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Junguiana
versão impressa ISSN 0103-0825
Junguiana vol.37 no.1 São Paulo jan./jun. 2019
A democracia e o arquétipo da alteridade1
Carlos Amadeu B. Byington
Médico Psiquiatra e Analista Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. E-mail: c.byington@uol.com.br, site: www.carlosbyington.com.br
O século XX abre sua última década pensando o holismo do conhecimento (holos = todo). Os pensadores da cultura denunciam e repudiam o saber especializado, que se enclausurou em ilhas. É como se houvéssemos recriado a maldição bíblica da Torre de Babel. Especialistas de grande gabarito, incapazes de se comunicar entre si, porque criaram conceitos e expressões diferentes para descrever o que fazem em territórios comuns. Perde a ciência e perde a cultura.
Junto com o isolamento das especializações, descobrimos o fenômeno do redutivismo, que consiste na redução do todo a uma das partes, que passa a comandar a explicação do todo e a impedir a relação de outras partes com esse mesmo todo. O saber redutivista deixa de ser algo criativo e saudável. Neste final de século, descobre-se que o redutivismo é a maior doença do saber. Como no câncer, no qual as células jovens de um órgão se espalham e matam a pessoa, o redutivismo é algo novo que puxa para si, exclusivamente, a compreensão do todo e, assim, mata nossa capacidade de vivê-lo. Frequentemente, os gênios pioneiros são os culpados do redutivismo. Eles descobrem o novo e com ele se empolgam, a ponto de considerarem tudo mais uma mera consequência da sua descoberta. Isto é compreensível, como é o caso de quem tem um filho e o considera centro do mundo. Muitas vezes, seus seguidores são ainda mais culpados do redutivismo que eles, ao transformarem suas descobertas na única explicação do todo, de forma puramente racional e dedutiva, sem terem, nem mesmo, o envolvimento emocional dos pioneiros.
Por isso, hoje, quem descobre algo precisa resguardar do redutivismo aquilo que cria, pois, quanto maior a descoberta, maior a voracidade do redutivismo para reduzir o todo a ela. Conviver com a totalidade é conviver com um mistério infinito. O preço deste convívio é a dúvida permanente da humildade e o engajamento na busca sem fim do saber.
O Ego e sua vaidade narcísica de poder frequentemente se cansam. É mais cômodo reduzir tudo a alguma verdade imediata. O redutivismo traz segurança e comodidade, pela certeza permanente de se dominar a verdade e o próprio processo do conhecimento. No entanto, o todo não pode se subordinar à parte. O todo, assim reduzido, se vinga e se vai. O Ego redutivista fica empobrecido, apesar de onipotentemente iludido por suas pequenas verdades. Ao reduzir o todo à parte, o Ego se relaciona com uma ilusão caricata do todo e no final perde sua verdadeira relação com ele.
No final do século XVIII, a ciência, finalmente, assumiu o poder na universidade europeia, depois de três séculos de guerra com a Inquisição. Os vitoriosos foram implacáveis com os vencidos e exageraram a punição. Junto com a religião e a prepotência criminosa do Santo Ofício, baniram toda a subjetividade do método científico. Em nome da libertação do saber, tanto tempo humilhado, perseguido, torturado e assassinado, identificaram o subjetivo com a prepotência, a ignorância e a superstição e o excluíram da universidade. Coroaram a objetividade como dona exclusiva da verdade e se sentiram sábios iluminados, que livraram a humanidade para sempre do obscurantismo.
O processo do saber é uma função psicológica dentro de muitas outras. Ao aclamar exclusivamente o objetivo e dissociá-lo do subjetivo, o saber se mutilou e se autocondenou ao materialismo. A Europa do século XIX se orgulhou do seu objetivismo e sobre ele desenvolveu o imenso poderio tecnológico que exportou para o planeta. Apesar de fazê-lo em nome do humanismo iluminista, não se deu conta, a princípio, que, ao dissociar o objetivo do subjetivo no método científico, separara o galho industrial-tecnológico do tronco humanista que lhe dera nascimento. Os grandes pensadores da libertação republicana ficaram enaltecidos e mumificados no século XVIII, como pensadores do socialismo água com açúcar. A célebre frase de Montaigne "ciência sem consciência é a ruína da alma" foi esquecida no museu do "idealismo".
O século XX foi o palco da atuação da dissociação cultural materialista cultuada no século XIX. Ele chega ao fim mostrando de forma insofismável que a democracia não conseguiu acontecer dentro de uma teoria materialista da história e da cultura. Este século termina forçando a conscientização, através da unificação planetária do sistema de comunicação, que o poderio tecnológico apreendido ameaça nossa espécie de genocídio e nosso ecossistema de exaustão e devastação. É isto que nos faz, nesta última década, que é, significativamente, a última década também do milênio, buscar novamente o todo e repensar nossa relação com Ele.
Muitos indivíduos e etnias estão voltando ao todo através do reforço do culto das religiões. A ciência, no entanto, tem o seu caminho próprio a trilhar. Esse caminho não é o mesmo das religiões, pois estas jamais submeteram o questionamento de suas crenças e revelações à análise científica. Mesmo se o tivessem desejado, não poderiam tê-lo feito, pois a ciência, tendo reduzido a verdade à dimensão objetiva, carecia de um método para estudar as manifestações subjetivas dentro da dimensão subjetiva da verdade.
O caminho da ciência, seja ela ciência humana ou da natureza, é buscar a volta ao todo, através do resgate do subjetivo na metodologia científica, e inter-relacioná-lo, significativamente, com o objetivo. É este o desafio do holismo científico. É somente através dele que a ciência poderá sair do racionalismo e do materialismo, nos quais foi encarcerada pelo redutivismo da dissociação subjetivo-objetivo. Esta busca inclui, necessariamente, a reconexão da ciência com o humanismo democrático e socialista que lhe deu origem, antes da dissociação subjetivo-objetivo que ocorreu no final do século XVIII. A ferramenta conceitual que pode empreender esta reconexão pode ser a teoria dos arquétipos, formulada por Jung, se esta for devidamente ampliada para incluir os padrões arquetípicos da consciência individual e coletiva.
Junto com a dissociação cultural subjetivo-objetivo que se implantou no Ocidente, no final do século XVIII, a ciência começou a se reaproximar do subjetivo, ainda que de forma distante e cautelosa. Foi como se, junto com a doença, o organismo cultural começasse a formar um anticorpo para combatê-la. Já no final do século XVIII, Pinel retira os loucos das masmorras para hospitalizá-los, ao mesmo tempo em que Mesmer chega em Paris eletrizando plateias com seus bastões de "magnetismo animal". Na própria conjuntura histórica do seu banimento, o subjetivo começou a ressurgir. A patologia e a energia psíquica criativa começaram a se aproximar da ciência, a duras penas, porém. Pinel quase foi parar na guilhotina e o fenômeno do Mesmerismo foi considerado charlatanismo e "um mero produto da imaginação". Este possível charlatanismo de Mesmer é muito significativo historicamente, pois era devido a ser ele apresentado como "magnetismo animal". Para assegurar seu reconhecimento, de boa ou de má fé, Mesmer vestira o subjetivo de objetivo. Ao constatar que o fenômeno era causado pela imaginação, a comissão da Academia de Paris concluiu que o Mesmerismo não precisava mais ser estudado. Logo a seguir, porém, o subjetivo voltou a se intrometer no espaço científico.
No século XIX, surgiu na medicina o hipnotismo, que era o Mesmerismo com características mais subjetivas. Sua natureza foi ferrenhamente debatida pelas escolas de Paris e Nancy. Este debate simboliza a retomada do contato com o subjetivo, pela ciência médica, até então, reduzida ao objetivo.
Bernheim, discípulo de Liebault e clínico geral em Nancy, achava que todas as pessoas eram hipnotizáveis. Charcot, neurologista e organicista ferrenho, defendia a tese de que somente as pessoas histéricas eram hipnotizáveis. A Academia de Ciências de Paris, depois de relutar por quase um século, finalmente admitiu estudar o hipnotismo, abraçando, porém, a tese de Charcot. Quase no final de sua vida, Charcot, para quem a verdade era maior que a vaidade, finalmente admitiu que a tese de Bernheim estava certa e a sua errada. Por que será que a Academia de Ciências de Paris errara tão redondamente junto com Charcot?
Este "erro", percebido simbolicamente dentro da História, exemplifica mais um capítulo do preconceito contra o subjetivo ser admitido na ciência. Finalmente, ele foi admitido, mas com a condição de permanecer na patologia. O "erro" da Academia de Ciências significava que a ciência só podia admitir estudar o subjetivo se o reduzisse antes ao patológico. Não é preciso dizer que este preconceito médico continua até hoje, pois ainda são numerosos os médicos que rotulam pejorativamente de somatização qualquer manifestação do corpo para expressar um estado psíquico. É como se considerassem que o subjetivo jamais pudesse operar através do objetivo a não ser em casos de doença. Os praticantes do Candomblé sabem o quanto o fenômeno da possessão, integrante normal e corriqueiro do seu ritual, tem sido rotulado de patológico, desde que começou a ser estudado pela ciência psiquiátrica e psicológica.
Um século depois da polêmica entre a Escola de Nancy e a Escola de Paris sobre a normalidade ou não do hipnotismo, o preconceito contra a normalidade e a capacidade criativa do subjetivo continuaram. A Psicanálise, baseada na descrição inicial de Freud do inconsciente reprimido e da transferência, como um fenômeno neurótico devido ao Complexo de Édipo mal-resolvido, enfatizou, sobretudo os aspectos defensivos da psique. Em contrapartida, a Psicologia Analítica de Jung privilegia os aspectos criativos da psique em geral e da transferência, em particular, subordinando suas manifestações patológicas às suas manifestações normais.
Se passarmos para as ciências sociais, vemos quanto esta redutividade do conhecimento ao objetivo tem limitado sua criatividade. Incapaz de perceber sua função subjetiva na organização emocional e social, James Frazer rotulou a magia de ciência bastarda, em função de sua análise exclusivamente objetiva. Este é um exemplo da Antropologia etnocêntrica e objetivocêntrica do início do século e hoje repudiada. No entanto, se o etnocentrismo deformador do saber antropológico está hoje bastante reconhecido e denunciado, o mesmo não se dá com o objetivocentrismo que é, atualmente, o principal viés deformador do etnocentrismo europeu e ocidental. É frequente, ainda hoje, vermos antropólogos com grande dificuldade de cotejar seus estudos objetivos com as reações subjetivas que vivenciam, quer nas culturas estudadas, quer em si próprios.
É comum o estudo da evolução da humanidade, exclusivamente em função do objetivo. Nesse caso, situa-se a humanidade numa escada, cujo degrau inicial é a pedra lascada e os últimos são o controle da energia atômica, os computadores e os satélites. É como se esses cientistas sociais não necessitassem ou se sentissem incapazes de abordar as transformações subjetivas que acompanharam todo esse progresso. O resultado desastroso dessa ciência reduzida ao objetivo é a desconsideração dos valores humanos das culturas, que não acompanharam o desenvolvimento tecnológico, mas que, em muitos casos, têm valores subjetivos e sobretudo uma integração subjetivo-objetiva muito superior ao modelo ocidental.
O culto ao objetivo dissociado do subjetivo no século XIX acompanhou o modelo do desenvolvimento industrial-tecnológico do Ocidente no seu domínio do Planeta no século XX. A dimensão político-social estruturada na divisão entre países capitalistas e comunistas na segunda metade deste século apresentou um redutivismo ao objetivo subjacente a ambos os lados. Aparentemente, para alguns, os países comunistas eram os únicos que haviam assumido o redutivismo completo ao objetivo, com a teoria do materialismo histórico implantada político-economicamente no estado monopartidário ideologicamente ateu e de economia centralizada. Em realidade, porém, os países capitalistas eram igualmente em grande parte dirigidos pela redução ao econômico, medindo o progresso exclusivamente em função do produto interno bruto (PIB) e da renda per capita e tendo como Deus último o dinheiro e o lucro. Nesse sentido, ambos eram materialistas e reduzidos ao objetivo. Um bom exemplo de que um lado não excluía o outro é o Brasil, que criou um sistema estatal gigantesco, ao mesmo tempo em que professava exercer uma economia capitalista.
Apesar de a Democracia só ser exequível dentro de um partilhamento da produção nacional por sua força de trabalho, ela transcende a dimensão econômica. A Democracia é um humanismo. Por conseguinte, não se trata de favorecer o subjetivo em detrimento do objetivo, mas de tratar os dois igualmente. Nesse sentido, ao denunciar a objetividade alienada da ciência, percebida cada vez melhor nas sociedades modernas, preocupa-me o retorno do fanatismo religioso e da superstição ocultista e esotérica, que apresentam o subjetivo como se objetivo fosse. Esta imposição do subjetivo sobre o objetivo é tão redutivista, obscurantista e violentadora da verdade, quanto o redutivismo objetivista professado pelo materialismo. Democracia é um processo de livre interação das polaridades em função do todo e não pode ser identificada com um dos lados de qualquer polaridade, sobretudo com um dos lados da polaridade subjetivo-objetivo.
A ideia da democracia na dimensão política, que envolve a eleição periódica de representantes da nação, os direitos iguais para os cidadãos e a liberdade, se tornou modernamente um tema planetário almejado pela maioria das nações. Esta ideia se fundamenta na livre interação das polaridades em função do todo. É para haver esta interação povo-governo que se torna necessária a representatividade eleitoral e sua renovação periódica. A devastação ecológica tem causado a inclusão da ecologia em todas as plataformas modernas de governo e tem chamado a atenção para o fato de que, para a sobrevivência da espécie, não basta a interação dialética das polaridades em nível político. É preciso praticar essa interação democrática Eu-Outro também na relação ser humano-natureza, ou seja, em função do ecossistema. É preciso respeitarmos os direitos humanos, mas também os direitos dos animais, dos rios, do ar e da natureza em geral, para sobrevivermos. Essa interação dialética ser humano-natureza tem todas as características da democracia. Quando um padrão de relacionamento começa a transpor uma dimensão humana para outra, abre-se uma boa oportunidade de compreendê-lo arquetipicamente, ou seja, como uma estrutura ontológica comum a mais de uma dimensão.
Além deste denominador comum ser observado na democracia política e na ecologia, o movimento holístico do saber moderno, ao denunciar a setorização estagnante do saber, como que prenuncia a necessidade de um processo de interação permanente da parte com o todo, que impeça o redutivismo de voltar a se instalar como antes. Estes vários fatores instigam à concepção do Arquétipo da Alteridade, como o Arquétipo da Democracia. No entanto, ao concebê-lo, notamos que só podemos fazê-lo se ampliarmos o conceito de arquétipo de Jung para englobar também a consciência além do Inconsciente Coletivo. De fato, não podemos entender a relação democrática Eu-Outro sem a participação da consciência individual e coletiva. Ao dar esse importante passo, descobrimos que o redutivismo da psicologia ao inconsciente encobria e mantinha a dissociação sujeito-objeto na epistemologia.
1. O Redutivismo da Psicologia ao Inconsciente
Como assinalei, a medicação para a dissociação do ser cultural em subjetivo e objetivo começou junto com sua instalação no final do século XVIII, quando a ciência tomou o poder na universidade. O subjetivo, aos poucos, dirigiu-se para o reencontro do objetivo. Vimos como à liberação dos psicóticos e à entrada de Mesmer em Paris, no final do século XVIII, seguiu-se o reconhecimento do hipnotismo, como fenômeno normal, no final do século XIX. Estas foram etapas importantes na busca da reunião do subjetivo com o objetivo, que, infelizmente, ainda está longe de acontecer plenamente.
A teorização do inconsciente dinâmico por Freud teve um enorme impacto, no início do século XX, a ponto de ter sido considerada praticamente o marco fundador da Psicologia Moderna. Freud ampliou os poderes da psique, da imaginação, que além de mesmerizar, de hipnotizar e ser hipnotizada, podia também sonhar, fazer atos falhos, formar sistemas e defesas, inconscientemente, aos quais conscientizava pela associação livre e pela transferência. A resistência (também descrita por Freud), porém, voltou a atuar sobre o subjetivo. Novamente, as características patológicas do inconsciente foram realçadas, em detrimento das criativas e normais. E pior. O subjetivo foi reduzido, extraordinariamente, às suas características inconscientes recém-descobertas, em detrimento das suas características conscientes já reconhecidas, principalmente pela filosofia.
2. A Descoberta dos Arquétipos não Escapou do Redutivismo
Jung desvencilhou a Psicologia do redutivismo do patológico, ao descrever os arquétipos do Inconsciente Coletivo, como as matrizes da criatividade psíquica normal, nos sonhos, nas obras de arte e nos mitos. Descreveu os arquétipos, também na patologia psíquica, como por exemplo, no delírio dos psicóticos. A perspectiva arquetípica, que privilegia a criatividade psíquica no desenvolvimento da personalidade, foi adotada por Lacan na Psicanálise sob o conceito do imaginário. Os conceitos do imaginário e do arquétipo são, a meu ver, análogos.
No entanto, Jung não escapou do redutivismo ao inconsciente e descreveu os arquétipos exclusivamente como parte do Inconsciente Coletivo, do qual emergiria a consciência, como produto secundário, da mesma forma que fizera Freud. Isto impede o reconhecimento de um arquétipo por trás de um padrão de funcionamento da consciência, como descreverei na Democracia.
Para resgatarmos, definitivamente, o subjetivo e o situarmos lado a lado com o objetivo numa ciência verdadeiramente holística, restam-nos dois grandes passos a dar. O primeiro, é livrarmos o conceito de arquétipo do redutivismo ao inconsciente e estendê-lo também ao consciente. Somente assim compreendemos o que são os padrões arquetípicos da consciência, dentre os quais descreverei a relação dialética Eu-Outro, característica da Democracia, como expressão do Arquétipo da Alteridade. Este passo já é muito grande. O segundo, porém, é muito maior. Ele consiste em estendermos o conceito de realidade psíquica para abranger a realidade subjetiva (do Eu) e objetiva (dos objetos, concretos e abstratos). Se o primeiro é um passo de gigante, o segundo requer uma verdadeira bota de sete léguas. Concentrarei o restante deste artigo no primeiro passo. Caso o leitor se interesse pelo segundo, que envolve a descrição epistemológica da ciência simbólica, englobando a realidade subjetiva e objetiva, peço-lhe para ler meu artigo "Ciência Simbólica. Epistemologia e Arquétipo" no livro O Novo Paradigma Holístico (São Paulo, Ed. Summus, 1991). Uma cópia xerox deste artigo se encontra na Secretaria da Sociedade de Estudos da Cultura Negra do Brasil (SECNEB) à disposição dos interessados.
Não vou desenvolver a problemática deste segundo passo aqui, mas vou lançar mão de algumas de suas consequências. Assim, o conceito de Self (o si-mesmo), que Jung usou para descrever a totalidade psíquica individual, pode agora ser ampliado para englobar o grupo, seja ele familiar ou social. Com isto chegamos ao conceito de Self cultural que formulei pela primeira vez na conferência que proferi na SECNEB em 1982. O conceito de Self cultural nos permite perceber os vários padrões arquetípicos atuando na consciência coletiva e, dentre estes, estudar o padrão de Alteridade, característico da Democracia.
A possibilidade de percebermos o Self individual e Self cultural como um conceito que engloba os arquétipos e a relação consciente-inconsciente é fundamental para reunir Psicologia, Sociologia e Antropologia. A percepção da relação Eu-Outro, nestes diferentes níveis, como expressão de arquétipos comuns ao individual, ao social e à natureza nos permitirá observar um fato da maior importância, ou seja, que o Arquétipo da Alteridade é comum ao amor, à Democracia, à Ciência e à Ecologia. Vejamos um pouco mais dos padrões arquetípicos da consciência para depois nos aprofundarmos no padrão da Alteridade.
3. Os Quatro Padrões Arquetípicos da Consciência
Quando ampliamos o conceito de arquétipo para englobar também a consciência, saltam-nos aos olhos com veemência, quatro padrões característicos que representam verdadeiros protótipos da relação Eu-Outro na mente humana. Isto faz com que possamos privilegiar, dentre a possibilidade infinita de arquétipos, os quatro arquétipos responsáveis por estes padrões e denominá-los arquétipos regentes.
Denomino padrão ou dinamismo arquetípico regente à forma como cada um destes quatro arquétipos opera na relação Eu-Outro. Temos, assim, o dinamismo ou padrão matriarcal, regido pelo Arquétipo da Grande Mãe. O dinamismo ou padrão patriarcal, regido pelo Arquétipo do Pai. O dinamismo ou padrão de Alteridade, regido pelo Arquétipo de Alteridade, que engloba os Arquétipos da Anima, do Animus e do Coniunctio, descritos por Jung. Finalmente, temos o padrão ou dinamismo de totalidade, regido pelo Arquétipo da Sabedoria. Estes quatro arquétipos operam juntos na psique, podendo cada um se tornar dominante em momentos ou em longos períodos. Eles constituem o quatérnio arquetípico regente que é, por assim dizer, o Estado-Maior ou o Ministério da psique. Este quatérnio é, por sua vez, regido pelo Arquétipo Central da psique (também chamado de Self por Jung). O Arquétipo Central é o centralizador e coordenador de todo o desenvolvimento psicológico individual e cultural. Ele é o "grande comandante" ou o "presidente" da psique.
Estas imagens são muito relativas, pois os arquétipos são matrizes de imagens ou padrões de relacionamentos. São imaginários e dependem da conjuntura individual ou social para serem ativados. Não os vemos, somente os inferimos. É um grande erro tornar os arquétipos agentes e dizer que fizeram isto ou aquilo. Quando nos apaixonamos, por exemplo, sabemos que estão ativados ou constelados os Arquétipos da Anima na personalidade do homem ou do Animus, na mulher. Esta ativação não é que causa o Amor. A ativação ocorre em função do encontro das duas personalidades, da natureza de cada uma delas e do momento existencial. Todavia, temos certeza que o Arquétipo da Anima ou do Animus está constelado, pois todo o ser da pessoa apresenta um conjunto de reações características que identificam o arquétipo. Seu Eu, nem que queira muito, pode invocar ou propiciar, mas não pode produzir esse estado. Só o arquétipo pode fazê-lo.
É importante conhecermos cada um dos quatro arquétipos regentes e sua interrelação. Nada no ser humano pode acontecer sem a ativação de, pelo menos, um desses arquétipos regentes. Quando algo acontece, somente com a ativação de um, logo os outros também são ativados e respondem. As vivências têm sempre componentes, objetivos e subjetivos. As vivências são todas símbolos do Self, pois expressam uma parte da psique. A estrutura do Eu não tem a capacidade de participar de uma vivência, ou seja, da elaboração de um símbolo, isoladamente, pois ela é coordenada por um ou mais arquétipos.
É da maior importância entendermos também a recíproca do que foi dito acima. Se o Eu individual e coletivo não pode se exercer sem os arquétipos, a recíproca também é verdadeira. Os arquétipos sem o Eu e a consciência nada são. Isto faz com que os arquétipos, como os genes, sejam inseparáveis da história e da cultura em que operam. Isto não é fácil de entender porque, ao definirmos os arquétipos e os genes como universais, os tratamos como trans-históricos e transculturais. No entanto, ao admitirmos que eles só podem atuar através de indivíduos e culturas, que estão sempre inseridos na história, concluímos que qualquer emprego da perspectiva arquetípica indiferente ao contexto histórico está teoricamente distorcido e errado.
Antes de abordarmos diretamente o Arquétipo da Alteridade e a Democracia, vejamos, sumariamente, cada um dos quatro dinamismos arquetípicos e seus respectivos arquétipos regentes.
A importância para a cultura de reconhecermos o fundamento da Democracia como o Arquétipo da Alteridade não deve ofuscar a importância de reconhecermos os dinamismos matriarcal e patriarcal como arquetípicos. O uso do matriarcal como matriarcado, reduzido à mulher, às deusas mães, à descendência matrilinear e matrilocal, enfim, ao direito materno e do patriarcal ao homem, ao patriarcado e ao direito patrilinear têm levado a generalizações e distorções que muito prejudicaram o emprego destes conceitos tão valiosos. Estes conceitos se acham hoje muito difundidos, mas abandonados pela ciência oficial, o que levou ao seu emprego de forma muito confusa e imprecisa.
A pior consequência deste emprego redutivo dos dinamismos matriarcal e patriarcal foi o redutivismo evolucionista que ocorreu a partir da obra de Bachofen. Como sabemos, em "O Direito Materno", de 1870, Bachofen publicou a importantíssima teoria, segundo a qual, a descendência matrilinear havia precedido a patrilinear na humanidade. Este fato foi usado pelo etnocentrismo patriarcal para situar-se de forma mais evoluída que a matriarcal e contribuiu para a desvalorização dessa grande descoberta. Com o enfoque arquetípico, podemos retomá-la.
O leitor que conhece as publicações da Escola Junguiana poderá exercer a crítica de que Erich Neumann, que estudou muito o Arquétipo da Grande Mãe, o tenha situado antes do Arquétipo do Pai na formação do Ego. Neumann tendeu a reduzir o matriarcal ao feminino e o patriarcal ao masculino e o mesmo fez Jung com os conceitos da Anima e do Animus. Concordo, perfeitamente, que, ao tornarmos qualquer arquétipo unipolar, principalmente no que se refere a uma polaridade tão importante quanto a polaridade masculino-feminina, retiramos-lhe a bipolaridade, que é uma das características que permite a abrangência do conceito de arquétipo. Devido a isso, emprego todos os arquétipos, inclusive os arquétipos regentes e seus dinamismos com total bipolaridade.
O redutivismo evolucionista é o que tem mais prejudicado o emprego do conceito de matriarcal e patriarcal, até mesmo, quando usados arquetipicamente. O fato do dinamismo matriarcal ser o mais básico, na vida psíquica individual e muito provavelmente também na vida coletiva, faz com que ele corra o perigo de ser considerado o mais "primitivo" e logo, inferior ao patriarcal. Isto é desastroso para a ciência antropológica, pois se presta ao etnocentrismo e até ao racismo, sobretudo contra aquelas culturas, como a hindu e muitas culturas negras e índias, que expressam e cultivam o dinamismo matriarcal exuberantemente.
A perspectiva arquetípica é muito útil para evitar esse redutivismo ao "primitivo", pois define todo arquétipo como um patrimônio genético da espécie, presente em todos os indivíduos e em todas as culturas. Assim mesmo, precisamos nos resguardar do redutivismo do matriarcal ao "primitivo", quando comparamos os dinamismos e nos damos conta que o matriarcal é mais próximo da vida inconsciente e vegetativa, o patriarcal mais abstrato que ele, o de Alteridade mais capaz de diferenciar o padrão de relacionamento Eu-Outro que os outros, e o dinamismo de totalidade, mais capaz de perceber o todo que os demais. Estas características podem e devem ser usadas em cada indivíduo e cultura e, até mesmo, comparativamente para perceber o grau de diferenciação de cada função ou símbolo. Nunca, no entanto, pode-se chegar a usar estas características para situar um indivíduo ou cultura acima ou abaixo, melhor ou pior que outra, por apresentar mais exuberantemente um ou outro dinamismo arquetípico.
A comparação valorativa entre os arquétipos é impossível e cientificamente errada, pois todos os arquétipos são funções da psique. Estas funções se destinam a atividades diferentes e, por isso, uma é melhor ou pior que a outra para determinada função, o que não a torna melhor ou pior que a outra em sentido absoluto.
Você já viu alguém ensinar uma pessoa dançar pelo dinamismo patriarcal, racional e abstratamente, através do "dois pra cá, um prá lá"? No fim, sai um autômato. O melhor dinamismo arquetípico para a dança é o matriarcal. Solta-se o corpo, embalando no ritmo, e um dia o passo acerta, se é que existe o passo certo. Por outro lado, não se pode vender um computador para funcionar um dia de um jeito, outro dia de outro, em função da sua espontaneidade. O resultado também seria uma caricatura e a firma logo iria à falência.
A dificuldade de se entender os dinamismos arquetípicos com a isenção científica para interpretá-los corretamente é o grande número de situações difíceis e traumáticas que cada indivíduo e cultura tem na sua história com cada um deles. Outro fato que dificulta essa isenção é que, da mesma forma que um indivíduo ou cultura tem melhor ou pior facilidade para cantar e dançar, assim também indivíduos ou culturas têm maior ou menor facilidade para exercer um ou outro dinamismo arquetípico. Nem tudo, nessa variação, pode ser explicado historicamente. Numa família, na qual o ouvido musical é péssimo, às vezes nasce um filho com ouvido musical ótimo. Certas aptidões e deficiências, que vemos nos superdotados e nos subdotados, fazem-nos pensar em características genéticas diferentes nos próprios arquétipos, referentes à sua capacidade de diferenciação. Isto limita a generalização pura e simples dos arquétipos pelo fato de serem universais e comuns a todos os seres humanos. A comparação com a genética nos é aqui outra vez muito útil. A habilidade de ver, ouvir e sentir o gosto é genética, como sabemos, o que não evita que a capacidade das pessoas para exercer esses sentidos seja muito diferente.
A melhor forma de conhecermos e aplicarmos corretamente os dinamismos arquetípicos regentes é imaginá-los, sempre presentes, atuando lado a lado na psique como um todo. Vejamos a descrição de cada um deles, em separado, antes de percebê-los, junto com o dinamismo de Alteridade, atuando na Democracia.
4. Dinamismo Matriarcal (Arquétipo da Grande Mãe)
É o dinamismo mais básico da psique. Seus princípios fundamentais são os de sobrevivência e propagação da espécie, daí sua essência se expressar pelo prazer da sensualidade e da fertilidade. O estudo e a compreensão do dinamismo matriarcal têm sofrido intensamente com o viés patriarcal dominante no Ocidente. A austeridade do dinamismo patriarcal dominante reduziu, historicamente, na psicologia, o dinamismo matriarcal ao princípio do prazer, ao feminino, ao infantil, ao "bom selvagem" e ao narcisismo primário. Ao mesmo tempo em que reduzia o dinamismo matriarcal ao princípio do prazer, a dominância patriarcal de nossa tradição histórica se identificava com o princípio da realidade. Nada mais redutivo e preconceituoso. O dinamismo matriarcal é fundamental na vida desde o nascimento até a morte e abrange igualmente o homem e a mulher, os idosos e as crianças.
O Arquétipo da Grande Mãe, que rege o dinamismo matriarcal, se expressa na mitologia pelas imagens das deusas e dos deuses da fertilidade, geralmente representativos das forças da natureza. Na personalidade, o dinamismo matriarcal se expressa pela grande intimidade emocional, pela sensualidade, pela expressividade exuberante das emoções em grupos e das funções corporais, cultivando o preparo de comidas e bebidas, a dança e o canto, a sexualidade, o sentimento e a intuição.
O padrão de consciência que caracteriza o dinamismo matriarcal é uma grande proximidade da relação Eu-Outro. A proximidade da polaridade consciente-inconsciente é aqui tão grande que a relação Eu-Outro forma inúmeras ilhas na consciência, ligadas entre si por nuances inconscientes, que impedem sua integração numa lógica racional abrangente. Sua lógica, porém, existe e, apesar de frequentemente inconsciente e inexplicável, é inegável. Trata-se da lógica da vida, da sobrevivência e da fertilidade. É ela que permite a intuição, a mediunidade e a possessão tão comuns neste dinamismo.
Descrevo a relação Eu-Outro matriarcal como binária, porque a intimidade psíquica na qual ela ocorre, torna difícil uma abstração maior. Aqui está sua grande vantagem e desvantagem. Vantagem no desempenho dos cuidados e atendimento às forças vitais, sejam elas de uma criança que chora por comida, companhia e carinho, do corpo que pede expressão, atenção e satisfação ou da natureza em geral. Desvantagem porque este intenso apego impede um desapego sensual e afetivo, um afastamento suficiente para o Eu se relacionar além do binário numa abstração maior e mais abrangente.
5. Dinamismo Patriarcal (Arquétipo do Pai)
É o dinamismo da abstração que permite um grande desapego da sensualidade e dos sentidos, de um modo geral. Ainda que o dinamismo matriarcal seja naturalmente preponderante no início da vida do bebê, não existem limites de sexo e idade para o matriarcal e o patriarcal. O matriarcal, a esse respeito, tende a se expressar sempre que houver necessidade de cuidado e aconchego, e é, por isso, naturalmente dominante na primeira infância e na velhice.
Devido à capacidade de abstração do dinamismo patriarcal, ele é o principal arquétipo organizador dos limites, das leis, dos deveres e metas da vida individual e social. Esta característica advém do fato dele proporcionar um acentuado afastamento entre o Eu e o Outro e entre as polaridades, em geral, inclusive entre a polaridade consciente-inconsciente. Esta forma de operar lhe permite ser frequentemente ternário. O Eu opera com o Outro em função de polaridades. Ao posicionar-se de um lado, o Eu se preocupa em justificar porque não está do outro. O certo é adotado com a mesma preocupação com que o errado é definido e proibido. O mesmo ocorre com a polaridade justiça-injustiça, bom-mau, feio-bonito e todas as demais.
Esta maior capacidade de desapego sensual e de abstração do dinamismo patriarcal lhe permite um enorme apego à organização e ao poder de controle sobre o corpo, as pessoas, as emoções e a natureza. O Eu e o Outro, funcionando ternariamente, podem se associar em grandes cadeias lógicas e formar sistemas muito abrangentes de rotulação, planejamento e execução. Isto faz com que o dinamismo patriarcal compita, antagonize e tenda a bitolar permanentemente o dinamismo matriarcal. É que o matriarcal, pelo próprio imediatismo da força sensual da vida, tende a contrariar o planejamento patriarcal, que passa a lhe temer e rotular preconceituosa e pejorativamente.
Pelo fato da tradição cultural do Ocidente apresentar forte predominância patriarcal, com grande repressão do matriarcal, devido às suas raízes romanas e judaico-cristãs, o viés cultural contra o matriarcal é imenso. Ora, acontece que as culturas afro-brasileiras e índias apresentam grande exuberância do dinamismo matriarcal, o que contribuiu muito para serem consideradas inferiores pelo etno-centrismo europeu. Assim, o resgate do dinamismo matriarcal reprimido, junto com o reconhecimento do seu importantíssimo papel na vida individual e social são uma parte essencial da implantação da Democracia no terceiro mundo, através do dinamismo de Alteridade. É chegado o momento de passar-lhe a palavra.
6. O Dinamismo de Alteridade
Trata-se do dinamismo arquetípico mais diferenciado para o relacionamento existencial e, por isso, seu princípio essencial é o chamado para o encontro através do engajamento pelo conhecimento, pelo amor e pela entrega.
Esta busca de encontro pleno nos remete a três componentes básicos do dinamismo de Alteridade: igualdade, liberdade e totalidade. Igualdade não no sentido de tudo ser a mesma coisa, mas de haver oportunidades iguais para a expressividade do Eu e do Outro com suas diferenças preservadas. Liberdade sem a qual é impossível a plena expressividade do Eu e do Outro na sua interação dialética. Totalidade porque essa busca de expressividade e encontro pleno impulsiona o Eu e o Outro permanentemente a uma realidade que os transcende e abrange.
Ao ser ativado para a busca do encontro, o Arquétipo da Alteridade tem uma relação muito especial com os dinamismos matriarcal e patriarcal. Por um lado, ele luta pela interação livre e igualitária, destes dois dinamismos, junto com todas as demais polaridades psíquicas. Por outro lado, ele se esforça para vivenciar a sensualidade matriarcal e a organização patriarcal, sem se identificar ou ser dominado por eles.
Para se compreender o que é o dinamismo de Alteridade, além do que já foi dito acima, é preciso conhecer o seu padrão quaternário de relacionamento. A esse respeito, é importante registrar que Jung descreveu o quatérnio como um dos símbolos da totalidade psíquica. O dinamismo de Alteridade, ao ser quaternário, busca a totalidade do que pode oferecer um relacionamento. Por isso, o Arquétipo da Alteridade é o Arquétipo da Ciência, do Amor, da relação dialética com nosso ecossistema e da Democracia. Trata-se do Arquétipo que propicia a criatividade psíquica mais diferenciada para a realização plena do ser humano na dimensão individual, familiar e cultural, inclusive na ecológica.
O dinamismo de Alteridade é quaternário porque nele a personalidade e a cultura adquirem a capacidade de perceber a dualidade do Eu em interação criativa com a dualidade do Outro. Através da Alteridade, o Self se abre para a dúvida permanente, na qual o Eu revela seu lado seguro, conhecido e forte, ao mesmo tempo em que abre a porta de acesso aos seus aspectos inseguros, pouco conhecidos e vulneráveis. Como diria Jung, trata-se de um Eu capaz de apresentar sua Persona e também confrontar sua Sombra. A busca deste encontro profundo e total suscita do Eu e do Outro o despojamento do egoísmo e do narcisismo para exercerem a interação dialética com suas respectivas dualidades em busca de uma síntese que os abrange e transcende.
7. O Dinamismo de Totalidade
Regido pelo Arquétipo da Sabedoria, este dinamismo é o auditor da psique, ou seja, é o contador existencial, que quando ativado nos encaminha para perceber o balanço geral do processo existencial até aquele momento.
Esta percepção da totalidade envolve uma grande abstração, na qual figuram, lado a lado, as polaridades do bem e do mal, do certo e do errado, da esperança e da frustração, do sucesso e do fracasso.
Presente e atuante durante toda a vida, como os outros três arquétipos regentes, o dinamismo de totalidade tende a predominar na velhice. Ele abrange os Arquétipos do Velho Sábio e da Velha Sábia, descritos por Jung.
Antes de abordarmos mais o Arquétipo de Alteridade na Democracia, vejamos sucintamente a sua expressão na Ciência, no Amor e no ecossistema.
8. Alteridade e Ciência
A dimensão científica que não dissocia a subjetividade da objetividade só pode ser exercida, metodologicamente, dentro do padrão de Alteridade. O exercício quaternário da interação subjetivo-objetiva permite ao pesquisador empregar o acerto e o erro para referir a dualidade do subjetivo. Pode também empregar a imaginação para pesquisar a exatidão ou inexatidão da realidade concreta do Outro.
Quer se dê conta ou não, o pesquisador científico está sempre dominantemente influenciado pela dimensão da Alteridade. Ao empreender sua pesquisa, ele imagina, de algum modo, um fenômeno que quer melhor conhecer. O desenvolvimento de sua pesquisa se caracterizará pela interação quaternária da dualidade subjetiva e da dualidade objetiva através da qual o subjetivo e o objetivo esclarecerão sua realidade através da polaridade erro-acerto inerente ao método experimental e ao confronto com a realidade operacional.
9. Alteridade e Amor
A passagem da paixão para o amor também requer o exercício quaternário da Alteridade. Na paixão, a indiferenciação do Eu e do Outro é bem conhecida de todo aquele que já se apaixonou. Esta fusão idílica é, porém, efêmera, pois logo começam a surgir elementos do Outro diferentes do Eu e vice-versa. Ativou-se o quatérnio. Instala-se a passagem da paixão para o amor, na qual sucumbe a imensa maioria dos apaixonados. Muitos elementos do Outro são apenas diferentes do Eu, mas outros desagradam ao Eu. O problema se torna complexo e difícil quando o Eu é ameaçado pelo fato de que muitas dessas características do Outro, que não lhe agradam, pertencem à sua própria sombra e vice-versa. Ao denunciá-las no Outro, este as aponta também no Eu. As coisas se complicam. É um fogo cruzado. Há necessidade de abertura, coragem e despojamento narcísico. O encontro profundo exige a capacidade de entrega do Eu e do Outro. Negar-se a admitir sua Sombra é fatal, mas para admiti-la, há que confrontá-la e mudar. Ao confrontar a Sombra, a admiração do parceiro cresce e o amor frutifica. Ao fugir da Sombra vem a decepção e a morte do amor. Nem sempre as surpresas vêm pela Sombra. Muitas vezes, a paixão fusiona as personalidades de tal forma que a simples percepção do Outro inicia o fim do amor.
10. Alteridade e o ecossistema
A consciência planetária está despertando para a necessidade de uma interação com a natureza que assegure a sobrevivência da espécie. O conceito de ecossistema, que envolve a conscientização da interação dialética do ser-humano com o meio dentro de um todo é inseparável da ativação do Arquétipo da Alteridade.
A dominância patriarcal histórica comandou um conflito de agressão e controle do dinamismo matriarcal que envolveu a natureza. A mãe terra devia ser dominada, escravizada e espoliada para o gáudio dos seus conquistadores. A lei da sua escravidão não tinha meias medidas. Nós retiraríamos dela nosso alimento e a despojaríamos de seus recursos. Além disso, ela deveria engolir de volta nossos dejetos sem a menor consideração. O fruto dessa relação perversa surgiu nos sintomas de seu esgotamento.
O Self Planetário está ameaçado, junto com o Self de todas as culturas. É chegado o momento de se atentar para o perigo da dominância patriarcal na relação humana com a natureza. O Arquétipo da Alteridade está se ativando progressivamente. Seu dinamismo quaternário se implanta aos poucos na consciência para exercer a dialética dentro do ecossistema.
11. Alteridade e Democracia
A contribuição de Jung do conceito de arquétipo no inconsciente coletivo, ampliada para englobar também a consciência, nos permite reconhecer os quatro padrões arquetípicos da consciência e perceber sua interação e as consequências da sua dominância.
O reconhecimento do padrão quaternário de Alteridade, regendo a relação dialética Eu-Outro dentro do todo, nos admite reconhecer a separação sujeito-objeto na mentalidade positivista do século XIX, como uma dissociação cultural patológica que mutilou o ideal democrático humanista do Iluminismo. A percepção da necessidade da interação dialética dentro do todo cultural para a transformação histórica nos permite resgatar a dissociação subjetivo-objetiva e reunir as ciências humanas e da natureza dentro de um humanismo científico holista.
Este conceito ampliado de arquétipo nos admite também retomar a noção de matriarcal e patriarcal como padrões arquetípicos da consciência. Percebemos o quanto sua redução, na Antropologia, exclusivamente a uma forma de regulamentação social, seja de casamento, distribuição do poder institucional ou da herança, dificultou a identificação da sua natureza arquetípica.
A identificação dos dinamismos arquetípicos matriarcal, patriarcal, de Alteridade e de totalidade faz crer que possamos rever a história do ser humano no planeta de uma nova forma. Lado a lado ao progresso tecnológico das culturas do paleolítico até os satélites computadorizados e o controle da energia atômica, podemos perceber, desde o início até hoje, as manifestações e a interrelação destes mesmos arquétipos, nos costumes e na consciência coletiva da humanidade. Com isso, nos libertamos de um pensamento evolutivo tecnológico linear como indicador do que é evolução e progresso. Nos damos conta que nem sempre o progresso tecnológico foi acompanhado por uma maior expressividade de todos os arquétipos dentro da cultura. Pelo contrário. O progresso tecnológico, sobretudo depois da fusão dos metais, foi, muitas vezes acompanhado de uma maior predominância do dinamismo patriarcal sobre o matriarcal, com o empobrecimento dos rituais, símbolos e costumes de muitas culturas. Assim, frequentemente, o progresso tecnológico acentuou o fenômeno da mais-valia na produtividade entre os arquétipos e da alienação do Self, se é que Marx nos daria licença para empregar seus conceitos na energética da economia psíquica.
Este enfoque arquetípico da transformação humana no planeta nos permite reaproximar Etnologia e História e retomar uma Antropologia comparada livre do etnocentrismo patriarcal. Tomando como termo de comparação não a tecnologia, mas o que se faz com ela para a expressividade do Self cultural vemos que muitas culturas tribais, têm uma expressividade arquetípica muito mais exuberante e sofisticada que muitas culturas industrializadas. A Antropologia comparada retoma assim um papel pedagógico do maior significado.
Simplesmente para exercitar sumarissimamente este raciocínio arquetípico, podemos perceber três grandes períodos de dominância arquetípica no Planeta. O longuíssimo período de dominância matriarcal expresso na antiguidade e que vem até o início da fundação das cidades no quinto milênio a.C. O período de dominância patriarcal emerge nessa época e propicia a formação dos grandes impérios que culminam no Império Romano. O período de dominância da Alteridade esboçado na Grécia e na República Romana, reforçado pelo Mito do Buddha no Oriente e pelo mito Judaico-Cristão no Ocidente, emergente nas ciências modernas e no socialismo do humanismo iluminista e retomado hoje na busca da democracia social e da relação dialética no Ecossistema.
12. A Interação Quaternária do Dinamismo de Alteridade
A complexidade e a dificuldade da dialética de Alteridade residem no seu padrão quaternário, que opera dentro das polaridades humanas.
Quando o Outro é reduzido ao "inconsciente reprimido e temido", como aconteceu na psicologia ou ao "capitalista explorador", como ocorreu na economia política, a dialética é patriarcalizada e a Alteridade impossibilitada. Tudo fica muito mais simples, mas o todo não muda realmente. A posição do analista e do político, neste caso, se tornam unidirecionais. Basta-lhes modificar o Outro. O analista deve vencer a resistência do seu paciente para enfrentar o inconsciente. O político deve propiciar a luta de classes para que o explorado domine o explorador.
A patriarcalização do relacionamento torna a estratégia de ação muito mais direta e executiva que na Alteridade. O Eu se fixa numa posição para mudar o Outro de uma posição para outra, as três preestabelecidas. A estratégia de relacionamento patriarcal alimenta o Eu com grande certeza operativa e o transforma em dono da verdade. É a estratégia do poder e da dominação. Nela, o analista e o político interpretam rotulando a realidade do Outro. Este maniqueísmo necessita permanentemente de um bode expiatório. O Outro, que resiste à interpretação, é um neurótico para o analista e um fascista reacionário para o político. A visão patriarcal é simples de compreender e de exercer, mas conduz inexoravelmente a uma estratégia de prepotência, de arrogância, de intolerância, de dogmatismo e de opressão, quando por ventura assume o poder.
No dinamismo de Alteridade, o relacionamento quaternário torna as coisas muito mais difíceis, mas, em compensação, e por isso mesmo, seu potencial de transformação é muito maior. O Eu não se torna amorfo e sem convicção, longe disso, mas admite a possibilidade de errar quanto ao julgamento do Outro. Aumenta com isso, extraordinariamente, a respeitabilidade do Eu para com o Outro e a necessidade do exame cuidadoso que inclui a escuta do Outro pelo Eu, antes de chegar a qualquer rotulação sobre a posição do Outro, se certa ou errada, se progressista ou reacionária. E mais.
A Alteridade é permeada de cabo a rabo e não pode ser exercida, sem a vivência de que o Outro é imprescindível para o Eu chegar ao todo. Esta vivência inclui a noção de que o ódio e a rejeição do Outro acompanham, de alguma forma misteriosa e secreta, o Amor e a atração por ele. Atração e repulsão, ódio e amor, são movimentos presentes na Alteridade, da mesma forma que a sístole e a diástole compõem os batimentos do coração.
Assim, o consciente e o inconsciente se temem, se afastam e se atraem. Casam-se e se divorciam permanentemente. Da mesma maneira, as classes sociais. Sua oposição é proporcional à sua atração, pois necessitam interagir para formar o todo social.
O inconsciente é temido pelo Eu. Trata-se de um Outro ameaçador, pois contém o reprimido. É a caverna perigosa que abriga os terríveis dragões do parricídio e do incesto. É fascinante porque a agressividade e o sexo são partes da vida, mas aterrorizante, porque sua realização é a catástrofe. Mas isso não é tudo. Ao lado da Hidra de Lerna e do Leão de Neméia, está o Jardim das Hespérides na busca heroica de Herakles. O inconsciente também é fascinante, porque contém o potencial do amor e da criatividade. Ele é desejado e almejado não só porque contém o incesto, mas, também, porque abriga as sementes do vir-a-ser, dentre as quais está a grande semente da busca da totalidade, que Jung descreveu como o Processo de Individuação.
13. Democracia, Alteridade e Racismo
A dificuldade do exercício da Alteridade nas democracias é aumentada, muitas vezes, porque as minorias e os oprimidos, frequentemente, patriarcalizam o seu discurso reivindicatório e, desta maneira, sem o querer, propiciam o inverso do que pretendem. Ao patriarcalizarem seu discurso, radicalizam sua posição, estigmatizam o Outro e, com isso, fortalecem o dinamismo patriarcal, com o qual os privilégios dos detentores do poder são mantidos. Esta patriarcalização por parte do oprimido e injustiçado lança-o no território do poder e do ódio e dificulta-lhe exercer a Alteridade.
A patriarcalização seduz o injustiçado e oprimido porque, ao menos ideologicamente, lhe proporciona uma vivência de força. Seu ódio desencadeado, inflama seu espírito de luta, reúne suas hostes e, através do espírito da vingança, atiça sua sede de reparação e de justiça. Esta ativação do Arquétipo do Pai é da maior importância no caso do Movimento Negro Afro-Brasileiro, pois este arquétipo foi violentamente ferido pela imagem do pai de família submetido às humilhações da escravidão. Nesse sentido, o esforço de reconstituição de sua dignidade ultrajada, através do resgate de uma figura heróica revolucionária como a de Zumbi é da maior importância. O risco, de desativar com isso o dinamismo de Alteridade, porém, é grande e precisa ser vigiado.
A América Latina é um continente plurirracial, e a Democracia só poderá ser exercida em suas nações se considerar a plurirracialidade e a pluriculturalidade um fator de primordial importância na construção da identidade de cada nação. Este movimento tem que ser assumido por nós independentemente dos países do primeiro mundo, sobretudo os europeus, cuja direção, neste momento histórico, é oposta à nossa. De fato, sua preocupação, principalmente depois que a barreira política do leste europeu desmoronou, é o fechamento de suas fronteiras e a preservação dos privilégios de suas etnias dominantes. A Europa do Ocidente fecha hoje suas fronteiras, como o fez o Império Romano com os povos ao seu redor, que considerava bárbaros. O caminho das nações latino-americanas para a construção da sua identidade pós-colonialista é exatamente o inverso. Trata-se da busca de um nacionalismo de abertura ao invés do nacionalismo continental de fechamento, cultivado hoje, mais e mais, na Europa do Ocidente.
Nesse sentido, o fortalecimento do dinamismo patriarcal das culturas afro-brasileiras não pode ser realizado às expensas do enfraquecimento do dinamismo cultural de Alteridade, sob pena de situá-las na contramão de nossa história pós-colonialista. Devido ao papel fundamental que essas culturas têm no Self cultural, sobretudo do Brasil e das nações do Caribe, sua colaboração na ativação do Arquétipo da Alteridade é imprescindível para o nosso futuro.
A prática da Alteridade pelas culturas afro-brasileiras, além da dificuldade inerente ao exercício do relacionamento quaternário, é muito dolorosa, pois inclui a elaboração da polaridade amor-ódio com o branco descendente do escravizador. Há que se abrir o quatérnio para diferenciar os brancos racistas dos não-racistas, única forma de se poder aliar a estes para combater aqueles. Fechar-se na identidade negra e polarizar patriarcalmente com os brancos, sem diferenciá-los em processos de encontro como o de hoje, é perder importantes aliados e sabotar a construção da sociedade pluricultural.
A prática da Alteridade pela comunidade negra brasileira é também muito dolorosa na recomposição pós-colonialista de nossa história. Rotular a mãe preta, frequentemente adorada com saudade e gratidão, como babá, mãe de leite, cozinheira ou simples empregada da família branca, com um estereótipo de submissão, vergonha e repudio, é reduzir ao seu aspecto negativo, um símbolo também carregado de amor, resistência, abnegação, sacrifício e dadivosidade intensamente expressivos, da pujança do Arquétipo da Grande Mãe nas culturas afro-brasileiras. Rejeitar o amor dos brancos por sua Mãe Preta é negar a Alteridade e recorrer ao radicalismo patriarcal para negar uma vivência histórica inter-racial que já é um importante alicerce de nossa democracia pluricultural futura. Reduzir a Mãe Preta a um estereótipo exclusivamente negativo é um movimento de retaliação e vingança que arranca uma das páginas mais belas do movimento anticolonialista na América-Latina. Em 1827, Simón Bolívar, entra triunfantemente em Caracas, depois de sua libertação espetacular do Peru. Aguardado por dignatários diversos, o libertador consagrado apeia do cavalo e corre para abraçar a escrava Hipólita. Órfão de mãe desde cedo, Bolívar nela encontrara sua mãe preta que o havia amado e criado. Deveríamos considerar Hipólita simplesmente uma escrava alienada, que havia introjetado o escravizador e, por isso, a ele dedicara o amor de sua maternidade? Se assim o fizéssemos, estaríamos afirmando o dinamismo patriarcal, às custas da mutilação do Arquétipo da Grande Mãe e inviabilizando as culturas afro-latino americanas para o exercício da Alteridade.
Junto com o símbolo da Mãe Preta, o outro símbolo que vem sendo estereotipado e, frequentemente, reduzido patriarcalmente pelo Movimento Negro ao seu componente de submissão é o do Preto Velho. Uma análise quaternária do símbolo, porém, nos revela como sempre, e, sobretudo neste caso, que seus componentes não são apenas negativos. Pelo contrário, junto com o estereótipo negativo do negro dócil, submetido e alienado, existe o componente do Velho Sábio inerente ao Arquétipo da Sabedoria. Assim, radicalizar e rotular o símbolo do Preto Velho como estereótipo de submissão mutila um dos dinamismos mais exuberantes das culturas afro-brasileiras que é o dinamismo da totalidade. Isto não quer dizer que o movimento cultural antirracista não necessite combater os aspectos de submissão negativa da imagem dos negros advindas do passado.
Finalmente, para melhor compreendermos o exercício quaternário da Alteridade dentro da Democracia, no que concerne o racismo, devemos reconhecer a raiz arquetípica do racismo. Quando assim fazemos, somos compelidos a admitir que, na Democracia, o Eu não pode simplesmente analisar a presença ou ausência do racismo no Outro, isentando-se de antemão de qualquer componente racista. Esta deposição pura e simples da possibilidade do racismo no Outro patriarcaliza a compreensão do fenômeno racista e dificulta seu confronto democrático. A análise quaternária do racismo mostra que o Eu, por mais vítima que tenha sido e seja do racismo, nunca está vacinado contra ele e oscila, junto com o Outro, numa possibilidade de posição racista e não racista. Este é o aspecto mais difícil e doloroso da análise quaternária do racismo pelo Movimento Negro, devido a serem os negros as grandes vítimas do racismo no Brasil. No entanto, esse reconhecimento é fundamental para compreender o que é o racismo e combatê-lo profundamente no Self cultural.
O arquétipo por trás do racismo e de todo o preconceito é o Arquétipo do Pai. Em função do seu imenso potencial de abstração, organização e planejamento, o dinamismo patriarcal propicia uma tal hierarquização de valores que, com o tempo, codifica os relacionamentos na psique individual e coletiva com polaridades assimétricas: certo-errado, bonito-feio, rico-pobre, sucesso-insucesso, mulher-homem, adulto-criança, negro-branco, estrangeiro-nacional, empresário-operário, homossexual-heterossexual, dia-noite, consciente-inconsciente, todas as polaridades, enfim, divididas, codificadas, hierarquizadas em função da tradição. A dificuldade em se lidar com o racismo, no dinamismo patriarcal, é esta disposição ternária pré-concebida, na qual o Eu não percebe sua própria Sombra e vivencia a polaridade no Outro de forma preconceituosa. Compreende-se, assim, que o preconceito racial está inserido nos pré-conceitos do dinamismo patriarcal. Dificilmente pode-se combatê-lo, simplesmente invertendo posições e mantendo-se a mesma posição ternária e rígida do Eu.
Devido ao dogmatismo ternário do dinamismo patriarcal, ele é o dinamismo arquetípico do preconceito e da intolerância individual e dos regimes coletivos ditatoriais. Elaborar o racismo, neste dinamismo, desperta as maiores resistências. Pessoalmente, tenha a maior dificuldade em trocar ideias sobre o racismo com um membro do Movimento Negro, quando este acredita que só os brancos podem ser racistas. Nesse caso, toda sua possibilidade de ser também racista vai para sua Sombra, que seu Eu exclui preconceituosamente.
O discurso quaternário de Alteridade é a essência da Democracia, porque nele não há o certo e o errado preconcebidos. Devido a isso, o padrão democrático requer a abertura do Eu para sua Sombra, tanto quanto a do Outro. A análise da projeção no Outro é inseparável da análise da introjeção no Eu. É um dinamismo difícil de praticar, pois exige o emprego igualmente do amor e do ódio, do distanciamento e da aproximação. Não basta culpar o Outro pelo erro; o Eu precisa continuamente se despojar do narcisismo, da vaidade, da prepotência e se admitir também capaz do mesmo fenômeno que imputa ao Outro.
Reconheço que a aplicação da Alteridade ao racismo é muito difícil de ser ouvida por quem sofre a discriminação racial, dia e noite, em todas as situações existenciais, devido à cor de sua pele. No entanto, o poder de compreensão e transformação da Alteridade é de tal ordem, que todo aquele que almeja transformar a ordem social na construção de uma sociedade democrática precisa conhecê-lo.
Mais uma vez, obrigado à SECNEB pela oportunidade de vir a Salvador e participar deste Simpósio. Axé! ■
Recebido em: 25/04/2019
Revisão: 11/05/2019
1 Artigo baseado na palestra proferida no Seminário e Fórum Nacional: Democracia e Diversidade Humana: Desafio Contemporâneo. Salvador, 18-21 março, 1992. Publicado originalmente na Revista Junguiana 10, 1992, p. 90-107.