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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.28 no.2 Rio de Janeiro 2016
SEÇÃO LIVRE
Humanização da Justiça ou judicialização do humano?
Humanization of Justice or judicialization of the human?
¿Humanización de la Justicia o judicialización del humano?
Camilla Felix Barbosa de OliveiraI; Leila Maria Torraca de BritoII
ICentro Universitário do Norte (UniNorte). Manaus, AM, Brasil
IIUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
No cenário atual leis, sentenças e procedimentos jurídicos passam a dar mais ênfase ao que se concebe em termos de valorização dos afetos, da felicidade e dos direitos dos sujeitos. Em nome da garantia desses últimos, edifica-se uma nova forma de operação do sistema de Justiça que, para muitos, seria mais humanizada. Tendo em vista tal conjuntura, o presente artigo traz os resultados de uma pesquisa na qual se analisou três materiais produzidos por instâncias do sistema de Justiça no ano de 2013: a Cartilha do divórcio para os pais; a Cartilha da família – Não à alienação parental; e o roteiro Conte até 10 nas escolas. Por meio deste estudo é possível notar que as cartilhas analisadas, além de promoverem a gestão das emoções, dos relacionamentos e dos comportamentos dos sujeitos, têm produzido a judicialização dos atuais modos de subjetivação e de socialização, bem como a transformação dos sentidos dados às vivências cotidianas. Conclui-se, então, que o movimento de expansão do sistema de Justiça designado como humanização pode, por outro ângulo, ser considerado sob o viés da judicialização.
Palavras-chave: humanização da Justiça; judicialização da vida; políticas de governo.
ABSTRACT
In the current scenario law, legal sentence and procedures are now emphasizing more in terms of valorization of affection, happiness and a person’s right. On behalf of these matters, a new profile of procedures is now established in a Justice which, for many people, is more humanized. Having such a juncture in mind, this article presents the results the results of a survey which examined three materials produced by instances of the justice system in 2013: the Booklet of Divorce for Parents; the Family Booklet – No to the Parenting Alienation; and the guide Count to Ten in Schools. Through the study it was possible to notice that the analyzed booklets, not only promote the management of emotions, relationship and the subject’s behavior, but also have been producing the judicialization of the current ways of subjectivation and socialization, as well as the transformation of the meaning given to daily life experience. It was possible to conclude that the expansion movement of the Justice system called humanization can, in another point of view, be consider, bias to the judicialization.
Keywords: humanization of Justice; judicialization of life; government politics.
RESUMEN
En el escenario actual leyes, juicios y procedimientos legales están dando más énfasis a lo que se concibe en términos de valoración de los afectos, de la felicidad y de los derechos de los individuos. En nombre de la seguridad de estos últimos, se construye una nueva forma de funcionamiento del sistema de Justicia que, para muchos, sería más humanizada. En vista de tal situación, este artículo presenta los resultados de una investigación y análisis de tres materiales producidos por las instancias del sistema de justicia en 2013: la Cartilla de Divorcio para los padres; la Cartilla de la Familia – No a la parental alienación; y el guión Cuente Hasta 10 en las Escuelas. A través de este estudio, se puede ver que las cartillas analizadas, además de promover la gestión de las emociones, relaciones y comportamientos de los sujetos, han producido la judicialización de los actuales modos de subjetivación y socialización, así como la transformación de los sentidos dado a las experiencias cotidianas. Llegamos a la conclusión de que el movimiento de expansión del sistema de justicia designado como humanización puede, desde otro ángulo, ser considerado por el sesgo de la judicialización.
Palabras clave: humanización de la Justicia; judicialización de la vida; políticas gubernamentales.
Introdução
No contexto contemporâneo, temas amplos e complexos como violência, educação, afetos, relacionamentos, cuja análise crítica não pode estar apartada do campo social e das relações humanas, são, muitas vezes, mediados e abordados pelo sistema de Justiça de modo pontual, em termos de desvio ou infração do indivíduo. Com base nas legislações sobre as novas formas de "violência nas relações", como designado por Sousa (2014, p. 19), tudo se torna passível de apelo à intervenção judicial: brigas, crises, falas pejorativas, injúrias, desavenças entre escolares, entre casais, entre familiares e entre colegas de trabalho. Vale ressaltar que o sistema de Justiça não contempla somente o Poder Judiciário, mas também instituições como o Ministério Público, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Ministério da Justiça, dentre outras abordadas neste trabalho.
Conforme expõem Pastor e Chimanovitch (2004), atualmente os juízes são cada vez mais encarregados de gerir conflitos e relacionamentos, indo além dos textos das leis e analisando os aspectos subjetivos de cada caso, de modo que se consolidaria uma nova forma do sistema de Justiça que, para muitos, seria mais humanizada. Humanização da Justiça ou judicialização do humano? Eis a questão que será esmiuçada neste artigo, uma vez que se tem observado um uso inadequado de expressões positivas para respaldar o alargamento de intervenções desse sistema em diferentes domínios, favorecendo a judicialização dos modos de vida.
Por judicialização, como conceituado por Oliveira e Brito (2013), compreende-se o movimento de regulação normativa e legal do viver, demandando-se do sistema de Justiça a criação de leis, medidas e penas para a gestão dos conflitos e das relações humanas. Ademais, não somente esse campo se expande como seus modos de operação são incorporados ao cotidiano dos sujeitos, levando-os ao exercício da vigilância, da denúncia, do julgamento e da punição de comportamentos considerados perigosos ou desviantes, como assinalado por Brito (2014).
Observa-se, ainda, que a judicialização tem favorecido o declínio de estratégias e formas de resolução dos conflitos cotidianos fora do âmbito jurídico e legal, como o diálogo, a interferência de um terceiro que seja figura de autoridade (pai, amigo, professor), a reflexão, dentre outras possíveis. Concorda-se, por conseguinte, com Rifiotis (2003, p. 4) quando o autor explica que a judicialização apresenta, ao menos, dois movimentos: "de um lado a ampliação do acesso ao sistema judiciário, e por outro, a desvalorização de outras formas de resolução de conflito".
Nesse cenário, é possível notar uma "ampliação do campo semântico da palavra violência, o que não corresponde, necessariamente, a um aumento das taxas de criminalidade" (Rifiotis, 1998, p. 26). Sousa (2014) destaca que o conceito de violência tem se expandido para o âmbito das relações interpessoais, gerando uma concepção que tem capturado e transformado os modos de ser e de se relacionar com o outro na atualidade. Ao difundir a ideia de que os riscos e ameaças estariam cada vez mais próximos, fortalece-se o apelo por medidas de prevenção, controle e erradicação da violência, legitimando-se as formas de judicialização da vida cotidiana.
Compreende-se, então, que a questão da violência reverbera a lógica punitiva que gere o viver, alimentando o medo que se encontra na base da produção de novas leis, políticas de segurança e medidas tutelares que contemplem os mínimos aspectos da existência. A justificativa e a finalidade divulgadas, como se tem visto, seria tornar o sistema de Justiça mais atento aos afetos, às condutas e aos conflitos relacionais, visando à transformação de uma dita cultura de violência em uma cultura de paz, como assinalado em estudo realizado por Brito (2014).
Opera-se aí uma dicotomia. Por um lado, amplia-se o rol de situações do dia-a-dia e dificuldades existenciais que são judicializadas, transmitindo-se a ideia de que os relacionamentos seriam suspeitos e potencialmente danosos. Por outro, cria-se uma série de medidas no sistema de justiça com fins conciliatórios que visariam à minimização dos conflitos e à maximização de acordos. Em suma, favorece-se a judicialização dos modos de vida e, consequentemente, cresce a demanda por regulações judiciais, o que ocasiona uma sobrecarga de processos e conduz à produção de mais mecanismos normativos, ainda que revestidos com ideários humanitários e pacificadores.
Cumpre ressaltar que ditos saberes das ciências humanas, especialmente os da psicologia, são evocados nos dias de hoje para legitimar ações do Estado que intervém nas relações privadas. Com isso, fortalece-se na pós-modernidade a tendência ao que Théry (2007, p. 157) denomina de "pseudojuridicismo psicossocial", isto é, esse movimento de judicialização que se ancora em discursos de proteção e valorização da vida. Assim, por exemplo, o sistema de Justiça tem intervindo junto às famílias e às escolas por meio de ações consideradas humanitárias e preventivas, o que tem como efeito a expansão do seu poder normalizador sobre mais aspectos do viver.
Seguindo essa tendência, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) deu início à campanha Conte até 10 nas escolas, visando à redução da violência e à promoção de uma cultura de paz. Para tanto, contando com apoio da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (ENASP), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Ministério da Justiça, em 2013 o CNMP desenvolveu um roteiro de aulas para ser distribuído às escolas parceiras e utilizado durante a campanha. Ressalta-se que o material é extremamente detalhado, com orientações para os docentes de como iniciar as aulas, o que perguntar aos alunos, como conduzir determinadas discussões e até a indicação dos exemplos e recursos que deverão ser utilizados.
Ainda em 2013, a Escola Nacional de Mediação e Conciliação (ENAM) – em parceria com o CNJ, a Secretaria de Reforma do Judiciário e o Ministério da Justiça – produziu a Cartilha do divórcio para pais (ENAM, 2013), que é utilizada como roteiro nas Oficinas de Parentalidade. Geralmente coordenadas por psicólogos, assistentes sociais e advogados, as oficinas têm como público pais e mães que estejam vivenciando o divórcio. Destarte, uma juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) explica: "a família chega junta e se divide nas oficinas específicas, voltando a se reunir ao final das atividades. Com esse trabalho queremos mostrar que, embora os pais estejam separados, eles devem continuar unidos para resolver os problemas e ajudar os filhos a se desenvolverem emocionalmente saudáveis e felizes" (Moura, 2013, s/p).
Semelhantemente, com vista à proteção dos filhos de pais separados, o Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) promoveu a publicação da Cartilha da família – Não à alienação parental (2013), cuja autoria é de uma Procuradora daquele estado. De acordo com a lei federal nº 12.318/2010, a alienação parental constitui a interferência na formação psicológica da criança ou adolescente, geralmente promovida por um dos pais, que dificulta a convivência e o relacionamento do filho com o outro genitor. Assim, a cartilha visa alertar para os efeitos danosos atribuídos à alienação parental. Com o formato de história em quadrinhos, o material ilustra o cotidiano de duas famílias e traz como conselheiro um papagaio falante que observa, identifica e soluciona a ocorrência da alienação parental.
Diante do exposto, o presente artigo traz os resultados de uma pesquisa na qual se analisou as referidas cartilhas enquanto políticas do Estado orientadas para prevenção e resolução de problemáticas familiares e relacionais. Uma vez criadas ou executadas por instâncias do sistema de Justiça, questiona-se em que medida esses materiais podem estar contribuindo para o movimento que Rodrigues e Sierra (2011, p. 36) denominam de "judicialização da política", por meio do qual tais instâncias têm exercido "a função de controle da legalidade, intervindo em questões de políticas públicas que, em geral, ficavam circunscritas à esfera do Poder Executivo" (Rodrigues & Sierra, 2011, p. 31).
Metodologia
A fim de explorar os sentidos e os rumos dessa tendência à denominada humanização do sistema de justiça, empreendeu-se a análise de três materiais produzidos por instituições no ano de 2013: a Cartilha do divórcio para os pais (ENAM, 2013); a Cartilha da família – Não à alienação parental (TJBA, 2013); e a cartilha Conte até 10 nas escolas (CNMP, 2013).
Para tanto, utilizou-se o método da análise de conteúdo, o qual é definido por Bardin (1979, p. 42) como "um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos de descrição dos conteúdos das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens". Dada a extensão dos materiais analisados, optou-se por um recorte que privilegiasse temáticas comuns às três cartilhas.
A partir da realização de leituras minuciosas, foi possível identificar os discursos, ideias e argumentos mais empregados nas cartilhas analisadas. Com base nesse exame, os conteúdos foram agrupados em categorias de acordo com a similaridade dos temas, dentre as quais foram selecionados duas para discussão neste ensaio, explanadas a seguir.
Resultados e discussão
Risco, violência e danos psicológicos
No decorrer da pesquisa e da análise das cartilhas, foi observada uma constante referência a certos discursos psicológicos que são vinculados aos riscos de comportamentos tidos como ameaçadores e prejudiciais ao indivíduo. Para Sousa (2014, p. 4), vive-se na atualidade uma espécie de "superestimação da subjetividade [...], expressa na valorização dos fenômenos mentais e emocionais, ou, ainda, na importância conferida ao bem-estar e à felicidade pessoal". Com efeito, modifica-se também a forma como os sofrimentos e as dores da existência são percebidos, dando-se ampla ênfase aos traumas e danos psíquicos.
Nesse sentido, as cartilhas apreciadas mencionam, frequentemente, a necessidade de correção das condutas com vistas à prevenção de possíveis traumas ou transtornos e à eliminação de qualquer risco ao desenvolvimento psicológico saudável. Tal discurso pode ser evidenciado na seguinte advertência do papagaio falante da Cartilha da família – Não à alienação parental:
Maria, cuidado com o que você diz pra seu filho escutar! Lembre-se que ele é uma criança e que a infância dele não espera a sua briga com José terminar! Quando você fala mal do pai dele ou até mesmo dos avós, causa em seu filho transtornos psicológicos irreversíveis, traumas para o resto da vida! Inclusive, eu nunca ouvi você chamá-lo de Joãozinho! Por quê? Será que você está transferindo a sua raiva contra José para o seu filhinho!? (TJBA, 2013, p. 11).
Em tom similar, a Cartilha do divórcio para os pais também alude aos possíveis desajustes psicológicos a que os filhos estão sujeitos caso sejam expostos aos conflitos dos seus pais:
Quando há nível de conflito elevado ou abuso entre os pais, especialmente na presença dos filhos, há grande chance de que eles apresentem alguns desajustes, incluindo níveis mais elevados de depressão, ansiedade e problemas de comportamento (agressividade, mentira, rebeldia, delinquência), e níveis mais baixos de autoestima e desempenho escolar e social (ENAM, 2013, p. 18).
Ao longo do seu conteúdo, esse material evoca a necessidade de proteção da prole contra os ditos efeitos traumatizantes do litígio conjugal por meio da exigência de que os pais, por si só, não somente deem conta de suas próprias angústias, como também promovam o bem-estar dos filhos. Ademais, a cartilha associa a presença dos pais ao desenvolvimento regular da prole e a ausência de um deles aos problemas e às práticas delituosas que emergiriam na juventude. Se, de acordo com a ENAM (2013, p. 79), a convivência com ambos os pais gera "pessoas equilibradas, bem formadas, comunicativas e aptas para o convívio social", por sua vez o afastamento de um dos genitores, segundo a mesma cartilha, desencadearia diversos problemas como gravidez precoce, envolvimento com drogas, prostituição, violência, suicídio e até mesmo a pobreza e recorrência ao seguro desemprego. Promove-se a ideia de que tais questões estariam relacionadas somente ao âmbito individual e privado, independentemente das esferas econômicas, políticas e sociais.
Nota-se, ainda, que o conteúdo do material sustenta um modelo de família tido como correto e saudável, composto por pai, mãe e filhos:
É certo que há pais solteiros e mães solteiras que são verdadeiros heróis, realizando milagres para educar seus filhos adequadamente, sem contar com a ajuda de ninguém. Porém, por mais que essas pessoas se esforcem e se dediquem, sempre há algo que falta.
Por que isso acontece? Porque uma só pessoa não pode agir de acordo com todos os comportamentos necessários para que uma criança se desenvolva de forma saudável (ENAM, 2013, p. 79; grifos do autor).
Ao se promover essa normatização do mundo familiar, o risco que parece de fato iminente é se de estar duplicando o sofrimento dos pais que, além de frustrados com as expectativas e projetos relacionados ao casamento desfeito, provavelmente também terão que lidar com a dificuldade de executar as ações recomendadas pela cartilha. A ausência dos resultados prometidos e esperados, por sua vez, muito possivelmente será interpretada como incapacidade pessoal, pouco investimento ou necessidade de ajuda mais intensa e especializada.
Aliada à exigência de controle emocional e de reeducação comportamental, as cartilhas também enfatizam a relevância de uma boa e permanente gestão das relações, que precisam ser sempre pacíficas e satisfatórias. Nesse sentido, não somente na família, como nas demais esferas sociais e interpessoais, o conflito deixa de ser algo comum na relação com o outro e adquire o status de total negatividade, devendo ser constantemente evitado. No caso da campanha promovida com o Conte até 10 nas escolas (CNMP, 2013), verifica-se claramente a correlação estabelecida entre risco, gestão das relações e prevenção da violência, dada a ideia de que o descontrole emocional tem potencial de gerar situações conflituosas cujos desdobramentos podem ser extremamente danosos:
Dando sequência à aula, o professor deve chamar a atenção da turma para os momentos em que as pessoas são intolerantes umas com as outras ou quando descarregam, em forma de agressão, sobre o colega de classe, professores, familiares ou pessoas desconhecidas, os problemas pelos quais estão passando. [...]
Outro aspecto a ser considerado são as várias questões emocionais, psicológicas e sociais que podem, em tese, desencadear atos violentos. [...] O professor deve [...] levar cada estudante a refletir sobre o seu posicionamento frente a situações de stress, na escola ou na vida, nas quais perder a calma pode resultar em um homicídio.
O foco da campanha do CNMP/ENASP é exercitar o pensar antes de cometer qualquer ato de violência: contar até dez, refletir, antes de perder a calma, nas situações do dia-a-dia (CNMP, 2013, p. 48).
Salienta-se o conceito de risco, o qual, segundo Vaz (1999), representa uma advertência constante sobre as consequências dos atos dos sujeitos, o que tem legitimado a invasão do cotidiano pelo Estado e pelas ciências, que passam a ter como função advertir sobre os meios de prevenir e eliminar as ameaças. Ressaltam-se, assim, os riscos que determinadas condutas poderiam representar e que, por mais que pareçam corriqueiras, hoje são consideradas violentas. Com efeito, a ideia de risco também passa a significar prejuízo às emoções e aos direitos subjetivos, além de reforçar a busca por culpados pelas insatisfações da existência, o que tem contribuído para acirrar os conflitos relacionais e expandir a regulação sobre os modos de vida.
Criado um estado exacerbado de medo e ameaças constantes, qualquer relação humana pode ser transformada em risco em potencial, na medida em que vem aumentando o rol de ações concebidas na atualidade como intoleravelmente violentas. Tal é o exemplo do bullying, fenômeno que tem se tornado foco privilegiado de intervenções e políticas destinadas ao combate e à prevenção da violência no ambiente escolar. Como é possível observar, o Conselho Nacional do Ministério Público (2013) propõe em sua cartilha que esse assunto seja abordado em sala de aula:
O professor deverá concluir a discussão esclarecendo comportamentos e atitudes que desencadeiam agressões. O que vem antes de um ato de bullying? O que fazer para evitá-lo? A quem recorrer, se você for vítima ou agressor? [...]
Mostre o sofrimento causado pelo bullying, que, muitas vezes, parece apenas brincadeira, mas que pode acabar em homicídio. Reitere que as consequências são graves, inclusive as penais, mas não apenas estas (CNMP, 2013, p. 46).
Para Sousa (2014, p. 13), a ideia de violência tem se expandido "como uma espécie de conceito guarda-chuva, sob o qual é alocada uma diversidade de comportamentos identificados como violência psicológica e/ou física, psicoterror, abuso ou tortura psicológica, dentre outras denominações utilizadas". Nesse sentido, esse enfoque tem sido dado à alienação parental, sendo recorrente à alusão não só ao seu caráter violento como aos seus efeitos traumatizantes para os filhos, como destacado pela Cartilha do divórcio para os pais:
A síndrome de alienação parental é condição capaz de produzir diversas consequências nefastas, tanto em relação ao cônjuge alienado quanto ao próprio alienador, mas certamente seus efeitos mais dramáticos recaem sobre os filhos.
Sem tratamento adequado, pode produzir sequelas capazes de perdurar para o resto da vida, pois implica comportamentos abusivos contra a criança, instaura vínculos patológicos, promove vivências contraditórias da relação entre pai e mãe, cria imagens distorcidas da figura dos dois, gerando olhar destruidor e maligno sobre as relações amorosas em geral (ENAM, 2013, p. 101).
Vale ressaltar que, ao mencionar os supostos danos causados pela alienação parental, a Cartilha da família se refere ao bullying como uma de suas consequências:
Este comportamento de Maria está causando muito sofrimento e angústia a Joãozinho, que, por ser criança, não tem a capacidade de entender sobre coisas sérias que pertencem aos adultos... E por conta disto, o seu rendimento escolar baixou muito, comprometendo até seu crescimento físico e intelectual... Está se tornando uma criança triste, insegura e medrosa, se isolando dos coleguinhas..., chorando por qualquer coisa..., chegando a sofrer até "bullying" no prédio, onde mora, na rua e na escola... (TJBA, 2013, p. 10).
Sousa (2014) destaca a proximidade entre esses fenômenos, de maneira que já há quem defenda que a alienação parental seria uma forma de bullying nas relações familiares. Destarte, independentemente da peculiaridade de cada caso, tais comportamentos vêm sendo enquadrados no rol cada vez mais alargado das violências, sendo inclusive equiparados a outros atos, como se pode observar na seguinte afirmativa da Cartilha do divórcio para os pais: "por essas razões, instalar a alienação parental em uma criança é considerado comportamento abusivo pelos estudiosos do tema, da mesma forma que os de natureza sexual ou física" (ENAM, 2013, p. 101).
No que tange à abordagem atual da violência, de acordo com Rifiotis (2008), é comum se estabelecer certa oposição entre vítimas e agressores/acusados, consoante à lógica jurídica. Com isso, os discursos estão cada vez mais focados "nas vítimas e no seu sofrimento, de tal modo que descrevemos/qualificamos atos associados a elas como ‘violentos’, condenando e entendendo-os como antissociais, a partir da imperativa empatia com as ‘vítimas’" (Rifiotis, 2008, p. 226).
Para Vaz (1999), se a figura da vítima tem se tornado a condição subjetiva basilar dos atuais modos de vida, o outro é sempre visto como suspeito, o que justifica sua vigilância e, se necessário, sua punição. Destarte, segundo Vaz (1999, p. 11), "o outro só não é tolerado em seus hábitos de prazer quando nos põe em risco e, inversamente, somos convidados a ajudar todos aqueles que estão em risco, principalmente quando sua situação deriva da ação de outros, quando são vítimas". Com efeito, alertam Rodrigues e Sierra (2011), vê-se que as políticas estão cada vez mais orientadas para identificar culpados, combater a violação dos direitos de alguns grupos e proteger as vítimas.
Tal perspectiva, centrada especialmente na atenção às vitimas, pode ser percebida na maneira como o bullying é abordado pelo roteiro Conte até 10 nas escolas (CNMP, 2013). Nota-se, ainda, que tem sido recorrente a explicação de que o agressor também teria sido vítima de alguma violência ou que possua algum transtorno psíquico que desencadearia os atos transgressores. De maneira semelhante, também são dadas justificativas de ordem psíquica para os atos de alienação parental, como se vê na Cartilha do divórcio para os pais:
3 – O alienador é um psicopata?
Não necessariamente. O alienador tem um distúrbio emocional que merece ser tratado. O alienador também sofre, mesmo não percebendo que na maioria das vezes é o autor desse sofrimento.
4 – O alienador não ama os filhos?
O amor que o alienador dedica aos filhos é doentio. São pessoas que não conseguem se diferenciar dos filhos, assim como não diferenciam a relação conjugal da parental (ENAM, 2013, p. 102).
Estabelecido o perigo no próprio seio familiar, Sousa e Brito (2011) atentam para o fato de que o Estado é, então, legitimado a agir de maneira similar ao que se considera como alienação parental, na medida em que poderá intervir de modo a afastar a criança de um de seus genitores, identificado como alienador. A fim de evitar que o Estado execute tal "demissão parental", segundo expressão empregada por Neyrand (2013), justificam-se políticas de controle e de gestão das condutas, visando à prevenção de potenciais danos e violências. Como exemplo, pode-se mencionar a recomendação da Cartilha do divórcio para os pais acerca de uma técnica de comunicação que ajudaria a diminuir o conflito com o ex-cônjuge:
A comunicação não violenta – aprenda e use uma técnica de comunicação diferente para evitar ou minimizar os conflitos – Marshall Rosenberg
A Comunicação Não Violenta (CNV) é uma forma de expressar os seus sentimentos assumindo a responsabilidade por eles em vez de culpar a outra pessoa e, ainda, mostrando à outra pessoa, de forma clara, o que ela poderá fazer para tornar a sua vida melhor (ENAM, 2013, p. 94).
Destaca-se, aqui, não só a instrução da forma considerada adequada de se comunicar com outro, mas especialmente o uso da expressão "violenta" para qualificar determinado modo de comunicação. Na listagem do que se define como comunicação violenta, estaria toda expressão de juízo de valor, opinião e exigência, como retratado no exemplo a seguir:
Exemplo 2: O ex-marido chega atrasado à casa da ex-esposa, ao deixar os filhos após as visitas, ou vice-versa.
Em vez de dizer: "Você está sempre atrasado quando vem devolver as crianças. Você é tão irresponsável (julgamento). Se você não as trouxer na hora, não vai mais pegá-las na próxima semana (ameaça)".
Tente dizer: "São 19 horas. O horário de devolução das crianças é 18 horas (observação). Eu fico preocupada e frustrada quando elas voltam tarde para casa (sentimentos). Eu preciso que elas cheguem no horário para que eu possa ajudá-las a fazer a lição de casa para o dia seguinte (necessidade). Será que na próxima vez você poderia devolvê-las no horário ou me avisar caso haja algum imprevisto? (pedido)" (ENAM, 2013, p. 96).
Por meio desse exemplo, não se pretende analisar a técnica em si, mas problematizar os possíveis desdobramentos de tal discurso que designa o que seria comunicação violenta e não violenta e, logo, a forma inadequada e a adequada de se expressar. Dada a especificidade da situação abordada, é possível presumir que muitos leitores identificarão no outro a modalidade violenta de comunicação, haja vista os afetos mobilizados pelo divórcio e, frequentemente, acirrados pelo litígio conjugal. Caso julguem que a comunicação violenta parte do ex-cônjuge, é provável que os leitores assumam a posição de vítimas e enquanto tais busquem somente acusar e culpar o outro, utilizando como respaldo as informações apresentadas na cartilha.
Evidencia-se, portanto, como as ideias de risco, violência e danos psicológicos estão entranhadas nos relacionamentos, nas formas de subjetivação e de socialização. Estabelecida e naturalizada essa lógica que incita o medo constante, a ameaça da violência e o risco de seus efeitos danosos, retroalimenta-se a demanda por mais mecanismos regulatórios que exacerbam os atuais modos de gestão e controle da vida por parte do Estado, tal como as cartilhas aqui analisadas.
Judicialização das políticas
Rodrigues e Sierra (2011, p. 36) compreendem que o atual movimento de "judicialização da política" estabelece certa associação entre a garantia dos direitos individuais e o acesso à Justiça, fazendo com que o Judiciário intervenha não só em casos de violação dos direitos como também nas políticas que deveriam garanti-los. Com efeito, segundo as autoras,
a tendência é que o investimento público se volte às políticas de reabilitação das vítimas e de combate à violação de direitos. O resultado é a possibilidade que as políticas se orientem menos no sentido da distribuição do bem-estar social, tornando-se políticas de combate ao mal (Rodrigues & Sierra, 2011, p. 34).
Interessa aqui, por conseguinte, observar a maneira pela qual as cartilhas analisadas podem estar contribuindo para essa disseminação e popularização de métodos, conceitos e práticas outrora restritos ao campo jurídico, alimentando as formas de judicialização da vida. Cumpre também atentar para as campanhas e políticas executadas pelo sistema de Justiça por meio das cartilhas, bem como para os órgãos e agentes mobilizados para a promoção desses materiais em diferentes espaços.
A Cartilha do divórcio para os pais (ENAM, 2013) é utilizada como roteiro nas Oficinas de Parentalidade, trabalho que, segundo a recomendação CNJ nº 50/2014, deve se expandir pelos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais do país. Vale frisar que, de acordo com o artigo 1º do referido documento, as Oficinas de Parentalidade constituem "política pública na resolução e prevenção de conflitos familiares nos termos dos vídeos e das apresentações disponibilizados no portal da Conciliação do CNJ" (Recomendação CNJ nº 50, 2014, s/p).
Acerca da Cartilha da família – Não à alienação parental (TJBA, 2013) salienta-se o fato deste material ter a autoria de uma Procuradora do Estado com o apoio editorial de um Tribunal de Justiça. Nota-se que essa tem sido uma tendência atual de um sistema de Justiça dito mais humanizado: desenvolver materiais, campanhas e políticas que atinjam diferentes espaços, com o intuito de aproximar a população de conceitos e práticas próprios dos que operam o Direito.
No ambiente escolar, destaca-se o trabalho de ação preventiva e de combate à violência desenvolvido por meio do projeto Conte até 10 nas escolas (CNMP, 2013). Desde o lançamento da cartilha, tem-se acompanhado as notícias sobre a implantação da campanha em escolas públicas e privadas de diversos estados do país. Em geral, o projeto tem sido coordenado pelos Ministérios Públicos Estaduais que, além de firmarem a parceria com a rede de ensino público, também se comprometem a prestar o apoio necessário, "inclusive cedendo seus membros para atuação direta junto à comunidade e para capacitação de multiplicadores. Já as Secretarias de Educação ficam responsáveis pela reprodução do material gráfico e pelo desenvolvimento da sistemática de introdução da campanha nas salas de aula" (Ministério Público do Piauí, 2013, s/p).
Dessa forma, segundo sintetiza uma promotora de Justiça da Bahia e membro auxiliar do CNMP, "a campanha Conte até 10 reúne promotores, magistrados, delegados de polícia e defensores públicos em todo o país, para, somando-se às escolas, fazer chegar ao público jovem a mensagem de valorização da vida" (CNMP Notícias, 2013, s/p). Fica claro aqui, portanto, que a direção do trabalho é centralizada no Ministério Público, enquanto a escola constitui um veículo de reprodução do guia Conte até 10 nas escolas (CNMP, 2013).
No que tange ao conteúdo do referido material, destaca-se a seguir uma das propostas de atividade extraclasse para ser desenvolvida pela escola em conjunto com o Ministério Público:
A escola pode solicitar ao Ministério Público a visita de um promotor de Justiça/procurador da República ao longo do desenvolvimento anual das atividades escolares. Também há possibilidade, acordada previamente, de a escola organizar uma visita ao Ministério Público ou a uma sessão de julgamento do Tribunal do Júri (CNMP, 2013, p. 15).
A despeito da importância de o currículo escolar contemplar temas relativos ao ordenamento político e administrativo do Estado brasileiro, é necessário atentar para a divulgação de conceitos e práticas que contribuem para a consolidação da atual cultura da judicialização. Tal difusão, vale destacar, não se restringe somente a informar à população sobre funções, procedimentos e modos de operação de determinados órgãos públicos, mas incentiva que cada cidadão se torne um fiscal e, se preciso, um aplicador da lei e da justiça. Contudo, tal fiscalização deve se dar apenas no plano individual e ter como foco privilegiado o outro.
Conforme destacado por Sousa (2014, p. 12), "sob o argumento de proteção aos indivíduos supostamente fragilizados, se multiplicam dispositivos de controle pelo campo social, que contribuem para novas penalidades, bem como para o governo das condutas". Destarte, é possível falar, em consonância com Bauman (2013, p. 61), em uma nova forma de vigilância exercida ininterruptamente por todos e por cada um com seus "pan-ópticos pessoais". Trata-se da "vigilância líquida", alimentada na atualidade pela expansão das ameaças potenciais e, consequentemente, pelas demandas por segurança, o que a torna "muito mais móvel e flexível, infiltrando-se e se espalhando em muitas áreas da vida" (Bauman, 2013, p. 11).
Diante desse quadro, o exercício da cidadania tem sido frequentemente vinculado às formas de controle e vigilância. Porém o foco privilegiado é o indivíduo, deixando-se de lado os órgãos e poderes públicos que possuem responsabilidades para com a sociedade. Por exemplo, apesar do CNJ ter como função principal a fiscalização e o controle do sistema judiciário brasileiro, zelando para que "a prestação jurisdicional seja realizada com moralidade, eficiência e efetividade em benefício da sociedade" (Portal CNJ, 2014, s/p), nota-se que suas ações têm favorecido mais as formas de regulação dos indivíduos e dos mínimos aspectos de suas vidas.
Um exemplo desse controle pode ser observado nas oficinas que vêm sendo desenvolvidas não só com pais e mães em processo de divórcio, como também com adolescentes filhos de pais separados. Em um dos tópicos trabalhados nas oficinas, "o que você pode fazer para ajudar seus pais a se sentirem melhor, já que eles também sofrem com o divórcio" (IBDFAM Revista, 2014, p. 7), encontram-se as seguintes recomendações:
Diga a um parente ou amigo próximo o que está acontecendo em casa e peça ajuda quando você estiver:
– sendo utilizado como informante para dizer a um dos pais sobre a vida pessoal do outro;
– ouvindo afirmações negativas de um pai sobre o outro ou sobre outro membro da família;
– sendo usado por um dos pais para entregar o cheque da pensão alimentícia para o outro ou a mensagem de que a pensão está atrasada;
– sendo obrigado a tomar partido ou a escolher apenas um dos pais para continuar amando (IBDFAM Revista, 2014, p. 7).
Faz-se necessário pontuar algumas questões relacionas a essa orientação. Primeiramente, cumpre ressaltar que os atos listados são suscetíveis de serem tipificados como alienação parental, dada a semelhança com os exemplos apresentados na lei nº 12.218/2010. Assim, ao indicar que os adolescentes busquem ajuda de um terceiro quando perceberem tais comportamentos, incita-se os filhos a denunciarem seus próprios pais. Uma vez que a denúncia partirá dos filhos, tomados como vítimas, o quadro favorecerá a identificação imediata de alienação parental, fazendo com que o dito alienador fique sujeito às medidas previstas na legislação.
Em suma, a recomendação passada nas oficinas como uma forma de ajuda aos pais poderá ser considerada como denúncia de alienação parental e resultar na punição dos supostos alienadores. Além disso, presume-se que os filhos desconheçam que seu pedido de ajuda, ao adquirir outros sentidos, pode desencadear a inversão da guarda e a suspensão da autoridade parental – como disposto na lei da Alienação parental –, levando ao afastamento de um de seus pais da sua vida.
Ademais, deve-se salientar que, por meio das Oficinas de Parentalidade, os pais também são orientados sobre como proceder e sobre os riscos dos desvios desses padrões de conduta estabelecidos na cartilha, prevalecendo um tom alarmante. Cada genitor deverá se autofiscalizar e fiscalizar as atitudes do outro de acordo com os indícios de alienação parental, que facilmente condizem com as ações cotidianas quando se desconsidera a especificidade da vivência em questão e dos afetos provocados. Diante de qualquer dúvida ou ameaça, recorrer-se-á ao Poder Judiciário para que sejam tomadas as medidas cabíveis. Justifica-se que, se for necessária a punição de uma das partes, esta se dará em função do fim almejado, que seria a proteção dos direitos dos filhos.
Nesse cenário, concorda-se com Bauman (2013, p. 106) que os indivíduos não só são responsabilizados por problemáticas da esfera social, como também "são nomeados para a função dúbia de se tornar suas próprias autoridades legislativas, executivas e judiciárias". O guia Conte até 10 nas escolas (CNMP, 2013), por exemplo, indica a aplicação da mediação de conflitos no contexto escolar, conforme se pode observar no trecho adiante:
O professor deverá incentivar a turma para a criação de uma equipe para mediação de conflitos. Iniciar explicando os conceitos básicos, sua importância para a resolução de conflitos, dar exemplos de casos que foram solucionados por esse meio. Para aprofundamento do assunto, encontra-se disponível no site www.cnmp.mp.br/conteate10 a "Cartilha de Mediadores. Como montar este projeto na minha escola?". [...]
Tal prática pode ser instaurada no interior da escola, em especial nos próprios grupos de alunos, a fim de criar responsabilidades e tentar satisfazer as necessidades dos jovens mediante o desenvolvimento de um ambiente solidário, humanista e cooperativo (CNMP, 2013, p. 52).
Em que pesem seus intentos benéficos e humanitários, cumpre ressaltar ao menos dois efeitos relacionados a tal proposta. Primeiramente, por meio dessa recomendação da mediação, a cartilha contribui para normatizar as relações sociais, já que delimita a forma adequada de se resolver os conflitos. Ademais, considera-se que o material pode também estar fomentando a judicialização das vivências entre os escolares ao transpor para esse ambiente procedimentos e práticas próprias do contexto jurídico, já que a mediação frequentemente é desenvolvida nos espaços dos tribunais como um recurso alternativo para demandas já direcionadas ao Judiciário. Nota-se, ainda, que a proposta apresentada pelo CNMP busca envolver diferentes atores com base no que se considera, atualmente, uma causa nobre: o combate à violência.
Como atividade, após a explicação dos conceitos, propor que seja organizada uma eleição, na escola, para formar uma comissão de mediação de conflitos. Sugere-se que essa comissão seja composta de professores, alunos, funcionários e familiares. O objetivo é analisar os episódios de violência na escola. As atribuições podem ser:
• Ouvir as partes envolvidas.
• Questionar os motivos.
• Pesar a gravidade dos fatos.
• Julgar se o fato é passível de providências legais e, neste caso, tomá-las.
• Alertar as partes sobre seus direitos: de defesa e do devido processo legal.
• Quando possível, mediar o conflito propondo solução na própria escola (CNMP, 2013, p. 53).
Vale ponderar que as atribuições mencionadas na cartilha divergem da proposta da mediação, que tem como finalidade favorecer o diálogo a fim de que os litigantes cheguem a um acordo sem a necessidade da decisão judicial. Portanto, caberia ao facilitador apenas promover essas condições de diálogo e não atuar como um juiz, analisando, alertando, julgando e decidindo pelas partes, tal como é indicado na proposta apresentada no roteiro.
No trecho em tela destaca-se, ainda, o uso de expressões como "partes", "julgar", "direitos de defesa" e "processo legal" para se referir a situações vivenciadas no meio escolar que já são classificadas previamente como "episódios de violência" (CNMP, 2013, p. 53). Compreende-se que o emprego dessa terminologia jurídica modifica o sentido que é dado às vivências, afetando os processos de subjetivação e de socialização, conforme enfatizado por Brito:
Entende-se, desse modo, que a chamada "judicialização" é usada em referência a certa forma de se compreender o mundo e seus acontecimentos quando uma lógica jurídica, com sua "linguagem-chave" – como Dezalay e Garth (2000, p. 164) denominam –, importada do Direito, engendra novos modos de existência e permeia a visão sobre as relações sociais. Nesse âmbito, todos passam a ser convocados a denunciar, alçados ao lugar de detetives e juízes de plantão, com numerosas práticas alternativas sendo propostas para se "fazer justiça" (Brito, 2014, p. 113).
Nesse caso, é possível identificar o aspecto judicializante dos materiais analisados, uma vez que tal fenômeno diz respeito não somente à regulação por parte do Judiciário, como também à incorporação da lógica jurídica na resolução de problemas cotidianos. Na Cartilha do divórcio (ENAM, 2013), por exemplo, observa-se que são estimuladas formas de controle e julgamento das condutas, o que supostamente reduziria os conflitos e atenuaria os danos relacionados à experiência do divórcio:
Pague a pensão alimentícia em dia, tendo em vista que:
• A lei exige e seu filho necessita que você lhe pague pensão alimentícia e ainda lhe dê suporte emocional.
• Finanças adequadas são fator importante para o ajustamento de seu filho à reorganização da família.
• Pagar a pensão alimentícia no dia certo manda uma mensagem forte para seu filho de que você está compromissado a tomar conta dele.
• Pesquisas revelam que o pagamento pontual da pensão alimentícia está relacionado ao aproveitamento escolar da criança, a um desenvolvimento saudável e um bem-estar emocional (ENAM, 2013, p. 57).
O material também faz menção à mediação e à conciliação, listando suas vantagens e indicando como ter acesso a esses procedimentos. Nota-se que a ideia transmitida é de que estes recursos, além de mais eficazes e satisfatórios, propiciariam uma maior autonomia aos envolvidos na tomada de decisões que repercutem sobre suas vidas:
Às vezes, os pais que estão se divorciando participam de um procedimento chamado conciliação ou mediação, para que tentem fazer um acordo sobre todas as decisões que eles precisam tomar. O procedimento é liderado por um mediador ou conciliador, que foi especialmente treinado para agir como um facilitador para ajudar as pessoas a resolver os seus conflitos, encontrando a melhor solução. Ele não é como o juiz e não tem poder de decisão. [...]
Na mediação e na conciliação os pais terão mais autonomia para decidir as grandes questões do divórcio deles. Eles terão a chance de conversar pessoalmente e escolher os caminhos que vão seguir, sem que alguém decida por eles. A rivalidade diminui bastante, e os pais percebem que estão lutando juntos pela melhora do relacionamento da família (ENAM, 2013, p. 111).
Não sendo possível chegar a um acordo via mediação ou conciliação, a Cartilha do divórcio (ENAM, 2013) explica como será a ação judicial, ressaltando seu caráter mais demorado e colocando-a em desvantagem quando comparada aos denominados métodos consensuais:
Algumas pessoas que estão se divorciando têm de procurar a justiça, por meio de uma ação judicial, com a ajuda de advogado, para que o juiz de direito tome as decisões por elas, porque elas não conseguiram chegar a um acordo.
A ação judicial pode demorar bastante tempo. Você pode ter de esperar algum tempo para que a audiência seja realizada e para que a decisão seja tomada e, ainda assim, se você ou seu/sua ex não concordar com a decisão do juiz, pode recorrer e o processo vai para o tribunal de justiça, que vai levar mais um bom tempo para decidir.
Daí por que a conciliação e a mediação podem ser bem mais vantajosas para você e sua família (ENAM, 2013, p. 112).
Ao longo do texto fica clara a indicação da mediação como a melhor escolha para resolução dos litígios relacionados ao divórcio. Essa ideia é transmitida com maior ênfase nas Oficinas de Parentalidade, que não só esclarecem os pais "a respeito da importância da mediação para a solução de seus conflitos" (IBDFAM Revista, 2014, p. 6), como também geralmente encaminham os participantes para a mediação após o trabalho realizado nas Oficinas.
É preciso ressaltar que os chamados meios consensuais foram instituídos pelo CNJ, por meio da resolução nº125/2010, como prioridade da Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses. Seguindo essas diretrizes, os Tribunais do país tiveram que criar Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais com seus respectivos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, "responsáveis pela realização das sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo de conciliadores e mediadores" (Resolução CNJ nº125, 2010, s/p). Mais uma vez destaca-se que a realização das Oficinas de Parentalidade é recomendada aos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais e considerada "política pública na resolução e prevenção dos conflitos familiares" (Recomendação CNJ nº50, 2014, s/p).
Acerca dessas resoluções e recomendações expedidas pelo CNJ, cabe um paralelo com a análise de Brito (2014) sobre os chamados documentos soft law. Embora a autora tenha usado esse conceito para se referir às resoluções, recomendações, programas e demais textos que aludem às decisões tomadas pelos estados no âmbito internacional, é possível perceber certas semelhanças com os documentos produzidos pelo CNJ. Estes, apesar de serem infralegais, ou seja, de não possuírem força de lei, vêm adquirindo ampla força normativa, dada a posição ocupada por esse Conselho como órgão de controle do Judiciário.
Ainda sobre a resolução CNJ nº125/2010, vale ressaltar que um dos argumentos apresentados é de que a conciliação e a mediação seriam "instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já implantados no país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças" (s/p). Nesse sentido, é difundida a ideia de que a mediação e a conciliação seriam recursos que confeririam maior celeridade à Justiça, além de estimularem a solução pacífica e satisfatória dos conflitos, o que supostamente favoreceria a redução da judicialização. Contudo, dados do relatório Justiça em Números 2014 (CNJ) contradizem essa lógica, considerando que atualmente tramitam cerca de 95 milhões de processos na Justiça brasileira, para uma proporção de 202 milhões de habitantes, o que corresponderia à "média de um litígio para cada dois habitantes" (Piovesan, 2014, s/p).
Tais dados, por si só, já refletem a vivência de uma cultura da judicialização. Sobre os meios consensuais, cumpre pontuar que são mecanismos propostos pelo Judiciário para resolução de conflitos que já adentraram em seu espaço, ao menos como demanda. Ademais, salienta-se que os acordos e decisões resultantes da mediação e da conciliação possuem validade jurídica.
Conclusão
Neste artigo, buscou-se problematizar a vinculação das políticas públicas com o sistema de Justiça e, especialmente, com o Poder Judiciário. Entende-se que tal associação, além de contribuir para a ausência de clareza acerca do que compete ou não aos três poderes, tem favorecido o movimento de "judicialização da política" (Rodrigues e Sierra, 2011) e do humano, uma vez que tem se tornado recorrente a produção de materiais destinados à população, como as cartilhas analisadas, bem como a execução de políticas por parte de instâncias jurídicas e em alguns casos no próprio espaço do Judiciário.
Nota-se, então, que a regulação jurídica se expande sobre os mais diversos domínios da vida, o que vem sendo designado como humanização, mas que, por outro ângulo, pode ser considerado sob o viés da judicialização. Destarte, ao desenvolver políticas e produzir cartilhas que orientam a população sobre questões relativas ao divórcio e à violência escolar, estimulando os sujeitos a prevenir, a identificar e a combater supostas ameaças e violações, o sistema de Justiça tem contribuído para a naturalização desses fenômenos e, especialmente, para a judicialização das relações e dos conflitos pessoais, reforçando a associação entre lei, verdade e punição como fundamento para o que se considera hoje uma vida mais justa, igualitária e democrática.
Dito de outro modo, à medida que desenvolve uma série de políticas voltadas para questões relativas às esferas privada, relacional e subjetiva, essa Justiça dita humanizada acentua, paradoxalmente, a judicialização do humano. Com efeito, fomenta-se a demanda e a busca por soluções para problemas corriqueiros e conflitos interpessoais via judiciário e/ou legislativo, instituindo práticas de regulação social, medidas de controle e punição das condutas.
Vale ressaltar que, além do fato de serem produções do sistema de Justiça, as cartilhas analisadas fazem constante referência a leis, procedimentos e técnicas jurídicas, com o aparente intuito de torná-los não só acessíveis como aplicáveis ao cotidiano dos sujeitos. Considera-se, assim, que um dos efeitos dessa popularização dos conceitos e práticas jurídicas sobre os modos de vida e sobre as relações humanas – especialmente nas famílias e escolas, às quais são direcionadas as cartilhas – tem sido a naturalização das práticas de julgamento e enquadramento dos sujeitos como vítimas ou réus.
Cumpre ainda salientar que não se desconsidera a importância de atentar para as questões relativas ao sofrimento psíquico, aos conflitos relacionais, às dinâmicas familiares e até mesmo à violência. Entretanto, entende-se ser fundamental problematizar tanto o enquadre que tem sido dado a esses fenômenos, quanto as medidas que, ao invés de contribuírem para sua transformação, favorecem mais a naturalização e a judicialização dessas vivências.
Não se está questionando, portanto, a legitimidade de propostas e políticas que, de fato, ofereçam condições de suporte para as mudanças que se fazem necessárias. Todavia, compreende-se que tais ações, para serem de fato preventivas, devem ocorrer antes das questões serem judicializadas, cabendo, então, ao Poder Executivo o desenvolvimento de políticas que, minimamente, promovam a garantia dos direitos sociais a toda a população. Políticas públicas que não se ancorem na lógica punitiva, mas que busquem, por exemplo, reconhecer e amparar pais e educadores no desempenho de suas funções educacionais, tornando-os aliados, e não suspeitos ou culpados. Afinal, parafraseando Brito (2014), se a escola e a família são umas das principais instâncias responsáveis pela socialização de crianças e adolescentes, que efeitos produzirão a crescente judicialização das relações e dos conflitos pessoais nesses espaços?
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Recebido em 22 de julho de 2015
Aceito para publicação em 19 de maio de 2016