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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.21 no.1 Rio de Janeiro 2009
RESENHAS
Escutando os rumores do nosso tempo
Listening to the rumors of our times
Belinda Mandelbaum*
Psicanalista; Professora Doutora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; Coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP)
RESENHA DE:
Meyer, L. (2008). Rumor na escuta. São Paulo: Editora 34, 304 páginas.
Quando começamos a organizar o livro que agora temos em mãos, o Luiz passou-me três caixas lotadas de textos, produzidos desde os anos 70, quando trabalhava como psiquiatra na Universidade de Brasília. As caixas continham a sua produção escrita no campo de seu trabalho como psiquiatra, depois psicanalista, suas reflexões sobre as instituições psicanalíticas e a formação dentro delas e análises de aspectos e objetos da cultura contemporânea. Além desta produção resultante de quatro décadas de vida profissional, sei que há ainda escritos seus em poesia, que Luiz não me mostrou, mas vou arriscar comprometê-lo dizendo que constituem um projeto seu futuro - o de publicar o seu livro de poemas. Mas talvez os escritos todos não sejam assim tão separados - de um lado os textos reflexivos, de outro os poéticos. Porque um primeiro aspecto que quero ressaltar da leitura do conjunto dos textos que me caíram nas mãos é justamente uma escrita que, sem nunca perder o rigor conceitual e científico, trabalha nas bordas, ou inspirada pelo campo literário, encontrando ali as palavras e um estilo pessoal necessários à liberdade de pensamento e expressão. Certa vez, num grupo de estudos com o Luiz, ouvi dele que para escrever é preciso dar liberdade aos objetos internos. Sabemos, desde Freud, que estes objetos e sua dinâmica complexa, singular, encontram na forma literária, mais do que no texto acadêmico-científico, sua expressão e nomeação mais plena. Há uma certa poesia na descrição dos pacientes de Luiz, na interpretação dos sonhos, na análise dos filmes. Creio que este é um dos motivos pelos quais o João diz, no belo prefácio que escreveu, que o livro emociona. O que quero dizer é que o resgate da psicanálise como potência libertária - as palavras são do João - está não apenas no conteúdo dos textos, mas na forma da escrita.
Mas quero contar também que esta potência libertária já estava presente nos primeiros textos, da época da psiquiatria. Para ser mais exata, da época da antipsiquiatria. Na década de 70, a partir das leituras de Ronald Laing e David Cooper e de sua própria experiência como psiquiatra, Luiz refletia criticamente sobre o diagnóstico e tratamento da doença mental. Foi esta reflexão que o levou a deslocar o foco de atenção do indivíduo identificado como doente para o meio mais amplo do qual este indivíduo é parte, em particular a família, que bem sabemos que tem a potência de promover o melhor desenvolvimento possível para um ser humano, mas também de gerar os piores e mais violentos desastres. O interesse pelas diferentes formas de organização e dinâmicas familiares levou Luiz a aprofundar seus estudos e sua prática na Clínica Tavistock, em Londres, e seu trabalho ali resultou em tese de doutorado, publicada em livro com o título de Família: dinâmica e terapia (Meyer, 2002). Ao colocar a família do doente mental em questão, Luiz inseria-se numa corrente que transformou o campo de pensamento das ciências humanas a partir de meados do século XX, pondo em xeque todas as instituições, no que elas contêm de dogmático, autoritário e irracional, debaixo de uma aparência ordenada, progressista e racional. E talvez também, supondo que na vida em família ressoava com intensidade todo o autoritarismo, junto com a violência que lhe é intrínseca, que organizava grande parte do contexto sociopolítico brasileiro da época, estudar a família criticamente, responsabilizá-la pela saúde mental dos seus membros, era nesse contexto também uma atitude política de atuação decidida contra o autoritarismo reinante e de engajamento na construção de um Brasil dotado de instituições mais transparentes e responsáveis pelo destino da nação brasileira e, sobretudo, não autoritárias. Embora os textos da década de 70 tenham sido descartados na seleção para esta publicação - eu disse ao Luiz na ocasião, tenho dúvidas agora se com razão, que eram "datados" -, eles continuam aqui presentes em sua essência crítica e denunciadora das instituições.
Espero estar assim delineando um outro aspecto que percorre como fio condutor o conjunto de textos do Luiz: como homem do seu tempo, ele se debruça criticamente sobre o seu próprio fazer clínico e sobre as instituições nas quais habitamos, para revelar as condições materiais e psíquicas que dão origem a elas e que as sustentam. Mostra assim, por exemplo, como a produção e circulação de ideias na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, a instituição psicanalítica a que ele pertence, foi em boa parte de sua história conduzida pelos ventos do mercado de consumo local por psicanálise. Para este mercado, parece bastar a cópia dos modelos importados, prescindindo de uma reflexão sobre as condições de apropriação e utilização deles. Luiz toma como modelo do funcionamento local em sua relação com os centros cosmopolitas de produção da psicanálise um episódio narrado por Machado de Assis (1959) em Memórias póstumas de Brás Cubas, no qual a personagem principal depara-se com um incidente em meio a uma caminhada: ele vê Prudêncio, que na infância tinha sido escravo de seu pai, espancando agora um escravo seu em praça pública. Não é o caso aqui - mas recomendo vivamente a leitura - de relatar como Luiz recolhe do livro de Machado de Assis (1959) uma sucessão de episódios que acabam por mostrar "o quanto o ex-escravo se mantém prisioneiro de uma dupla forma de dominação (externa e interna), à qual se encontra aderido" (Machado de Assis, 1959: 198). Vale apenas citar que a cena que vê na praça faz Brás Cubas lembrar de um doido que conheceu, que se chamava Romualdo e dizia ser Tamerlão. "- Eu sou o ilustre Tamerlão, dizia ele. Outrora fui Romualdo, mas adoeci, e tomei tanto tártaro, tanto tártaro, tanto tártaro, que fiquei Tártaro, e até, rei dos Tártaros. O tártaro tem a virtude de fazer Tártaros" (idem). Luiz mostra, através destes episódios, como a relação de subserviência com a fonte identitária é erigida como modelo a partir do qual o sujeito, no caso aqui o psicanalista local, constrói a sua própria imagem, ingerindo de forma volátil insumos de ideias e teorias psicanalíticas importadas - "tártaros" que se fundem e confundem em sua identidade. Luiz assinala que esta não é uma característica exclusiva da psicanálise que aqui praticamos, manifestando-se em toda "nossa vida espiritual", como mostram Antonio Candido e Roberto Schwartz, dois autores brasileiros centrais para a reflexão sobre a apropriação de ideias importadas pela cultura nacional. Mas Luiz mostra como na psicanálise isto se deu de forma particularmente devastadora para a legitimação de uma produção local, diferente de outros campos do conhecimento nos quais, segundo ele, um trabalho de metabolismo permitiu a criação de um estilo próprio, ausente na Sociedade de Psicanálise, com raras e conflituosas exceções, em função da falta de um trabalho com as teorias e técnicas que incluísse a análise e compreensão compartilhada das formas de sua incorporação.
Detive-me um pouco nesta análise que Luiz faz da psicanálise que praticamos para mostrar como, em seu próprio fazer, na forma como o faz, ele propõe um modelo de trabalho para a criação e desenvolvimento de uma psicanálise brasileira, que só pode partir de uma reflexão sobre as condições de sua existência, do porquê das ideias que escolhemos e que descartamos para balizar nossa prática, para nos apresentarmos como psicanalistas, para instituirmos uma linguagem compartilhada que, manifestando nossos saberes, oculta tantos fatos reais sobre nossa inserção profissional e social. Do modo como habitualmente praticamos psicanálise em nosso meio, creio que ela perde boa parte da potência que poderia ter para a compreensão do funcionamento de nossas instituições, dos modos de vida locais, de nossas escolhas identitárias. Esta potência Luiz resgata ao mostrar como a psicanálise pode oferecer um conjunto de ferramentas extremamente úteis para a compreensão de fenômenos de nossa contemporaneidade que têm repercussões determinantes em nossa vida social, como a pedofilia na Internet, por exemplo, meio no qual a perversão ganhou proporções ilimitadas de exposição, visibilidade e compartilhamento desconhecidas antes do advento da rede, num momento da contemporaneidade em que se reivindica, segundo as palavras do Luiz, uma "neossociabilidade que coloca, para os psicanalistas, questões ainda em aberto" (Meyer, 2008: 257). E eu continuo citando o Luiz, para mostrar não apenas as questões que ele se impõe como psicanalista, mas também o seu modo de trabalhar com elas. Ele diz:
Diante desse cenário, ocorreu-me que, enquanto psicanalista, eu deveria dar um passo atrás para criar uma perspectiva mais abrangente e assim contemplar com o distanciamento devido o panorama que está se formando. Desse recuo, e do ponto de observação que ele propiciou, ancorado na teoria e prática psicanalíticas, resultaram duas indagações centrais que estimularam minha curiosidade: 1) o que torna a criança um objeto de irrefutável atração sexual? 2) de que modo o funcionamento interno da rede se articula com as necessidades criadas pela escolha pedófila? (Meyer, 2008: 258).
Suas reflexões vão se desenvolver, ainda segundo ele, "procurando tensionar estas duas indagações" (Meyer, 2008: 258). Vemos aqui como seu trabalho articula, tensionando, psicanálise, na indagação sobre as vicissitudes da sexualidade, e vida social contemporânea, sociedade em rede, que oferece novas formas pelas quais a vida sexual se expressa, se dissemina e enreda os homens.
Luiz é um psicanalista de seu tempo e de seu país. Não apenas pensa a produção de uma psicanálise brasileira a partir do diálogo com críticos de nossa cultura, como observa a cena nacional, a vida em Ipanema e sua sutil indiferenciação das cenas das novelas da Globo, que contribuem em muito na produção de uma vida social na qual realidade e representação estão confundidas; e vê, entre outros, um filme brasileiro, Central do Brasil (Walter Salles, 1998), em cuja análise aponta as formas de estruturação do mundo interno das personagens articuladas e submetidas às formas de organização social do país, incluindo nestas sua Central, na qual se destaca a escriba Dora, que explora o analfabetismo da massa humana compacta e desatendida. Talvez não seja por acaso que, no último texto do livro, em seu fecho, encontremos uma chave para a compreensão de uma ética pessoal e profissional que percorre o livro todo. Vou agora me permitir um pouco de psicanálise do Luiz. E me permito porque o material é público, está agora publicado, e só vou aqui expor em viva voz o que está escrito por ele. Neste texto, "Acaso, destino, memória", ele relata uma de suas viagens de trem ao Rio de Janeiro quando criança, para, a partir dela, formular uma indagação sobre lembranças de acontecimentos que as pessoas consideram determinantes no encaminhamento do sentido de suas vidas. Ele conta:
Foi então que, numa dessas viagens - eu devia ter pouco mais de três anos -, antes de chegar ao Rio, já de manhã, o trem parou numa pequena estação quase deserta. Aproximei-me da janela e vi na plataforma dois meninos um pouco mais velhos do que eu. Estavam descalços, vestiam uma roupa gasta e escura, pareciam sujos, pobres, mal cuidados. Permaneciam em silêncio, imóveis, alçando para mim olhares fixos, intensos e por demais tristes. Separado dos garotos pelo vidro da janela, fiquei a olhá-los de dentro da cabine durante um tempo indefinido, tomado por um sentimento de impotência, um peso depressivo, uma dor debaixo da unha. Quando o trem partiu, senti, sem compreender bem, que minha vida havia mudado profundamente (Meyer, 2008: 276).
Um pouco mais adiante, ele diz que considera este evento "um divisor de águas, um marco que acabou por determinar a forma como passei a conceber as relações humanas" (Meyer, 2008: 276). Num trabalho de autoanálise, Luiz vai atrás do sentido desta recordação, pensando-a como encobridora de uma experiência inassimilada no "continente perdido da experiência infantil" (Meyer, 2008: 277). Não vou adentrar o trabalho que Luiz faz, articulando esta lembrança na trama de suas relações familiares. O que importa aqui é que, segundo ele, esta espécie de "melancolia nascente refluiu e cedeu lugar à construção de um ideal de ego" (Meyer, 2008: 277). Da janela do trem o pequeno Luiz vê as nossas tristezas, que também são as suas. Do lugar de psicanalista, hoje, ele escuta os rumores do nosso tempo. Tempo em que, paradoxalmente, a tecnologia nos permite, desvairadamente, escutar tudo da vida dos outros. Mas também tempo em que se escuta pouco, porque não aprendemos a escutar, e porque o excesso de ruídos impede a escuta. E ainda porque, citando Carlos Drummond de Andrade, que não poderia faltar quando estamos falando da obra do Luiz, "é tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina. Tempo de cinco sentidos num só" (Andrade, 1945)1. Tempo agora de ler Rumor na escuta. Obrigada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Andrade, C. D. (1945). A rosa do povo. Rio de Janeiro: José Olympio. [ Links ]
Assis, M. de (1959). Memórias póstumas de Brás Cubas. Obras completas, vol. I. Rio de Janeiro: Aguilar. [ Links ]
Meyer, L. (2002). Família: dinâmica e terapia. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
NOTAS
1 Disponível em <http://letras.terra.com.br/carlos-drummond-de-andrade/881736/>. Acessado em 09/02/2009.
* Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo - Departamento de Psicologia Social e do Trabalho - Av. Prof. Mello Moraes, 1721 Bloco A - Cidade Universitária - São Paulo - CEP 05508-030. E-mail: belmande@usp.br