptura e um distanciamento de dinâmicas psíquicas, coletiva e individual, que até então eram sintônicas com um contexto histórico e social onde as vivências mítica e religiosa eram preponderantes. O homem moderno passa a ver, sentir e pensar o mundo dentro de uma nova perspectiva.
A visão do homem sobre o mundo em que vive deixa de ser mágica e passa a ser científico-racional e, portanto, passível de intervenção e transformação. É a época do positivismo, do cientificismo, das verdades absolutas e da moralidade burguesa. Somos tomados por uma onipotência que nos faz ir em busca do que antes era tido como impossível.
A partir de meados do século XX, com o aumento da produção industrial, a difusão de produtos possibilitada pelo progresso dos transportes e da comunicação e a liberalização total do mercado, através da globalização, criou-se um novo perfil de sociedade caracterizada por um capitalismo avançado, multinacional e de consumo. Chamado por alguns autores de pós-modernidade (BAUMAN, 2001; LYORTAD, 1979), este período inaugura uma nova dinâmica social e comportamental.
A sociedade torna-se cada vez mais competitiva e transforma seus indivíduos em seres na eterna busca de sua superação para não serem eles próprios descartados. As pessoas tendem a se tornar lentamente promotoras de si mesmas, mercadorias atraentes para serem consumidas e admiradas. Homens e mulheres são constantemente estimulados a se engajar em uma relação de consumo e sair da invisibilidade, que, para muitos, é equivalente à morte. Entramos na era da sociedade narcisista (LIPOVETSKY, 2005). A segurança, confiabilidade e durabilidade, modelos de uma sociedade moderna de produtores, é bruscamente substituída por uma dinâmica instável, pelo consumo instantâneo e a necessidade de remoção do obsoleto. Ao contrário do que ocorria em uma sociedade de produtores, na sociedade pós-moderna consumista, a palavra de ordem é desejo. Segundo Walter Benjamim (apud BAUMAN, 2001), "o tempo da necessidade foi substituído pelo tempo das infinitas possibilidades, alimentadas pela onipresença do desejo". O que se dita diante do erro é "tente outras ferramentas", e não mais "tente outra vez". A nova perspectiva comportamental e social, apresenta mudanças importantes, não mais se acredita em um progresso linear, símbolo diretivo da remota perspectiva Iluminista.
No mundo pós-moderno, a ordem do dia é válida até a divulgação da próxima. Todas as formas de conhecimento estão abertas, sendo questionadas e revistas, o conhecimento torna-se passageiro, escorregadio. Citando Karl Popper, "toda ciência repousa sobre areia movediça" (apud GIDDENS, 2002).
Somos convidados à constante superação dos limites, da conquista do que está além e, consequentemente, do supérfluo. Buscamos soluções cada vez mais eficazes, passamos a desejar o que é interessante, algo que dentro de uma moral capitalista, é mais do que a necessidade básica. Esta busca irá se manifestar inclusive no campo das emoções e das experiências afetivas. Passamos a desejar relacionamentos cada vez mais excitantes e que satisfaça um número cada vez maior de necessidades (BAUMAN, 2004).
Frustrado com as derrocadas da humanidade em construir um mundo melhor após duas sangrentas guerras mundiais, decepcionado com a economia mundial, com o crescimento da miséria, com os governos autoritários, e o vertiginoso avanço do terrorismo, o homem moderno começa um processo de questionamento de seus antigos valores, de suas verdades, de sua confiança de que a razão e o conhecimento constituiriam o único caminho possível. A ideia de um futuro melhor nos escapa. Passamos a viver uma hipervalorização do presente e do momento, a busca pelo prazer imediato, a promoção do que tem valor agora, pois tudo pode ser rapidamente transformado ou destruído (BAUMAN, 2004).
O que antes era interessante passa rapidamente a ser insuficiente, e por isso facilmente descartável. A informação, portanto, deve ser algo fácil de contabilizar e por isso dispensa um significado pessoal que a legitime.
No mundo onde o descartar impera, há uma enorme responsabilidade quanto ao trabalho de limpeza dos destroços e do lixo provenientes daquilo que jogamos fora. Muitas vezes cabe a nós, analistas, a função de "reciclar" todas as emoções e relacionamentos descartados como lixos.
No tratamento com o corpo e a saúde isso também pode ser observado: na remoção de gorduras não desejadas, na eliminação de rugas e na eficiência médica em extirpar qualquer vestígio de depressão. No campo dos relacionamentos observamos a mesma dinâmica de autopromoção e rápido descarte. As páginas da Internet prometem ao usuário uma escolha aparentemente segura, sem riscos e sem compromissos. Quando o interesse termina, muda-se de tela, ou desliga-se o computador. Abole-se todo o tipo de responsabilidade sobre a relação.
A sociedade consumista tem como base a plena realização dos desejos humanos, mas obviamente a promessa de satisfação só permanece enquanto, paradoxalmente, o desejo continuar insatisfeito, e uma forma de perpetuar essa insatisfação é desvalorizar o antigo objeto de desejo. Estimula-se a falta, esvaziando-se o significado dado originalmente aos objetos, criando-se um novo desejo do qual geralmente não temos plena consciência, uma vez que ele é destituído de significado pessoal, ocupando apenas o lugar de um fetiche coletivo. Vivemos o que Svendsen (2006) denuncia como a era do vazio de significados, do tédio. O autor coloca o tédio como uma vivência de perda, porém assim como na melancolia, ao contrário da tristeza, não temos consciência de qual o objeto perdemos e ansiamos recuperar; seria como "sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio" (PESSOA, 1999. p. 259). Ou ainda, poderíamos acrescentar comer sem fome, ou ter fome e não saber do que. Ainda para Svendsen (2006), encontramo-nos em um momento à sombra do Romantismo, mas perdemos a fé em seu poder imaginativo. Desejamos, mas não mais fantasiamos, isto é, não mais viajamos pela estrada que nos leva ao objeto amado. Num mágico teclado o alcançamos e o concretizamos.
É a partir deste empobrecimento de nossa capacidade imaginativa que pretendemos ampliar nossa compreensão sobre como a contemporaneidade nos joga em um cenário de esvaziamento da criatividade, de mutilação do arquétipo do feminino e de suas implicações no quadro dos transtornos alimentares. Porém, antes de discorrermos sobre a perspectiva do feminino arquetípico, faremos um breve relato sobre a posição da mulher no mundo contemporâneo, enfocando inicialmente a expressão do arquétipo no nível pessoal. No que se refere à dinâmica das mulheres na sociedade, precisamos compreender a evolução histórica pela qual o gênero feminino passou.
2. A evolução do papel social da mulher e o feminino arquetípico
Lipovetsky (2000) evidencia três períodos históricos principais na evolução do papel social da mulher. Um primeiro período em que ele denomina de a Primeira Mulher ou a Mulher Depreciada que corresponde a imagem desvalorizada de Eva da tradição judaico-cristã. Neste período, na divisão social dos papéis atribuídos ao homem e a mulher, havia a dominação social do masculino sobre o feminino. As atividades valorizadas eram as exercidas pelos homens, e os mitos e discursos evocavam a natureza inferior das mulheres. Dos papéis exercidos pelas mulheres somente a maternidade era valorizada.
A segunda mulher é a mulher enaltecida, a cantada em versos e prosa a partir do século XII, quando o código do amor cortês desenvolve o culto da dama amada e suas perfeições. Do século XVI ao XVIII as mulheres são elogiadas por seus méritos e suas virtudes e no Iluminismo sacraliza-se a mulher como esposa-mãe e educadora. A mulher é colocada num trono, onde se enaltece sua natureza, sua imagem e seu papel. Difunde-se a ideia que a força do sexo frágil é imensa e que detém, apesar das aparências, o verdadeiro poder exercendo sua dominância sobre os filhos e seu império sobre os homens importantes. Mas esta mulher era definida pelo homem e não era nada além daquilo que ele queria ou permitia que ela fosse.
A terceira mulher é a mulher contemporânea, fruto do movimento feminista e do advento da pílula anticoncepcional que desvinculou sexo-prazer de procriação. É a sujeita de si mesma, a que dispõe de si e de seu futuro sem um modelo social diretivo. As mulheres ganharam direito à independência econômica, ao poder político, abolindo-se as tradicionais diferenças sexuais. No entanto, apesar das conquistas, Lipovetsky a denomina Mulher Indeterminada pois neste momento ela não anda mais sobre caminhos sociais pré-traçados. Tudo na existência feminina depende de suas escolhas. Casar-se? O que estudar? Que carreira seguir? Ter ou não ter filhos?
Entretanto o movimento feminista como subproduto de um capitalismo avançado, causou um movimento enantiodrômico, que, ao invés de libertar a mulher, acabou por aprisioná-la em uma dinâmica extremamente masculina de competição e produtividade, sacrificando sua natureza mais íntima e feminina, isto é sua dinâmica arquetípica.
No plano do feminino arquetípico, ou naquilo que Jung denominou de anima, é notório o quanto o contexto social contemporâneo vem se mostrando pouco fértil à expressão criativa do arquétipo. O conceito de anima na obra de Jung é bastante controverso e polêmico. Inicialmente ele define a anima como a contraparte da consciência masculina, mas em trabalhos posteriores ele a descreve como a atitude interna, a face interior que se volta ao inconsciente (JUNG, 1986). Mais adiante ele define a anima como o "arquétipo do significado ou do sentido", como alma (JUNG, 2000, p. 42), ideia que Hillman (1995) aprofundou definindo a anima como personificação da alma.
A ideia de Hillman fala de nossa feminilidade psíquica, nossa interioridade, nosso mundo imagético de fantasias e percepções internas, portanto fala da nossa capacidade psíquica de criar imagens o tempo todo.
Jung considerava a psique com sua capacidade de criar imagens, uma instância mediadora entre o mundo consciente do ego e o mundo dos objetos, tanto interiores quanto exteriores. As imagens psíquicas auxiliariam a consciência a pensar além de si mesma. Ao apontar para o desconhecido, para o inconsciente, induziriam o indivíduo a transcender o conhecimento consciente (JUNG, 1986).
A nossa capacidade imagética é o que nos possibilita o entendimento e o relacionamento com o mundo não apenas pela via da razão, mas também pela via dos mitos, dos sonhos, do mundo simbólico. E é desta feminilidade e interioridade psíquica composta por imagens e por nossa capacidade de simbolização que o mundo contemporâneo vem se distanciando.
O mito monoteísta moderno que nos fez crer na busca de um caminho de felicidade através da razão trouxe consequências sérias também na psique coletiva, pois não foi apenas a religiosidade que foi banida da esfera do cotidiano, mas a vivência imagética com todo seu panteão de possibilidades, uma vez que a ideia monoteísta de salvação põe em risco toda a multiplicidade da expressão da alma. As consequentes determinações maniqueístas de bem e mal, certo ou errado, normal e patológico, respingam negativamente na pluralidade da alma, engessando sua mobilidade. A anima continua a ser mutilada dando continuidade a uma antiga misoginia que se confunde com a própria história do feminino.
Para Hillman (1984), esta misoginia desenvolveu-se como um desdobramento do Mito da Criação. Segundo o mito é pela desobediência e pelo desejo feminino simbolizado pela imagem de Eva, que todos os males se abateram sobre a humanidade. A partir desta interpretação misogênica do mito, a imagem do feminino sempre foi relacionada a algo que desestabiliza, traz desordem e é pouco confiável. Em tempos remotos esta simples interpretação levou muitas mulheres à fogueira, tidas como pecadoras, ou mais recentemente a sanatórios psiquiátricos tidas como "histéricas ou loucas". Na modernidade, detectamos os desdobramentos desta misoginia na constante desvalorização do feminino e da característica da anima de criar imagens e fantasias, na resistência em reconhecermos nossa realidade psíquica e mítica. Chamamos lunáticas às pessoas que vivem no "mundo da lua", isto é, que têm como predominante uma consciência imagética, ao invés de egoica. Nossa natureza feminina vem sendo sacrificada em nome de uma consciência unilateral baseada no pensamento lógico e racional, tão distante da linguagem anímica e simbólica própria dos mitos, dos sonhos e do feminino.
Além disso vivemos em uma sociedade consumista, na qual os resultados devem ser rápidos, concretos e eficazes. O feminino, ao contrário desta postura horizontal de conquistas, nos demanda uma dinâmica de aprofundamento vertical, de busca de significados internos. A trajetória do herói pós-moderno é de acúmulo de riquezas, experiências, informações, na tentativa desesperada de não se tornar um looser. A felicidade, estado emocional volátil e complexo, torna-se superficialmente apenas mais uma mercadoria a ser conquistada. Vivemos uma relação capitalista também com nosso funcionamento psíquico. Relações afetivas e equilíbrio emocional tornam-se medidas de sucesso. Dentro de uma dinâmica narcisista, cultuamos o perfeito, valorizamos um feminino que foi entronado pelo cristianismo e que é representado pela imagem imaculada de Maria. Ela, que foi a virgem, a perfeita, a pura. Sacrificamos justamente a natureza do feminino arquetípico, que é a sua imperfeição e incompletude. Citando Jung, em Resposta a Jó (1986, p. 41):
Todo este procedimento constitui na verdade uma exaltação da pessoa de Maria no sentido masculino, uma vez que ela se aproxima da perfeição de Cristo. Ao mesmo tempo representa uma ofensa ao princípio feminino de imperfeição ou da integralidade.
Ficamos identificados com a natureza divina, que é dada pela imagem de Maria, e perdemos justamente nossa natureza mais humana.
3. Sobre a perda de significado
Em um mundo globalizado, onde a distância entre o Eu e o Outro são anuladas, onde a massificação tenta nos tornar todos iguais, abole-se justamente o vazio instigante que se cria a partir das diferenças e distâncias. Vazio que é inicialmente preenchido por nossas fantasias. No mundo contemporâneo, Eu e o Outro somos um só. O Outro é apenas uma extensão de mim mesmo, não preciso mais imaginá-lo, sonhá-lo ou fantasiá-lo. Ele já está ali ao meu alcance direto, como um objeto externo de real concretude. A falta desta descontinuidade entre Eu e o Outro, a falta deste vazio que estimula a fantasia, acaba por empobrecer nossa capacidade imaginativa, simbólica, nosso mundo de imagens. Perdemos nossa capacidade imagética, nossa feminilidade psíquica. Mais uma vez, num mundo já tão diferente do mundo medieval queimamos nas fogueiras do consumismo nossa riqueza feminina, nossa possibilidade de no mundo plural nos aprofundarmos em nossa ambiguidade e criar símbolos significativos que de fato dialogam com nossa alma.
A contemporaneidade deixa sequelas graves em nossa psique, Jung (1989) ensina que a consciência para se desenvolver necessita separar-se do inconsciente e do mundo instintivo, ao mesmo tempo em que necessita alimentar-se destes. O indivíduo ao perder a conexão com o Outro, este outro representante tanto da minha instância interna como da minha instância externa, também perde a conexão com o Si-mesmo, com a sua individualidade e interioridade psíquica, com o seu inconsciente, o que se traduz em perda do significado.
Svendsen (2006) afirma que o significado é o que dá sentido aos elementos individuais de nossas vidas. Não suportamos viver sem algum tipo de conteúdo que possamos ver como constituidor de significado. Na falta de significado pessoal, passa-se a buscar significados substitutos artificiais. Estes são oferecidos pelo consumismo, pelo culto às celebridades, pelas adições por drogas etc. Costa (2004, p. 135) afirma que há atualmente uma corpolatria e que se o corpo vem ofuscando o brilho da mente é porque vivemos em uma sociedade que perdeu sua alma.
4. Transtornos Alimentares
A supervalorização do corpo em detrimento do espírito provocou um novo arranjo de forças em nossa psique propiciando a formação de novos conflitos. Se no início do século XX muitas mulheres apresentavam conflitos no âmbito da sexualidade (mulheres com estes sintomas eram chamadas histéricas), atualmente muitas expressam seus conflitos na área da oralidade. Não somos mais reprimidos na cama, agora somos reprimidos à mesa. O corpo, supervalorizado, continua sendo palco para expressão de conflitos, mas da repressão sexual passamos a apresentar a repressão alimentar; do conflito sexual evoluímos para o que hoje denominamos transtorno alimentar.
Os transtornos alimentares apresentam etiologia multifatorial. Em termos psíquicos os entendemos como decorrentes da dissociação que o Homem contemporâneo apresenta de seu mundo inconsciente e imaginário, dissociação que está ocorrendo, entre outras coisas, por uma supervalorização da razão e da matéria, manifestando-se através de uma idolatria ao corpo. Essa dinâmica nos leva a uma impossibilidade de se perceber e se relacionar com o mundo pela via dos mitos, dos sonhos, e dos símbolos. A nosso ver, os transtornos alimentares são decorrentes da desconexão com nossa alma, ou como podemos dizer, com a anima, o feminino arquetípico.
Para Hillman (1975) um evento externo só é capaz de cultivar a alma, se passar por uma transformação, por um processo psicológico, nossa capacidade de elaboração. O mundo só pode ser acolhido como vivência psíquica e adquirir um significado simbólico se nos aprofundarmos na elaboração da experiência. Se pensarmos em nosso processo de digestão, veremos que não se trata de uma dinâmica diferente. Assim como o processo digestivo transforma o alimento em nutriente, incorporamos e damos significado à experiência, somente depois de uma elaboração psíquica. Precisamos digerir a experiência para que ela se transforme em um alimento para a alma.
A problemática dos transtornos alimentares será pensada a partir da relação entre o modo como a anorexia nervosa, a bulimia nervosa e o transtorno da compulsão alimentar elaboram seus símbolos - processo de elaboração psíquica - e o que acontece no processo digestivo de cada um deles. Por ser um distúrbio que acomete mais mulheres que homens, usaremos o termo anoréticas e bulímicas no feminino.
4.1 Anorexia nervosa
No mundo pós-moderno onde a literalidade reina sobre as imagens, as pessoas com anorexia nervosa vão ter dificuldades em experimentar seu corpo e o alimento em seu aspecto concreto, o que é importantíssimo a sobrevivência. Por não se alimentarem adequadamente não conseguem transformar o alimento em nutriente. Consomem quantidades ínfimas de comida, gerando uma quantidade insuficiente de nutriente. Mesmo comendo quantidades muito pequenas elas sentem que se alimentaram exageradamente, ficando com um sentimento de estarem "cheias", sentimento este causado pelo fato do alimento estar sobrecarregado de seu valor simbólico.Sentem-se vazias, deprimidas, com sensação de inferioridade (Spignesi, 1992). Em busca de um sentido, de um significado, elas procuram um contato com o mundo interior, com Hades.
Hades é o deus dos ínferos na mitologia grega e seu nome designa também o local onde ele reina. O reino de Hades apresenta uma característica interessante, lá não se pode comer sob risco de ficar aprisionado. Hades simboliza o nosso mundo interior, a nossa vida psíquica, ou seja, representa o mundo inconsciente (HILLMAN, 1979).
Na anorexia nervosa ocorre a rejeição ao alimento nutriente porque jejuar, para estas pacientes, é a única forma de entrar em contato com as riquezas do inconsciente, com Hades, e deste modo buscar um sentido as suas existências, de ter um significado. Desta forma, sentem se cheias deste novo alimento, simbólico, tentando preencher o sentimento de vazio em suas vidas. Porém, ficam em Hades retidas, por não conseguirem integrar estes conteúdos a sua consciência.
Estas mulheres só recuperarão sua vida quando suas consciências, alimentadas da riqueza do inconsciente, puderem retornar e se mostrar no mundo da superfície. Só conseguirão resgatar sua identidade quando a ligação entre o mundo dos vivos e o dos mortos for reconectada, quando houver a integração da experiência vivida no mundo imagético com a consciência. Somente ao integrar os conteúdos do inconsciente com o consciente o vazio adquirirá um sentido.
4.2 Bulimia nervosa
No caso de pacientes com bulimia nervosa, os alimentos são ingeridos e descartados de modo a não serem incorporados pelo organismo; o alimento ingerido por ter sido rejeitado, não é transformado em nutriente. O mesmo ocorre com as experiências vividas, elas não são transformadas, elaboradas e integradas à consciência. Em sintonia com a sociedade consumista, caracterizada pelo querer tudo, na bulimia tudo se quer, e tudo se descarta, assim como descartamos os objetos que consumimos. O desejo pelo alimento está relacionado à comilança e não conectado com o trabalho da digestão, da mesma forma, nos relacionamentos o desejo pelo outro se conecta com a sedução e conquista de um novo amante, e não no amadurecimento de uma relação (GADOTTI, 2010). Na bulimia ocorre uma dificuldade na apropriação dos significados, as experiências não são elaboradas, não há simbolização, o que impede a pessoa de se ver interiormente. Há a sensação de um eu vazio. Citando Bauman (2004): "Não olhando o outro nos olhos, torno meu eu interior invisível".
Na bulimia busca-se o objeto desejado sem que se percorra o caminho que o leva a ele, isto é, o caminho da fantasia. Há a manutenção deste intenso estado de desejo que a sensação do vazio proporciona, num ciclo infindável de entupimento e esvaziamento. Há o consumo superficial e voraz de experiências e alimentos, sem a adequada apropriação dos mesmos, que acabam sendo vomitados, descartados, para em seguida sair em busca de algo novo, mais interessante e prazeroso que permita a realização concreta e imediata dos desejos Consome-se comida, compras, e relacionamentos sexuais, para em seguida vomitar a comida, descartar as compras, romper com os relacionamentos, que, ao serem simplesmente descartados, não trazem nenhum ganho à formação da consciência. Por não deixar que o vazio seja ocupado pela fantasia, não conseguem simbolizar esta experiência. No contato analítico sentimos que estas pacientes apresentam justamente estas dificuldades em aprofundar e simbolizar e o subsequente ritual de expurgação que lhes proporciona um vazio excitante. O gozo está em muitas vezes sentir-se esvaziada, para novamente ser preenchida. Poderíamos nos perguntar: será que esta mulher, nostálgica do feminino perdido, não busca justamente o estado de imperfeição e incompletude, próprios da natureza do arquétipo, e que são vivenciados neste vazio? Se concordarmos com esta afirmação, teremos que, infelizmente, assumir o quanto a tentativa é frustrada, pois ao tornar literal esta busca pelo vazio, perde-se a possibilidade de aprofundamento e de simbolização.
Se um dia a histeria denunciou a mutilação da alma, hoje a bulimia também o faz, ao mimetizar uma cultura de consumo, de descarte e de falta de apropriação do que é vivido, na própria alimentação e principalmente na psique. Fomos ardilosamente golpeados pela ilusão de que o mundo pós-moderno, ao abrir as portas das infinitas possibilidades, numa falsa proliferação de experiências, propiciaria também o cultivo da multiplicidade da alma. Mas de fato, o que vivenciamos é um pincelar superficial de possibilidades, como um trailer de filme onde aparecem várias cenas, mas a emoção contida no enredo nos escapa. Ao sentarmos na frente de uma paciente com bulimia nervosa, com toda sua intensidade de narrativas, algo também nos escapa. Talvez a alma, com toda a sua linguagem poética e simbólica.
4.3 Transtorno da compulsão alimentar
No Transtorno da Compulsão Alimentar o alimento é incorporado, nada dele é descartado, tudo é utilizado. O consumo é voraz e sua apropriação acontece apenas no corpo; o corpo se enche, transborda. Este enchimento é uma tentativa de sonhar, de ativar a imaginação, com a liberdade de se fartar.
Aqui não há a descida a Hades, como a paciente com anorexia o faz, numa vivência puramente imagética, mas também não há o descarte que ocorre na bulimia. Aqui a alegria está no consumo rápido, excessivo, solitário, sem limite e em segredo. A relação ocorre com a comida não havendo a possibilidade de uma relação com o outro.
A experiência não se transforma em símbolo e o alimento é um nutriente para o corpo e não para a alma. Sentem um grande vazio de alma e seu objetivo é saciar esta fome mas ao literalizar esta saciedade através do entupimento, se distraem com a comida, e perdem a possibilidade de elaborar as imagens.
Para desenvolver consciência, as pessoas com este transtorno precisam integrar o alimento simbolicamente, tirando-as da concretude da experiência.
5. Conclusão
Apesar das especificidades de cada um destes transtornos, eles nos fazem lembrar o quanto estamos impregnados de uma dinâmica capitalista, focada no resultado, na vivência competitiva do lucro, e no imediatismo, ao invés de nos identificarmos e aprofundarmos com aquilo que é "cozido" dentro de nós, dentro de um tempo e experiências subjetivas, em um processo mais tipicamente feminino de transformação e elaboração de significados.
Referências
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Recebido em: 15/8/2017
Revisão: 13/11/2017
* Psicóloga clínica, Mestre pela Pacifica Graduate Institute, analista membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - SBPA. E-mail: <clamgadotti@terra.com.br>
** Psicóloga clínica, Mestre em Saúde Mental pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo - EPM/Unifesp, analista membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - SBPA. E-mail: <bi.fborges@gmail.com>
*** Psiquiatra, supervisora do Serviço de Psicoterapia no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - IPQ/HCFMUSP, analista-membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - SBPA. E-mail: <soniamdsampaio@uol.com.br>