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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.25 no.2 Rio de Janeiro jun. 2013

 

SEÇÃO LIVRE

 

Transição da pós-parentalidade no contexto do sertão cearense

 

Transition postparental in central Ceará backcountry

 

Transición de la post-parentalidad en el sertón central del Ceará

 

 

André de Carvalho-BarretoI; Karine Suelanne Silva de LimaII

IUniversidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil
IIFaculdade Católica Rainha do Sertão, Quixadá, CE, Brasil

 

 


RESUMO

O presente estudo objetiva conhecer o modo como pais naturais do sertão central cearense experienciam a saída de seus filhos de casa. Para atingir esse objetivo, adotou-se o método qualitativo, com estudo de caso coletivo. Participaram dessa investigação dois casais naturais do sertão central cearense que tinham, pelo menos, um filho que saiu de casa sem ter sido por conflito ou casamento não planejado. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com cada cônjuge, separadamente, sendo analisadas pelo modelo de análise de conteúdo. As categorias "Sentimentos de perda e aceitação quanto à saída dos filhos" e "Mudanças nas relações conjugal e parental" foram identificadas e discutidas. Considera-se que a transição da pós-parentalidade, também conhecida pela literatura como "fase ou síndrome do ninho vazio", é um fenômeno normativo no desenvolvimento familiar, no qual o contexto tem relativa importância, mas que não ocasiona necessariamente psicopatologias na família.

Palavras-chaves: pós-parentalidade; desenvolvimento familiar; psicologia da família; transição de vida; desenvolvimento normativo.


ABSTRACT

The present study aims at investigating how birth parents from Central Ceará backcountry feel about their childrens' leaving from home. In order to achieve that goal a qualitative collective case study method has been adopted. Study participants were couples from Central Ceará backcountry with at least one child having left home for other reasons than conflict or non-planned marriage. With each partner there have been done semi-structured and separate interviews, which afterwards have been analysed by means of content analysis model. Categories, such as "Sense of loss and feelings of acceptance towards their childrens' leaving", as well as "Changes in Marital and Parental Relations" have been identified and discussed. The postparental transition, also called "empty nest period or empty nest syndrome" within specialized literature, shows to be a normative phenomenon in the realm of family development, being then context of relative importance, but not necessarily leading to family psychopathology.

Keywords: postparental; family development; family psychology; life transition; normative development.


RESUMEN

El presente estudio pretende descubrir cómo los padres naturales del sertón central del Ceará viven la experiencia de la salida de sus hijos de su casa. Se eligió el método cualitativo con estudio de caso colectivo para lograr este objetivo. Participaron en esta investigación dos parejas del sertón central del Ceará que tienen al menos un hijo que se fue de casa sin que la razón haya sido un conflicto o boda imprevista. Las entrevistas semi-estructuradas se realizaron con cada cónyuge, por separado, siendo analizados por el modelo de análisis de contenido. Las categorías "Los sentimientos de pérdida y la aceptación como la salida de los niños" y "Cambios en las relaciones conyugales y parentales" se identificaron y discutieron. Se considera que la transición de post-parentalidad, también conocida en la literatura como "fase o síndrome del nido vacío", es un fenómeno normativo en el desarrollo de la familia, en la cual el contexto tiene una importancia relativa, pero que no causa necesariamente psicopatologías en la familia.

Palabras clave: post-parentalidad: desarrollo familiar; psicología de la familia; transición de vida; desarrollo normativo.


 

 

No novo milênio (séc. XXI) diversas mudanças mundiais e nacionais na sociopolítica e nas relações de gênero, como o aumento da longevidade, da criminalidade de jovens e a adoção de crianças com nacionalidade diferente dos pais, exigem a ampliação do enfoque individual sobre os fenômenos psicológicos para incluir a família (Kaslow, 2001). Mesmo aos psicólogos da família é solicitada uma percepção mais ampla desse microssistema, deixando a compreensão simplesmente da dinâmica das relações entre seus membros (Bronfenbrenner, 2011).

Assim, investigações que considerem a perspectiva do desenvolvimento familiar se tornam essenciais; isto é, que compreendam as fases e os estágios da pessoa em desenvolvimento, levando em conta aspectos de continuidade e mudança que ocorreram simultaneamente com todos os membros do microssistema familiar (Dessen, 1997; Dessen & Silva Neto, 2000). Nessa perspectiva, é relevante considerar que a história, a cultura e a subcultura nas quais a família está inserida se apresentam tão ou mais relevantes para o seu desenvolvimento do que aspectos genotípicos dos membros (Bronfenbrenner, 2011).

A transição da pós-parentalidade - exemplo de etapa do desenvolvimento familiar e foco desta investigação - é caracterizada como uma fase de transição de vida, tanto para os pais adultos (com idade aproximada entre 40 e 60 anos) como para seus filhos jovens adultos (aproximadamente com idades entre 20 e 40 anos). Ela é iniciada no momento em que os filhos decidem sair da casa dos pais e concretiza-se quando o primeiro filho sai de casa, estendendo-se até a partida do último (Borland, 1982; Deutscher, 1964; Lewis, Freneau, & Roberts, 1979).

Em 1960, um dos estudos pioneiros sobre pós-parentalidade, realizado nos Estados Unidos com aproximadamente 200 pais e mães, identificou a satisfação com a saída dos filhos de casa. No caso das mulheres, foi identificado aumento no cuidado consigo e de sua rede de apoio social (Axelson, 1960). As investigações que se seguiram ao longo das décadas confirmaram esses aspectos positivos, mas também observaram nos pais, especialmente nas mães, comportamentos de risco, patologias e psicopatologias tais como baixa autoestima, irregularidade do ciclo menstrual, uso de álcool, doenças crônicas, depressão, separação dos pais, dentre outros (Epstein, Fischer-Elber, & Al-Otaiba, 2007; Lui & Guo, 2008; Schmidt, Murphy, Haq, Rubinow, & Danaceau, 2007).

Por serem as mulheres as principais atingidas por esses transtornos do desenvolvimento causado pela saída dos filhos de casa, essa etapa do desenvolvimento familiar acabou sendo também nomeada como síndrome do ninho vazio ou fase do ninho vazio (Sartori & Zilberman, 2009). Em razão das preocupações sociais do uso de uma "linguagem de celeiro" (Raup & Myers, 1989, p. 180), ao se referirem às mulheres como pássaros e galinhas, perpetuando atitudes sexistas e contra as mulheres, ratifica-se o emprego da expressão pós-parentalidade. Por razões sexistas, ainda, esse termo tem se reafirmado em oposição à pós-paternidade, por compreender que esse fenômeno não é exclusivo aos homens (Raup & Myers, 1989) e mais amplo do que simplesmente exercer a função de pai e mãe (Erikson, 1968/1972). Além disso, essa terminologia sintetiza melhor o que mães, pais e filhos passam nessa etapa do desenvolvimento familiar, não indicando, obrigatoriamente, a presença de patologias com necessidade de intervenção, como a nomeação síndrome do ninho vazio faz (Sartori & Zilberman, 2009). A manutenção de termos relacionados ao ninho vazio ratificam dificuldades experienciadas por mulheres que podem estar passando por um período de transição de vida normal (Borland, 1982; Raup & Myers, 1989). Infelizmente, a falta de uma definição comumente aceita dificulta a consideração de termos mais apropriados, tanto por pesquisadores quanto por clínicos na área da Psicologia da Família.

A transição da pós-parentalidade ocorre durante toda a fase adulta intermediária dos pais - estágio no qual a pessoa avalia os anos vividos e os que virão. No desenvolvimento dos filhos, esse período ocorre na fase em que eles passam a utilizar os conhecimentos adquiridos ao longo da vida para aquisição de outras competências, de mais autonomia e de maior independência (Papalia, Olds, & Feldman, 2006).

A pessoa, ao longo do seu curso de vida, fortifica sua individualização e identidade. A saída de casa é a culminância de um processo de desenvolvimento, tanto do jovem como de sua família, caracterizada por independência emocional e financeira dos filhos em relação aos pais, uma vez que o jovem sai de casa sem precisar romper relações com os pais (Henriques, Jablonski & Feres-Carneiro, 2004). Essa saída ocasiona, obrigatoriamente, uma mudança das dinâmicas e vínculos entre: (a) pais e filhos que partem; (b) pais e filhos que permanecem; (c) irmãos que permanecem; (d) irmãos que saem e ficam em casa; (e) no próprio casal (Carter & McGoldrick, 1989/1995; Minuchin & Fischman, 1990).

Estudo que objetivou conhecer a estrutura e a dinâmica de famílias do interior do Ceará (Vidal, 2007) identificou o fato de que, no contexto do sertão cearense, eram comuns mudanças de estrutura e dinâmica das famílias dessa região. Essas mudanças ocorriam pelo regular nascimento de membros na família, pois muitas eram numerosas pela necessidade de mais filhos ajudando na lavoura ou pelo pouco conhecimento e acesso a métodos contraceptivos.

Outro fato que também ocasionava mudanças era a necessidade que as famílias do sertão do Ceará tinham de migrar entre as regiões do estado e do país buscando melhores condições de vida. Com efeito, inicialmente, o pai e/ou filho mais velho eram os primeiros a sair de casa. Após encontrarem novo local para a família morar, os outros membros eram trazidos. Apesar desse processo migratório e do aumento do número dos membros, a família tendia a se manter coesa, mesmo que por algum tempo houvesse separação ou mesmo o falecimento de alguns de seus membros (Vidal, 2007).

Tal circunstância perdurou até a década de 1990, tendo mudado, especialmente, pela melhora econômica do Brasil, por influência do movimento feminista, do aumento da escolaridade das mulheres da família e da inserção da mulher no mercado de trabalho (Coutinho & Menandro, 2010; Perucchi & Beirão, 2007). Isso ocasionou uma mudança intergeracional da família, e a migração deixou de ser um fenômeno de todo o sistema familiar, liderado principalmente pelos homens, para se tornar uma atividade mais individualizada de alguns de seus membros, tanto homens quanto mulheres.

Apesar de investigações recentes, realizadas em grandes centros urbanos (Féres-Carneiro, Henriques, & Magalhães, 2006; Silveira & Wagner, 2006; Vieira & Rava, 2010), identificarem o adiamento etário da saída dos filhos da casa dos pais - sendo esse adiamento nomeado como síndrome do ninho cheio - e outras pesquisas indicarem a existência de casos de precocidade na saída de alguns filhos durante a adolescência (Baumgart & Santos, 2009), esse período - ocorrendo prévia ou tardiamente - ainda permanece como um marco do desenvolvimento da família como um ritual de passagem para todos os membros desse microssistema.

Apesar da relevância de estudos sobre a transição da pós-parentalidade no desenvolvimento familiar, poucos objetivaram compreender esse fenômeno no contexto brasileiro ou o estudaram somente em contextos distintos nas capitais ou grandes centros urbanos (Baumgart & Santos, 2009; Silveira & Wagner, 2006; Sartori & Zilberman, 2009; Vieira & Rava, 2010). Sendo o Brasil um país que possui a maior parte de sua população fora das capitais e dos grandes centros urbanos (IBGE, 2011), a ausência desse tipo de investigação ocasiona um hiato sobre o efeito do contexto nos estudos desse fenômeno. Assim, esta investigação objetivou conhecer a maneira como pais e mães naturais do sertão central do Ceará experienciaram a saída de seus filhos de casa.

Considerado o oitavo estado mais populoso do país (IBGE, 2011), o Ceará destaca-se também por ser o segundo mais católico, perdendo apenas para o Piauí (Miranda, 2010). Ele é também considerado o terceiro do nordeste com maior Produto Interno Bruto (PIB) e décimo segundo da Federação. Contudo, mantém na sua capital e no entorno dela a concentração desse PIB, sendo no sertão central onde se localizam as cidades mais pobres (IBGE, 2011).

O município de Quixadá fica localizado no sertão central cearense, sendo a décima cidade com maior número de habitantes do Estado - aproximadamente 80.000. Quixeramobim fica vizinho a Quixadá, sendo o terceiro maior município do Ceará. Sua população, no entanto, é inferior à de Quixadá, ou seja, aproximadamente 72.000 habitantes (IBGE, 2011). Por essas cidades juntas representarem as principais e mais populosas cidades do sertão central cearense, optou-se por realizar a pesquisa nelas.

Os habitantes de Quixadá estão distribuídos em aproximadamente 40% crianças e adolescentes (um mês - 19 anos), 30% jovens adultos (20 - 40 anos), 20% adultos (40 - 60 anos), 10 % idosos (acima de 60 anos), estando 57% vivendo na área urbana e os demais nos seus 13 distritos. Quixeramobim possui uma disposição etária da população semelhante ao município vizinho; isto é, 35% são crianças e adolescentes, 32% são jovens adultos, 21% são adultos, 12 % são idosos, residindo 60% dessa população na área urbana.

Quixadá apresenta um índice de desenvolvimento humano (IDH) considerado médio (0,67), estando 60% da população entre ou abaixo da linha da pobreza. O IDH de Quixeramobim também é médio (0,64), com 61% de seus habitantes entre ou abaixo da linha da pobreza. Apesar da semelhança entre os dois municípios, Quixadá é considerada o maior polo econômico da região (IBGE, 2011; ODM, 2011).

 

Método

Delineamento

Por considerar a complexidade de relações no fenômeno a ser investigado, optou-se, como modelo de investigação, pelo qualitativo com estudo de caso coletivo. Uma das características relevantes do modelo qualitativo é a incorporação de aspectos do significado e intencionalidade inerentes aos atos, relações e estruturas sociais, apresentando informações fundamentais para compreensão deles. Outra característica importante é a participação ativa da subjetividade do pesquisador na interpretação dos resultados, o que é crucial para compreender a dinâmica do fenômeno em estudo (Haguette, 1987).

Dentre os diversos métodos de pesquisa do modelo qualitativo, o estudo de caso se destaca pela possibilidade de explorar acontecimentos atuais no seu ambiente, sendo considerado como método mais adequado para compreender aspectos contextuais de grande relevância. Além disso, o estudo de caso é um método apropriado para compreensão de fenômenos singulares que contêm mais variáveis de interesse do que pontos de dados, pelo fato de se fundamentar em várias fontes de evidências (Yin, 1998/2005).

Nos modelos de estudos de caso, o delineamento de estudo de caso coletivo se mostrou mais apropriado por sua possibilidade de maior teorização sobre um fenômeno. Ele é caracterizado pelo estudo conjunto de casos que não precisam ter, obrigatoriamente, características comuns, suspendendo aspectos individuais dos participantes na compreensão das informações (Alves-Mazzotti, 2006).

Participantes

Participaram desta investigação dois casais, um habitante de Quixadá e o outro de Quixeramobim. Os casais foram escolhidos por conveniência, tendo como único critério de inclusão o fato de terem pelo menos um filho ou uma filha que saiu da casa dos pais sem ter sido por motivos de conflito familiar e casamento não planejado.

Os dois casais entrevistados pertenciam à classe baixa, nenhum era natural de Quixadá ou Quixeramobim, mas eram naturais de cidades do sertão cearense. O marido e a mulher de Quixadá tinham, respectivamente, 72 e 53 anos de idade, estando casados há 30 anos. Ele, com sua atual mulher, tem uma filha de 22 anos, mas com sua primeira esposa tem outros seis filhos. Essa filha do casal entrevistado era natural de Quixadá e após o casamento, optou por se mudar inicialmente para a capital do Estado e, posteriormente, para o norte do País, buscando melhores oportunidades profissionais para ela e o marido.

O casal morador de Quixeramobim era casado há 31 anos e ambos possuíam a mesma idade, 58 anos, sendo pais de três filhos - duas mulheres e um homem, naturais dessa cidade, com idades, respectivamente, de 21, 25 e 27 anos. O jovem adulto saiu de casa aos 20 anos para o sudeste do país para ingressar na carreira militar e a filha mais velha deixou a casa dos pais com quase 20 anos para se inserir na vida religiosa. Apesar de ainda não ter decidido, a filha mais nova já expressa interesse em seguir também a vida monástica como a irmã.

Procedimentos

A coleta de dados foi realizada na residência dos casais após seu consentimento livre e esclarecido. Não foi estabelecido número fixo de entrevistas com os cônjuges, sendo realizadas quantas fossem necessárias. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com cada cônjuge, separadamente, sendo gravadas em áudio por gravador digital.

Nas entrevistas foram obtidas informações socioeconômicas da família, o histórico familiar, com quem moravam na época da pesquisa, o motivo da saída do filho de casa, como estavam as relações do casal entre si e com o filho que saiu de casa, como ficou a rotina de casa sem o filho e como foi viver sem a presença do filho.

A pesquisa incorporou os referenciais da bioética, configurados nos pressupostos da autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, consoantes à Resolução 186/96, do Conselho Nacional de Saúde, e da Resolução 16/2000, do Conselho Federal de Psicologia, que regula pesquisas com seres humanos, e aprovação do projeto em um Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

Análise

As entrevistas foram transcritas e analisadas pelo modelo de análise de conteúdo (Bardin, 1977/1995). A partir da leitura atenta e exaustiva das falas de cada participante foram constituídas duas categorias centrais que perpassaram a fala dos quatro entrevistados: (a) Sentimentos de perda e aceitação quanto à saída dos filhos e (b) Mudanças nas relações conjugal e parental.

 

Resultados

Sentimentos de perda e aceitação quanto à saída dos filhos

Nas falas dos pais, os sentimentos centrais que emergem sobre a saída dos filhos de casa são, inicialmente, de perda e, posteriormente, de aceitação. Fica evidente que as razões da saída dos filhos podem ser as mais diversas, algumas podem estar há meses ou anos programadas, mas o momento da saída produz sentimentos de surpresa e tristeza, como se eles não fossem sair realmente, permanecendo indefinidamente sob os cuidados dos pais. Em alguns momentos, os pais ainda tentam procurar formas de impedir ou adiar o máximo possível a saída dos filhos, mas percebem, por fim, que ela é geralmente inevitável: "Fazer de tudo para ela não ir, eu fiz! Mas era para Deus, as forças Dele são maiores do que as minhas" (Mãe de Quixeramobim).

Apesar de a filha de um dos casais ter estado envolvida em um relacionamento longo com outra pessoa, ter noivado, ter dito que não encontrava opções para crescer profissionalmente na sua cidade, e a filha do outro casal ter ingressado na vida religiosa - indicando há anos a necessidade de sair de casa -, sentimentos de perda, saudade e tristeza são recorrentes durante a saída dos filhos de casa e perduram por algum tempo. Esses sentimentos, pela fala de uma mãe, são de tal modo intensos que ocasionam o surgimento de doenças: "Foi ruim! Ruim mesmo, eu até adoeci quando ela saiu de casa. Eu fiquei muito mal mesmo quando ela saiu" (Mãe de Quixadá).

As razões para a saída dos filhos de casa parecem não ser tão relevantes nas falas dos entrevistados, mesmo que seja por motivos de melhora na qualidade de vida. Os pais reconhecem, cognitivamente, que os filhos precisam sair de casa ou que a saída deles é inevitável devido às escolhas que fizeram, mas os sentimentos de separação e distanciamento físico se sobrepõem à necessidade da saída deles de casa.

Os pais, ao mesmo tempo que associam a saída de seus filhos a sentimentos de insegurança, por acreditarem que eles possam não estar preparados para esse momento, também percebem que tanto os filhos como eles estão mais velhos. Assim, as escolhas que os pais fazem - com um investimento emocional e até financeiro - são frustradas pelas decisões dos filhos, algumas vezes, contrárias às dos pais. Decisões que, além de fazerem os filhos seguirem outro curso de vida, ocasionam uma saída de casa não planejada pelos pais naquele período.

A minha vontade era que ela estudasse, procurasse viver a vida com os esforços dela. Tentasse uma faculdade [...]. Eu dei o que não pude de mim para minha filha, até num colégio particular eu a coloquei, que ela pediu. Eu queria que ela terminasse o segundo grau (ensino médio). Ela entra na Comunidade (vida religiosa). Aquilo me revoltou bastante, o dinheiro que eu joguei fora. Já que eu tinha tirado da minha boca para dar um bom ensino, eu imaginava que ela fosse fazer uma faculdade, tentar um emprego, mas não, ela fez foi entrar na Comunidade. (Mãe de Quixeramobim)

Finalmente, após a saída dos filhos de casa, os pais narram que passaram a compreender que essa saída dificilmente conseguiria ser evitada e que as escolhas dos filhos não são decididas apenas por eles.

Muita gente faz essa pergunta: "suas filhas não lhe querem bem. Você é uma mulher doente e suas filhas deixaram você pra ir trabalhar de graça para os outros". Aí eu, no começo, eu até que sentia revolta, aí, depois, fui entender. Se elas se casassem com um alcoólatra e fosse embora lá para o Rio de Janeiro, eu impossibilitaria? (Mãe de Quixeramobim)

Após a aceitação de que a saída do filho é real e que ele, provavelmente, não voltará para a casa dos pais, surge, pelas falas dos casais, a necessidade de se readaptar com essa saída.

A gente ficou sentindo saudades [...]. Não é muito bom quando a gente conviveu com uma pessoa por vinte e tantos anos e essa pessoa, de uma hora pra outra, toma a decisão de ir para outro Estado [...], a gente sentiu tristeza, mas nós demos a volta por cima. (Pai de Quixadá)

Os pais narram que, durante a aceitação da saída dos filhos, a intensidade dos sentimentos de tristeza e saudade vai, gradualmente, reduzindo.

As coisas que eu tenho recebido de Deus, depois que esses meninos, que essas duas meninas e o menino estão fora, é de impressionar. Então não posso dizer que sou uma pessoa infeliz. Até na saúde eu melhorei. (Mãe de Quixeramobim)

Mudanças nas relações conjugal e parental

Pais e mães entrevistados asseveraram, em seus discursos, que a saída dos filhos ensejou mudanças severas nas relações marido-mulher e pais-filhos. A adaptação gradual da nova rotina do casal sem seus filhos fez com que percebessem outras razões que os mantinham vinculados, passando a traçar suas atividades direcionadas mais às suas necessidades pessoais e/ou às do cônjuge. O cônjuge, que era percebido na relação, muitas vezes, como ligado à sua função paterna ou materna, passa a ser identificado como aquele que não sairá de casa como os filhos.

Foi um pai excelente, é um esposo maravilhoso. Tinha seus deslizes aqui, acolá, mas deu para levarmos até hoje. Sinto-me muito feliz ao lado do esposo que Deus me deu. Nossa família, eu posso dizer: nós somos sorteados, porque nossa família é maravilhosa! (Mãe de Quixadá)

Para reduzir a distância física e emocional ocasionada pela saída dos filhos, os pais narram que procuraram estratégias para se manterem o máximo possível presentes no cotidiano dos filhos.

Hoje em dia, tudo é mais fácil [gagueja]. Os meios de comunicação nos fazem mais próximos da pessoa. Hoje, eu falei duas horas no celular com meu filho. Ele me disse: "Mamãe, estou no trabalho. Daqui do meu trabalho para o aeroporto é como da casa daí para a cadeia. E eu aqui sentindo aquela sensação de quando eu ver vocês descendo nesse aeroporto". É que em dezembro nós vamos para onde ele mora, ele vai passar de soldado para cabo, vai ter uma pequena comemoração, a patente é baixa, mas ele tem aquele prazer de nos dar essa alegria. Aí em vez de ele vir com a esposa, ele prefere que a gente vá conhecer a "Cidade Maravilhosa" [risos]. Que tal? (Mãe de Quixeramobim)

 

Discussão

Apesar de a escolha dos casais desta pesquisa ter sido por conveniência, chama atenção a semelhança na faixa de idade dos participantes com o período em que a transição da pós-parentalidade ocorre, consoante aos estudos realizados em outras cidades e países (Borland, 1982; Deutscher, 1964; Lewis et al., 1979; Silveira & Wagner, 2006; Vieira & Rava, 2010). Fica ratificado, portanto, que essa transição de vida costuma ocorrer na mesma época no desenvolvimento das famílias.

A análise das entrevistas possibilitou identificar diversos sentidos que vão sendo atribuídos pelos pais à saída dos filhos de casa. Malgrado a particularidade do contexto do sertão cearense, esses sentidos ratificam o expresso pela literatura de que a saída dos filhos enseja sentimentos de tristeza e desamparo nos pais (Baumgart & Santos, 2009).

Além desses sentimentos, a saída do filho oportuniza a constituição de uma nova ordem nas relações familiares, ocasionada pela entrada de outros membros, como, por exemplo, os netos, o cônjuge da filha e a família desse cônjuge. A saída do filho de casa inclui, ainda, novos sistemas no microssistema familiar. Isto é, contextos nos quais o casal não está imerso passam a interferir no desenvolvimento familiar. O filho do casal, por exemplo, muda-se para o sudeste do Brasil e partes da cultura da região são inseridas na família (Bronfenbrenner, 2011). Assim, atitudes de dificultar a saída dos filhos de casa podem ocorrer como forma de evitar esses sentimentos e as consequentes mudanças no sistema familiar (Minuchin & Fischman, 1990).

Conquanto as investigações prévias tenham indicado que a transição da pós-parentalidade cause maior desconforto às mulheres - por elas serem, supostamente, mais próximas afetivamente dos filhos do que os pais (Carter & McGoldrick, 1989/1995) - e também por serem elas as que mais apresentam transtornos do desenvolvimento (Lui & Guo, 2008), esta pesquisa identificou que, apesar de uma das mães haver afirmado que adoeceu após a saída da filha, a outra mãe não apresentou mudanças em seu estado de saúde, mesmo já apresentando uma doença antes da saída dos filhos. Além disso, os dois pais expressaram o fato de haverem sentido a saída dos filhos tanto quanto suas esposas, não sendo as mulheres as que mais sofrem com esse momento de transição familiar. Assim, é importante ressaltar que o adoecimento da mãe de Quixadá pode não ter sido causado, exclusivamente, pela transição da pós-parentalidade.

Investigações que buscaram identificar os eventos estressores de vida causadores de adoecimento (Holmes & Rahe, 1967; Reis, Hino, & Rodriguez-Añez, 2010) apontaram que a saída do filho de casa é um evento estressor que pode causar adoecimento. Esse evento, todavia, só se torna originador de patologia e psicopatologias se somado a outros eventos estressores, como, por exemplo, morte de um cônjuge ou a doença de algum outro membro da família. Isto é, para essas investigações, apenas a saída do filho não é um fator ocasionador de doenças.

Nesse sentido, é necessário ressaltar a importância do contexto do sertão cearense na transição da pós-parentalidade: um ambiente no qual a religiosidade vem aumentando ao longo do tempo (Miranda, 2010), no qual é comum no histórico das famílias do estado o ingresso de algum de seus membros na vida religiosa (Vidal, 2007). Cidades com IDH médio, pouco desenvolvidas economicamente, que possuem também histórico de famílias migrantes (Vidal, 2007), parecem colaborar para a adaptação mais breve dos pais à saída dos filhos pelo fato de a saída da casa dos pais, em busca de novas oportunidades econômicas e ingresso em congregações religiosas, ser comum na região.

Assim, pais e filhos podem conseguir mais rapidamente encontrar justificativas para aceitar a saída dos filhos de casa e procuram opções para aliviar as tensões e angústias decorrentes dessa transição de vida objetivando manter a integração do sistema familiar. As posições paterna, materna e filial não findam, portanto, com a saída do filho, mas mudam brevemente na intensidade e na forma da constituição dos vínculos (Bronfenbrenner, 2011; Minuchin & Fischman, 1990; Silveira & Wagner, 2006).

Em todos os discursos dos casais, ficou evidente que, apesar de a transição da pós-parentalidade poder prejudicar a relação do casal (Baumgart & Santos, 2009; Borland, 1982; Lewis et al., 1979), todos os entrevistados conseguiram superar de forma satisfatória a ausência dos filhos. Eles passaram, ao longo do tempo, a ficar cientes da necessidade da maior independência dos filhos.

Essa ciência, apesar de, em alguns momentos, sofrida e tratada com resistência, foi gradualmente adquirida com a constituição de nova rotina pelos pais e filhos, mas também, especialmente, pela intenção dos filhos de obtenção de sua independência, não ocorrendo, portanto, a constituição da chamada síndrome do ninho cheio (Silveira & Wagner, 2006; Vieira & Rava, 2010), ou seja, a dependência que filhos adultos têm dos seus pais.

Além disso, os pais passaram a ter também mais tempo para um relacionamento, percebendo o cônjuge numa posição além da paternal ou maternal, reavivando a relação enquanto casal e a intimidade, que, ao longo do nascimento e criação dos filhos, ficaram reduzidas ou deslocadas para os filhos (Baumgart & Santos, 2009; Borland, 1982; Lewis et al., 1979). Nesse maior foco na posição de marido e mulher, foi possível identificar ampliação do casal em sua rede de apoio social e afetiva por eles poderem dedicar mais tempo para si e para outros externos ao núcleo familiar.

 

Considerações finais

Este trabalho corrobora a literatura sobre a transição da pós-parentalidade, posicionando-a como um fenômeno normativo do desenvolvimento familiar, tanto para famílias do interior quanto das capitais. A transição é um desafio para todos os membros da família, independente do contexto em que ocorra, mas no momento em que essa transição faz parte do curso comum do desenvolvimento da família - como a entrada dos filhos na escola, casamento ou desejo de independência dos filhos - torna-se um fenômeno normativo do desenvolvimento das famílias no geral que, como grande parte das transições de vida, por gerar mudanças no microssistema família, pode ocasionar sofrimento para alguns de seus membros.

Ficou evidente nas falas dos entrevistados que, apesar de a saída de casa ser um momento de mudança no curso de vida da familiar do interior, é ocasião de grande satisfação dos pais por verem a promoção do seu desenvolvimento social e afetivo, bem como o dos filhos. Assim, a chegada da pós-parentalidade é mais do que o início de uma vida independente para os filhos; representa uma emancipação psicológica também para os pais, pois, no novo curso do desenvolvimento da família, pais e filhos passam a se relacionar com outras pessoas, transferindo o oferecimento e a necessidade de apoio para outros microssistemas.

O estudo identificou ainda que essa transição de vida dos membros da família afeta a direção e o resultado do desenvolvimento familiar positivamente, com o estabelecimento de maior autonomia dos filhos e dos pais ensejando mudanças nas relações de todo sistema familiar. Um dos aspectos que avança na compreensão do fenômeno da pós-parentalidade são as estratégias adotadas pelos pais desta investigação para aceitar e organizar positivamente o sistema família com a saída dos filhos, algumas vezes não apenas da casa, mas da cidade e do Estado dos pais.

Essas estratégias estão relacionadas aos aspectos do contexto macrossistêmico e histórico no qual o fenômeno da transição da pós-parentalidade ocorre. Ambientes nos quais é comum membros das famílias saírem de casa, mudando de cidade e estado devido às poucas oportunidades profissionais e de qualidade de vida, parecem favorecer os pais a aceitarem mais fácil e positivamente a saída e o grande distanciamento dos filhos. Culturas nas quais a inserção de membros da família em comunidades religiosas é expressiva constituem outro fator determinante para melhor aceitação e adaptação quanto aos integrantes da família saírem de casa para seguirem uma vida religiosa que restringe, significativamente, o contato do religioso com seus familiares.

Esses resultados remetem, portanto, para algumas perguntas não respondidas nesta pesquisa, como quais estratégias os pais desenvolveriam se o filho saísse por razões não típicas do contexto e da história das famílias da região em que cresceu? Se os pais não tivessem histórico de saída de sua cidade de origem, como ocorreria a adaptação à saída dos filhos de casa e da cidade dos pais? O adiamento etário da saída dos filhos de casa dos pais é tão comum no interior quanto nas capitais? Como culturas que privilegiam famílias mais resistentes a mudanças experienciam a saída dos filhos de casa?

Esta investigação considera, finalmente, a necessidade de mais estudos que avancem na discussão sobre esse fenômeno, adotando, também, outras perspectivas metodológicas; sugere-se outros estudos qualitativos para aprofundar aspectos individuais da pós-parentalidade e quantitativos com utilização de instrumentos que possam melhor avaliar o bem-estar social, de apoio social e afetivo e os vínculos familiares. Além disso, que essas investigações possam ocorrer em outros contextos brasileiros além das capitais, com outras perspectivas teóricas e com outros membros da família para ampliar a compreensão sobre o fenômeno da pós-parentalidade que até o momento tem sido pouco estudado no Brasil.

 

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Recebido em 8 de novembro de 2011
Aceito para publicação em 22 de julho de 2012

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