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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.20 no.2 Rio de Janeiro  2008

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Dor e desamparo – filhos e pais, 40 anos depois

 

Pain and helplessness – sons and parents, 40 years later

 

 

Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes

Psicóloga; Psicanalista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; Doutoranda em Ciências Sociais e Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do CRP São Paulo – Gestão 2007-2010

 

 


RESUMO

Ouvindo o relato das lembranças de filhos de militantes políticos brasileiros atingidos pela ditadura militar de 1964, mortos, desaparecidos, torturados, clandestinos e presos, são discutidos aspectos emocionais e afetivos destas vivências. As falas dos filhos estão no documentário "15 filhos", de Marta Nehring e Maria de Oliveira (1996)1.

Palavras-chave: tortura; ditadura militar; filhos de pais militantes políticos; desaparecimento político; clandestinidade política.


ABSTRACT

Listening to reports of the memories of sons of Brazilian political militants affected by the military dictatorship of 1964, dead, disappeared, tortured, clandestine and imprisoned, we argue the emotional and affective aspects of these existences. The sons´ speeches are in the documentary "15 sons", by Marta Nehring and Maria de Oliveira (1996)2.

Keywords: torture; military dictatorship; sons of political militant parents; political disappearance, political clandestinity.


 

 

"Tendo vivido pouco, cumpriu a tarefa de uma longa existência".

(Edgard Godoy da Matta Machado (1973), homenagem a José Carlos
Novaes da Matta Machado, seu filho, assassinado no Brasil, durante a
ditadura militar, aos 27 anos de idade)

 

TORTURA

A lógica do ordenamento político-jurídico contemporâneo, na qual a banalidade do mal e a liquidez das relações entre os homens escorre pelos clusters dos computadores, atesta a volatilidade da violência, que, como um vírus interplanetário, se propaga pelo ar e pela rede de informação elétrica, eletrônica, digital. Quando a autoridade de um governo institui a tortura como forma permitida e legítima de extrair confissões de prisioneiros sob sua guarda, ou como um ato de coação ou de estabelecimento da ordem, este governo reinstala a barbárie, apesar da civilização. Neste aspecto se confirma a concepção freudiana de que a cultura e a civilização não trouxeram a paz, não eliminaram o conflito entre os homens e nem portaram a felicidade tão almejada.

 

A TORTURA É UMA PRÁTICA CRIMINOSA E NEM POR ISSO MENOS PRATICADA

No Brasil, nos locais de isolamento, sobretudo nas prisões, nas delegacias de bairro, em instituições, em hospitais psiquiátricos e casas de abrigo de idosos e de jovens e crianças em conflito com a lei, a tortura é prática comum para extrair confissões, para humilhar, para amedrontar, para fazer cumprir uma ordem. Durante a ditadura militar, implantada pelo golpe de 1964, a tortura foi um ato de Estado e uma política sistemática.

Os protocolos e instrumentos jurídicos contra a tortura, assinados por todos ou quase todos os países que compõem a comunidade internacional, dizem que a tortura é uma prática que se efetiva por agentes do governo e em nome de autoridades de qualquer natureza para extrair informações, confissões, que possam beneficiar seus mandantes. Uma definição internacionalmente aceita de atos que constituem tortura a explicita como

qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos graves, de natureza física ou mental, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; [...] castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; [...] intimidar ou coagir essa pessoa ou outras pessoas, ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência (Foley, 2003: 11).

A proibição é considerada um princípio do direito internacional geral no qual ocupa uma posição especial, é uma norma imperativa, de aplicação obrigatória. Além do Artigo V da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, "Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante", várias outras medidas internacionais e regionais re-escrevem a proibição da tortura. A prática da tortura é um ato proibido e, como decorrência, sua prática é crime e deve ser punida.

Todos os instrumentos internacionais indicam, como uma das formas de prevenção à prática da tortura, a relação estreita e continuada de organismos de defesa dos direitos humanos e da sociedade civil com os locais de detenção e de isolamento de indivíduos, de qualquer natureza. O acesso e a visita continuada a estes locais se constitui uma maneira de prevenir a prática da tortura com o objetivo de sua total erradicação. Há um protocolo construído com este fim específico, o Protocolo facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, que o Brasil assinou em 2003 e ratificou em 20 de dezembro de 2006. As visitas a locais de detenção e de isolamento estão previstas neste Protocolo como forma de prevenção, de coibição e de eliminação da tortura.

Outra forma de conhecer as condições de tratamento das pessoas presas é o acesso aos documentos que registram o período em que ficou presa, detida, isolada e/ou em outras formas sob a responsabilidade dos órgãos públicos ou de seu conhecimento e que, mesmo privados, fossem de aquiescência do poder público ou de autoridade com esta função. Logo, o acesso a todo e qualquer documento de registro, informação que possibilite esclarecer condições de prisão e isolamento no Brasil é uma decorrência natural dos instrumentos de proteção à vida, à integridade física e mental e de esclarecimento de circunstâncias que envolvam a prisão e o tratamento dado a estas pessoas.

 

BRASIL: 1964 – FILHOS E PAIS

No Brasil, o golpe militar e a implantação da ditadura não foram um ato isolado e muito menos engendrado dentro do território brasileiro. Hoje se sabe que os Estados Unidos, através da Agência Central de Inteligência (CIA), tiveram papel no golpe de 1º de abril de 1964, sobretudo em apoio às forças golpistas. Hoje podemos compreender que os atos de assassinato e de tortura não foram fruto de mentes doentias e de psicopatas. A política de repressão, de prisão, de assassinato, de tortura, de desaparecimento e do banimento são práticas exercidas em todos os países em que o poder político, aliado ao poder militar, se outorga o papel de dono do corpo, da mente e com direito à vida e à morte dos habitantes e cidadãos do país. Exercer atos que sustentem esta política autorizada é um gesto que lentamente se torna, também, sobre-humanamente desumano: apaga aos poucos a repugnância inata ao crime. Por isso é que certamente vários dos esclarecimentos ainda estejam por ser prestados e a política de manutenção de sigilo sobre documentação que comprove tais atos ainda seja objeto intocável, pois diz respeito a uma política de governo ainda nos porões do Estado.

Ao escolher falar da tortura, da prisão, do assassinato, do desaparecimento nesta época, escolhi como testemunhos e relatores os filhos de pais atingidos pela violência. Falaram simplesmente sobre seus pais e mães que, ali, frente a eles, exibiam a marca da tragédia brasileira.

Para me referir à memória de filhos e de pais atingidos pela ditadura militar, recorro ao filme-documentário "15 filhos", dirigido por Marta Nehring e Maria de Oliveira, feito a partir do depoimento de quinze filhos de militantes políticos brasileiros. O filme reúne o depoimento destes jovens, à época do filme com 30 anos, um pouco mais ou um pouco menos, e que, quando seus pais foram atingidos pela prisão, pelo exílio, pelo assassinato ou tortura, tinham entre 5 e 16 anos de idade. Alguns ainda sequer haviam nascido, ainda estavam em gestação, quando suas mães foram presas. O documentário é realizado a partir de suas lembranças desta época. Singelo e pungente, o filme dura 20 minutos e é um testemunho singular das marcas de cenas e de atos desumanos, degradantes e cruéis, exercidos contra os pais e contra estes 15 filhos.

As cenas apresentadas no filme desafiam as leis do tempo. Só mesmo a crença de que o inconsciente é regido pela in-temporalidade ou a-temporalidade e a compreensão de que o passado pode irromper no presente carregado de afeto podem explicar a emoção renovada ao assistir "15 filhos" mais uma vez, mais de uma vez, ou muitas vezes.

As falas e depoimentos não pertencem somente ao nosso tempo e nem apenas são referências a acontecimentos em nosso país. Poderiam ser contadas em qualquer tempo e em qualquer país, e todos, com certeza, seriam afetados pelas lembranças reveladas. O psicanalista Helio Pellegrino, em 1982, escreveu:

a tortura busca introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente e mais do que isto: procura, a todo preço, semear a discórdia e a guerra entre o corpo e a mente. [...] Na tortura, o discurso que o torturador busca extrair do torturado é a negação absoluta e radical de sua condição de sujeito livre. A tortura visa o avesso da liberdade (Pellegrino, 1982, citado por Arquidiocese de São Paulo, Brasil nunca mais, 1985: 281).

 

OS 15 FILHOS, SEUS PAIS E SEUS IRMÃOS

Marta Nehring conta que o documentário foi realizado em 1996, para um seminário da UNICAMP intitulado "A revolução possível", com a finalidade de discutir a repressão política, o esquecimento e as possibilidades de reparação. A proposta das diretoras, Marta e Maria, era colher lembranças dos filhos de militantes políticos. Lembranças de sua infância, dos pais, do tempo de escola. Não a opinião de cada um sobre o que ocorreu, mas, tão somente, a lembrança.

Para poder acompanhar o desenvolvimento do filme, apresento os filhos, pais e irmãos, recorrendo, principalmente, a textos elaborados pelos Comitês Brasileiros de Anistia – CBAs – do Rio de Janeiro e de São Paulo (1979) e ao livro Dos filhos deste solo de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio (1999).

Abertura do vídeo: Ivan Seixas já tinha uma atividade política, embora adolescente, e suas lembranças, provavelmente, estão também marcadas pela experiência como militante. Foi convidado para abrir o filme; é, por assim dizer, o "filho 16". Seu pai, Joaquim de Alencar Seixas, foi preso juntamente com Ivan, que tinha então 16 anos de idade, em abril de 1971. Foram espancados com tal violência que a corrente da algema que prendia os dois pelos pulsos se rompeu. Foram torturados um frente ao outro. A polícia também prendeu a mãe, Fanny, e suas duas irmãs, Iara e Ieda. Joaquim Seixas morreu na tortura; os jornais informaram que morreu em confronto armado contra a polícia. Ivan, menor de idade, ficou preso durante seis anos sem julgamento, dos quais os três últimos na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté (SP).

Telma Lucena e Denise Lucena, filhas de Antonio Lucena, morto a tiros na porta de sua casa, na frente da família. Além das duas irmãs, depoentes no filme, presenciaram o assassinato de Lucena a esposa, Damaris, e o filho, Ailton, então com apenas 3 anos de idade. Posteriormente, os três filhos foram para o exílio com a mãe. O filho mais velho, Ariston, em função de sua militância política, foi preso em março de 1970; condenado inicialmente à pena de morte, esta foi comutada para prisão perpétua e depois a 25 anos de prisão. Tendo sido preso menor de idade, foi solto após 8 anos de prisão, permanecendo em livramento condicional por 16 anos.

Joca – João Carlos – Grabois, filho de André Grabois e Criméia de Almeida, nasceu na prisão e não chegou a conhecer o pai, que foi assassinado em outubro de 1973 na guerrilha do Araguaia – e até hoje desaparecido. O Estado reconheceu sua morte, mas não informou à família o que foi feito com André. Mauricio Grabois, pai de André e avô de Joca, também morto no Araguaia em dezembro de 1973, continua desaparecido.

Gregório Gomes e Wladimir Gomes, filhos de Virgílio Gomes da Silva, morto em 1969 na OBAN. Virgílio foi torturado com os pulsos algemados às costas, tendo seu corpo sido chutado, sobretudo na cabeça, durante 15 minutos ininterruptos; logo após, desmaiou. Sua prisão e morte não foram reconhecidas pelos órgãos de repressão, apesar de numerosos testemunhos de militantes que confirmam sua presença na prisão, onde ouviram seus gritos, e a denunciaram perante tribunais militares. Recentemente, fotos de seu corpo foram localizadas e divulgadas pela imprensa, permitindo aos filhos providências junto à Justiça.

Francisco Guariba – Chico – e seu irmão, João Vicente Guariba, são filhos de Heleni Guariba – presa em 1970, solta em 1971, presa novamente e assassinada sob tortura. Conforme testemunhos de militantes, esteve na chamada "Casa da Morte" em Petrópolis. A responsabilidade do Estado pela morte de Heleni foi reconhecida no anexo da Lei 9140/95.

Ernesto Carvalho, filho de Pedrina e de Devanir José de Carvalho. Devanir recebeu uma rajada de metralhadora e foi preso, aos 28 anos, em 5 de abril de 1971; levado ao DOPS, morreu após ter sido torturado ininterruptamente durante dois dias pelo delegado Fleury.

André Herzog, filho de Clarice e de Vladimir Herzog, morto sob tortura horas após sua prisão em 25 de outubro de 1975. A versão oficial de suicídio dentro da prisão, com o cinto do macacão de presidiário, foi desmontada a partir de numerosos depoimentos de presos na mesma época e também pelas contradições apresentadas nos depoimentos dos médicos-legistas. A União foi responsabilizada por sua morte.

Rosana Momente, filha de Orlando Momente, desaparecido na guerrilha do Araguaia desde 1973. Orlando casou-se em 1961 e em 1964 entrou na clandestinidade, indo para o sul do Pará, onde desapareceu. Somente muito mais tarde, 18 anos depois, Criméia de Almeida, ex-guerrilheira do Araguaia, contou para Rosana a verdadeira identidade do seu pai.

Tessa Lacerda, filha de Gildo Macedo Lacerda e de Mariluce. Gildo e Mariluce foram presos, em outubro de 1973, em Salvador. Mariluce estava grávida de um mês. Quando se encontraram dentro da Superintendência da Polícia Federal, olharam-se angustiados e longamente; foram separados e nunca mais se viram. Gildo foi torturado até a morte, no dia 29, no DOI-Codi do Recife. Nota oficial anunciou sua morte, junto com a de José Carlos Novaes da Matta Machado, "por enfrentamento na rua". Com o nascimento de Tessa, 8 meses após a morte do pai, Mariluce travou incansável batalha judicial, que se arrastou por 18 anos, para que a paternidade de Gildo fosse reconhecida. Gildo, enterrado como indigente no cemitério da Várzea no Recife, teve seu corpo necropsiado e seus restos mortais foram enterrados em valas comuns do "Buraco do Inferno" (1986) e depois no Cemitério das Flores, sem jamais chegar à sua família.

Marta Nehring (diretora do "15 filhos"), filha de Norberto Nehring e Maria Lygia Quartin de Moraes. Norberto foi preso em 1969 e, após sair da prisão, exilou-se. Um ano depois, em 1970, desembarcou no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, e nunca mais foi visto. Foi morto sob tortura. A versão oficial é que teria sido encontrado morto em um quarto de hotel, próximo ao DOPS, em São Paulo, enforcado com uma gravata. A família requereu uma autópsia e a exumação, que nunca foram feitas. Enterrado com nome falso, no Cemitério de Vila Formosa, em São Paulo, somente muito tempo depois seus familiares finalmente conseguiram trasladar os restos mortais para o jazigo da família.

Maria Oliveira (diretora do "15 filhos"), filha de Eleonora Menicucci e de Ricardo Prata, ex-presos, ambos torturados. Ficaram presos durante 2 e 4 anos, respectivamente.

Janaina Teles e Edson Teles – filhos de Amélia e César Teles, ex-presos. Foram presos juntamente com os pais em 1972, sendo permanentemente ameaçados de ser torturados. Presenciaram a tortura dos pais. Janaina, Edson, os pais Amélia e César e a tia Criméia iniciaram, em 2006, Ação Declaratória contra a União, para que seja reconhecida a responsabilidade do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi/São Paulo, por estes fatos.

Priscila Arantes, filha de Maria Auxiliadora A. C. Arantes e Aldo Arantes, ex-presos. Priscila e seu irmão André foram presos com sua mãe, no interior de Alagoas, no dia 13 de dezembro de 1968 – uma hora após ter sido lido, na Hora do Brasil, o Decreto AI-5. Permaneceram presos durante 4 meses, juntamente com sua mãe, em diferentes locais de detenção na cidade de Maceió: hospital, cadeia pública, delegacia de bairro, entre outros. Aldo, após fugir do DEOPS em Maceió, foi preso novamente em São Paulo em 1976, no episódio conhecido como "Chacina da Lapa". Saiu da prisão com a decretação da Anistia, em 28 de agosto em 1979.

 

UM PASSADO EM LEMBRANÇAS

O elenco dos 15 filhos reunidos por Marta e Maria para a gravação do documentário deveria falar sobre suas lembranças de infância. As diretoras propuseram como perguntas a serem respondidas

o que você lembra, não o que você acha: a infância. As músicas, uma cena, uma frase. A casa da avó, a hora do recreio. Como era sua mãe? O que você lembra do seu pai? Não a opinião, a lembrança. O nome (às vezes falso), o álbum de fotos, o exílio (no país distante ou no bairro onde nasceu), as visitas (na prisão, ou o nome que se desse a ela: hospital, trabalho). As perguntas que conduziram as entrevistas do vídeo "15 filhos" foram assim, tiradas da própria infância das diretoras (Nehring, 2006: 387).

A diferença entre a memória dos pais e a dos filhos tem uma radicalidade: os pais poderiam relatar fatos decorrentes das vicissitudes de suas escolhas políticas e pessoais. São memórias impregnadas de afeto, tingidas pela dor dos acontecimentos, pela recusa das más lembranças, diminuídas ou aumentadas pela importância das perdas e do desamparo. Sabemos que a memória é seletiva, não é um ato mecânico ou químico, ela é colorida pelos afetos e este é o principal ingrediente da crença de que a lembrança relatada poderá ir re-significando momentos, situações, e sua repetição e sua rememoração é que poderão ir desfazendo o peso de um acontecimento doloroso. Recordar, repetir, elaborar é a proposta freudiana para o processamento dos sintomas que se organizaram para dar conta da dor, dos conflitos e dos momentos de desamparo. Falar de uma lembrança até que ela se torne um passado.

Há um tipo especial de experiências da máxima importância, para o qual lembrança alguma, via de regra, pode ser recuperada. Trata-se de experiências que ocorreram em infância muito remota e não foram compreendidas na ocasião, mas que subseqüentemente foram compreendidas e interpretadas (Freud, [1914] 1969: 195).

A memória dos filhos, então crianças, na época da prisão e/ou assassinato dos pais, é atravessada pela impossibilidade de compreensão dos fatos, já que eram apenas filhos de pais iguais a tantos outros pais e que de repente foram roubados de sua frente, assassinados diante de seus olhos, apresentados disformes pela tortura, inchados pelos edemas do espancamento, tingidos de sangue. Uma das filhas conta que não reconheceu sua mãe, nem mesmo sua voz, totalmente deformada pela tortura, com os dentes quebrados, inchada e disforme. São lembranças de pais "sem profissão", porque clandestinos, sem família com avós, tios ou primos. Lembranças de conversas que não podiam ser explicadas. Sussurros e corre-corre à noite, cheiro de papel queimado – textos e documentos sendo destruídos –, armários trancafiados e sem chave, escondendo o que não podia ser visto. Este mistério que envolveu os filhos dos militantes políticos tem o peso de algo que era segredo, pesado e improcessável. São estas lembranças que reúnem os filhos neste filme e que, embora sejam estes filhos, são certamente as mesmas lembranças de muitos, senão de todos os filhos de pais militantes, atingidos pela ditadura militar e pela repressão política.

Destas lembranças relatadas, as que estão atravessadas pela morte dos pais e pelo seu desaparecimento são as que deixaram inconcluso qualquer raciocínio possível. Filhos que nasceram após o assassinato do pai e filhos que só mais tarde souberam que seus pais são desaparecidos políticos. A tentativa de recomposição da imagem do pai desaparecido constrói, dentro destes filhos, a imagem de um pai que é puro pai, um pai interno, enorme, não um pai de carne e osso, falível, cotidiano. Como disse uma das filhas, são lembranças de um pai enorme, gigantesco, sem possibilidade de troca, de perguntas e de respostas. São estas as marcas que a ditadura militar jamais imaginou que deixaria através das gerações, e são estas as histórias de memória que agora tentamos compreender. De todas as lembranças, umas das mais tocantes é a da filha que, durante muito tempo, ficou imaginando seu pai aparecer, um pai vivo, porém imaterial. Quando chegou a notícia de que seu pai é um desaparecido político, teve que reunir à imaterialidade da vida a imaterialidade da morte!

Os militantes que ficaram no Brasil durante a vigência da ditadura militar se tornaram, quase todos, clandestinos políticos, única possibilidade para os que permaneceram no país e que continuaram a luta de resistência. Abandonaram sua casa paterna, seus nomes de família, seu emprego e profissão, seus documentos de identidade e se tornaram anônimos, sem sobrenome, sem o que dizer para os filhos, sem lhes contar o que realmente faziam. Homens reservados, mulheres taciturnas, relações entrecortadas no convívio familiar. Eram os tios e as tias de todos os sobrinhos, que eram os filhos de outros, igualmente, tios ou tias. Esse anonimato desconcertante foi passando para os filhos como o pulsar de um abraço materno, que é inscrito como uma sensação, por isso indizível e, exatamente por isso, inesquecível. Porém a própria clandestinidade, que a princípio era uma defesa para o militante, como um bumerangue se tornou também seu principal ponto vulnerável: a repressão aproveitou o anonimato dos militantes capturados com seus nomes frios e identidades fabricadas para negar, às famílias e advogados, o verdadeiro nome do militante preso. E desta forma os eliminou, os enterrou, os fez desaparecer, com nomes frios, como indigentes, nenhum-nome, os NN. A ditadura implantou no Brasil a figura tragicamente conhecida como o desaparecimento político.

O desaparecimento é copiado dos métodos de Hitler. Nacht und Nebel – noite e neblina – é o nome da operação que os nazistas conceberam para fazer sumir opositores do regime. Desaparecer sem deixar rastro, sem direito à sepultura, sem direito de serem velados. São os corpos insepultos de que Sófocles falava na sua Antígona (Arantes, 1994: 60).

A tragédia, escrita há 2 mil anos, se repete. Passados mais de 40 anos do golpe de 1964, no Brasil ainda há mais de uma centena de desaparecidos políticos. O país mantém arquivadas informações e documentos que poderão certamente ser decisivos no esclarecimento de vários destes casos.

Alguns pais destes 15 filhos estão entre estes brasileiros desaparecidos. Entre eles, militantes do combate na região do Araguaia. O desarquivamento do Brasil passa pelos documentos que podem vir a esclarecer a situação destes combatentes e também podem esclarecer as circunstâncias que envolveram o desaparecimento de numerosos militantes clandestinos, capturados vivos, certamente mortos sob tortura.

 

OUVINDO OS FILHOS

Ouvindo as lembranças dos filhos, o que é mais radical é a posição de descentramento dos pais que foram atingidos ao escutar seus próprios filhos. Aos pais fica o lugar de desamparo, que é quase uma prerrogativa de filho. Aos pais cabe cuidar, amparar, ser um pára-raio que ameniza as descargas fulminantes das dores do corpo e, sobretudo, das dores da alma. Neste relato de memória, desdobra-se a materialidade e o desvelamento do deslocamento dos pais. Ao perceber tudo o que foi improcessável para os filhos, a imensidão do segredo e o estranhamento do que lhes deveria ser familiar e acolhedor tornam-se um documento com que os pais deverão se haver, se ainda não o tiverem feito.

O relato destes 15 filhos fala do que é antes e aquém da palavra e que é pleno de sentido: o som de um assobio do pai, seu jeito de avisar que estava chegando em casa. Um dos filhos conta que durante anos e anos ficou escutando este assobio após o assassinato do pai. Uma filha, que teve seu pai assassinado, fala sobre um piscar de olhos que trocaram, dentro de um elevador, no exílio: tinham combinado não se falar publicamente. Outros se lembram de um abraço contido e apressado, e provavelmente furtivas lágrimas, transbordando palavras liquefeitas do que não podia ser falado. Os filhos se lembram de coisas, de gestos, de atos, que durante muito tempo e não se sabe quanto, e se ainda, reverberam em suas cabeças e em seus corações.

Falam, 10, 15 anos depois, do que era a névoa que envolvia as relações com os seus pais e com suas mães. Sentiram, mais que muitos, o peso de um segredo, que, se escutado, não podia ser repetido. Sentiram o que de tão familiar lhes era ao mesmo tempo estranho e o que, de tão secreto, era profundamente assustador. A genealogia do segredo familiar remonta aos avós, que contam, muito depois, sobre o pai que não pôde ser. Sentiram o impacto do mistério que os enlaçava aos próprios pais que, embora não pudesse ser decifrado, ao mesmo tempo que não podia ser esquecido, paradoxalmente, não podia ser lembrado. Estabeleceram, na alvorada de suas vidas, ao tempo ainda incipiente de constituição de seu equipamento psíquico, uma defesa maciça, a única então possível; organizaram uma negação da dor e seus corpos adoeceram febrilmente, ao duvidar de uma quase certeza: a morte do pai.

As lembranças dos filhos estão ancoradas no cenário que as sustenta: as grades da prisão; os ferrolhos mal azeitados das portas de ferro da cadeia; o carro em alta velocidade fugindo de uma viatura policial; os muros da embaixada; o pátio da escola que lembrava o presídio; uma música assobiada; a bandeira vermelha na parede do quarto juvenil.

A tentativa desajeitada de reconstrução da imagem paterna através de uma foto antiga, 3x4, a proximidade com os pais durante a barbárie da tortura, a tentativa de reconhecer a voz da mãe no rosto desfigurado são acontecimentos que jamais qualquer pai ou qualquer mãe supôs que fosse vivida pelos seus filhos. A violência da prisão e o aviltamento da tortura descentraram os pais, o pai e a mãe, de seu lugar essencial: seu lugar de proteção, de cuidado, de acolhimento e sustentação dos filhos. A ditadura conseguiu fazer, com requinte, o mais cruel: obrigar os filhos a presenciar o desamparo dos pais. E conseguiu. Conseguiu mais do que isso: sem aviso e sem pudor, decidiu assassiná-los diante dos filhos: outros convivem com a impossibilidade de velar o pai, no corpo ainda desaparecido. Promoveu a terrível impossibilidade de materializar o pai, assassinado antes que pudesse ter sido seu pai. Não haverá discurso lógico que obture o que ficou como uma fenda por onde escorrega, lentamente, a lembrança viscosa do que não pode ser explicado.

 

BANALIDADE DO TEMPO

Quase 40 anos se passaram e explicações sobre os casos de morte, de desaparecimentos, ainda não foram apresentadas e, com o decorrer do tempo, essas explicações podem vir a ser consideradas desnecessárias. O tempo já apagou, poderá se supor, a necessidade de que ocorram. É exatamente este viés que este texto quer repudiar. O acostumar-se com um descaso pode fazer pensar que se tornou banal após tanto tempo decorrido, a ponto de ter amarelado uniformes verde-oliva e apequenado a imensidão do poder militar reinante no país, por quase 21 anos, após o golpe de 1964.

A banalidade do mal, concepção formulada por Hannah Arendt, inspirou Dejours (2005) na sua construção de banalização da injustiça social. "Minha análise parte da banalidade do mal no sentido em que Hannah Arendt emprega essa expressão com referência a Eichmann. Não, como fez ela, no caso do sistema nazista, mas no caso da sociedade contemporânea, na França, em fins do século XX" (Dejours, 2005: 21). A banalização do mal é o "processo graças ao qual um comportamento excepcional, habitualmente reprimido pela ação e pelo comportamento da maioria, pode erigir-se como norma de conduta e ao mesmo tempo de valor" (Dejours, 2005: 110).

Nesta banalização há uma cooperação de todos para que a banalidade se imponha como uma reação ao medo da perda de privilégios, ao medo frente a ameaças de qualquer natureza. O que acaba ocorrendo é a perda de capacidade de mobilização e de indignação frente à injustiça social, encoberta por um véu de infelicidade, com o qual nos acostumamos a conviver. A mobilização só acontece quando se considera que a injustiça se torna intolerável. Podemos pensar também na banalização do tempo, como se pudéssemos nos acostumar com um vazio não preenchido e uma resposta não formulada. Esta resposta pode ser uma resposta coletiva ou resposta a um pedido individual. No caso dos desaparecidos políticos, a exigência é de uma resposta individual e coletiva, pois o ato foi um ato de governo. O esclarecimento dos casos de mortes não-explicadas e dos desaparecimentos não-esclarecidos é uma dívida do Estado brasileiro para com os cidadãos e para com todos, filhos e pais, que buscam respostas há 40 anos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Arantes, M. A. A. C. (1994). Pacto re-velado psicanálise e clandestinidade política. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Arquidiocese de São Paulo. (1985). Brasil nunca mais. São Paulo: Vozes.         [ Links ]

Comitê Brasileiro pela Anistia – CBA. (1979). Os presos, os mortos, os desaparecidos. Rio de Janeiro: mimeo.         [ Links ]

Dejours, C. (2005). A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.         [ Links ]

Foley, C. (2003). Combate à tortura Manual para magistrados e membros do Ministério Público, Centro de Direitos Humanos, Universidade de Essex, UK. Publicação em português sob responsabilidade da Sub-secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em colaboração com a Embaixada Britânica, Brasília.         [ Links ]

Freud, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar. Obras completas, ESB, v. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1969.         [ Links ]

Miranda, N. & Tibúrcio, C. (1999). Dos filhos deste solo mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Boitempo Editorial/Fundação Perseu Abramo.         [ Links ]

Nehring, M. (2006). Vídeo-memória. Em Seligman-Silva, M. (Org.). Palavra e imagem: memória e escritura (pp. 387-397). Chapecó: Argos.         [ Links ]

Presos políticos do Presídio do Barro Branco e Comitê pela Anistia de São Paulo – CBA – SP. (1979). São Paulo: mimeo.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Ficha técnica do vídeo: "15 filhos"; 1996; Hi-8; direção: Maria Oliveira e Marta Nehring.
Sinopse: Documentário que retrata a época da ditadura militar através da memória de infância dos filhos de militantes presos, mortos ou desaparecidos. Esses depoimentos, dentre os quais se incluem os das diretoras do vídeo, mostram um ângulo pouco conhecido da violência política no Brasil. Foi projetado em vários países – Argentina, Chile, Estados Unidos, Alemanha, Holanda, entre outros – e também em festivais internacionais e em universidades, escolas e em reuniões de diretos humanos. Desde seu lançamento, em 1996, o vídeo recebeu numerosos prêmios.
Consta no catálogo da Unicef de Filmes sobre Direitos Humanos: "A broadcaster's guide to children's rights" e no "Panorama do Vídeo Brasileiro 1995-2001", editado pelo Ministério da Cultura.
2 Video's technical file: "15 sons"; 1996; Hi-8; director: Maria Oliveira and Marta Nehring.
Synopsis: Documentary that shows the period of the Brazilian military dictatorship of 1964 through the childhood memories of children of missing, imprisoned or dead political militants. These testimonies, among which are included speeches from the documentary's directors, show a hidden angle of political violence in Brazil. The documentary was shown in several countries – Argentina, Chile, USA, Germany, Netherlands, among others –, and also in international festivals, universities, schools and in human rights meetings. Since its launch in 1996 the video has received several prizes.
It can be found in UNICEF's catalog of Human Rights Movies: "A broadcaster's guide to children's rights" and in the "Panorama do Video Brasileiro 1995-2001", edited by Brazil's Ministry of Culture.

 

 

Recebido em 09 de fevereiro de 2008
Aceito para publicação em 04 de setembro de 2008

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