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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.30 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2018
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n03R02
RESENHAS
Alimentar-se ou comer? Uma questão de simbolização
Feed yourself or eat? A matter of symbolization
Alimentarse o comer? Una cuestión de simbolización
Marcia Schivartche
Doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, Brasil. marciaschiva@gmail.com
Resenha do livro: Roizman, D. H. (2017). A obesidade "não toda" ou quando a gordura fala. São Paulo: Escuta. (128p.)
Daniel Hamer Roizman, em A obesidade "não toda" ou quando a gordura fala, lança a hipótese de que existe uma diferença essencial entre o comer e o alimentar-se. Aquele se distingue deste por estar atrelado a processos de ingestão de linguagem bem como ao real da pulsão de morte, enquanto este está ligado ao organismo biológico atravessado pela fome e pela sede.
O livro é dividido em seis capítulos, cujos títulos são expressões metafóricas em si, o que denota o senso de humor do autor dispensado ao trabalho clínico. Aliás, a questão do chiste é explorada não apenas no menu/índice como na própria proposta de Daniel quanto ao problema da compulsão alimentar.
Ao iniciar a leitura, tem-se a impressão de participar de um banquete de articulações epistemológicas tendo a psicanálise como prato principal, com ênfase no referencial freudo-lacaniano como ingrediente primordial (tal qual a manteiga para a culinária francesa) e ingredientes secundários - nem por isso menos saborosos - compostos de autores pós-lacanianos. No cardápio, são servidos aperitivos provenientes da sociologia, filosofia, psicologia comportamental, política, economia, medicina, estética e, como não poderia deixar de ser, da própria gastronomia, que, em conjunto, permitem que o autor alimente-se o suficiente para digerir a ideia do corpo tripartido em imaginário, simbólico e real.
Se, por um lado, o texto se refere ao sujeito que "come linguagem" como condição e causa de seu desejo, por outro, denuncia a eliminação do sujeito desejante por parte de uma ciência e de uma cultura de consumo vinculadas à lógica de mercado. Daniel aponta a responsabilidade que cabe à psicanálise de criar novos recursos para abordar a questão de uma dietética significante pautada na função paterna.
Ao longo da leitura, percebe-se que todas as disciplinas referenciadas reduzem o corpo e a questão do muito comer a uma forma simplificada, biologizada, consciente/pedagógica e/ou organicista, sem articulá-la à psique e a um sujeito do inconsciente, e ao que resta nele como real não simbolizado. Mas é justo o aspecto não simbolizado que retorna contra o sujeito o que caracteriza a incidência da coisa em si que não foi completamente morta pelo significante. Trata-se, pois, de que processo defensivo? Precisamente o de um gozo que escapa à linguagem e ao recalque…
Daniel lança mão do conceito lacaniano de real para se referir ao que escapa do corpo quanto à simbolização e à imaginarização, no intuito de tentar dispor no mesmo prato a incompletude e um representante psíquico, evitando a congestão. Em outras palavras, ou servido de outra maneira, o autor propõe uma clínica que permita entender e atender à compulsão alimentar a partir do aspecto do real não simbolizado, naquilo que dele pode esvaziar-se, por intermédio de significantes paternos que matem o que retorna contra o sujeito.
O livro nos convoca a pensar como pode o analista gerar condições para que o inconsciente advenha quando suas clássicas formações escapam ao conjunto do retorno do recalcado. Para tanto, oferece ao leitor fatos clínicos que apresentam uma conduta inovadora e bem humorada para tratar das forclusões locais do sujeito.
"Entradas", o início da "refeição", busca refletir sobre o comer e a obesidade na sociedade contemporânea. Distante da perspectiva da clássica patologia médica, procura incluir no projeto o sujeito, o desejo e suas articulações com o Outro e a cultura. Para tal, questiona se existiria uma forma certa de se alimentar. O que médicos e nutricionistas orientam seria a única saída para a compulsão alimentar e a obesidade? Como a psicanálise poderia contribuir para pensar a alimentação humana, a compulsão e a obesidade?
Como em um cardápio, a sequência traz o "Primeiro prato: mercado de peixe de abatedouro clandestino", no qual o autor constata como a obesidade tem sido objeto de pesquisas e de interesse público, comenta sua crescente incidência no Brasil e no mundo e faz um paralelo entre a mudança de hábito e a alimentação pré-industrial. Chama ainda a atenção para a tecnologia como corresponsável por esse aumento, com um menor uso do corpo no dia a dia. Além disso, ressalta que o obeso tem uma imagem depreciada na cultura capitalista, em oposição à supervalorização da magreza, não significando que o gordo é infeliz e o magro não, uma vez que "as respostas subjetivas são sempre singulares".
Outro ponto realçado é a contradição entre o discurso que estimula o comer hipercalórico e o que promove o culto do corpo esbelto. "Coma e fique magro!" parece ser a consigna subliminar que rege o mercado midiático (fast-food contra academia) e acaba por gerar a culpa no ato de comer. Para o humano, o comer vai além da pura alimentação, faz parte dos costumes, do laço familiar, da necessidade de socialização, do proibido e dos imperativos, da lei de proibição do incesto. A alimentação humana marca "a passagem do estado de natureza ao de cultura", o que aponta para o campo simbólico na forma de se alimentar.
Em "Segundo prato: saladas cirúrgicas e vitaminas gástricas", apresenta-se o que a medicina fala sobre a obesidade quanto à categorização enquanto fenômeno, compulsão, dependência ou transtorno, além de questões como carga genética, sedentarismo e saciedade.
Como o que interessa é saber por que a obesidade não é considerada um quadro psiquiátrico, o autor denuncia a visão organicista e comportamental da medicina sobre ela, além do caráter de interesse financeiro no que tange à indústria das cirurgias e dos fármacos. Para ele, há um caráter psicológico associado à obesidade para além de um fenômeno biológico, ilustrando-o com exemplos, como o de J., da Geórgia, criança cuja gordura trazia fama para a família.
Daniel observa a preocupação dos pais quanto ao peso dos filhos, muitas vezes desde a mais tenra idade, situações em que a "fantasia e a responsabilidade do sujeito transformam essas ofertas de saúde e beleza em versões que se particularizam na história e na estrutura do desejo e do mito individual do neurótico […]".
Se a indústria alimentícia incentiva o gozo alimentar, a medicina o coíbe, havendo um ponto no qual as duas se assemelham: os ideais de beleza e saúde. Porém, uma visa ao consumo dos alimentos calóricos; a outra, dos saudáveis. Por seu lado, quando a medicina oferece intervenções cirúrgicas, não estaria, de certa forma, incentivando o consumo livre das calorias?
Para o autor, as abordagens cognitivas do tipo autoajuda, objetificam o sujeito, com a consequência que o "espaço metafórico, que constitui o corpo como suporte simbólico da subjetividade e como aparato produtor de gozo, perde-se nos padrões estandardizados de normatização do ser em suas variadas formas de pesquisa e intervenção […]". Indo além, lembra que, para a psicanálise, as consequências sociais envolvidas para a manutenção do peso podem trazer benefícios psíquicos, pois, diferente de outras ciências, procura incluir o sujeito do inconsciente.
Qual a maneira de unir a medicina e a psicanálise? Daniel afirma que:
psicanaliticamente, poderia se dizer que o capitalismo exemplificado pelo mundo dos fast-foods e pela globalização alimentar traz um ideal de completude (obturação pela falta) àqueles que se encontram com a angústia pela inacessibilidade do objeto causa do desejo. O discurso médico pode ser uma forma distinta de referência ao discurso da ciência, que tem por base o da histeria, mas também pode ser uma forma de expressão do discurso do mestre.
O prenúncio da sobremesa, denominado "Terceiro Prato: Freud, Lacan e os intestinos recheados", é a parte da refeição que exige mais mastigação, momento em que são apresentadas teorias acerca da clínica dos sofrimentos alimentares (não só na psicanálise, mas na medicina), e sugeridas ideias próprias, chamando a atenção para o fato de a obesidade ser um fenômeno da esfera simbólica e do efeito real da pulsão no corpo, bem como uma compulsão à repetição, diferentemente do discurso médico que, ao tratar da obesidade, "dispensa o simbólico e o imaginário do comer".
Cada teoria ou ideia emprestada de autores conhecidos funciona como um ingrediente para que Daniel lapide uma receita na medida para cada sujeito em análise. E quais são eles?
Valas e Braunstein, que refletem sobre a questão do gozo e do desejo em suas oposições; G. Haddad, que parte da ideia que a alimentação, em seu momento mais arcaico, é uma função articulada à demanda do Outro; Feldstein e Jaanus, que trazem a ideia de dois prazeres aglomerados; Martins e Sant'Anna, que pensam a devoração como passagem ao ato, como "sobreposição do erotismo diante da necessidade orgânica de sobrevivência"; Loli, com a noção de que a gordura revela "uma espécie de álibi histérico cuja função seria esconder o próprio desejo, evitando a manifestação do desejo do Outro" e demonstrando pouco espaço para a autoimplicação e a metaforização; Rabinovitch, que percebe a compulsão do comer (impulsões no campo da passagem ao ato) como uma "adesividade libidinal ao objeto", derivada do autoerotismo; e Santiago, com a ideia do muito comer enquadrada na toxicomania, inserida no contexto de novas patologias (do ato), decorrente de uma "modificação do Outro social", pela falência do patriarcado.
Assim, com a sacola carregada de sabores, Daniel põe a mão na massa e lança algumas hipóteses para pensar o comer em excesso: estaria ele associado a uma ausência de aposta no Outro, uma "insistência real da pulsão" agregada à "falência simbólica no nível clínico das patologias impulsivas"?
O autor convida a "reinterpretar o problema do comer por meio dos conceitos lacanianos de gozo e pensar a tragicomédia alimentar humana como um traço que se destaca em alguns sujeitos", sem defender uma tipologia do obeso. Ele concorda que "na compulsão alimentar há uma impossibilidade de simbolização", derivada de "um fundo de angústia".
Sua proposta é de um "enxerto simbólico […] que reposicione o sujeito no discurso", tocando assim em seus significantes para "produzirem significação ao comer, transformando-os em metáforas". Destarte, "o sujeito tomado pela compulsão alimentar está atravessado pela predominância de um objeto real, em detrimento de uma relação com o significante". Ao longo do texto, Daniel denota as frentes para compreender o comer em demasia: a falta de significantes paternos, a lógica de mercado centrada no volume, a forclusão do sujeito do desejo do campo da ciência.
"Nossa sobremesa: significantes com doce de leite" finaliza o texto. Fruta ou doce? Trabalha-se aqui a ideia de mãe versus pai sobre a implantação ou não do desejo e da lei na criança. De que maneira a mãe autoriza a entrada da lei? E o pai, como funciona como agente da castração? O autor questiona a utilização cristalizada dos veículos defensivos tradicionais (recalque, recusa, forclusão) quanto à tríade mãe, pai, bebê e a instalação da lei/desejo.
A questão da identificação marca desde o início a forma como o sujeito se relaciona com a alimentação/comer e varia desde uma "identificação com o significante (representante da falta de objeto)" até uma "identificação real com o objeto em função do rechaço do significante paterno local". Para Daniel,
a direção do tratamento da obesidade seguiria no caminho de enlaçar o(s) Nome(s)-do-pai ao gozo mortífero da obesidade para que o sujeito se sirva de significantes - e não de objetos - para saber fazer algo com seu vazio resultante do desconhecimento do desejo do Outro.
Para tanto, o psicanalista deve se ater aos pontos nevrálgicos de intersecção do real com o simbólico. Ou seja, deve se ater ao significante oral que mais se aproxima do objeto para que este possa entrar na cadeia significante e se perder em vez de se colar ao sujeito.
Ao fim da festa de Babete, o autor oferece "Excertos clínicos" que ilustram: (1) a obesidade servindo de "invólucro protetor perante o olhar intrusivo e gozante do Outro"; (2) a obesidade "como forma de atender à demanda do Outro materno"; e (3) a obesidade "como forma de abocanhar o mundo", como compensação pelo vazio do significante. O problema não é o vazio deixado pela queda do objeto, mas a impossibilidade de gerar o vazio pelo significante que castra o gozo oral materno primário.
Trata-se de uma leitura que exige uma mastigação lenta para que a digestão seja um deleite aos que se interessam pelas vicissitudes da psicanálise. Bom apetite!
Recebido em 03 de abril de 2018
Aceito para publicação em 01 de maio de 2018