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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.29 no.3 Rio de Janeiro  2017

 

RESENHA

 

Compreendendo e construindo a terminalidade em UTI: os significados atribuídos por médicos e familiares ao cuidado, à finitude, à morte e ao morrer

 

Understanding and building terminality in ITU: the meanings attributed by doctors and family members to care, death and dying

 

Comprender y construir la terminología en UTI: los significados atribuidos por médicos y familiares al cuidado, a la finitud, a la muerte y al morir

 

 

Claudia Carneiro da CunhaI

IProfessora adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ, Departamento de Psicologia Social e Institucional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 

Resenha do livro: M., Mayla C. (2017). A morte e o morrer em UTI: família e equipe médica em cena. Curitiba: Appris, 251 p.

Com o livro A morte e o morrer em UTI: família e equipe médica em cena, a psicóloga e pesquisadora Mayla Cosmo Monteiro nos brinda com uma profunda reflexão acerca dos temas da terminalidade, da finitude, da morte, do morrer e do cuidado no contexto hospitalar, mais especificamente no setting da terapia intensiva.

A obra de fácil leitura, pela linguagem clara e fluida, é acessível aos mais diversos públicos, contribuindo sobremodo para estudantes e profissionais de saúde que se disponham a perscrutar suas práticas, revendo-as de modo crítico na direção de uma humanização, ou, como nos coloca a autora, buscando uma justa medida entre "competência" (técnica) e "cuidado".

No primeiro capítulo "Entre a vida e a morte: o setting da terapia intensiva", são abordados, nos contornos da modernidade ocidental, o nascimento do hospital, a saída da morte do cotidiano e sua transformação em assunto proibido (tabu), o processo de medicalização da morte e suas críticas, o papel fundamental das tecnologias médico-científicas na estruturação e criação da UTI, a transição epidemiológica que forjou um "público" típico para esse nível especializado de atenção, e as dimensões éticas e bioéticas envolvidas nesse cenário.

Ainda na parte teórica do trabalho, no segundo capítulo, intitulado "Nada será como antes: a família diante da eminência da morte na UTI", Mayla Monteiro aborda as diferentes e possíveis configurações familiares na atualidade, percorrendo a literatura antropológica que relativiza essa noção até chegar aos aportes da psicologia que tratam a dimensão sistêmica, tão cara, segundo a autora, à compreensão dos processos que cercam a díade "paciente-família" na UTI. Aqui a iminência de morte é pensada a partir da dimensão do tempo, que, no seio familiar, não segue o ritmo do relógio ou uma ordem cronológica linear. A coreografia que cada família vai apresentar na cena da UTI, em relação à iminência de morte do ente querido, vai depender, de acordo com esse referencial, do impacto transgeracional do processo saúde-doença e do morrer, bem como da etapa do ciclo vital vivenciado.

Na última parte teórica, terceiro capítulo "Equipe médica e a gestão do morrer em unidade de terapia intensiva", penetramos nos labirintos da prática profissional, no setting da terapia intensiva, onde o manejo fino, pretensamente racional e objetivo dos aparatos tecnológicos, é o objetivo principal da equipe médica. Contudo, mergulhamos na subjetividade inerente a essa prática profissional, na gestão das emoções, na possibilidade e necessidade de pensar a condição humana de quem atende e cuida da díade "paciente-família". Aqui, a compreensão da humanização se estende para abarcar o corpo médico que sofre ao lidar com o sofrimento do outro, com as dificuldades de comunicar "notícias ruins", tendo em vista a formação acadêmica médica centrada no "corpo-objeto" e não no "corpo-pessoa" (Russo, 2006). Mas também o sofrimento oriundo do modo como o trabalho é estruturado na UTI, suas rotinas pesadas, seu aparato tecnológico dominante e as exigências marcadas pela lógica curativa da biomedicina.

Antes de adentrar no quarto e quinto capítulos, oriundos de um esmerado e cuidadoso trabalho empírico empreendido por Mayla Monteiro, nos quais ela contribui de forma autoral para esse campo de investigação e atuação profissional, cabe sublinhar sua coragem em assumir o duplo papel de psicóloga-pesquisadora.

Se por um lado esse duplo papel facilitou a entrada da autora em um campo quase sempre hermético, por outro trouxe o desafio de "estranhar o familiar" (Velho, 2003), além de uma "saia justa" na investigação. Como lidar com o fato de a pesquisa revelar um modus operandi institucional passível de análise crítica e reflexão? Como empreender essa análise sendo parte do corpo profissional da instituição?

Outro desafio enfrentado pela autora foi decorrente do fato de ter privilegiado entrevistar familiares informados recentemente da notícia de terminalidade do filho, mãe, esposa ou marido. Quão desafiador é manter o propósito da pesquisa exercendo o papel de psicóloga, instada a acolher os familiares em um momento tão delicado?

Nas questões acima colocadas o compromisso ético-profissional de Mayla Monteiro constituiu, sem dúvida, o fio norteador de sua atuação como psicóloga-pesquisadora, que, ao "tocar nas feridas", não se eximiu de cuidá-las. 

No quarto capítulo, denominado "Descortinando a terminalidade", a autora situa o universo de estudo e o referencial metodológico. A metodologia clínico-qualitativa visou compreender os significados atribuídos pelos familiares e pela equipe médica ao processo de terminalidade; investigar fatores valorizados pela equipe médica e pelos familiares no processo de tomada de decisões relativas ao manejo clínico e entender o processo de comunicação entre equipe médica e familiares.

Importante dizer que o campo de pesquisa, um hospital privado, de médio porte, localizado na zona Sul do Rio de Janeiro, atende um público diferenciado, composto de pessoas pertencentes à classe média e à classe alta do Rio de Janeiro, perfil correspondente aos seis familiares entrevistados.

O hospital que abriga a UTI, lócus da pesquisa, possui uma especificidade. Os pacientes só podem ser internados se possuírem um médico-assistente (MA), agente responsável por todo o processo de internação, desde a admissão até a alta hospitalar.

Além do MA, estão presentes de modo mais contínuo na UTI o "médico-rotina", responsável pelo acompanhamento diário dos pacientes e pela garantia de continuidade do plano de tratamento de cada paciente, e o médico-plantonista, que atua em regime de plantões, a quem se atribui o controle de alterações agudas no estado clínico dos pacientes durante toda a internação.

Os profissionais de saúde entrevistados, dois médicos e quatro médicas, possuíam bastante familiaridade com a terapia intensiva, com um tempo médio de trabalho nesses espaços de aproximadamente nove anos. A idade dos profissionais variou de 25 a 38 anos e a dos familiares entrevistados variou entre 55 e 79 anos.

O quinto e último capítulo "Compreendendo a terminalidade em UTI sob a ótica da família e da equipe médica" está organizado em dois subcapítulos. Um primeiro, denominado A terminalidade percebida pela equipe médica intensivista, que aborda a perspectiva dos médicos entrevistados, e um segundo, intitulado A terminalidade percebida pelos familiares, que descreve as percepções dos familiares investigados.

Nesse capítulo são recuperados alguns tópicos tratados nos primeiros capítulos teóricos, porém agora em cores vivas, pois eivados de emoções. O primeiro tópico diz respeito aos limites da definição da terminalidade e à complexidade que cerca a sua definição, apesar da busca de critérios racionais e objetivos por parte dos médicos para defini-la. O reconhecimento de que a morte é sempre incerta, mesmo diante de um prognóstico desfavorável, joga um papel fundamental nos dilemas em torno da manutenção da vida com a utilização de todo aparato terapêutico disponível. Afinal, qual é a hora de parar de investir no paciente?

Se os avanços das técnicas da medicina trouxeram inúmeros benefícios para a sociedade, o suposto prolongamento da vida nas unidades de terapia intensiva é o lado negativo desse processo. O momento da morte nessas unidades passou a ser precedido de decisões sobre a recusa (withholding) ou a suspensão (withdrawal) de tratamentos percebidos como "fúteis" ou "inúteis".

Em um país como o Brasil, cuja legislação não é tão bem conhecida ou difundida e a totalidade do aparato tecnológico não se faz presente, como levar às ultimas consequências os cuidados paliativos e a ortotanásia definida (Resolução 1805/06, do Conselho Federal de Medicina) como "o não prolongamento artificial do processo de morte, além do natural"?

Os médicos entrevistados dizem temer as repercussões legais associadas à retirada de tratamentos de suporte à vida. Essa dificuldade se coloca sobremodo quando se trata de um paciente jovem, pela promessa de futuro e pela identificação imediata (a maioria dos médicos entrevistados é jovem). Essa situação lhes traz um conflito maior em relação aos dilemas: "fazer tudo" e "usar todos os recursos até o ultimo momento".

Além disso, os médicos, apesar de criticarem a distanásia ("obstinação terapêutica"), às vezes permitem-na com a intenção de "dar tempo à família" para se despedir do ente querido. Essa atitude dos médicos traz questões éticas importantes. Nas palavras da autora do livro: "o direito do paciente a uma morte digna está sendo respeitado? O sofrimento da família é maior do que o sofrimento do paciente?".

A equipe médica investigada valorizou a comunicação com os familiares a fim de tomar decisões consensuais sempre que possível. No entanto, observa-se uma clara preferência por famílias "colaborativas", já que, do contrário, estas podem virar uma presença incômoda na UTI. Os médicos, apesar de reconhecerem a importância de uma boa relação médico-paciente-familiar, não dão lugar à emoção na atuação profissional, criando estratégias defensivas e de distanciamento do sofrimento alheio.

Da parte dos familiares entrevistados, observa-se um sofrimento intenso tributário ao caráter súbito e repentino da terminalidade, além, em alguns casos, da espera longa e incerta quanto ao momento da morte. Permanecer do "lado de fora" da UTI aguardando os horários restritos das visitas constitui um aspecto penoso dessa experiência. E a ambivalência de sentimentos é resultado de um tratamento que "cuida", excluindo o familiar, e que usa tecnologias que "salvam", mas que podem gerar dor.

Da perspectiva sistêmica a iminência de morte traz a necessidade de reorganização dos papéis familiares e pode ser acompanhada de fortes conflitos no seio familiar. Entretanto, a autora conclui que alguns aspectos garantem uma experiência mais satisfatória, a saber: suporte social, sensação de que o paciente viveu bem a sua vida, a qualidade do vínculo família-paciente, a boa relação com a equipe médica, a percepção de que o doente está sereno por conta da sedação (sem sofrimento), e a presença da religião ou espiritualidade.

Concluindo, o livro de Mayla Monteiro lança luz em uma série de questões que estão longe de ter respostas rápidas ou simples. Por exemplo, em que medida na UTI se prolonga o morrer de uma pessoa ao invés de salvar a sua vida? Como fazer valer a vontade do doente, quando muitas vezes ele está impossibilitado de decidir sobre a própria vida?

A autora afirma a necessidade de se falar sobre a morte nesse contexto, e não afastá-la, silenciando sua presença. Além de tomar a finitude como um parâmetro para o bem viver, pois, para ela, é "porque somos finitos que cada gesto

faz sentido".

 

Referências

Russo, J. (2006). Do corpo-objeto ao corpo-pessoa: desnaturalização de um pressuposto médico. In Souza, A. N., & Pitanguy, J. (Orgs.), Saúde, corpo e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.         [ Links ]

Velho, G. (2003). O desafio da proximidade. In Pesquisas urbanas. Desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ]

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