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Junguiana
versão impressa ISSN 0103-0825
Junguiana vol.37 no.1 São Paulo jan./jun. 2019
Futebol: a grande paixão do povo brasileiro. Um estudo da Psicologia Simbólica Junguiana1
Football: the great passion of the Brazilian people. A study of Jungian Symbolic Psychology
Fútbol: la gran pasión del pueblo Brasileño. Un estudio de la Psicología Simbólica Junguiana
Carlos Amadeu B. Byington
Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador. E-mail: c.byington@uol.com.br site: www.carlosbyington.com.br
RESUMO
Baseado na Psicologia Simbólica Junguiana, o autor interpreta o futebol como um poderoso sistema simbólico de alto valor pedagógico para estruturar a consciência individual e coletiva com o Arquétipo da Alteridade, que é o arquétipo da democracia.
Esta capacidade estruturante do futebol constituiu-se num ritual coletivo de custo irrisório, capaz de elaborar coletivamente a agressividade, a competição, a ambição da vitória e, ao mesmo tempo, coordenar a função ética para absorver a frustração da derrota dentro da união amorosa de cada time.
Segundo o autor, é a interação destas emoções, expressando exuberantemente o Arquétipo Matriarcal, que, subordinada às regras do Arquétipo Patriarcal, permite a vivência apaixonante dos arquétipos da Alteridade e da Totalidade.
Para concluir, o autor afirma que diante do desequilíbrio cultural que afeta nossa sobrevivência planetária, o crescimento do futebol em todos os continentes, afirma sua raiz arquetípica num mito messiânico e se revela um exemplo de alteridade e de esperança.
Palavras-chave: futebol, função estruturante da ética, paixão do povo, pedagogia das emoções, arquétipo da alteridade, psicologia simbólica junguiana.
ABSTRACT
Based on the theory of Jungian symbolic psychology, the author interprets football as a powerful structuring system with a high pedagogic potential to structure individual and collective consciousness with the alterity archetype.
This structuring capacity of football became a collective ritual at practically no cost capable to elaborate creatively aggression, competition, and ambition to win and, at the same time, coordinate the ethical function to absorb the frustration of defeat within the affectionate union of the team.
According to the author, the interaction of these emotions expressing exuberantly the matriarchal archetype with the rules coordinated by the patriarchal archetype leads the game to the passionate experience of the archetypes of alterity and of totality.
Keywords: football, structuring function of ethics, education of emotions, archetype of alterity, jungian symbolic psychology.
RESUMEN
Basado en la Psicología Simbólica Junguiana, el autor interpreta el fútbol como un poderoso sistema simbólico de alto valor pedagógico para estructurar la conciencia individual y colectiva con el Arquetipo de la Alteridad, que es el arquetipo de la democracia.
Esta capacidad estructurante del fútbol se constituyó en un ritual colectivo de costo irrisorio, capaz de elaborar colectivamente la agresividad, la competencia, la ambición de la victoria y, al mismo tiempo, coordinar la función ética para absorber la frustración de la derrota dentro de la unión amorosa de cada equipo.
Según el autor, es la interacción de estas emociones, expresando exuberantemente el Arquetipo Matriarcal, que, subordinada a las reglas del Arquetipo Patriarcal, permite la vivencia apasionante de los arquetipos de la Alteridad y de la Totalidad.
Para concluir, el autor afirma que ante el desequilibrio cultural que afecta nuestra supervivencia planetaria, el crecimiento del fútbol en todos los continentes, afirma su raíz arquetípica en un mito mesiánico y se revela un ejemplo de alteridad y de esperanza.
Palabras clave: fútbol, función estructurante de la ética, pasión del pueblo, pedagogía de las emociones, arquetipo de la alteridad, psicología simbólica junguiana.
Dedicado a Pelé, Edson Arantes do Nascimento, o maior atleta do século XX e orgulho do Brasil.
O futebol é um grande ritual pedagógico da alma coletiva. Através dos jogadores, da bola, da vitória e, mais ainda, da derrota, cada torcedor vivencia de forma simbólica e altamente emocional uma maneira criativa de cultivar, educar e guiar as suas emoções. Não foi por acaso que, em 1969, as duas facções inimigas da guerra civil do Congo Belga - hoje chamado República Democrática do Congo - interromperam as hostilidades para ver o rei Pelé jogar.
1. O campo, a mandala e o temenos
O futebol é um espetáculo coletivo que se torna ritualístico na medida em que identifica os espectadores com o drama que se desenrola em campo. Os jogadores são como personagens de teatro com os quais nos identificamos. O campo reúne dois grandes teatros de arena, sendo por isto um anfiteatro (anfi=dois). O circo, o cinema, as paradas, as corridas, os festivais de música e dança, as touradas e os demais esportes coletivos são espetáculos dos quais o público participa através da identificação dramática consciente e inconsciente.
Essa identificação é proporcional ao entusiasmo demonstrado pela plateia. Tais espetáculos têm simbolicamente a mesma função psicológica que as religiões: ligar a consciência às suas raízes, ou seja, ao Arquétipo Central do Self, organizador do desenvolvimento psicológico da alma individual e coletiva. Prova disso é que, em inúmeras culturas, estes espetáculos existiam como um ritual propiciador dos deuses, como bem exemplificam os jogos olímpicos dedicados a Zeus. O gesto do jogador vencedor, erguer a taça no final de um torneio de futebol, como nas Olimpíadas, é um símbolo da apoteose, comunhão do indivíduo com o todo.
A importância dos fenômenos ritualísticos revela-se de forma clara no espaço em que eles ocorrem. A delimitação desse espaço consiste numa verdadeira sacralização, e é feita frequentemente através de mandalas, que são formas geométricas centralizadas, tais como círculos, cruzes, quadrados e retângulos. Em sânscrito, mandala quer dizer círculo, e dá origem às formas circulares ou quadráticas das Yantras, que servem para meditação na ioga, o que as transforma em imagens mágicas. Estudando a Tantra Yoga, Jung achou que a função psicológica da mandala é religar a consciência ao centro da personalidade, estabelecendo a harmonia psíquica por meio da meditação. Ele assinalou também que a presença de mandalas em fenômenos individuais e coletivos expressa vivências de totalidade (JUNG, 1975).
A mandala aparece em desenhos espontâneos infantis com a finalidade de estruturar o ego ou nas crises psicóticas para manter a unidade da consciência ameaçada de desestruturação. O diplomata brasileiro José Oswaldo Meira Penna escreveu sobre a mandala como plano básico de organização de cidades e os antropólogos as conhecem bem na organização do espaço tribal. A mandala está ligada ao número quatro e aos fenômenos quaternários, que são expressão frequente da ação organizadora do Arquétipo Central na mente humana e que, na construção dos templos religiosos, formam um temenos ou espaço sagrado. A mandala é, pois, um símbolo estruturante da totalidade do indivíduo e da coletividade que, por meio dela, se relacionam com seu centro psíquico.
2. As três mandalas do futebol
O futebol é jogado dentro de três mandalas. O campo é uma mandala retangular contida em outra, que é o estádio, e numa terceira, fora do estádio, que é a cidade, o país e, na Copa do Mundo, o planeta.
Corpo e emoção, sujeito e objeto, são inseparáveis na formação dos símbolos que expressam qualquer fenômeno humano. A vida psíquica é orientada pelos significados das experiências e, por isso, nada do que é humano deixa de ser coordenado pelo sistema nervoso e pode existir sem ser simbólico. O fato de a bola ser redonda para melhor quicar e rolar não nos deve impedir de vê-la também como símbolo. Platão já considerava a esfera a forma mais perfeita da geometria. Inúmeras culturas expressam através da esfera e do círculo seus símbolos de totalidade, por serem formas geométricas onde não se pode diferenciar o princípio do fim e nas quais todos os pontos da periferia distam igualmente do centro. O controle da bola é um exercício físico, mas também emocional, de busca de coordenação total do ser.
A mandala do campo contém, delimita e propicia o desenvolvimento da tensão necessária à ação dramática. Ela é, ao mesmo tempo, espacial, vivencial e emocional: delimita os que jogam, os que torcem nas arquibancadas e em casa, separando-os fisicamente para reuni-los emocionalmente como um todo durante o desenrolar dramático. A identificação simbiótica torcedor/jogador é muito estimulada pela cobertura da imprensa, que torna o espetáculo mais íntimo de todos. Retratos e entrevistas de jogadores, acrescidas de comentários, fofocas e desafios de dirigentes, aumentam a expectativa dramática e favorecem a participação emocional. São os rituais emocionais de aquecimento preparatório. Através deles, a identificação espectador/jogador é ativada de antemão. Durante o jogo, esta identificação chega a tal ponto que precisa ser limitada e contida, sem o que não seria possível a ação dramática e, por isso, entre o campo e a torcida há um fosso e policiais prontos para conter a alma transbordante dos mais exaltados. Esta delimitação física é necessária para favorecer a identificação emocional, que assim pode atingir, com segurança, o grau intenso de empolgação necessária para que o povo se torne também agente do drama que se desenrola.
3. Os arquétipos e o futebol
As vigas mestras da consciência individual e coletiva são o arquétipo matriarcal, da sensualidade, e o arquétipo patriarcal, da organização. Ambos estão fartamente presentes no futebol. A sensualidade do arquétipo matriarcal está expressa em cada lance do jogo. Corridas, saltos, disputas de bola no corpo a corpo do drible, coragem, vitalidade, força, destreza, agressividade, competição, coração, raça, ambição, pura emoção. É a alma guiando o corpo. E haja adrenalina! Mas a vida individual e coletiva não é apenas sensualidade. E, por isso, o arquétipo patriarcal da organização e da lei não pode faltar.
As regras começam nas medidas do campo, das áreas e do gol. Na pequena área não se pode encostar no goleiro. E, na grande área, uma falta cometida pelo time defensor é o temido pênalti. O tempo é rigorosamente respeitado e corrigido pelas prorrogações. O drama é finito. O que não aconteceu nos 90 minutos, nunca mais; a menos que as regras imponham um jogo com prorrogação e, pior, uma decisão nos pênaltis! E tem o escanteio e o impedimento, "a banheira" que policia o atacante. Tudo fiscalizado por um juiz e dois bandeirinhas. O famoso trio de arbitragem. Doa a quem doer, é a lei em campo, expressa pelo apito que assinala a falta, mantém a disciplina o respeito às regras. Para quem transgredi-las, cartão amarelo. Mas, se a falta for de má-fé, ou se o jogador ofender o juiz, cartão vermelho! Desta maneira, o espírito da lei do Arquétipo Patriarcal confronta as emoções da alma do arquétipo matriarcal. Que expressão mais completa do embate entre os dois grandes arquétipos da civilização exercido num ritual coletivo!
A interação da sensualidade (desejo) e da organização (lei) marca o dia a dia das pessoas e também cada evento na vida dos povos. Este embate costuma ocorrer aos trancos e barrancos, de forma imprevisível, intempestiva e, frequentemente, em meio à agressividade destrutiva e até na tragédia e na guerra. O desregramento entre estes dois arquétipos fundamentais é marcado pelo transbordamento matriarcal ou pela repressão patriarcal. Devido ao aumento progressivo do potencial genocida dos confrontos vivenciados pelo fanatismo e pela repressão, o conflito entre esses dois arquétipos pode ameaçar até mesmo a sobrevivência da espécie e, por isso, ele precisa de um terceiro arquétipo para ser regulado.
Nosso cérebro tem 100 bilhões de neurônios, a maioria geralmente pouco usada. Quando vemos a facilidade com que uma criança aprende quatro línguas, enquanto muitos adultos mal falam seu próprio idioma, podemos imaginar a ociosidade do nosso potencial criativo. Basta vermos a descoberta impressionante da existência dos imensos campos energéticos entre as estrelas, chamados buracos negros, e o crescimento do sistema de comunicações nos últimos 50 anos para termos uma pequena ideia do que ainda falta descobrir.
4. A raiz mítica do futebol
Assim aconteceu que há 2500 anos, na Índia, e há 2000 anos, no Oriente Médio, houve uma ativação do terceiro grande arquétipo que rege nossa Consciência. Trata-se do arquétipo da alteridade. Ele nos torna capazes de encarar os conflitos relacionando as polaridades na posição dialética, ou seja, com direitos iguais de expressão. O Mito do Buda e o Mito Cristão são mitos de compaixão, que permitem a relação da sensualidade matriarcal e do poder patriarcal em igualdade de condições na personalidade e na cultura. Apesar de muito deformados pelo poder durante sua implantação, quando se tornaram duas das maiores religiões do mundo, sua mensagem central de criatividade nos conflitos continua sendo transmitida para a civilização, propiciando o crescimento extraordinário das ciências modernas, das artes, dos movimentos sociais, das democracias e da consciência ecológica.
O arquétipo da alteridade substituiu os exercícios guerreiros pelas competições desportivas, que propõem um confronto criativo de polaridades, dentre as quais estão o desejo e o poder, a mente e o corpo, a razão e a emoção, a cabeça e o resto do corpo, a grosseria e a destreza, a vitória e a derrota, a euforia e a depressão, a alegria e a tristeza, a inteligência racional e o instinto, sem que um polo destrua o outro. Junto com a globalização, o futebol vem se tornando um esporte planetário, porque vivencia a alteridade na participação comunitária de dois times, que representam no campo partes significativas de uma sociedade e, no jogo, que expressa, do começo ao fim, a dialética dos opostos.
5. O futebol e a pedagogia do conflito criativo
Como já descobrira Heráclito, o conflito é inerente ao desenvolvimento individual e cultural. Na mentalidade patriarcal, os conflitos são resolvidos pela repressão e seu clímax é a guerra. No padrão de alteridade, os conflitos são abordados pela interação da tese com a antítese para renascerem ambas modificadas em cada nova síntese, como formulou Hegel (1956). Ao invés do homicídio, que rege a relação pai-filho do Mito de Édipo, característico da disfunção do arquétipo patriarcal, o arquétipo da alteridade coordena a relação pai e filho através do confronto e da interação criativa. O Mito Cristão vivencia a morte e a ressurreição na transformação do homem patriarcal para o Anthropos, o homem pleno capaz de conviver na alteridade. O arquétipo da alteridade foi expresso no Cristianismo pela convivência dialética do Pai com o Filho através do Espírito Santo, no Mistério da Trindade. O arquétipo da alteridade foi também expresso na pregação do Buda sobre o caminho do meio, caminho da sabedoria que evita os radicalismos, e em muitas outras religiões, obras de arte e filosofias. Na religião Yorubá Nagô, o arquétipo da alteridade é expresso pelo Orixá Exu, divindade das encruzilhadas, intermediador deste mundo e do além, do aye e do orum, e, na Mitologia Grega, por Hermes, mensageiro de Zeus que comunica os seres humanos e os deuses e conduz as almas para o além.
No padrão do arquétipo da alteridade, percebe-se que o conflito com o outro é também criativo. E esta é a grande mensagem da democracia, que propõe o resgate dos polos inferiorizados social e economicamente na cultura, para que os vários setores e funções da vida se confrontem, e se transformem pacificamente. O padrão de alteridade permite ao ego e ao outro se relacionarem afirmando sua identidade junto com as suas diferenças. Ele traz uma proposta de desenvolvimento individual e social tão superior ao padrão repressivo patriarcal que, depois de 2000 anos de sua revelação no Oriente Médio, sua implantação no processo civilizatório ainda está no seu início. A própria história do futebol é a maior prova de ser ele praticado exatamente dentro desse novo padrão da cultura ocidental, daí o seu fascínio no mundo moderno. O futebol se tornou uma grande paixão planetária durante a globalização em curso porque ele representa a implantação de um padrão de consciência que busca consciente e inconscientemente a salvação da nossa vida no Planeta.
As origens do futebol perdem-se na História. Há uma hipótese de que o futebol tenha nascido dos costumes primitivos de chutar a cabeça dos inimigos para comemorar as vitórias. Há relatos sobre jogos muito parecidos com o futebol na China no Japão e na Grécia antigos. Na Inglaterra ele começou a partir do harpastum, jogo de bola com as mãos, trazido da Grécia pelos romanos. Desde muito se tem notícia do futebol jogado nas terças-feiras de carnaval, em Chester, cidade inglesa fundada no tempo dos romanos.
Diante da repressão preconizada pelo padrão patriarcal, o futebol sempre foi um jogo revolucionário por quatro grandes razões: por ser associado, desde o seu início, ao Carnaval, festa sabidamente ligada à liberação das emoções e instintos; por ser jogado com os pés, símbolos do irracional numa cultura que se tornava cada vez mais racionalmente organizada e planejada através do padrão patriarcal, usada, sobretudo, de forma repressiva; por ser um esporte coletivo e, assim, contrariar os esportes individualistas das elites patriarcais dominantes; por dirigir as emoções do povo para uma disputa que acaba bem, contrariamente aos torneios patriarcais que terminam com a queda, ferimento ou morte do adversário; e, finalmente, por ser uma atividade social que subordina a agressividade ao esporte e congraça a coletividade. Contrariamente aos torneios patriarcais, que submetiam o esporte à agressividade, preparando o povo para a guerra, o futebol conseguiu sobrepor o esporte à agressividade através da transformação da morte do inimigo no símbolo do gol. Como disse poeticamente o cronista: "no calor da pugna, Ronaldo venceu três adversários, e mandando um canhonaço de fora da área, decretou inapelavelmente a queda da cidadela adversária. É GOOOOOOOL do BRASIIIIL!!!!".
O futebol caracterizou-se, desde o seu início, como um encontro entre opostos, no qual o conflito comunitário é admitido, exercido e subordinado prazerosa e agressivamente a um fim pacífico. No princípio, o futebol era muito mais violento, mas sua própria prática foi canalizando a agressividade de maneira cada vez mais adequada. Na sua trajetória antipatriarcal, inúmeros foram seus símbolos antimachistas como, por exemplo, a existência de uma partida anual, à época muito famosa, realizada na cidade de Midlothian, na Escócia, onde as mulheres casadas se defrontavam com as solteiras. Tão antipatriarcal e antiguerreiro foi sempre o futebol que, já em 1297, uma guerra entre a Inglaterra e a Escócia acabou desmoralizada porque os soldados de Lankshire, tradicionais inimigos dos escoceses, desobedeceram a seus comandantes e preferiram disputar sua rivalidade no futebol e não no campo de batalha. Conta uma lenda que até o Rei Eduardo I acabou participando.
É importante frisar que, depois disso, os reis Eduardo III, Ricardo II, Henrique IV, Henrique VIII e até Elizabeth I, já no século XVI, legislaram contra o futebol, porque ele desviava os jovens dos torneios de luta de arco e flecha, o que enfraquecia os exércitos. Tornou-se necessário reprimi-lo em nome da segurança nacional do Império Inglês. Tudo em vão. O esporte floresceu e se espraiou em nossa cultura por vias diversas, mas com a mesma pujança do nosso Mito Messiânico, ambos buscando implantar à sua maneira, na cultura ocidental, o padrão de alteridade, de respeito e compaixão pelo outro. Quando a bola retorna ao centro do campo, depois do gol, o defensor dá reinício à partida e "vira a outra face", para tudo recomeçar.
Jung chamou a atenção fartamente para o poder prospectivo dos símbolos. Aos quatro anos de idade, ele próprio sonhou com um phallus de carne sobre um altar subterrâneo. Este phallus representativo da sexualidade espiritual, que transcende a sexualidade fisiológica, foi um símbolo altamente prospectivo para ele, pois norteou sua obra durante mais de 80 anos (JUNG, 1975). Minha tese é atribuir a propagação do futebol à atividade simbólica prospectiva do mito na transformação da cultura.
É um fato sociológico extraordinário que o futebol tenha se implantado revolucionariamente, sem qualquer catecismo ou proselitismo, só e exclusivamente a partir da alma do povo, de baixo para cima. Hegel propôs uma teoria religiosa da História, segundo a qual ela seria a encarnação progressiva do Espírito Divino. Podemos conceber a divindade como a expressão dos arquétipos e retomar a teoria de Hegel no nível científico, afirmando que, dentro da transformação social trazida pelo Mito Cristão, que ilustra uma Teoria Simbólica da História (BYINGTON, 2008), o futebol é uma expressão cultural da implantação do arquétipo da alteridade no processo civilizatório.
O futebol é uma atividade que mostra a criatividade do Self cultural a partir de uma necessidade histórica de transcender simbolicamente o padrão repressivo guerreiro. Ele não surge nem de uma luta de classes econômicas e nem de uma sublimação seguida a uma repressão. Pelo contrário, o futebol surge e se desenvolve a partir da inteligência criativa da psique para atender a uma necessidade histórica da consciência coletiva de busca de alteridade e de democracia.
Uma abertura maior para a função criativa do símbolo na cultura permite-nos perceber a coincidência significativa entre a relação histórica do desenvolvimento do futebol, a partir dos séculos XII e XIII, e o fascínio da lenda do Graal na literatura desse período, que retrata os cavaleiros da Távola Redonda, inicialmente 12, e sua busca do vaso com o sangue de Cristo para salvar o reino. Um dos ferimentos atribuídos ao Rei incapacitado de governar é exatamente a paralisia das pernas. Será demais associar o futebol com a busca do ser humano de se salvar da destruição, pela opressão e pela guerra, através do resgate do corpo como expressão simbólica da redenção do oprimido? Pode-se deixar de associar os 12 cavaleiros da Távola Redonda com os 11 jogadores, mais o técnico no futebol e os 12 seguidores de Cristo?
É verdade que o futebol já foi muito mais violento na sua trajetória do padrão patriarcal para a alteridade. No século XVIII, era comum um jogo terminar com muitas fraturas. A direção progressiva de sua codificação e autopedagogia caminhou, no entanto, para expressar um conflito de opostos que culminasse com uma solução criativa e não repressiva, em função de sua relação com o centro através do gol, o que tornou as fraturas cada vez mais raras.
6. Torcidas organizadas e seu papel comunitário
É um grande erro cultural achar que a violência das torcidas organizadas do futebol deve ser evitada pela proibição legal destas torcidas, como está acontecendo em São Paulo. É como fechar uma escola importante porque os alunos se comportaram mal. Destrói-se uma floresta para que os tigres não tenham onde morar, sem perceber que esta é a melhor maneira de eles se mudarem para as ruas das grandes cidades.
A violência urbana advém de muitos fatores, mas um deles é a pulverização social, com a perda da identidade das pessoas. As megalópoles, como São Paulo, cresceram de forma desordenada e engolfaram as pequenas cidades a sua volta. Assim, desapareceu a cidade pequena, um importante referencial de identidade das pessoas. A agressividade humana é desencadeada pela frustração e a identidade das pessoas ajuda a controlá-la. O desamparo e o sofrimento da identidade enfraquecida descambam muito mais facilmente para a violência, quando as pessoas não têm um respaldo comunitário para acolher e encaminhar criativamente suas frustrações.
A torcida organizada é um precioso referencial de identidade nas grandes cidades. A fidelidade e a devoção aos clubes são impressionantes. As pessoas separam-se no casamento, mudam de cidade e até emigram do país, mas, lá de longe, continuam acompanhando e torcendo pelo seu clube. Conversando um dia com um mendigo no Rio de Janeiro, perguntei-lhe o que ele faria se tirasse a sorte grande. Ele não titubeou: - "Metade eu dava pru 'Framengo'", respondeu. - "Mas, por quê?", tornei a perguntar. - "Porque o Mengão já me deu muitas alegrias na minha triste vida" ele retrucou, abrindo um largo sorriso saudoso de dentes.
A essência da vida comunitária saudável na democracia é o amor. Quando somente ambição, status e poder dirigem a vida individual, profissional e social, a sociedade é pulverizada no egoísmo do "cada um por si". Essa atmosfera de selvageria da competição e do consumo ignora o sofrimento humano, e as frustrações não acolhidas fluem naturalmente para a violência e para a destrutividade.
A antítese da pulverização e da perda da identidade é a atividade comunitária inspirada por um ideal amoroso, seja ele qual for. A torcida organizada no futebol é exatamente este tipo de comunidade. Dissolvê-la, quando alguns de seus membros se comportam delinquentemente, é derrubar uma árvore porque alguns de seus galhos têm parasitas. Ao invés da dissolução, as torcidas deveriam ser apoiadas e instruídas para prestar serviços comunitários os mais diversos, no que podem ser de grande utilidade. Extingui-las tem um efeito imediato de evitar arruaças durante e após os jogos, mas a consequência dessa mutilação é o desperdício de uma entidade de grande potencial na participação amorosa comunitária, deixando seus membros desagregados e sujeitos à violência para canalizar frustrações.
A devoção ao clube e a força da torcida organizada podem ser direcionadas para o desafio do engajamento nas atividades coletivas aliadas às instituições públicas e privadas. Assim, o arquétipo de alteridade, que se expressa de forma tão exuberante no futebol, reunindo de maneira criativa o arquétipo matriarcal do time, do suor, do prazer, inclusive da cervejinha gelada e o arquétipo patriarcal da organização, do orgulho, da honra, da dignidade, da ambição e da responsabilidade, pode ser expresso também no reforço da identidade das pessoas através da humanização pela sua participação amorosa na vida comunitária, por meio das torcidas organizadas.
7. O Gol, a morte e a ressurreição
O gol é o maior símbolo do futebol. Ele representa a morte simbólica do adversário e atinge intensa profundidade porque a mandala do campo permite que, através do centro, tudo recomece e o time que "morreu" na derrota renasça e volte a lutar. Neste símbolo, a morte é vivenciada como agente de transformação, exatamente como em nosso Mito Messiânico. A vivência de sofrer o gol e de fazer o gol se complementam e formam um todo emocional consagrando o mistério da transformação (OTTO, 2007). ■
Referências
BYINGTON, C. A. B. Psicologia simbólica junguiana: a viagem de humanização do cosmos em busca da iluminação. São Paulo, SP: Linear, 2008. [ Links ]
HEGEL, G. W. F. The philosophy of history. New York, NY: Dover, 1956. [ Links ]
JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1975. [ Links ]
OTTO, R. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. São Paulo, SP: Vozes, 2007. [ Links ]
Recebido em 25/03/2019
Revisão em 13/04/2019
1 Publicado originalmente na Revista Junguiana 28/2, 2009, p. 41-48.