SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.40 número1A vida dos fantasmas: melancolia e memóriaA cartografia da psique: Jung e seu anagrama misterioso índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.1 São Paulo jan./jun. 2022

 

Alquimia das palavras: extraindo o tempo das palavras

 

Alquimia de las palabras: extracción del tiempo de las palabras

 

 

Harley Pequeno Cavalcanti Albuquerque

Psicólogo (UNIFOR), especialista em psicologia analítica (UNICHRISTUS), trainee em análise junguiana da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA). e-mail: <harleypca@gmail.com>

 

 


RESUMO

O presente artigo reflete sobre o poder e as substâncias que formam as palavras. Uma dificuldade, palavras a falar sobre palavras. Ideia, o tempo contido nas palavras. A poesia é a bússola na procura do caminho, e a alquimia, o mapa metafórico. O tempo como aspecto central, o tempo escondido nas palavras. Desenvolve-se a extração em paralelo à alquimia e a seus processos básicos, para se chegar ao espírito divino da matéria. Os estudos e conceitos da alquimia de C. G. Jung e E. Edinger são explorados para comparação entre as projeções de alquimistas e poetas. Sentir o tempo nas palavras, ajustar a escuta poética da clínica. Na poesia o tempo funciona diferentemente; o poeta é o que se aproxima da alma, ao juntar palavras. São essas palavras que quebram a rigidez dos relógios.

Palavras-chave: Palavras, Tempo, Poesia, Alquimia, Psicoterapia.


ABSTRACT

This article ponders on the power and substances that form words. Using words to talk about words is a difficult endeavor. Ideas are time contained in words, poetry, the compass in the search of the way, and alchemy, the metaphorical map. Time is a central aspect, as time is hidden in words. Extraction is developed in parallel with alchemy and its basic processes in order to arrive at the divine spirit of matter. The studies and concepts of alchemy of C. G. Jung and E. Edinger are explored in comparing the projections of alchemists and poets. Feeling time in the words to adjust poetic listening in clinic activities. In poetry, time works differently; the poet is the one who approaches the soul by putting words together. It is these words that break the iron frule of clocks.

Keywords: Words, Time, Poetry, Alchemy, Psychotherapy.


RESUMEN

Este artículo reflexiona sobre el poder y las sustancias que forman las palabras. Una dificultad, palabras hablando de palabras. Idea, el tiempo contenido en las palabras. La poesía es la brújula en la búsqueda del camino, y la alquimia, el mapa metafórico. El tiempo como aspecto central, el tiempo escondido en las palabras. La extracción se desarrolla en paralelo con la alquimia y sus procesos básicos, para llegar al espíritu divino de la materia. Se exploran los estudios y conceptos de alquimia de C. G. Jung y E. Edinger para comparar las proyecciones de alquimistas y poetas. Siente el tiempo en las palabras, ajusta la escucha poética de la clínica. En la poesía el tiempo funciona de otra manera; el poeta es el que se acerca al alma juntando palabras. Son estas palabras las que rompen la rigidez de los relojes.

Palabras claves: Palabras, Hora, Poesía, Alquimia, Psicoterapia.


 

 

João, 1:1 - No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus (BÍBLIA SAGRADA, 2001).

Por isso os poetas não podem deixar-nos indiferentes, pois em suas obras principais e em suas inspirações mais profundas eles recolhem do fundo do inconsciente coletivo e proclamam o que os outros apenas sonham (JUNG, 2012a, p. 203).

Esta deveria ser uma escrita que fala de si própria; o ideal seria que não existisse autor. Palavras a falar de palavras, pensando sobre a sua constituição. Sobre a matéria que as forma e os intentos que as pronunciam. Sendo um, em particular, ao qual os olhos e ouvidos se voltam: o tempo. O que os poetas fazem com o tempo quando juntam as palavras? O que nós fazemos com o tempo quando falamos? As palavras, de certa forma, moldam o tempo a favor das intenções daqueles que as pronunciam. De onde vem esse poder?

Mestre, são plácidas

Todas as horas

Que nós perdemos,

Se no perdê-las,

Qual numa jarra,

Nós pomos flores

(PESSOA, 2016a, v. 2, p. 93).

Como falar de palavras sem levar em consideração o tempo que nelas habita? Existe um tempo escondido pela palavra e principalmente pelas intenções daquele que as pronuncia ou escreve. Uma resposta? Um silêncio? Uma dor? Uma saudade? Outra palavra que não estava contida na que foi dita? Todas estas e tantas outras opções podem revelar o tesouro do tempo fincado na palavra. Por dentro das letras e nos seus casamentos únicos, existe um componente que faz delas o que elas são: mágicas. Mágicas porque, até certo ponto, elas iludem. Não, "iludem" é uma palavra muito forte. Elas criam uma realidade, um ambiente e um tempo em que só elas têm o controle. Às vezes, são flechas rápidas que perfuram; outras vezes, vêm lentamente como uma brisa no fim da tarde. Elas têm poder porque têm a intemporalidade. A lógica do tempo como medida do deslocamento desfalece neste momento. O instante se torna eterno ao som das palavras certas, que se encontram no momento exato.

Tal qual os alquimistas, que tentavam decantar a alma, o princípio ou a centelha divina que existia na matéria, os poetas expõem de forma inequívoca o paradoxo do tempo na união das palavras. A atemporalidade da poesia nos traz, enquanto psicólogos junguianos, um caminho para poetizar a escuta das histórias contadas em prosa.

Jung (2011) falava como a alquimia se propunha a alcançar um tesouro difícil de ser alcançado e a produzi-lo de forma visível. No seu laboratório, ele projetava o seu tesouro psíquico na matéria e nela buscava a retirada do que se encontrava basicamente no seu inconsciente. Para Neumann (2014), no estado de inconsciência pré-ego, em que a consciência dorme ainda na semente, tudo se encontra no agora e no sempre da vida eterna. Não há tempo antes do nascimento do homem e do ego; apenas eternidade, não igualmente espaço, mas somente infinidade. Assim, a palavra poética seria o meio de que dispõe o ego para se perpetuar à eternidade?

A eternidade está apaixonada pelos frutos do tempo.

À laboriosa abelha não sobra tempo para tristezas.

As horas da insensatez são medidas pelo relógio;

As de sabedoria não há relógio que as meça

(BLAKE, 1927 apud SINGER, 2004, p. 118).

William Blake, em sua poesia, busca mostrar, nos seus Provérbios do Inferno, a diferença entre as medidas de tempo. Sutilmente compara o tempo medido com a ideia de tempo vivido. Nestas palavras, o paradoxo da eternidade se fixa nos frutos que o tempo nos dá. O poeta transforma em palavras o que os outros apenas sonham, como dizia Jung (2012a). Assim, as palavras do poeta materializam o imponderável do inconsciente. Coisas sem medida, desconhecidas, escuras, profundas, sem mesura, são, de certa forma, apresentadas à humanidade na montagem das palavras do poeta - e naquele momento o tempo para. "Levem o mundo: deixem-me o momento" (PESSOA, 2016b, v. 1, p. 181).

Extrair poesia da escuta deveria ser como colocar palavras fora de sua sequência temporal e cronológica, entender que o que se diz não está pautado exclusivamente pela unidirecionalidade da consciência e que o fim e o começo podem estar no mesmo local.

Por exemplo, quanto tempo pode estar contido na palavra "saudade"? Como escutar o valor que ela designa? Esmiuçá-la, quebrá-la, dissolvê-la, ou - por que não dizer - promover a opus da palavra.

A palavra carrega em si o fogo do qual o tempo é o combustível. Uma calcinatio1 poética aquece-a na alma do pronunciante, separando dela o que é volátil e deixando que o tempo decorrido - que dentro da razão não volta mais - possivelmente apareça. Ao pronunciar as palavras de sua saudade, uma espécie de fogo se inicia, e as imagens retornam vivas e fortes. Algumas vezes os olhos se fecham, e lá se está novamente, vivendo o que se supunha, passado. Para onde foi a lógica do tempo neste momento? Não há mais; o tempo saiu da palavra e se fez presente na ausência que a saudade trazia.

A imortalidade é uma qualidade dos arquétipos. Logo, o significado do banho de fogo da imortalidade será o estabelecimento de um vínculo entre o ego e a psique arquetípica, tornando aquele consciente do seu aspecto transpessoal, eterno ou imortal (EDINGER, 2006, p. 59).

Aquecer a palavra em seu simbolismo e significado afeta o entendimento do tempo que nela se expressa. Faz com que ele apareça em novas formas e compreensões. Altera, assim, sua lógica. A poesia tem a desmesura, ou talvez, quem sabe, a hybris que afronta Cronos. Portanto, a poesia fala da saudade.

Durante toda a viagem a saudade não se separou de mim

Não digo que fosse como a minha sombra

Estava ao meu lado mesmo na escuridão

Não digo que fosse como as minhas mãos e os meus pés

Quando se dorme se perde as mãos e os pés

E eu não perdia a saudade nem ao menos durante o sono (HIKMET, 1984 apud CAROTENUTO, 1994, p. 58).

HiIlmann (2010) é sintético quando nos diz que nossa ansiedade semântica nos fez esquecer que também as palavras queimam e se tornam carne, à medida que nos falamos. Dentro deste simbolismo, entende-se que as palavras esquentam, que podem queimar e, principalmente, que podem deixar escapar conteúdos que as formam.

O que se quer dizer quando se utiliza as figuras de linguagens disponíveis? Talvez exista um fato concreto de que as palavras não dão conta. Diariamente, em consultórios psicológicos, escuta-se um "É como se", pois não se tem a forma exata para se exprimir o que se quer. As palavras faltam porque não têm a dimensão que se quer informar da imagem. Mesmo assim, são elas que, em outros significados, irão dar forma ao que se deseja dizer.

As metáforas inundam o discurso, e assim chegamos a uma espécie de solutio2: solve-se o que antes não tinha meio para penetrar. Palavras outras, significados outros, "circumambulam" na tentativa de se chegar à ideia original. Para Edinger (2006), a solutio corresponde ao que se passa na psicoterapia, pois os aspectos fixos e estáticos da personalidade não admitem mudanças. Assim, para que a mudança ocorra, os aspectos fixos têm de ser dissolvidos ou reduzidos à prima matéria.

Carrego meus primórdios num ardor

Minha voz tem os vícios de fontes

Eu queria avançar para o começo

Chegar ao criançamento das palavras

Lá onde elas urinam na perna

Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos

Quando a criança garatuja o verbo para falar o que tem

Pegar no estame do som

Ser a voz de um lagarto escurecido

Abrir um descortínio para o arcano

(BARROS, 2015, p. 98).

O poema retrata a busca de algo original; algo que, no seu avançar, o leve ao início. A busca por palavras que sejam crianças em sua inocência, para que, quando ditas dentro de novo contexto ou entendimento, possam renascer e renascer. Abre-se assim o entendimento de que algo misterioso está sempre presente; mas que, por vezes, nem sempre é percebido. Assim se faz na análise, segundo Edinger (2006): a solutio dissolve conteúdos fixos para que se possa integrá-los em sua forma primária. Poeticamente, pode-se dizer que alguns destes conteúdos fixos se entrelaçam com o tempo. Quase sempre no final do processo de solutio das palavras, chegamos a um desentendimento do tempo, pois o que era certo desabrocha em dúvidas. Que foi feito com o tempo nas relações e, consequentemente, com o tempo da vida? Quando se decanta as palavras e se deixa sair a sua essência, o tempo contido mostra sua força. Talvez aqui comece um processo de olhar para trás - de perceber os perfumes mais suaves das flores e sentir cada um dos espinhos do caminho, uma nova vez.

O passo seguinte às descobertas feitas com a solutio seria deixá-las moldar a nova forma de entendimento do tempo que ainda se tem. Talvez como uma afinidade eletiva, que mostra a tendência que certos elementos (neste caso, conteúdos) têm de se atraírem por outros; dessa forma, criando algo novo. Essas relações foram tão bem transpostas da química para o relacionamento humano por Goethe3. Chega-se à coagulatio4, que, segundo Edinger (2006), equipara-se à Criação. Em que, de alguma forma, a razão talvez não compreenda que se está fazendo uma criação. "Deus criou todas as coisas com as suas palavras, tendo dito a elas: Sejam, e elas foram feitas com os quatros elementos, a terra, a água, o ar e o fogo, que Ele coagulou" (Turba Philosophorum5 apud EDINGER, 2006, p. 101).

Percebe-se que o poder das palavras volta a se fixar nos pensamentos e nas ideias da psique, como que em um processo de coagulação. Novas formas de ver e novas lentes são postas aos olhos da alma, que agora enxerga o mundo, o tempo decorrido e o porvir de uma outra forma. Diz Edinger (2006) que, em termos psicológicos, isso significa que a atividade e o movimento psíquico promovem o desenvolvimento do ego. A exposição à tempestade e à tensão da ação e a batedura da realidade solidificarão a personalidade. Em outras palavras, a assimilação de um complexo é, portanto, uma contribuição à coagulatio do Si-mesmo. Nos termos da prática analítica, continua Edinger (2006), neste estágio o indivíduo assume responsabilidade pessoal por fantasias e ideias inconstantes, mediante a sua expressão diante do analista ou de outra pessoa significativa, e aponta a diferença existente entre a ideia pensada e a ideia falada. O tempo das palavras, nesse momento, busca uma forma de parar. A fixação da ideia na forma de palavras é, de certa maneira, a busca de uma eternidade dentro do momento estático em que se percebe a mudança que o processo apresenta. Tem-se a impressão de que a solução irá se converter em uma nova ilusão de verdade eterna. O que seria o tempo diante do eterno?

O sino dobra

Medindo um tempo que não é nosso, impelido pela vagarosa

Pulsação da terra, um tempo

Mais antigo que o tempo dos cronômetros, mais antigo

Que o tempo contado pelas aflitas e aborrecidas mulheres

Em vigília, calculando o futuro

Tentando esfiapar, desmanchar, deslindar

E o passado cerzir ao futuro num remendo inconsútil,

Entre a meia-noite e a aurora, quando o passado é apenas uma fraude

E o futuro ao futuro se recusa, antes que a manhã desperte,

Quando o tempo se detém e o tempo jamais se extingue.

E a pulsação da terra, desde o princípio em tudo viva,

Tange

O sino

(ELIOT, 2015, p. 209).

O fragmento do poema toca a alma ao expor a ideia de um tempo que tenta se reconstruir dentro da sua impossibilidade. A ideia de um tempo que luta para que o homem entenda a força da natureza que o move. Que busca em seu passado respostas para um futuro que se recusa a obedecê-lo, pois a força que inicia a batida do sino é a mesma que termina a pulsação da terra. É ela que dá vida e significado às horas. Talvez exista a impossibilidade de costurar o futuro e o passado como um remendo perfeito, já que o tempo que as palavras do poeta contêm é anterior ao próprio tempo que se mede - anterior às Moiras6 -, porque é no momento do sentido que as fiandeiras se perdem.

No fim sempre existirá um início, pois nas descobertas que o homem pensa ser dele existe um algo mais. Neumann (2014) aponta uma espécie de princípio que ocorre na personalização (secundária) do ser humano, em que este recorre à tendência de tomar conteúdos transpessoais como pessoais; e isso, de certa forma, pode descrever de forma poética a coagulatio, na qual conteúdos arquetípicos caem do céu e são incorporados pelo ego.

Palavras que foram submetidas ao fogo, à água e à terra agora se veem de encontro ao ar. Chega-se à sublimatio7. Eleva-se os significados para além deles próprios; busca-se palavras que possam se elevar para alcançar a alma que se esconde por trás dos ouvidos que escutam ou dos olhos que as leem. O significado concreto se perde diante da possibilidade múltipla de estar em elevação para o entendimento. Diz Edinger (2006) que o simples fato de encontrar palavras ou conceitos adequados para um estado psíquico pode ser suficiente para que a pessoa se afaste dele o bastante para olhá-lo de cima.

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era um labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma

(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 22).

Talvez aqui seja o local ou a etapa em que a poesia se faz mais presente ou, simplesmente, em que ela própria é a elevação. Qual palavra (significando apenas ela por si só) não se sentiria diminuta diante da vastidão de outras tantas que poderiam modificá-la, aumentá-la ou completá-la? O tempo aqui se desfaz diante da elevação. A palavra sobe e se eleva para que os ponteiros do relógio enlouqueçam e não saibam mais qual é o sentido do seu dirigir. O corpo sente a alma em posse, a pele se arrepia, a boca saliva, os olhos choram, o coração aperta. Supera-se a vertigem da altura em prol do sonho de entender, ao olhar de cima.

Flutuo em mim próprio

Sem já saber quem sou

Sem presente,

Sem futuro,

Nem sequer passado

Demasiadas imagens

Na minha alma

Que transborda

Demasiados fatos,

Datas,

Na minha memória

Que saiu do seu leito

E me inunda,

Me destrói,

Se destrói a si própria

(FERRO, 1957, p. 50).

O poeta capta o momento de elevação e o transpõe em palavras. Busca eternizar o instante em que se perde nos significados do que ele mesmo é. A imagem de estar sobre si em uma lacuna de tempo e espaço a observar-se conduz a um local de destruições e construções - de tentativas e erros, e então de mais tentativas. "O movimento ascendente eterniza; o movimento descendente personaliza" (EDINGER, 2006, p. 160).

Chega-se à circulatio8. É uma etapa de extrema importância no processo terapêutico, pois, para Jung (2012b), psicologicamente, a circulação seria o ato de mover-se em círculo em torno de si, de modo que todos os lados da personalidade estejam envolvidos. Dessa forma, Edinger (2006) aponta que o movimento circular em torno do centro, bem como para cima e para baixo, promove a possibilidade de percorrer o circuito dos nossos próprios complexos no decorrer da sua transformação.

Ascensus, descensus, altura e profundidade, para cima e para o baixo, descrevem um realizar emocional dos opostos, que lentamente leva ou deve levar a um equilíbrio entre eles. Esse hesitar entre os opostos ou ser jogado de um lado para o outro significa o estar contido nos opostos (JUNG, 2012c, p. 215-216).

O tempo exposto em palavras possui uma certa linearidade organizadora. Tem-se uma informação a passar, e nisto se busca a construção de uma sequência que percorra o percurso da maneira mais eficaz possível. Palavras são tentativas de comunicar imagens. A desconstrução do tempo nas palavras talvez possa ocorrer quando elas se aproximam da imagem e, ao invés de finalizá-las em seus significados, apenas as circuambulam. Pois, possivelmente, isso é o máximo que elas conseguem fazer. A poesia talvez seja a via régia para subverter essa regra. De certa forma, ela quebra a linearidade do tempo e da ideia contida nas palavras, deixando-as como que suspensas no que se quer transmitir. A poesia flutua pelos significados para os que leem ou escutam, deixando assim a eles a tarefa do encaixe naquilo que toca a alma. "O poeta inventa viagem, retorno, e sofre de saudade" (HILST, 2018, p. 29).

Na circuambulação sobre imagens, o novo surge e as palavras avançam para um campo onde elas se modificam em seu significado. Dessa forma, algo morre, algo se modifica. Chega-se à mortificatio9. Edinger (2006) aponta a mortificatio como a mais negativa operação da alquimia, estando vinculada ao negrume, à derrota, à tortura, à mutilação, à morte e ao apodrecimento. Contudo, diferentemente do que se possa pensar, as negatividades são pontes que conduzem para imagens positivas, como crescimento, ressurreição e renascimento. De forma poética, pode-se dizer que nem sempre se enterra o que morre. O apego à imagem morta que, em algum momento, viveu em plenitude como forma de agir e pensar apresenta a força que ainda detém. Há ainda a putrefactio10, processo que, segundo Edinger (2006), pode ser intercambiável com a mortificatio - poeticamente entendendo-a como necessidade de ver o que outrora estava vivo se desfazer. Um tempo necessário para a assimilação do novo que está por surgir. Ambos os processos estão ligados a imagens sombrias.

A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem despender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. Este ato é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento e, por isso, em geral, ele se defronta com tanta resistência (JUNG, 2012d, p. 19).

O tempo, mais uma vez, exprime-se por meio das palavras. Faz-se uma viagem ao olhar para trás e projetar o "em frente". Escolhas deixam sempre pedaços pelos caminhos. Contudo, esses pedaços estão no agora e interferem muito mais do que se imagina. São com essas sombras que não se perderam no tempo que as palavras atemporais revivem. Nelas, residem a essência e o poder, para se fazer vida onde tinha morte. Na poética de Hillmann (2010), "palavras, assim como anjos, são forças que têm poder invisível sobre nós" (p. 55).

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos
O choro da Energia abandonada!

É a dor da Força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa
Da transferência que se não realiza
Da luz que não chegou a ser lampejo

E é em suma, o subconsciente aí formidando
Da natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo

(ANJOS, 1998, p. 171).

O poeta entra no lamento do que se foi; suas palavras circulam por um tempo perdido, pelas forças que, sem utilização, perderam-se neste mesmo tempo. É no lamento da morte que se percebe a vida que se foi e a que ainda se tem. O tempo, nas palavras do poema, mais uma vez, dá a impressão de estar parado - de não haver uma saída ou um caminho pelo qual o deslocamento possa criar o tempo que a dor torna inerte. Os opostos são expostos de forma inequívoca; eles doem em sua impossibilidade de escolha, na imprecisão, no que não se realiza. Eis a separatio11.

Para Edinger (2006), a separatio é um importante aspecto da psicoterapia, pois é neste processo que ocorrerá o mais relevante, a separação entre sujeito e objeto - uma separação entre componentes objetivos e subjetivos da experiência. Palavra e tempo se encontram de uma forma diferente: existe agora um fio consistente e, por que não dizer, consciente, que os une. A escolha destrava o tempo, e ele flui agora em outro ritmo.

Ser ou não ser - eis a questão

Será mais nobre sofrer na alma

Pedradas e flechadas do destino feroz

Ou pegar em armas contra o mar de angústias -

E combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer: dormir:

Só isso.

[]

E assim a reflexão faz de todos nós covardes.

E assim o matiz natural da decisão.

Se transforma no doentio e pálido do pensamento.

E empreitadas de vigor e coragem.

Refletidas demais, saem de seu caminho,

Perdem o nome de ação.

Mas, devagar, agora!

(SHAKESPEARE, 2011, p. 67).

"Decidir", aí está a busca, nas palavras do poeta. O que fazer diante de algo que se apresenta irreparável? Decidir ou ficar estático em pensamentos. Aceitar a palavra que prende e condena ao eterno sofrer, onde o tempo se esvai, ou buscar, na mesma palavra, uma escolha, um desprendimento que faz seguir adiante unindo os impensáveis opostos em algo remediador? A força contida na palavra que une o imponderável é a mesma capaz de desconstruir a linearidade do tempo. Assim, a poesia com o seu tempo descontinuado seria um caminho para a compreensão.

Eis a coniunctio12: segundo Edinger (2006), o alvo da opus, a suprema realização. É a união dos opostos, sem que nenhum se sobressaia. Resulta da união final dos opostos purificados e, como combina opostos, mitiga e retifica toda unilateralidade. Talvez a poesia na sua arte de manusear e unir palavras seja o que mais se aproxima desta ideia, pois tem-se, de certa forma, o casamento de um tempo que passa com um tempo que para. O passado e o futuro, a presença e a ausência, casam-se em palavras amarradas que, como ímãs em seus opostos, se buscam. Os opostos se acham porque nascem um para o outro. É uma resposta e uma pergunta, talvez a resposta a uma vida. Rilke, ao escrever a um jovem poeta, dizia:

Não busque por enquanto respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo, consiga viver a resposta (2013, p. 38).

Responder a vida dando-lhe o significado pleno, talvez este seja o casamento sagrado que ela nos propõe. Para Jung (2012c), a coniunctio consiste na realização do homem que está aproximadamente informado sobre sua totalidade paradoxal. Pode-se falar de uma integração total, corpo e espírito, bem e mal, vida e morte; esta seria a conjunção que poderia fornecer a imagem paradoxal da totalidade do homem. Construir tempo escutando a poesia das palavras que nos chegam e retribuí-las com a mesma força que trazem a nós - enfim, casar tempo e vida.

Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E olhos cheios
De natureza

À beira do rio
À beira da estrada
Conforme calha
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo

O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre

Colhamos flores
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também

Girassóis sempre
Fitando o sol
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido
(PESSOA, 2016b, v. 1, p. 93-94).

 

Conclusão

Não há de ter conclusão, pois ela seria um contrassenso à ideia da poesia. O tempo que gira sobre si não caminha sobre o espaço, não procura um fim ou um destino. Seu destino é girar, buscar em si novas interpretações e, ao mesmo tempo em que acha, destrói, para que possa procurar novamente. A conclusão será a forma com que cada leitor, nos 10 ou 15 minutos de leitura, irá modular o seu tempo depois destas palavras. Depois que os poemas adentrarem suas almas. A conclusão, para o analista, será a lembrança das palavras e dos tempos escondidos por elas, quando estiver de frente para uma vida que se mostra em imagens através de palavras. Assim, as palavras em prosa das histórias ouvidas poderão saltar para uma escuta em poesia. A escuta daqueles momentos em que, por alguns segundos, as palavras calam e os olhos falam.

Não há como concluir ou finalizar, pois a ideia é a de infinitude. Um poema recomeça no seu fim, porque o seu sentido carrega a continuidade. Carrega a força das palavras vivas e dotadas do maior tesouro que a vida pode desejar: o tempo.

Talvez aquele para quem esse sino soa possa estar tão enfermo quanto para aquele que sabe que o sino não está tocando para ele; e talvez podendo eu mesmo acreditar que sou tão melhor do que realmente sou, assim como aqueles que se preocupam comigo e, vendo a minha condição, possa eu acreditar que os sinos soam por mim e eu não saiba Toda humanidade é feita de um único autor e pertence a um único volume; quando um homem morre, um capítulo não é retirado livro, mas sim traduzido em uma linguagem melhor, e cada capítulo deste modo será sempre traduzido Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado: todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: por quem os sinos dobram; eles dobram por vós (DONNE, 2007, p. 103-104).

Que o fim traga sempre o gosto do começo, que se perceba o badalar dos sinos dobrando por todos nós em cada sorriso, em cada olhar e em todo sonho. Por fim, que as palavras sejam saboreadas como o maior tesouro que o tempo pode desejar: a vida.

 

Referências

ANJOS, A. Eu e outras poesias. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1998.         [ Links ]

BARROS, M. Meu quintal é maior do que o mundo. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2015.         [ Links ]

BÍBLIA SAGRADA. Antigo e novo testamento. Brasília, DF: Sociedade Bíblica do Brasil, 2001.         [ Links ]

BRANDÃO, J. S. Dicionário mítico-etimológico da mitologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.         [ Links ]

CAROTENUTO, A. Eros e pathos, amor e sofrimento. São Paulo, SP: Paulus, 1994.         [ Links ]

DONNE, J. Meditações. São Paulo, SP: Landmark, 2007.         [ Links ]

EDINGER, E. F. Anatomia da psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, SP: Cultrix, 2006.         [ Links ]

ELIOT, T. S. Poesia. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2015.         [ Links ]

FERRO, A. Saudades de mim. Lisboa: Bertrand, 1957.         [ Links ]

HILLMAN, J. Re-vendo a psicologia. Rio de Janeiro, RJ: Vozes, 2010.         [ Links ]

HILST, H. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2018.         [ Links ]

JUNG, C. G. Psicologia e alquimia. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.         [ Links ]

_______. Tipos psicológicos. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a.         [ Links ]

_______. Estudos alquímicos. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b.         [ Links ]

_______. Mysterium coniunctionis. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012c.         [ Links ]

_______. Aion: estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012d.         [ Links ]

NEUMANN, E. História da origem da consciência. São Paulo, SP: Cultrix, 2014.         [ Links ]

PESSOA, F. Obra poética de Fernando Pessoa. Volume 1. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2016a.         [ Links ]

_______. Obra poética de Fernando Pessoa. Volume 2. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2016b.         [ Links ]

RILKE, R. M. Cartas a um jovem poeta. 4. ed. São Paulo, SP: Globo, 2013.         [ Links ]

SÁ-CARNEIRO, M. Poemas. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2004.         [ Links ]

SHAKESPEARE, W. Hamlet. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.         [ Links ]

SINGER, J. Blake, Jung e o inconsciente coletivo. São Paulo, SP: Madras, 2004.         [ Links ]

 

 

Recebido: 18/02/2022
Revisado: 31/05/2022

 

 

1 A "Calcinatio é descrita como a primeira etapa do processo alquímico. A calcinação envolve o intenso aquecimento de um sólido, destinado a retirar dele a água e todos os demais elementos passíveis de volatização" (EDINGER, 2006. p. 37).
2 "Solutio é a segunda fase do processo alquímico; ela transforma o sólido em líquido. O sólido parece desaparecer no solvente, como se tivesse sido engolido. Solutio significava, com frequência, o retorno da matéria ao seu estado original" (EDINGER, 2006, p. 67).
3 Cf. As afinidades eletivas, de Johann Wolfgang Von Goethe.
4 "Coagulatio é o processo que transforma as coisas em terra. Terra é, por conseguinte, um dos sinônimos de coagulatio. Pesada e permanente, a terra tem forma e posições fixas" (EDINGER, 2006, p. 101).
5 Para Jung (2011), a Turba Philosophorum é, dentre as obras clássicas da alquimia, uma das de maior autoridade. Foi traduzida do árabe para o latim entre os séculos XI e XII.
6 Cloto, Láquesis e Átropos são as moiras que fiam o tempo de vida que fora prefixado. Cada uma com sua função específica. Cloto é a fiandeira que segura o fuso e vai puxando o fio da vida; Láquesis, a que enrola o fio da vida e sorteia o nome de quem deve perecer; Átropos, a que não deixa voltar atrás, a inflexível que corta o fio da vida (BRANDÃO, 2015).
7 "O termo sublimatio vem do latim, sublimis, que significa 'elevado'. Sublimatio é o processo de elevação por meio do qual uma substância inferior se traduz numa forma superior, mediante movimento ascendente" (EDINGER, 2006, p. 135).
8 "Em termos químicos, a circulatio vincula-se ao processo no qual se aquece uma substância em um frasco de refluxo. Os vapores sobem e se condensam; em seguida, o fluido condensado é realimentado no bojo do frasco, no qual o ciclo se repete. Dessa maneira, sublimatio e coagulatio repetem-se alternativamente, várias vezes" (EDINGER, 2006, p. 161).
9 "A mortificatio não tem nenhuma referência química. Significa, literalmente, 'matar', sendo pertinente, portanto, à experiência da morte. Tal como usada no ascetismo religioso, tem o sentido de 'sujeição das paixões e apetites por meio da penitência, abstinência ou de dolorosos rigores infligidos ao corpo'. Descrever um processo químico como mortificatio é uma projeção integral de uma imagem psicológica" (EDINGER, 2006, p. 165).
10 "Putrefactio é a putrefação, a decomposição que destrói corpos orgânicos mortos. Testemunhar a putrefação de um corpo morto é uma experiência capaz de produzir um poderoso impacto psicológico" (EDINGER, 2006, p. 166).
11 "Prima matéria, um composto, uma confusa mistura de componentes indiferenciados e opostos entre si. Este composto requer um processo de separação" (EDINGER, 2006, p. 199).
12 Edinger (2006) divide a coniunctio em inferior e superior. A inferior é uma união ou fusão de substâncias que ainda não se encontram completamente separadas ou discriminadas. A superior, por outro lado, é o alvo da opus, a suprema realização. Para efeito deste trabalho, a palavra coniunctio refere-se apenas à superior.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons