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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.34 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2022

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0034n02A02 

SEÇÃO TEMÁTICA - REVISÃO, AVALIAÇÃO E DESENVOLVIMENTO TEÓRICO E PRÁTICO NA CLÍNICA PSICOLÓGICA

 

Clínicas de território: Uma proposta metodológica de pesquisa e de práticas coletivas

 

Territory clinics: A methodological proposal for research and collective practices

 

Clínicas de territorio: Una propuesta metodológica de investigación y prácticas colectivas

 

 

Roberto Henrique Amorim de MedeirosI; Leonardo Veiga GuarnieriII; Theo Soares de LimaIII

IDoutor em Educação e professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil. email: robertoamorim80@hotmail.com
IIMestre em psicanálise pelo Programa de Pós-graduação em Psicanálise: clínica e cultura, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil. email: leonardovguarnieri@gmail.com
IIIDoutor em Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil. email: theolima@gmail.com

 

 


RESUMO

O sofrimento individual e o mal-estar coletivo têm a estrutura de uma narrativa. O rápido processo de urbanização no Brasil resultou na piora das condições de vida, das relações sociais e da expectativa de acesso a comodidades que o território urbano prenunciava. Tal é o cenário problemático que mobilizou a estruturação de bases éticas e epistemológicas e de princípios práticos para uma nova proposta de clínica. Derivar, escutar e escrever, com intuito de mapear, constituem os alicerces de uma estrutura metodológica e práticas coletivas chamadas conceitualmente de clínicaS de Território. Este artigo apresenta a experiência baseada em projetos acadêmicos de extensão e pesquisa universitárias que construíram, ao longo de cinco anos, os fundamentos de uma clínica que parte do conceito de território como relação e produção, sustenta-se na escuta de narrativas e opera estruturalmente a partir dos três elementos mencionados anteriormente. Ao final, investiga a epistemologia da proposta clínica e situa a pluralidade de práticas e campos onde pode operar, além da condição ética de estar consciente da heterogeneidade que se verifica no encontro dos saberes técnico-científicos com as narrativas de espaços, indivíduos e coletivos.

Palavras-chave: clínica; território; deriva; escuta; escrita.


ABSTRACT

Individual suffering and collective discomfort have the structure of a narrative. The rapid process of urbanization in Brazil resulted in the deterioration of living conditions, social relations and the expectation of access to amenities that cities predicted. Such is the problematic scenario that mobilized the structuring of the ethical and epistemological bases, and of practical principles for a new clinic. Drifting, listening and writing, with the intent of mapping, constitute the foundations of a research procedure and collective practices conceptually called territory clinics. This article presents the result of the experience of university research and extension projects that have built, over five years, the foundations of a clinic that starts from the concept of territory as relation and production, is based on listening to narratives, and operates structurally from the three aforementioned elements. In the end, it questions the epistemology of the clinical proposal and locates the plurality of practices and fields in which it can operate, in addition to the ethical provision of being aware of the heterogeneity that lies in the junction of technical-scientific knowledge with the narratives of spaces, individuals and groups.

Keywords: clinic; territory; drift; listening; writing.


RESUMEN

El sufrimiento individual y el malestar colectivo tienen la estructura de una narrativa. El rápido proceso de urbanización en Brasil resultó en el empeoramiento de las condiciones de vida, las relaciones sociales y la expectativa de acceso a las comodidades que las ciudades predijeron. Tal es el escenario problemático que movilizó la estructuración de las bases éticas y epistemológicas y de los principios prácticos para una nueva clínica. Derivar, escuchar y escribir, con el intento de mapear, constituyen los fundamentos de un procedimiento de investigación y prácticas colectivas denominadas conceptualmente como clínicas de territorio. Este artículo presenta el resultado de la experiencia de proyectos de investigación y extensión universitarios que han construido, a lo largo de cinco años, las bases de una clínica que parte del concepto de territorio como relación y producción, sostenida en la escucha de narrativas y operante a partir de los tres elementos mencionados anteriormente. Al final, investiga la epistemología de la propuesta clínica y sitúa la pluralidad de prácticas y campos en los que puede operar, además de la condición ética de estar consciente de la heterogeneidad que se da en el encuentro de los conocimientos técnico-científicos con las narrativas de espacios, individuos y colectivos.

Palabras clave: clínica; territorio; deriva; escucha; escrita.


 

 

Apresentação e justificativas

O presente artigo tem por objetivo tornar público e discutir os princípios elementares de uma estratégia metodológica construída a partir da experiência transdisciplinar e do contato direto com narrativas do território urbano e suas territorialidades, para o reconhecimento de problemas e encaminhamento de possíveis soluções em que uma dimensão disciplinar ou técnica não opere como hegemônica.

No Brasil faz apenas 40 anos desde que a população rural foi superada pela urbana (Santos, 1993). Na Europa, a Revolução Industrial impulsionou a urbanização e a migração do campo para a cidade num processo iniciado há quase dois séculos. Estima-se que, até o ano de 2050, 68% da população mundial residirá nas cidades (Fanjul, 2020). Um fato comum às duas épocas é o colapso que o afluxo repentino de massas populacionais provoca no processo de urbanização, precarizando condições de vida, relações sociais e o acesso às comodidades que o ambiente urbano deveria promover para a vida individual e coletiva. As políticas econômicas globais do capitalismo desde a década de 1970 têm causado o aumento do cinturão de pobreza e agravado a desigualdade entre ricos e pobres, reforçando um prognóstico negativo para o futuro. Esse cenário constitui boa parte do terreno problemático concernente a todos os saberes implicados na busca da melhoria do viver humano em coletividade e em harmonia com o ambiente: da geografia, do urbanismo, da sociologia e da antropologia, passando por áreas não acadêmicas, até a de gestores públicos tecnocráticos e, evidentemente, as do extenso campo da saúde coletiva, física e mental.

Embora os entendimentos sobre os problemas da relação humana com seu meio possam variar em cada disciplina devido a modos distintos de construir objetos e priorizar questões, discursos hegemônicos acerca do método no campo da ciência organizam uma espécie de molde para a mediação da experiência humana com seus fenômenos sociais, econômicos ou políticos. A produção de índices quantitativos e modelos matemáticos de análise emergem como a forma científica de avaliar e descrever fenômenos de diferentes ordens. Cabe assinalar que essas condições produzem seus regimes de verdade e desempenham decisivo papel na construção do que retratamos como realidade. Um efeito disso é a mistificação do número, da quantificação e da estatística em campos muito distintos do conhecimento.

No âmbito da gestão pública, são mapas topográficos, socioeconômicos, demográficos, epidemiológicos, entre outros, os que figuram como fontes confiáveis de informações e que servem como base comum para políticas, ações e intervenções práticas sobre os supostos problemas dos diversos territórios onde acontece a vida de relação. Esses mapeamentos trazem indicadores relevantes e traçam um perfil inicial bastante acurado, constituindo bancos de dados e sistemas de informações, como por exemplo os dados epidemiológicos sobre uma população de um bairro ou cidade.

Elementos descritivos ou computáveis, como o relevo, a demografia, o nível socioeconômico, o poder de compra, a cor, a religião ou as doenças específicas presentes em determinado recorte territorial trazem um possível desenho para a compreensão dos modos complexos de reprodução da vida. Costumam servir de dados básicos para a compreensão e o enfrentamento dos principais problemas das cidades de médio e grande porte do país, como a violência e a mobilidade urbana, os baixos salários e contratos precários de trabalho, o difícil acesso à educação e à saúde e a falta de tempo e espaços para o lazer, entre os mais presentes (IPEA, 2018). Entretanto, compreensões acerca de como operam essas dificuldades nas comunidades, nos bairros ou nas cidades como um todo, bem como as estratégias de enfrentamento singulares de cada grupo populacional e seus territórios, são realmente tão abrangentes e eficazes como se supõe? Parece inatacável que uma mesma estrutura metodológica com um modelo essencialmente quantitativo e interpretado, na maioria dos casos, a partir de um recorte disciplinar privilegiado, esteja longe de constituir uma compreensão totalizante acerca da complexidade dos discursos circulantes no território que se deseja reconhecer.

O sofrimento individual e o mal-estar coletivo no laço social e na cultura têm a estrutura de uma narrativa. As narrativas hegemônicas que generalizam formas de vida são apenas a superfície coercitiva de uma miríade de outras narrativas. As primeiras - como por exemplo as da economia, da neurologia ou da psiquiatria farmacológica - constituem-se como semblantes de verdade em seus campos, cujos construtos velam discursivamente os processos materiais que constituem suas formas. Os procedimentos técnicos que produzem uma quantidade gigantesca de dados geram discursos que pautam todos os aspectos da vida humana. A big data e sua utilização é o exemplo mais recente. Porém, é importante sublinhar duas características comuns a esse modo de produzir dados e conhecimento: (a) a exclusão das narrativas singulares, para a homogeneização da amostra e generalização dos achados; (b) a coleta de dados e sua interpretação organizadas a priori por algum campo teórico privilegiado, além do uso de técnicas estatísticas, digitais ou algorítmicas.

Por conta disso, o princípio orientador, fundante de nossa busca, foi procurar atenuar os efeitos de poder de determinado campo teórico, técnico ou institucional para encontrar uma alternativa aos mapeamentos territoriais que descrevem problemas da vida cotidiana, mal-estares e sofrimentos, baseados em dados quantitativos, probabilísticos ou estatísticos e que excluem as singularidades da experiência. Tal condição influencia diretamente a natureza do dado e a construção da realidade, embora quase não se encontre em nossos dias uma discussão ontológica clara sobre isso.

O que se apresentou até aqui lança alguns dos problemas que a proposta metodológica que embasa este artigo procurará abordar. Discutiremos os avanços de uma experiência prática organizada como projeto de extensão universitária ao longo de quatro anos e de uma pesquisa mais recente associada a esse projeto procurando dar rigor à apresentação dos elementos de uma estratégia metodológica produzida naquelas experiências - extensão e pesquisa - que pretendem introduzir os fundamentos de uma clínica de território. Na próxima seção, relataremos a experiência que resultou na estratégia metodológica para, em seguida, trabalharmos cada um de seus elementos, pondo em evidência e discutindo possíveis problemas epistemológicos e suas concebíveis soluções.

 

Experiências e seus procedimentos

Clínicas de Território foi o nome dado a um projeto de extensão universitária iniciado em meados de 2016 e que envolveu professores e alunos de diversos cursos de graduação (saúde coletiva, psicologia, educação física, enfermagem, geografia, assistência social, direito, arquitetura e urbanismo), reunidos pelo recorte da saúde. O processo sócio-histórico brasileiro conhecido como Reforma Sanitária redefiniu a saúde no país ao integrar em seu escopo os conceitos de cuidado, promoção, cultura, determinação social e a noção ampliada de território. Este, pensado como o espaço vivo e em processo contínuo de estruturação, precisa ser reconhecido em sua complexidade social, cultural, histórica, epidemiológica etc., para o estabelecimento de ações adequadas nas esferas de gestão, atenção, formação e controle social em saúde. O objetivo inicial do projeto fora o de integrar um grupo de alunos e professores de diversas áreas afins ao discurso do cuidado em saúde, proporcionando-lhes o contato com diferentes modos de vida, com vistas a trabalhar fortuitamente com a promoção da saúde. Foram escolhidos dois espaços urbanos da periferia de uma grande cidade como cenário do projeto por características que representam bem a realidade de cidades brasileiras pela desigualdade social e a situação precária da população assolada pela miséria, violência urbana e pouca presença do Estado em seu papel de promotor de recursos para a cidadania. Após, o grupo de aproximadamente 20 pessoas foi dividido pela metade e os professores que tinham alguma familiaridade com os territórios devido a trabalhos pregressos realizaram contatos com profissionais de unidades de saúde que serviriam de guias para o encontro inicial do grupo com os territórios e seus moradores.

Imediatamente, o grupo percebeu que a mediação pela via da saúde produzia interações limitadas àquela esfera. Nas discussões do grande grupo, após as primeiras incursões nos campos de prática, ficou claro que era preciso evitar ao máximo as mediações e atenuar o quanto possível os efeitos dos saberes constituídos pelas áreas do conhecimento científico ali representadas ou do poder de alguma instituição atuante no território. Encontrávamos aí o início da construção do princípio ético de nosso futuro método.

O primeiro objetivo passou a ser a proposição de uma experiência crítica para a aproximação e contato com as formas de vida no espaço urbano. Desejávamos que nosso ato de reconhecimento territorial partisse do próprio espaço como fundamento e não como objeto de classificação, diagnóstico ou intervenção: uma construção com o território e não sobre ele.

O desamparo derivado da tentativa de não contar com orientações teóricas ou atividades acadêmicas programadas pôs o grupo a caminhar pelos espaços evitando outras mediações institucionais e sem um propósito definido previamente. Descobriu-se que, mesmo em um espaço público e extenso, uma pessoa ou um pequeno grupo itinerante, não familiares ao local, não passam despercebidos por muito tempo. O território provoca e é provocado. Se, em princípio, escapamos do enquadre institucional da saúde, não foi possível escapar do lugar da formação universitária. Encontrou-se o limite ético quando o grupo passou a ser interpelado sobre seus propósitos e origens, tornando-se condição necessária e suficiente revelar o perfil de projeto acadêmico.

A fase inicial de exploração dos territórios por meio de caminhadas a pé e permitindo que o território afetasse e fosse afetado pelo grupo produziu duas perguntas estruturantes da subsequente pesquisa acerca da possibilidade de estabelecer um método baseado em narrativas para o mapeamento e produção de conhecimentos acerca de um território. Que procedimentos práticos poderiam permitir a aproximação ao território, mantendo atenuada a intencionalidade da busca pelo dado? Que forma poderia substituir procedimentos de coleta de dados tradicionais e hegemônicos para que se obtivesse o desenho de um mapa territorial menos descritivo e, talvez, mais expressivo acerca dos modos de viver e de sofrer?

A primeira resposta encontrou-se pela via da arte, em especial, a literatura. Por sugestão de uma integrante do projeto de extensão, realizou-se um seminário com o grande grupo inspirado pelo conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro (Fonseca, 1992). A reflexão sobre o personagem e demais elementos narrativos do conto confirmou a aposta de tentar resolver impasses e significar o mundo por outra forma que não só pela lente da ciência, como a arte nos faculta.

No segundo ano do projeto de extensão, a prática não sistemática de caminhadas a pé pelas ruas de um bairro encontrou o primeiro conceito construído a partir do método psicogeográfico baseado na deriva (Debord, 2003c). Trata-se de uma disposição do sujeito em jogar com a cidade, em deixar-se levar por associações psíquicas e geográficas e experimentar a relação com o espaço sem mediação das necessidades ou coerções do cotidiano e seu urbanismo.

As práticas da deriva, por sua vez, permitiram o acesso a narrativas com o menor grau de intencionalidade prévia possível. O derivante cria situações que provocam e subvertem os fluxos do espaço vivido. Situações criadas no território, a partir de jogos de deriva propostos por duplas ou individualmente, constituíram-se no meio para produzir encontros com diversas fontes narrativas sem o uso de instrumentos ou métodos determinados por algum campo de saber privilegiado, segundo os princípios éticos iniciais da experiência. Por exemplo, em vez da escolha de um grupo ou instituição específica para aplicação de um protocolo, inventário ou realização de grupos focais sobre questões da violência urbana, a deriva de uma dupla de alunas em um bar da região gerou a possibilidade de escuta de narrativas espontâneas sobre a mesma temática, sem o concurso de uma consigna que a enquadrasse. Parecia resolvido o primeiro problema acerca da aproximação ao território sem que a captura por alguma intencionalidade prévia ou campo do conhecimento presidisse ao ato. A reiteração exaustiva dos jogos da deriva de cada participante do projeto de extensão ao longo do tempo foi gerando encontros com diversas possibilidades narrativas e estabelecimento de relações com o território, o que passou a demandar que uma discussão formal sobre a escuta decorrente da prática da deriva passasse a ocupar as preocupações do grupo.

A escuta é um dos elementos da Clínica, embora assuma papéis diferentes em cada uma delas. No entanto, quando surge a necessidade de consulta, uma pessoa qualificada, a quem é suposto um saber sobre a questão, é buscada, seja por indicação, seja por publicidade. Em seguida, é comum que o profissional depositário dessa suposição de saber traduza a narrativa que lhe é endereçada nos termos de seu próprio campo de conhecimento e ofereça soluções ou prognósticos. Essa pode ser a estrutura comum da clínica em serviços públicos, privados, mas até mesmo comerciais e de outras prestações de serviços. Entretanto, como já mencionado, a ética proposta para a construção de uma clínica de território impunha a solução de dois problemas gerados a partir da nossa experiência inicial no campo da escuta: a suposta inversão da demanda no encontro com a fonte narrativa (não é o narrador que procura uma escuta para seu problema) e o fato consequente de não haver suposição de saber por parte do narrador a quem ele endereça sua narrativa (fenômeno que a psicanálise chama de transferência e que sustenta um espaço de fala e de escuta).

As soluções se apresentaram da seguinte forma: se, por um lado, a deriva situacionista encaminhava a superação do primeiro impasse ao provocar que instituições, indivíduos e mesmo os próprios elementos da urbe fizessem o movimento de interpelar o derivante e não o contrário, o estudo da escuta psicanalítica, sua técnica e a semiologia de sua clínica deu a chave para começarmos a definir posições iniciais nos espaços de fala e escuta constituídos a partir das derivas. A psicanálise, inspirada na releitura freudiana realizada por Lacan (1953/1998), toma a fala e os elementos narrativos do campo da linguagem como significantes e não signos linguísticos com sentidos determinados por um código de um campo de saber. Na clínica médica, por exemplo, se uma região do corpo apresenta calor, dor e rubor, determina-se indubitavelmente que se trata de uma inflamação. Contudo, para um projeto cuja ética ordenadora fundamental fora a abstinência em produzir capturas que discursos de saber impõem a objetos e sujeitos de pesquisa ou intervenção, interessava experimentar uma escuta que não resultasse numa tradução ou categorização.

A necessidade de acolher as experiências dos alunos em território, que passaram a vincular-se a pessoas ou instituições a partir do estabelecimento de espaços de fala e escuta pelo procedimento da deriva, trouxe a necessidade da criação de outro dispositivo no contexto da extensão universitária. Tal espaço estruturou-se a exemplo de uma supervisão coletiva, onde os integrantes do grupo podiam trazer relatos e impasses acerca de suas experiências de deriva e dos efeitos que o encontro com as narrativas e demandas do território iam produzindo. Como não era o caso tratar-se de uma supervisão acadêmica ou mesmo psicanalítica, procuramos trazer a atenção àquilo que emergia dos relatos como elementos significantes, sem que o primeiro movimento fosse o da interpretação teórica e/ou atribuição de sentidos. Tais significantes eram apenas inventariados até que decantassem traços ou insistências que orientavam propostas de retorno ao local onde foram produzidos, gerando outras ações e novas narrativas. Por exemplo, além do trabalho com o significante "violência" escutado e produzido na deriva em um bar, como mencionado anteriormente, o significante "sair" (do território) foi um dos primeiros que insistiram nos espaços de supervisão coletiva. Derivantes do projeto de extensão - ao entrarem pela primeira vez em contato com as realidades mais duras dos territórios - espantavam-se, de modo ainda imaturo, com a suposta falta de iniciativa dos moradores que ali seguiam suas vidas apesar da própria violência e da falta de perspectivas de vida ("por que não saem dali?"). Surpreendentemente, o contato com alunos de ensino médio de uma escola, que uma dupla de derivantes visitou como jogo de deriva, permitiu a escuta de suas angústias a respeito da escolha profissional e a necessidade imperativa de "sair" do território em pouco tempo para estudar e almejar uma posição melhor no campo de trabalho. A posição ética de assumir tanto "violência" como "sair (do território)" em sua polifonia significante - ao invés de produzir interpretações e sentidos a priori e propostas prematuras de intervenção - permitiu devolver ao território o que fora escutado, como proposta de trabalho coletivo. Tal ato possibilitou que o primeiro grupo passasse a constituir um espaço dentro do próprio bar, atendendo, numa sala reservada franqueada pelo proprietário, demandas diversas de escuta de clientes habituais do bar (preferencialmente homens já aposentados) e, no caso da escola, vincular-se ao currículo do professor de filosofia para trabalhar a escolha profissional com alunos do segundo ano do ensino médio. A descrição mais detalhada acerca das primeiras ações práticas com o método foi objeto de outros artigos, como Silva e Medeiros (2022), porém excederia o escopo deste artigo, cujo foco é a formalização da proposta de estrutura metodológica de uma possível clínica de território.

Com a experiência dos primeiros dois anos, o projeto de extensão passou a oferecer aos novos alunos interessados - grupos de mais de vinte a cada semestre - uma experiência mais estruturada de imersão no território, sustentada por meio das técnicas de deriva, escuta de narrativas, supervisão coletiva, além dos primeiros seminários teóricos acerca dos conceitos-chave do trabalho: território, deriva, narrativa e escuta, entre outros. O foco problemático daquele período, superados os problemas iniciais de aproximação aos territórios e de inversão da demanda, foi como dar forma expressiva às primeiras narrativas para escapar da captura de sentidos patrocinados por qualquer campo de saber privilegiado no processo - o segundo princípio ético do projeto. O processo de escuta coletiva da produção significante no espaço da supervisão, a partir das práticas de escuta individuais dos integrantes do grupo, foi produzindo diversas formas criativas e exploratórias de trabalho com as narrativas. Mantido o objetivo de escapar da dimensão descritiva ou analógica interpretativa via algum campo disciplinar, experimentaram-se várias formas de expressão, desde oficinas com recursos gráficos sobre a base do mapa geopolítico do território, arranjos materiais com palavras extraídas de experiências coletivas de escuta, fotografias harmonizadas com textos, dramatizações, entre outros.

O amadurecimento de soluções para os limites éticos dispostos como alicerces da experiência que se propôs a pergunta pela existência de uma clínica de território e o surgimento dos primeiros dispositivos de trabalho nesse contexto geraram a possibilidade de vinculação de um projeto de pesquisa à experiência contínua de extensão universitária. Tal projeto procurou intensificar a investigação da possibilidade de estabelecer bases conceituais para o mapeamento de territórios baseado em narrativas, cuja metodologia foi fundada no processo de deriva e escuta para a geração dos dados da pesquisa. A investigação teve como meta a tentativa de estabelecer qual o meio mais adequado pelo qual seria possível constituir um mapeamento do território menos descritivo e quantitativo e, se possível, que desse tratamento mais expressivo às narrativas do território com a expectativa de atenuar os efeitos de poder que as capturas institucionais ou dos campos do saber constituídos promovem.

Um mapa é uma linguagem (Harley, 2005). Qual escrita, porém, permitiria privilegiar, nessa linguagem, a expressão, em detrimento da descrição ou da representação? A reiterada experimentação crítica e exploratória dos elementos significantes no contexto da extensão universitária e agora da pesquisa associada mostrou que não há uma única linguagem privilegiada para dar expressão às narrativas do território produzidas a partir da técnica da deriva e da constituição inadvertida e não premeditada de espaços de fala e de escuta. Verificou-se que há um aspecto da singularidade do pesquisador que deve ser levada em alta consideração. Na medida em que é ele que estabelece, segundo suas capacidades, desejos e potencialidades, a forma do jogo de deriva pelo território e, assim, afetará e será afetado no campo de pesquisa, a expressão que tentará produzir a partir de sua escuta também precisará ter sua marca. Contudo, não será possível transmitir sua experiência a não ser por meio do ato de escrevê-la. A escrita, porém, não está limitada à grafia que representa no papel a fonetização da palavra. A escrita a que chegamos é um traço expressivo da experiência que não se limita a um texto. O mapeamento do território, sendo um tipo de escrita, pode, portanto, assumir formas diversas. Tudo depende da experiência singular do agenciamento entre o clínico - o pesquisador - e o território que escuta.

A partir do trabalho intenso dos últimos quatro anos sob as formas de extensão e pesquisa universitárias, associadas como meio de viabilização de uma experiência interdisciplinar cujo objetivo fora buscar uma nova estrutura metodológica alternativa aos procedimentos e princípios da Clínica tradicional e individual no campo da saúde, podemos anunciar a formalização de uma estrutura que envolve os atos de derivar, escutar e escrever, visando a um mapeamento expressivo a partir de narrativas, como forma e modo de reconhecer e levantar problemas num território.

A seguir, discutiremos os resultados deste trabalho, comentando os problemas e suas possíveis soluções levantados pela reflexão crítica a respeito dessa proposta estruturante de uma proposta clínica, ao passo que definimos e esclarecemos os três elementos fundamentais que a sustentam.

Derivar

Para as "ciências da Terra", como a geografia ou a geologia, o termo derivar talvez remeta à teoria da movimentação dos continentes. Em nosso caso, o termo está mais próximo da imagem de barcos flutuando sem direção no oceano. Todavia, nosso âmbito é o das cidades e quem se desloca são os corpos pelas ruas.

Caminhar é tão expressivo do desenvolvimento hominídeo que a famosa ilustração evolutiva dos monos até o presente homo sapiens mostra uma caminhada em direção a certa forma de ápice: postar-se alinhado da cabeça aos calcanhares. Dessa larga experiência bípede resultou um ser urbano, consolidado desde a Modernidade. Apresentaremos, em termos gerais, uma proposta específica de caminhar: as derivas situacionistas.

Parece importante situar algumas considerações acerca da cidade/sociedade "espetacular-mercantil" (Debord, 2002) antes de adentrar no que é o caminhar derivante, que sustentou conceitualmente o primeiro elemento metodológico da clínica de território. Segundo Debord, um dos expoentes do movimento situacionista (de onde decorre a prática da deriva), as cidades acabaram por se constituir como espetáculo do capitalismo, o que se torna evidente quando consideramos sua captura como objeto de marketing. Isso se evidencia em dois aspectos. O primeiro, a promoção de guerra fiscal por fatias orçamentárias de infraestrutura. O segundo, a elevação de certas localidades à condição de pontos turísticos que recebem prioridade de gestão, mediante a mercantilização da paisagem como objetivo basilar do próprio turismo. A sustentabilidade das cidades depende, afinal, do quanto podem ser atrativas a investimentos. Esses dois aspectos transformam a cidade na experiência "dos outros" em detrimento da vivência autóctone. O cenário urbano contemporâneo poderia ser exemplificado por uma cidade que conta com restaurantes para usufruir dos quais seus habitantes não dispõem de renda suficiente. Exemplo fictício, mas concreto, do aparente absurdo em produzir o espaço do cotidiano deslocado daqueles que verdadeiramente o animam.

Outro aspecto da cidade-espetáculo provém de seu elemento etimológico: espetáculo supõe a atração de uma plateia, que, por mais participativa que seja, não detém qualquer agência real sobre a obra. Além de repelir a construção coletiva, a cidade-espetáculo enfraquece a participação popular por meio da mercadoria como paradigma de reprodução: entre a especulação imobiliária (de "vazios urbanos" ou "espaços degradados") e a transformação de direitos em serviços, o que resta é a sobreposição do uso do espaço pelo seu valor de troca.

É tal contexto que leva à gentrificação, processo que ocorre pelo encarecimento econômico dos espaços, um dos maiores motores do desenvolvimento urbano contemporâneo e, portanto, da sociedade espetacular-mercantil, situando os sujeitos numa relação perversa. Para os situacionistas, em especial Guy Debord, o espetáculo pode ser compreendido como uma relação social na qual as pessoas se encontram mediadas por imagens. Não à toa flagramos o urbanismo de nosso tempo assumindo a forma do projeto que divide o sócio-espacial, negando a conjugação da cidade com a vida, como civitas.

Por outro lado, o movimento situacionista propõe a criação coletiva dos habitantes, o cidadão em seu exercício essencial: pessoa que pode decidir, em conjunto com seus pares, acerca do que fazer de sua vida e como reproduzi-la para alçar-se à condição projetiva, rompendo com o pré-fabricado, o imposto e a normalidade. Produzir com o outro e para o outro é produzir, ao mesmo tempo, para si próprio, opondo-se às limitações liberais em que a liberdade individual é limitante por terminar onde outra começa. A libertação reside no projeto comum e não na soma de conquistas particulares. Não existe política nem liberdade que possa existir isoladamente, o que não significa, de maneira alguma, que o conjunto deva suprimir as partes: o corpo social não é mais importante que o indivíduo, tampouco o contrário.

Ressoando tal visão, a Internacional Situacionista criou as derivas, cuja prática propõe o escape possível ao condicionamento da dominação sócio-espacial. Para os situacionistas, a cidade moderna calca-se na concepção de utilidade: uma rota é escolhida por ser menos cansativa e mais rápida; o que importa é a chegada. A afirmação de que experienciar a cidade é mais importante que atravessá-la traz o primeiro sentido da deriva: transitar pela cidade sem destino, deixando-se levar pelo momento e pelas "solicitações do terreno" (Debord, 2003b, p. 87). Uma espécie de jogo lúdico que pode contribuir com a produção teórica e política de outra sociedade.

A arquitetura moderna é utilitária, projeta as cidades para fins predefinidos ao estabelecer destinos manifestos concebidos por especialistas. Contra essa forma tecnocrática de pensar a urbe, a IS elaborou a proposta de psicogeografia (Debord, 2003a; Khatib, 2003), o estudo das atmosferas psíquicas, as ambiências, resultado das experiências do sujeito com seu entorno. Em vez do planejamento funcional, o sensorial. Seu objetivo é a reposição do uso perante o valor. Uma vez delimitada a área de interesse, especialmente em função dos fluxos externos e internos dos indivíduos, deve-se desbravá-la por meio de deslocamentos incondicionados sujeitos apenas à imersão situacional. Dobrar à direita ou à esquerda, subir ou descer, contemplar ou observar, cada atitude é livre ao seu próprio acontecer, pelo máximo tempo possível, sob as mais diversas condições e em todos horários do dia e da semana. A delimitação das ambiências é tão enriquecedora quanto a diversidade apreendida pelo derivante (Lima, 2015).

O caminhar situacionista é muito amplo e, como jogo ou metodologia, calca-se num fator extremamente importante: caminhar é sempre experiência de conhecimento, de si e do entorno. O caminhar fora de nossos trajetos padronizados permite muitos olhares novos. Esses pequenos desvendamentos são como se preenchêssemos de diversas cores uma paleta que antes era apenas escala de cinza.

Importante observar que a IS foi um movimento questionador e de agitação criativa. Sua produção teórica visou mais a criar inquietações do que a aportar respostas. Por afirmar a criação como aquilo que deveria ser produzido e apropriado pelos sujeitos, não apresentava modelos, apenas propostas motivadoras. A pesquisa psicogeográfica é constituída por traços metodológicos, bases e indícios, mas nunca por um modelo cristalizado. Reinventá-la cabe aos que se debruçarem sobre ela.

Lima (2011, 2015) procurou avançar alguns aportes técnicos e teóricos para a experiência da deriva, conferindo maior rigor à pesquisa psicogeográfica. Sustentando também suas reflexões sobre a prática em aportes não situacionistas, pôde deslocar a perspectiva sobre outros usos do espaço de uma cidade para uma interrogação sobre as forças que os impedem. Uma inflexão profícua ao campo situacionista que visa a cumprir o papel fundamental de desvendamento da dominação espetacular perante a sociedade. A principal técnica situacionista foi a narrativa, para descrever as derivas e as observações. Para dar suporte à escrita, Lima (2015) aporta seis estratégias. A inclusão do registro fotográfico que torna visível o relato; a descrição do percebido por meio de elementos físicos significativos do espaço; a comparação que permitiu entrever alternativas para o deslocamento usual no espaço; o enriquecimento dos relatos com dados oficiais; a produção cartográfica tradicional; e, por fim, a inclusão de um diário de campo etnográfico.

Embora sem contemplar os mesmos objetivos teóricos e elementos técnicos, a deriva instituiu-se aos poucos como primeiro elemento do método da clínica de território. Por seu caráter de inquietação do cotidiano e mobilização dos espaços urbanos, nossas derivas permitiram encontros inadvertidos com a população e com espaços do território, bem distintos do que resultaria de proposta previamente estruturada com sítios específicos e amostragem focal da população. A deriva, também, resolveu o problema da inversão da demanda, na medida em que a escuta de narrativas se deu por uma interpelação de indivíduos, coletivos e instituições do território aos pesquisadores derivantes e não na direção contrária.

Escutar

As derivas proporcionaram encontros. Os encontros, narrativas espontâneas que requeriam uma escuta. Mas o que é a escuta na clínica de território? A estrutura de uma Clínica moderna começou a ser construída com a disciplinarização do espaço do hospital pela medicina na Europa do final do século XVIII (Foucault, 1977). Locais de segregação social e morte passaram a espaços de escuta, decodificação de sintomas, categorização e organização espacial de corpos, vigilância de atos, registros exaustivos e exames. A técnica da clínica médica, modelo para as demais, sustenta-se na escuta de uma queixa, na construção de um quadro clínico a partir da identificação de sintomas, nos exames clínicos, laboratoriais ou de imagem, no diagnóstico, no prognóstico e, finalmente, no tratamento, que pode ser curativo ou apenas paliativo. A construção inicial do quadro clínico, que recorta uma questão específica para o ato médico, parte da ausculta. Auscultar sustenta o método semiológico de tradução de sons, ritmos e ruídos internos ao organismo, que produz a hipótese diagnóstica.

Percebe-se que todo encontro clínico começa com o endereçamento de uma narrativa de dor, sofrimento ou infelicidade. Percebe-se também que a escuta na Clínica recorta os elementos narrativos da queixa, procurando traduzi-los a partir de uma semiologia, com vistas a um enquadre, segundo os termos de um campo privilegiado de saber. Porém, essa não é a escuta almejada na clínica de território. Nela, procura-se evitar a tradução que reduz uma narrativa aos termos já esquematizados e aos sentidos predeterminados pela teoria. A escuta que se busca na clínica de território não é a ausculta.

Barthes (1984) ressaltou o caráter moderno da escuta ao distinguir seus três tipos. A escuta dos indícios é o primeiro caso. Ela serve de sinal de alerta a tudo que pode perturbar um "território natural", seja alimento ou predador do animal, sejam sons estranhos ao domicílio, no caso humano. O segundo tipo diferencia o homem do animal. Deixa de ser vigilância e passa a criar sentidos ao decodificar o indício, cifrar e decifrar fenômenos acústicos. Os sons captados nesse registro constituem signos já tomados numa rede simbólica interpretável. Essa é a escuta religiosa, pois é a que permite ligar o homem a um mundo que se revela. Porém, por constituir a escuta que investiga, também é a da Ciência, pois busca atribuição de sentidos a tudo aquilo que toma como objeto.

Barthes (1984) adverte que ao estabelecer a injunção de um contato, a escuta realiza uma interpelação entre dois sujeitos - duas pessoas ou uma pessoa e um grupo - a qual transforma o escute-me em me reconheça, tome conhecimento de que existo. Isso conduz a uma interlocução na qual o silêncio de quem escuta é tão ativo quanto a palavra do locutor. A escuta fala.

É com essa nova condição que a escuta chega ao seu terceiro e último tipo. A percepção de indícios e a interpretação decifradora de signos dão lugar à escuta da dimensão significante dos sons. A interpelação da voz remete aquele que escuta a um papel ativo diferenciado do ato de sondagem ou de identificação a conceito prévio. Como observa Barthes (1984), esse terceiro tipo é inaugurado modernamente pela escuta psicanalítica.

Em sua releitura do inconsciente freudiano, Lacan fez questão de localizar a importância da função da fala no trabalho analítico. No começo de seu percurso, postulou que conceitos psicanalíticos só adquirem pleno sentido num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala (Lacan, 1953/1998). Mais tarde afirmaria que, para além dessa fala, é a própria estrutura da linguagem que a psicanálise descobre no inconsciente, rejeitando a ideia de que ele seria apenas a sede dos instintos (Lacan, 1957/1998).

Se há um lugar central ocupado pela escuta e a fala, isso se dá no campo da psicanálise após os aportes de Lacan. A articulação da psicanálise à linguística destaca a precedência do significante ao significado e formula um novo conceito de sujeito como produto da linguagem. A escuta analítica passaria da explicação dos sentidos daquilo que surge na relação transferencial para a articulação dos elementos da cadeia significante que determinam o falante. É na função invocante, pela qual a fala mais pede reconhecimento do que transmite um conteúdo a ser desvendado, que Lacan localiza o horizonte analítico.

Existe um movimento peculiar da escuta psicanalítica que nos interessa na constituição das bases epistemológicas de uma clínica de território. Há um movimento pendular entre a neutralidade e o compromisso com a teoria na técnica da atenção equiflutuante à narrativa daquele que endereça seu sofrimento ao psicanalista. Esse vai e vem é o que parece provocar uma ressonância indispensável à escuta da insistência singular de um elemento significante presente na fala daquele que narra. Ao contrário da segunda escuta, a importância não é centrada no conteúdo a ser codificado.

Em psicanálise procura-se escutar o desejo, como falta fundamental na constituição psíquica, por meio das produções do inconsciente. Essa escuta não busca uma representação para a teoria que pode excluir um sujeito para produzir o artifício metodológico de neutralidade. No entanto, a escuta que reconhece o desejo do outro não encontra meios de estabelecer-se na neutralidade, na benevolência ou no liberalismo: "reconhecer este desejo implica que se entre nele, que se oscile nele, que se acabe por se encontrar nele" (Barthes, 1984, p. 209).

Cabe assinalar que o concurso do saber psicanalítico acerca do inconsciente e do ser falante não opera em nossa estrutura metodológica de modo a instaurar essa clínica como a psicanálise do território. Trabalhar os significantes em vez de interpretar as narrativas e buscar sentidos para as experiências no território segundo uma teoria ou campo do conhecimento indica o caminho para cumprir o outro princípio ético desta clínica: escapar do procedimento interpretativo e descritivo, comum à Clínica. A escuta dos significantes como nos brindou a psicanálise agrega elementos à construção de mapeamentos baseados em narrativas que respeitam a ética proposta a uma clínica de território. Como pode ser a escrita de um mapa a partir dessa escuta?

Escrever

A elaboração de uma modalidade de mapa coerente com a proposta da clínica de território passou pela articulação do processo cartográfico com as metodologias de deriva e escuta anteriormente expostas. Foram também importantes os esforços para evitar a queda em ambições descritivas, que tivessem como objetivo a captura minuciosa dos espaços numa página em branco, sem a consideração de suas ricas dimensões simbólicas não aparentes. O território constituiu-se, portanto, como expressão e criação do próprio trabalho de pesquisa, resultando da tríade de procedimentos de investigação, e não estabelecendo um já-lá anterior à reflexão teórica e que aguarda apenas a aplicação da técnica adequada para ser revelado. O "mapa" decantaria desse processo.

Ademais, os mapas confeccionados nessa clínica não se pretendem representações ou reproduções, nem do espaço, nem das experiências colecionadas em campo. Por esse motivo, eles não se restringem a um único molde ou formato. Se houve uma preferência pela escrita como veículo das narrativas escutadas e dos caminhos traçados na rua, foi por sua filiação à leitura, como veremos a seguir. Entretanto, essa escolha não foi excludente e as produções incluíram fotografias, músicas, áudios, além de textos líricos, narrativos, entre outros estilos.

No que se refere à sustentação dessas práticas de registro, a psicanálise trouxe um aporte valioso. Afinal, mesmo tendo a escuta como sua principal ferramenta, as reflexões sobre a escrita são abundantes na literatura psicanalítica, principalmente nas vertentes lacanianas. Cabe notar, porém, que Freud (1900/1996) já aproximara o sonho e o rébus, além de abordar as pulsões por meio de uma gramática (1915/2010) e de situar as ideias obsessivas como um texto, ou mesmo um telegrama, que podia ser lido pelo sonho (1909/2013).

Na obra de Lacan, a letra figurou desde cedo em sua relação com o significante, engendrada pela fonética (1957/1998). Posteriormente, a relevância da escrita em seu ensino cresceu ainda mais, tanto por meio de referências literárias, como nas experimentações com os matemas e a topologia.

Baseando-se em tais aberturas, Allouch (2007) propôs a psicanálise como uma clínica que tem, em seu núcleo, operações de leitura e de escrita. O escrito, como aponta Allouch, não deve ser igualado ou reduzido à escrita propriamente dita, ou seja, à palavra na página. Mais do que isso, ele seria o que guia e resulta de um tipo específico de leitura. É nesse sentido que podemos falar no texto de uma sessão de análise. Os usos da letra nos matemas e na topologia surgem como formas de escrito ao serem utilizados por Lacan para ler aquilo que se refere ao inconsciente. Para Allouch, é precisamente nisso que o procedimento do analista se aproxima daquele do filólogo e se afasta dos de outras abordagens clínicas. Trata-se de um deciframento ou uma leitura com o escrito.

Para melhor defini-la, Allouch (2007) evoca os estudos de Champollion, que permitiram a compreensão da língua egípcia. O que o autor encontra aí é um esclarecimento acerca da leitura que o levam a decompô-la em três operações: transcrição, tradução e transliteração. A regulação do escrito pelo som, pelo sentido e pela letra, respectivamente. Para Allouch, a especificidade da psicanálise está no privilégio da transliteração - a operação do literal, da homofonia e do rébus. Temos, assim, os elementos que sustentam a concepção de mapa para a clínica de território: a anterioridade da leitura em relação à escrita, o escrito pensado para além do texto e a decomposição dos processos de leitura, com especial foco na transliteração.

Lacan (1961-1962/2008) dedica-se ao primeiro ponto no Seminário IX, sobre A identificação. Para tratar do tema da origem da escrita, ele aborda dois tipos de elementos que convergiram com o tempo. Os primeiros são os traços, como os encontrados em materiais arqueológicos (ossos, artefatos líticos etc.) que portam marcas artesanais. Não sendo mais do que riscos, é impossível afirmar o que essas marcas queriam dizer - ao contrário das pinturas rupestres que evocam animais e outras formas discerníveis, o traço não retrata, apenas presentifica uma marca diferencial. É nessa diferença radical que Lacan localiza a função significante, retomando a definição saussuriana que situa um significante como sendo aquilo que os outros não são (Saussure, 2006).

O segundo conjunto de elementos é formado pelos signos. Tratam-se de imagens antigas que representavam uma série de palavras ou ideias, como o sol e o céu. A origem dos alfabetos, segundo Lacan, estaria na conjunção das duas séries, a dos traços e a dos signos. Esses últimos teriam dado origem à letra, mas apenas após um processo de apagamento e fonetização que os aproximou dos primeiros. Podemos ver isso no exemplo do aleph, que deu origem ao alfa grego e ao "a" do alfabeto latino. Em sua origem, encontramos um caractere figurativo, na forma de uma cabeça de boi, que foi, ao longo do tempo, submetido a uma descaracterização. Esta consistiu, para Lacan, no apagamento da imagem, ou da relação entre signo e objeto. Se, num primeiro momento, esses "ideogramas" evocavam aquilo que representavam (a palavra aleph, em fenício, referia-se ao animal boi), posteriormente essa equivalência se tornou exclusivamente fonética. Em outras palavras, ao advir como letra, o caractere passou a evocar apenas um som ou fonema - como o "a", que não porta nenhum resquício dessa origem semântica.

De forma esquemática, o que Allouch (2007) encontra nesse ponto de origem é justamente que um certo "ler" precede o "escrito" (p. 143). Havia algo a ser lido mesmo antes que houvesse letras ou significantes, algo que os precedeu e mesmo lhes deu origem - o signo. Foi apenas pela passagem de uma leitura dos signos para uma leitura com o escrito que surgiram os alfabetos.

Em nosso caso, sustentamos que é no processo de ler o território que ele próprio é escrito e produzido. As derivas e as escutas traçam suas bordas e contornos, construindo um mapa que não tenta capturar ou representar, mas que se reconhece como criação e expressão. É por meio dessa metodologia, sustentada em preceitos teóricos que acolhem uma noção de leitura-escrita como a exposta, que uma clínica de território pretende evitar as ambições de apreensão e o substancialismo.

A passagem para a página não envolve um relato propriamente dito das derivas e narrativas, mas uma transposição de registros. Essa modalidade de leitura, portanto, não apenas envolve duas escritas, como tem como resultado inevitável que, lá onde algo é escrito, outra coisa seja lida. É o que ocorre com as imagens do rébus e do sonho, por exemplo. Ao tomá-las ao "pé da letra", o analista visa que emerjam como um texto a ser lido, dando forma ao que Freud se referia como pensamentos oníricos (1900/1996). O mesmo acontece com os atos falhos e as homofonias. Neste caso, é a aproximação entre letra e som propiciada pelo fonema que abre margem para que, confrontando a fala com um escrito, possamos retirar dali algo além do sentido previamente dado, numa disjunção entre significante e significado. É algo análogo o que permite, nessa clínica, uma pergunta pelos lugares enunciativos de onde partem nossas enunciações.

A abordagem de nossa proposta clínica confronta o território com um escrito, seja ele lírico, musical, literário ou outro. Com isso, as ruas (os traços e linhas que grafam a cidade) abrem-se também ao deciframento. Esse esforço não passa pela injeção de sentido naquilo a ser produzido como dado, mas pela introdução da letra, ato que permite tanto a leitura quanto a confecção de uma escrita. O produto de ambas é um mapa cujo propósito, mais do que uma reprodução do espaço urbano, é o re-trato das histórias e narrativas lá encontradas, seja pela escuta de moradores, seja pela leitura das pichações nos muros ou do movimento nas ruas.

Esse ponto nos leva ao terceiro aspecto da escrita na clínica de território - a decomposição dos procedimentos de deciframento em três operações distintas de leitura-escrita: transcrição, tradução e transliteração. Cada qual tem uma finalidade e meios que utilizam para alcançá-la. A transcrição tem como objetivo a captura de um objeto externo à linguagem. O que a transcrição ignora é que, ao escrevermos, adentramos o campo da linguagem, o que frustra a apreensão do objeto como tal.

Traduzir, por sua vez, é regular o escrito pelo sentido, revelar os significados de um texto. O motivo que leva Allouch a refutá-la como a operação principal no trabalho analítico é de igual relevância em nossa construção metodológica: trata-se de sua tendência a cair em uma essencialização do objeto ou em uma busca infinita pelo "sentido do sentido". Afinal, para uma tradução ser possível é necessário encontrar um sentido correto e excluir os demais. Essa operação acaba também excluindo o equívoco ao estabelecer uma relação biunívoca entre os signos e os significados. Para que se possa traduzir, as correspondências significantes devem ser fixadas de antemão, além de desfrutar de um grau de universalidade. Uma condição a priori problemática para campo que desejamos estruturar.

Finalmente, a transliteração opera na contramão das duas anteriores. Uma leitura que se guie por ela tem como meio a articulação de elementos pelo trabalho realizado letra a letra. Não quer dizer que ela não produza um significado, mas que decanta um a posteriori. Seu objetivo não é encontrar o sentido, mas abrir caminho e espaço para possibilidades de outras ordens. Quanto a isso, Lacan afirmava que, mesmo no compartilhamento de uma língua com meu interlocutor, a estrutura da cadeia significante nos revela indubitavelmente que posso "me servir dela para expressar algo completamente diferente do que ela diz" (1957/1998, p. 508).

É com essa a disposição metodológica situada no transliterar que nossa proposta de clínica busca ler e escrever o território. Para tanto, sua escrita não pode se restringir a um formato ou modelo específico, pois que advém dos (des)encontros nas ruas. Rejeitando o ideal descritivo e a burocratização dos processos de pesquisa, nosso mapeamento enfatiza não só os aspectos criativos da escrita, mas todo o seu potencial criador. Ao recusar-se a toda tentativa de suturação das perdas inerentes aos processos de escuta e de pesquisa, o mapa produzido surge como necessariamente diverso em relação ao seu objeto, pois é produto de uma transposição de registros (um movimento que vai do campo à página, e de volta) que não pode deixar de ser transformativa, em uma implicação mútua entre epistemologia e metodologia fundante de uma clínica que textualiza territórios.

 

A clínicaS de território

Afirmávamos que o rápido processo de urbanização em nosso país e a decorrente precarização das condições de vida nas cidades compõem um cenário problemático que mobilizou a tentativa de estruturação de bases epistemológicas e práticas de uma nova clínica no campo da saúde. Dizíamos também que o sofrimento individual e o mal-estar coletivo têm a estrutura de uma narrativa e que uma certa hegemonia do saber técnico na produção de indicadores e formas de intervenção produz enquadres e abordagens redutoras e por vezes demasiadamente distantes da materialidade histórica desses problemas, cujas narrativas do território são expressões plurais e complexas. Hegemonicamente, assume-se o dado empírico quantitativo, analisado prioritariamente por modelos matemáticos e/ou por um campo privilegiado de conhecimento como intérprete de realidades verdadeiramente múltiplas, sem as devidas reflexões ontológicas e epistemológicas sobre sua produção, de modo que essa interpretação acaba confundida com a verdade daquilo que ela apenas descreve em seu recorte epistemológico.

As experiências na extensão universitária partiram apenas de dois princípios éticos - o encontro com as realidades do território, procurando atenuar os efeitos de intencionalidade prévia e de poder disciplinar ou institucional, assim como evitar o abuso discursivo da ciência que, no caso da Clínica, descreve e interpreta o fenômeno segundo seus próprios termos. A pesquisa teve o papel de investigar a partir do método psicanalítico uma forma de trabalhar os elementos produzidos nos espaços de fala e de escuta, a partir dos encontros no território produzidos pela deriva, de modo expressivo e não puramente descritivo e interpretativo. As situações e problemas da vida de relação na urbanidade, fontes por excelência do mal-estar e do sofrimento subjetivo, demandam uma clínica que não os reduza rapidamente a um objeto pré-fabricado ao qual se remete um tratamento e do qual se tem algo a dizer depois de domesticado pela teoria. A solução inicial situou-se no campo ético: estabelecemos que essa nova clínica deveria partir do território. Mais precisamente, deveria ser feita de território como fundamento epistemológico e não como objeto de diagnóstico, classificação e intervenção.

A expressão "clínica de território" é melhor definida, finalmente, em homologia ao emprego da preposição no conceito nietzschiano "vontade de potência" (Nietzsche, 2006), o qual trata de compreender uma vontade que se insurge potencialmente contra o que resiste a ela - uma vontade cujo motor é a potência, ou seja, a possibilidade. Portanto, a clínica de território é a que se manifesta a partir do momento em que algo resiste ou se insurge contra seus agenciamentos no território e, assim, constitui uma relação possível de escuta de suas narrativas e de suas potências. Não se sustenta, em absoluto, na predeterminação de um enquadre sobre o qual o técnico detém um saber acerca de como e em que(m) intervir. Sua ontologia, portanto, é peculiar, na medida que campos temáticos, problemas e hipóteses não estão dados ou construídos a priori, mas se manifestam no processo de derivar, escutar e escrever. Condições que definem, evidentemente, uma ética e uma estrutura epistemológica diferenciada da Clínica hegemônica. De um lado, uma ética que se alinha ao posicionamento político de recusar uma dissociação entre o mal-estar e a narrativa, legitimando nesta a capacidade e potência de expressão, de sinalização e de denúncia da redução significativa do sofrimento a discursos privilegiados, como os jurídicos, os econômicos, os burocráticos, além dos psíquicos e biológicos. De outro, uma epistemologia condizente com essa ética, cujo rigor pode ser lido nos seus elementos: na deriva como provocação das insurgências do território, na escuta que privilegia o significante nas narrativas decorrentes ao invés do recorte de sinais e sintomas, e na escrita de um mapa, produzida pela leitura clínica dos significantes, que expressa múltiplas potencialidades, além das aparentes, visíveis ou privilegiadas pelo exercício de poder implícito na representação cartográfica, estatística ou epidemiológica.

Não é frequente a apresentação de definições conceituais ao final de um artigo. Entretanto, resta ainda uma precisão que merece não ser negligenciada. Distintamente de outros estudos, não apresentamos a discussão conceitual de território no início do trabalho, pois julgamos que a implicação do termo ao longo da exposição poderia nos eximir dessa necessidade. Contudo, nossa preocupação epistêmica nos obriga a isso. O principal sentido que gostaríamos de reter do conceito de território é seu caráter relacional. Apesar de ser frequentemente atribuído à geografia, o termo tem suas origens na biologia, mais especificamente na "Etologia, de onde surgiram as primeiras teorizações mais consistentes sobre territorialidade" (Haesbaert, 2016, p. 37). Na disciplina geográfica, ele se torna célebre na obra de Friedrich Ratzel, precursor da Geografia Política. Independentemente de tais peculiaridades, podemos salientar dois aspectos principais na genealogia do conceito: (1) o uso geopolítico, como sinônimo de área sob certo domínio estatal; (2) o uso naturalista, referido ao instinto animal.

Conforme o desdobramento histórico da discussão, há duas grandes vertentes conceituais sobre o termo: a materialista e a idealista (Haesbaert, 2016). A primeira vinculou o termo ao aspecto concreto do espaço: o território como recurso. A segunda, muito citada mas pouco efetivada, define o território em seu aspecto relacional, que é precisamente o que nos interessa. Encontramos essa acepção em Souza (2000), para quem o conceito de território se sustenta na subsistência de relações sociais. Tomemos o exemplo de uma "boca do tráfico". Se uma determinada facção, "dona" de certa área, deixar de existir, o que acontece? Permanece a mesma materialidade, mas o exercício das relações de dominação e controle evapora-se. Resulta, daí, que o território depende de um "substrato espacial material" (Souza, 2017), mas de maneira alguma se confunde com ele.

Assim, as derivas, as escutas e as escritas, efetivadas no campo de trabalho, não privilegiam desvendar a configuração física do espaço, os problemas inerentes à gerência do poder estatal, nem mesmo tentam mobilizar uma constituição identitária ao local (o território aproximado à noção de lugar, como pertencimento). Tentam, porém, desvendar os conflitos da vida cotidiana, os motivos pelos quais se leva a vida de um modo e não de outro e o que isso diz desse território concebido como relacional. Tal é o questionamento basilar dessa clínica deslocada do consultório.

A precisão a respeito do conceito de território conclui a exposição dos elementos fundamentais de uma clínica que pretende romper e abrir outras formas de cuidar e transformar relações consolidadas no laço social e instituídas como aquilo que reconhecemos sob a denominação de Clínica. Além de ampliar essa significação, esperamos também dar visibilidade àquilo e àqueles que não se adaptam a ela, ato crucial se considerarmos que o não reconhecimento de outros modos de vida que não os normativos numa dada rede social são as fontes mais importantes do mal-estar psíquico e subjetivo.

Os limites desta clínica de território estão na falta da determinação estrita de um objeto, no estabelecimento de uma especialidade e de um recorte definido no campo biológico, sociológico ou psíquico. Contudo, reiteramos que aquilo que este artigo inaugural propõe é uma matriz metodológica do que pode receber a denominação de clínicaS de Território e que seguimos experimentando em práticas de pesquisa e extensão universitárias. Parece possível assumir que nossos pressupostos possam servir a inúmeras formas de práticas que partem do território, mas que podem e devem colocar algo da especificidade de seu campo teórico e de suas necessidades técnicas. Ainda serão clínicaS de Território se os fundamentos epistemológicos e éticos guardarem proximidade às nossas propostas, seja no campo da saúde, seja mesmo em outros em que se verifique como bem-vinda alguma resistência à normatização e à naturalização dos modos de viver em coletividade nas cidades e que promovam a diversidade e o potencial subversivo do desejo humano.

A diversidade dessa clínica - situada na pluralidade de práticas e campos onde pode operar, mas também na condição ética de respeitar e estar advertida da heterogeneidade que se verifica no encontro dos discursos técnico-científicos com as narrativas de espaços, indivíduos e coletivos - parece implicar que a chamemos, mais apropriadamente, de clínicaS de Território, cujo c minúsculo a distingue da grande Clínica medicalizada e o S maiúsculo simboliza tanto essa pluralidade em potencial, como representa imageticamente um litoral que se estabelece entre elementos heterogêneos, a saber, a clínica e o território do qual ela emerge conceitualmente e ao qual retorna como prática.

Derivar, escutar e escrever (como modo expressivo de mapear territórios com base em narrativas) constitui a estrutura metodológica que deve ser experimentada e operada pelo clínicoS de Território, cujos procedimentos práticos instrumentalizados demandam que se coloque algo de si, de sua singularidade, de seu desejo pelo campo de práticas ou pesquisas, bem como das especificidades do território.

 

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Recebido em 20 de agosto de 2020
Aceito para publicação em 09 de fevereiro de 2022

 

 

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