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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.39 n.71 São Paulo dez. 2006

 

DEBATE

 

Psicanálise: investigação e cura

 

Psychoanalysis: investigation and cure

 

Psicoanálisis: investigación y cura

 

 

No dia 16 de novembro o Corpo Editorial do Jornal de Psicanálise convidou os analistas Antonio Sapienza, Luiz Meyer, Sandra Lorenzon Schaffa e Sandra Regina Moreira de Souza Freitas para um debate a partir do tema: "Psicanálise: investigação e cura".

O Jornal agradece a colaboração dos colegas.

Jornal: Para homenagear os cento e cinqüenta anos de nascimento de Freud, o Jornal de Psicanálise propôs colocar em discussão, em seus números de 2006, o verbete escrito para a Enciclopédia Britânica, no qual Freud afirmou ser a psicanálise um procedimento para investigação do inconsciente, um método para tratamento das doenças neuróticas e ao mesmo tempo uma nova disciplina científica. Na edição do semestre passado, tomamos como tema "Psicanálise: investigação e produção de teoria" e, para o presente, o tema "Psicanálise: investigação e cura". Como os senhores consideram esse verbete, escrito por Freud, nos dias de hoje? Ele ainda é atual?

Sandra Schaffa: A primeira coisa que me ocorreu a propósito da sugestão de discutir essa definição freudiana foi que atribuí-lo à Enciclopédia Britânica seria um ato falho, se não fosse um ato coletivo e generalizado, o de confundir o verbete preparado para a Enciclopédia Marcuse com aquele outro da Enciclopédia Britânica. Fez-me pensar no que Freud afirmou sobre a verdade histórica em Moisés e o monoteísmo quando diz que esta tem a força de um assassinato, que se vai construindo através de sucessivos esquecimentos. Relendo o texto sugerido para nossa discussão vi que a definição, onde parece inicialmente que Freud ressalta o método de investigação, sugere uma prioridade, que rapidamente viria a ser confundida com uma autonomia metodológica. No esquecimento do texto, perdemos o enraizamento forte da definição freudiana no contexto de sua extensa análise cujo título — "Psicanálise e teoria da libido" — emprega dois termos indissociáveis sobre os quais se sustenta a definição. Esse preâmbulo é para mim necessário para abordar o tema da atualidade de Freud.

Penso que a atualidade de Freud depende da leitura do texto, de como está sendo lido ou de como esta sendo esquecido. Nesse verbete que escreveu para o Léxico de ciência sexual conhecido também como Enciclopédia da sexologia humana, da ciência da natureza e da cultura, Freud coloca essa definição inicial para logo em seguida nos remeter à idéia de que para entender psicanálise temos que voltar para a gênese, para a origem, para o momento da sua descoberta. Freud vai assinalar que, nesse momento, se destacando de P. Janet e de Breuer, entendeu que aquilo que podia estar na base do sintoma era algo que tinha a ver com uma defesa psíquica, com alguma coisa que vai definir a própria natureza de seu procedimento, de seu método, que é em Freud ao mesmo tempo um movimento teórico. Acompanhando a leitura desse verbete chegamos à idéia de que existe um nexo intrínseco entre teoria e método, entre metapsicologia e método no pensamento de Freud. Isso vai depois me ajudar a avançar as outras questões. A idéia de que Freud olhava para tudo o que se apresentava, fenomenologicamente, como um sintoma... Diferentemente da idéia de Breuer sobre os estados hipnóides, considerados uma fragilidade psíquica, ou, no caso de Janet, uma fragilidade constitucional, Freud vê uma operação psíquica operando como fundamento do sintoma, uma operação defensiva. Essa idéia Freud vai desenvolver depois a partir do sonho e trazer para o cotidiano, vai lhe permitir estabelecer uma conexão do sujeito na cultura: o sujeito freudiano quando confunde ou esquece alguma coisa, quando sonha ou quando tem um sintoma mais grave, está sempre numa situação de trabalho psíquico, está pego no interior de uma ação psíquica, que se furta ao olhar do fenomenólogo. A minha idéia era de demarcar esta posição que coloca a perspectiva metapsicológica clínica na base do método de Freud.

Sapienza: Quero agradecer em primeiro lugar o convite.

Com relação à primeira pergunta sobre investigação e cura, em que Sandra chamou a atenção para a questão das origens, a grande novidade de Freud é que ele convocará o paciente para ser um colaborador na investigação desse padecer mental. Essa é uma constante, que vai persistir até os dias de hoje tendo em vista o sofrimento isolacionista do paciente. Se não existir uma atenção do analista para a dor mental, penso que estaremos deixando de exercer a função essencial da análise.

Não é uma questão de investigação versus terapêutica. É uma questão sobre a qual, enquanto na função de analistas, devemos — sem querer abolir a dor mental — chamar a pessoa que está em análise para colaborar na investigação. Esta é uma grande novidade no mundo moderno. Possivelmente, o próprio Freud, tomado por uma série de sofrimentos pessoais, e lidando arduamente com essas questões não só com os pacientes, mas também consigo mesmo, irá cada vez mais se abrir para o campo da investigação, de início explorando o fenômeno da transferência na comunicação analítica.

É um instrumento valioso que Freud descobriu, num momento em que não havia muitas alternativas. Quais eram as alternativas para se lidar com o sofrimento mental? Ficar viajando, drogar-se, ler livros de aconselhamento e rezar, freqüentar balneários, tomar eletrochoque, ficar internado em um sanatório, sofrendo ainda alguns outros tipos de restrição? Com a genialidade de Freud, a liberdade do diálogo entre paciente e analista se destacará como instrumento de investigação em busca de verdades que poderão trazer alívio e compreensão do sofrimento mental. Penso que aqui ganha relevo uma conjunção atinente à primeira pergunta proposta pela equipe do Jornal de Psicanálise, psicanálise: investigação e cura, ou seja, a vertente do diálogo continua a ser uma essência também para a clínica de nossos dias.

Sandra Moreira: Também quero agradecer o convite.

Pensei que a questão da investigação e da cura é algo que continua muito atual e muito presente nos dias de hoje. Lembrei-me de alguns trabalhos, de teses defendidas a partir da Teoria dos Campos — a da Marilsa Taffarel ou da Leda Herrmann —, que falam muito da questão da investigação e da cura; quer dizer, enquanto se investiga se cura. Esta é uma questão metodológica. Outra coisa que me chamou a atenção em relação ao verbete é que, para Freud, a psicanálise é um processo em constante transformação. A surpresa e a transformação são coisas atuais, é o que pode permanecer sempre entre nós, a idéia de manter sempre viva a exploração daquilo que surge a partir da clínica.

Luiz Meyer: Faço minhas as palavras de meus colegas no sentido de agradecer o convite para essa conversa.

Queria dizer que estou um pouco constrangido porque, ao receber essa série de questões, percebi, para minha tristeza, que só duas delas me interessavam. As outras, incluindo esta que está sendo posta em discussão neste momento, são questões sobre as quais há uma vasta bibliografia, que acompanha a psicanálise desde sempre, que estão na raiz da fundação da psicanálise. Ciência mental era uma botânica, psiquiatria era uma espécie de botânica descritiva dos quadros mentais como falou Sapienza, o paciente era um sujeito que assustava o meio social, e Freud mudou a perspectiva inicial quando disse que o paciente era um sujeito assustado e não o que assusta. E esse susto que o assusta e que o assombra, existe um sistema para entendê-lo como um conflito, que é a transferência. Através da transferência pode-se entender que isso é um conflito e que se manifesta dessa maneira como sintoma. Existe o mundo interno. Mas isso é história. Não tenho nada contra a história. Mas me pergunto se devemos discutir a perspectiva histórica, porque se de um lado, como Sandra colocou, ela nos remete às origens, por outro, talvez também nos afaste do presente. Vou comentar somente duas palavras que me chamaram a atenção para ver se eu consigo esclarecer um pouco meu ponto de vista. Acho que a Sandra Schaffa falou que a psicanálise se destaca — que Freud se destaca quando se separa de Janet. Pergunto-me: a psicanálise hoje se destaca? Ela se destaca do quê, e o que ela faz? Porque isto é uma teoria histórica como se fôssemos buscar um verbete na enciclopédia. Mas hoje, qual é o destaque, de que ela se separa, em que meio ela está inserida, qual é a identidade da psicanálise? Não devemos procurar a identidade dizendo que é um método de investigação, de cura. Isso é verdade, mas não é o que dá a identidade da psicanálise hoje.

A outra palavra é sofrimento. Tivemos uma discussão aqui um tempo atrás — Sapienza estava presente — em torno do número da revista ide sobre ilusão. Houve uma briga danada porque nosso colega Paulo Sandler defendia a idéia — eu considerei absurda e outras pessoas ali presentes também a consideraram — de que o sofrimento tem a mesma forma ao longo da história, a angústia é angústia, medo é medo, etc. Trata-se de uma teoria reificante do funcionamento mental. Naturalmente não vou me estender sobre o assunto, mas a sexualidade tal como era vivida na Grécia antiga era de um gênero, hoje nas baladas aqui em São Paulo é de outro. A expressão do aparelho psíquico, hoje, é uma coisa diferente do que era quando Freud escreveu seus trabalhos. Assim, quando Sapienza fala em sofrimento, me pergunto, que sofrimento a psicanálise, hoje, aborda?

Sapienza: Vamos ver se conseguiremos esclarecer as questões da linguagem verbal e não só as de verbetes. Quando se fala em sofrimento mental, é preciso pensar em quem o acolhe e em quem expele o sofrimento; isto pode ser estendido para outros sentimentos, podendo ser amor, ódio, curiosidade, etc. A idéia central é essa, quem consente em sofrer o que sente e quem expulsa e tenta destruir o que sente. Isto deverá merecer novas aberturas, se não ficarmos prisioneiros das primeiras questões e caminhos abertos por Freud, se levarmos em conta as várias trajetórias de identificações projetivas, isto é, daquilo que se joga fora da atividade mental; eventualmente, aguardando continentes capazes de pensá-las. Se aqui nos detivermos, vão-se abrir as vibrações do sofrimento psicótico, porquanto esse primeiro verbete atingiria mais diretamente sofrimentos contidos dentro da configuração prevalentemente neurótica.

Jornal: Pensando nos diferentes desenvolvimentos que a psicanálise tomou depois de Freud e nas diferentes escolas surgidas — e entre elas, a escola lacaniana —, é possível falar em psicanálise ou é melhor psicanálises? O que marcaria a unidade e o que marcaria uma ruptura?

Luiz Meyer: A pergunta refere-se às diferentes escolas e entre elas a lacaniana. O que marca a unidade entre as diferentes escolas eu não sei, nem o que marca a ruptura. A experiência que eu tenho é a de ler trabalhos teóricos e clínicos e teórico-clínicos das mais variadas escolas e de alguma maneira poder identificar ali um trabalho psicanalítico que, mesmo usando uma teorização diferente da minha, transmite a idéia de estar havendo ali, naquele relato, uma informação sobre aquilo que Freud diria ser uma psicanálise, o que está acontecendo: a existência da transferência ou o flagrar da transferência, uma compreensão dos sintomas, eventualmente um insight doloroso, alguma mudança. Podemos ler trabalhos das mais variadas escolas, e, mesmo tendo uma informação média a respeito delas, dizer: "Eu não trabalharia assim, mas eu entendo o que esse sujeito está fazendo". É por isso que há um destaque para a escola lacaniana. Se você não é versado e lê Winnicott, Kohut, Bion, Melanie Klein, Freud, Fairbairn, Abraham, Ferenczi, etc., mesmo assim você tem um sentimento de proximidade, de reconhecimento. Não é o caso da escola lacaniana. A escola lacaniana tem um sistema teórico, uma técnica analítica que utiliza, naturalmente, um vocabulário coerente com a teoria, que torna o relato incompreensível para a pessoa não versada. Tanto que sabemos, um pouco pela rama, dois ou três conceitos que acabaram se tornando populares porque são bastante traduzíveis, por exemplo, o de "sujeito suposto saber", um conceito que na sua própria enunciação contém seu significado.

Sandra Moreira: Estava pensando que há concepções diferentes sobre o psiquismo e propostas terapêuticas também diferentes. Isso que o Luiz falou leva a outra pergunta: sobre os relatos escritos e a possibilidade de comunicação entre escolas diferentes. Quando a teoria passa a ser doutrina, a comunicação fica complicada. Acaba-se lendo o trabalho do outro como se fosse um estereótipo, "uma ponta de estoque". O mais comum é nem se ler. Olhamos com certo preconceito e descobrimos muitas caricaturas.

Também estava pensando que escritos que pudessem comunicar num português mais claro a experiência com aquele paciente, a transferência, as modificações, e que revelassem um trabalho analítico, estes, sim, garantiriam a unidade.

Sapienza: Encaro a psicanálise como um método de sondagem; seja ao levar em conta a manifestação dos fenômenos mentais e protomentais ou ao considerar aproximações do que se denomina "O", Infinito, Deus ou Realidade Última. A partir desse pressuposto, os caminhantes buscarão investigação do desconhecido, requerendo inevitáveis consentimentos, através de crescente capacidade de tolerar incertas vivências. De nossa parte, os analistas, em lugar de nos aprisionarmos e nos alimentarmos de "patologias" dos pacientes, deveríamos conviver com nossas próprias fragmentações mentais e momentos depressivos. Isto possibilitará humildade, prontidão e flexibilidade mental também para encarar experiências impactantes na relação analítica. Uma vez posto isso, compreendo esta pergunta por um outro viés. Essa outra direção em parte foi tocada, indiretamente, pelos dois colegas que me precederam nessa rodada, e que é, a meu ver, o terror emanado dos fundamentalismos.

Os fundamentalistas, que estão povoando e disseminando o terror na atualidade, partem exatamente de certas formulações ligadas às religiões — considerando aqui apenas a questão do mundo ocidental — enraizadas nos principais grupos monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Aqui se poderia fazer um jogo conjetural de quando uma unidade religiosa ou científica pretende ganhar foros e privilégios de absolutismo, num crescendo de fanatismo hegemônico, lançando as bases de intermináveis e desgastantes "guerras santas".

Freud, quando se deparou com a expansão e o futuro da psicanálise, guardava uma certa apreensão de que a psicanálise pudesse vir a ser confundida com uma ciência judaica. Houve, então, um emaranhado de jogos políticos mesclados a ambições e interesses pessoais, dentre os quais ganharam prevalência durante certo tempo jogos de sedução messiânica entre Freud e Jung. Alguns desses mal-entendidos suscitaram a formação de grupos dos favoritos e dos rejeitados, gerando ciúmes, dissensões e rupturas, já no primeiro grupo de analistas.

Penso que essa questão aqui colocada, a idéia de uma unidade, corresponde até certo ponto a uma suposição calcada na experiência inicial de quando o bebê, estando tomado por intensa angústia, buscará sobreviver clamando por mãe que o atenda. Na seqüência, se houver falha materna, clamará pelo pai, babá, médico, enfermeira e assim por diante, até chegar ao vértice religioso à procura de exorcismos e bênçãos via sacerdotes, mães-de-santo, pajés, e, dependendo da crença em andamento, tentará encontrar um patrono santo ou uma santa protetora. Poderá tentar buscar auxílio em Deus, enquanto continente de angústias impensáveis, e, se não acontecer suporte confiável para o desamparo, alguns humanos passaram, e talvez continuem, a se portar como se fossem deuses ou deusas.

Um pouco antes que nós todos aqui chegássemos, o pessoal aqui reunido, alguns de nós estávamos lá fora falando com outros colegas, que devem estar agora em outra reunião. Surgiu a seguinte pergunta: "Eu, enquanto psicanalista, sou curador ou sou curandeiro?". Parecem reminiscências daquelas conversas antigas com Armando Bianco Ferrari. Ferrari gostava muito de falar que o analista é alguém que se propõe a desempenhar um cuidado, tal como se fosse um cuidadoso pastor de algo vivente, sem necessariamente ficar aderido de modo cego ou dogmático a serviço de uma religião ou instituição. Penso que ninguém aqui presente intencione invalidar as perguntas que vocês selecionaram. Então, estamos progressivamente adentrando terrenos inseguros de nosso ofício, cada vez mais complexos, e isto vai exigir ampliação de tolerância a incertezas e capacidade de ousadia em nossas indagações do cotidiano. Sem isso não conseguiremos continuar a crescer mentalmente e tornar viável nossa prática psicanalítica.

Sandra Schaffa: Eu acho a pergunta muito interessante e que faz trabalhar, mas para ela não vejo resposta. Não sei se há uma unidade ou se alguma coisa garante a unidade. Mas concordo com todos os colegas e especialmente com Luiz quando diz que na clínica vamos nos encontrar com o pensamento de um colega, mesmo que venha de outra escola. Como exemplo tivemos a experiência com Fédida em que Luiz foi um dos interlocutores mais vivos, sempre questionando, a partir de uma perspectiva kleiniana, as idéias de Fédida. Foram discussões muito fecundas.

Estava lendo o número de 2002, que foi traduzido para o português, da Revista Francesa de Psicanálise que André Green dirigiu, sobre a psicanálise contemporânea, para a qual foram convidados vários psicanalistas destacados por seu pensamento crítico. Um dos pontos que me chamaram a atenção no número foi uma coincidência que vários apresentaram, a menção anedótica da experiência de participação nos congressos de psicanálise: cada apresentador já sabe o que o outro vai falar quando ouve as palavras introdutórias que prenunciam o desenvolvimento da exposição; já se sabe o que esperar da apresentação, o que resulta em tédio e frustração. Uma babel onde cada um fala sua língua teórica; no entanto eu diria que se algo os reúne isso se dá como em torno de um eixo clínico. Quando eu digo que é uma questão que nos leva a pensar é porque se nos coloca o problema de saber o que pode ser eixo clínico senão eixo teórico-clínico ou eixo técnico-teórico-clínico. Voltaria aí para a minha consideração inicial, que tento desenvolver no meu artigo também publicado neste número.

A Sandra falou da questão da doutrina e Sapienza retomou fortemente a questão do monoteísmo, da violência arcaica que está nos ideais muito puros, o que Freud estudou muito bem em Psicologia das massas. Eu tomaria a questão da doutrina a partir de uma discussão com Fédida em que ele distingue a questão da doutrina no sentido de doutrinário e a doutrina no sentido de doutrinal. Eu não sei se é um neologismo essa palavra, mas ele leva em conta que alguma coisa reúne os analistas, que eles são capazes de se reconhecer dentro de uma situação clínica porque eles trabalham com o pensamento a partir do sentido que o pensamento tomou a partir de Freud, que é diferente daquela que cabe ao filósofo. O pensamento do filósofo não passa pela experiência do contato com os pacientes. O pensamento clínico do analista passa pelo pensamento do sonho, pelo pensamento do sintoma. Freud vai definir o pensamento, o pensamento de transferência, a onipotência de pensamento. Então a palavra pensamento ganha uma dimensão, a partir da obra de Freud, que inclui o terreno fantasmático, que se alimenta do terreno da fantasia, do arcaico. Quando discutimos com outro analista, reconhecemos esse percurso de pensamento que talvez escape nas colocações mais teoricamente organizadas, na situação dos congressos, por exemplo, onde se procura ser entendido pelo outro, falando numa língua diferente. Agora mesmo vou participar do encontro do Capsa, no qual tento passar meu trabalho para o inglês. É difícil passar para uma língua pensamentos que foram pensados em outra língua e que carregam toda a raiz desta língua. Por exemplo, uma coisa de que me dou conta é de que várias idéias de Fédida, cujo pensamento tento abordar em meu trabalho, encontram uma dificuldade de tradução quando se defrontam com a exigência de positivação de certos sentidos. Positivação que o próprio Fédida tenta eliminar na sua escrita, afastando-se de uma linguagem que discrimina muito fortemente sujeito de objeto, já que ele pensa, assim entendo, que a linguagem que serve para a psicanálise necessita dos recursos da linguagem poética, que pode dispensar ou recusar certas formulações gramaticais que exigem a discriminação positiva de sujeito e objeto. Freud falou de tudo isso porque quando ele escreveu a Interpretação dos sonhos, ele retirou o sonho do registro científico para passar primeiro para o popular, pela linguagem, pelo mito, para depois alcançar um outro nível de diálogo científico. À parte essa dificuldade de tradução de nosso pensamento teórico em discussões científicas, entendo que isso que Fédida chama de doutrinal envolve uma plasticidade teórica derivada da clínica e que os analistas têm, capacidade plástica que é herdeira dos sintomas, dos sonhos, da capacidade de pensar metaforicamente. Ao mesmo tempo Freud não deixou a doutrina porque nesse mesmo verbete ele discute e diz: "Não deveria fazer parte da psicanálise aquele que não aceita o complexo de Édipo, não aceita... não aceita...". Aqui vemos o pensamento doutrinário de Freud. No entanto, o pensamento dele também está inteiramente integrado entre a clínica e a teoria, como, por exemplo, ao escrever Moisés ou Totem e tabu, quando vemos a plasticidade de seu pensamento clínico para tratar do infantil, do arcaico, do psicótico e do primitivo e ao mesmo tempo falar de uma dimensão que institui o sujeito na cultura, partindo da perspectiva da escuta clínica do sintoma.

Sandra Moreira: Gostaria de comentar um pouco mais. Quando falei há pouco, ressaltei as questões de doutrina, de diferenças e de separações na psicanálise. Às vezes, pensamos as psicanálises como uma Torre de Babel, onde cada um fala uma língua e ninguém se entende. Mas isso também tem um aspecto interessante, de ruptura e de renovação. Como na discussão, lembrada por Sandra Schaffa, entre Luiz e Fédida, em que, apesar das diferenças teóricas, foi possível perceber que se falava de dentro do campo psicanalítico. Ruptura que tira os analistas do trono estabelecido pelas teorias mas que pode uni-los pela clínica, pelo reconhecimento do sintoma, o que faz surgir quase uma imagem de que estão falando da mesma coisa. Permite ver quando surge um novo pensamento que rompe com o muito estabelecido, e que depois pode virar doutrina, ou não, mas que num primeiro momento é renovador.

Jornal: Qual a relação entre a clínica e a teoria?

Luiz Meyer: Essa questão, nessa conversa sobre as diferentes escolas e como é que podemos identificar o trabalho analítico, de certa maneira já foi debatida. Houve uma pessoa em nossa sociedade, Fabio Herrmann, que a abordava constantemente procurando estabelecer uma relação dialética entre clínica e teoria. Esta era uma questão cara a Fabio, que, criticando uma visão positivista que separa a teoria da clínica, insistia muito dizendo que, ao se fazer a clínica, se está fazendo uma teoria específica para esta clínica, que se está sempre inventando a teoria.

Gostaria de fazer dois comentários sobre o que já foi dito aqui. Um sobre a questão do convívio entre os diferentes, a da autocracia como Sapienza falou, das diferentes religiões, que está implicada nessa questão da relação entre a clínica e a teoria na medida que existe uma tendência da teoria de se impor à clínica. Talvez seja uma tendência mais dessa Sociedade, de enquadrar a clínica num certo viés teórico. Isso pode ser um exercício, mas tem os seus perigos.

Embora as questões que me falem mais ao coração sejam a quatro e a cinco, quando Sapienza falou, me lembrei de uma situação absolutamente presente, de nossa história contemporânea e com a qual todos nós convivemos hoje, que é a guerra do Iraque. A guerra do Iraque tem como um de seus fundamentos a idéia de que a democracia é o melhor dos sistemas. Esta é a religião dos Estados Unidos, que acreditam que sirva para todas as geografias. Assim, acreditam também que ao invadir o Iraque, ao tirar um ditador e ao instalar um sistema democrático, estão fazendo um enorme bem para o país. Talvez essa democracia seja incompatível com o sistema iraquiano de pensar. Ela serve e dá problemas aos Estados Unidos, como a derrota de Bush agora mostrou, mas não serve para ser transplantada para o Iraque. Eu vejo um pouco a situação da relação entre a clínica e a teoria trazendo questões desse gênero; não impor uma teoria a uma clínica que é autônoma, e tentar entender qual é a teoria que aquela clínica produz — quer dizer, qual seria o sistema político que a sociedade do Iraque produz e não achar que o Saddam é uma pura excrescência e que ele nasceu e existiu por oposição à democracia.

Jornal: O mundo de hoje difere enormemente daquele vivido por Freud quando estabeleceu os eixos básicos de sua teoria. Numa entrevista concedida a este Jornal, Marcelo Viñar chama a atenção para as mudanças ocorridas nos referentes sociais que organizam a subjetividade, a família, a função paterna e a função materna. Ressalta também que mudaram o referente do trabalho remunerado e o da sexualidade; a noção de norma e da transgressão da norma e a relação entre o público e o privado. Que conseqüências estas observações trazem para a clínica de hoje?

Sandra Schaffa: Quando estava ouvindo o Luiz falar, pensei que o que ele introduziu aqui foi a função psicanalítica do estrangeiro na escuta do analista, quando fala de Bush, de seu projeto autocrático de imposição da democracia, esse paradoxo ocidental. Nessa configuração que Luiz foi descrevendo aqui, expressa-se uma organização da ordem do sintoma. Somos nessa perspectiva interrogados pelo sintoma, por estar diante de uma organização social que nós não entendemos; com costumes e formas de lidar com a vida, que nós não entendemos. Porém esse estranhamento é necessário para o analista. Quando consideramos que as teorias de Freud são datadas, diria que estamos fazendo uma leitura sociológica ou psicológica do texto psicanalítico de Freud, porque quando nos centramos no que Freud nos legou, nos seus escritos, o que sobressai fortemente é a idéia de que o sintoma é totalmente inacessível para o nosso olhar familiarizante do cotidiano; que a estrutura do sintoma é inteiramente transferencial e que ela nos coloca numa posição de radical desconhecimento. Sapienza insistiu nessa questão do desconhecido e numa outra idéia que faz muito sentido também para mim, que é a idéia de sofrimento, porque o analista — e isso complementa minha fala anterior — talvez se sinta em comunhão com outros analistas porque partilha com os demais da concepção freudiana do que significa analiticamente pensar. A concepção de Freud sobre o que significa pensar é de que o pensamento é necessariamente sofredor, um pensamento que se enraíza na dor, que percorre as vicissitudes do desprazer das passagens, um pensamento que pode enlouquecer, e que é inexoravelmente um pensamento desviante. Então digamos que nós, analistas, herdamos de Freud essa perspectiva, inédita para o pensamento ocidental, e quando estamos, como no exemplo trazido pelo Luiz, diante de uma notícia que lemos nos jornais, ou no contato com os nossos pacientes, nosso lugar funda-se por essa dimensão — poética — do estranhamento, que define eticamente a postura analítica de uma recusa de familiarização diante do sintoma humano.

Freud nos legou esse estranhamento. A família que Freud nos deu é uma família louca, não é uma família do século XIX, é uma família onde há um assassino e uma criança incestuosa, uma criança louca que tem uma sexualidade que não é da relação sexual como a gente brincou aqui, mas essa sexualidade que faz o pensamento funcionar sempre por um desvio, sempre a partir de uma deformação, sempre se mostrando como uma deformação ou como uma coisa que nós não conhecemos. Pensar a partir de transferência é aceitar essa radicalidade, que o exemplo do Luiz traz em evidência: não temos contato com o que é o Oriente Médio, assim como também não temos contato com o que está nos fundamentos do que dizem nossos pacientes. Aí penso que nos encontramos com o problema da atualidade do texto freudiano e aqui voltaria à questão anterior sobre o que reúne os analistas. Eu diria que, de alguma forma, é o texto escrito naquilo que ele guarda de uma intuição clínica fundamental, porque quando lemos um texto psicanalítico que tem força, seja ele de qualquer escola, ele nos pega, nos interroga, não saímos do mesmo jeito do texto. Quantas vezes não leio um texto porque estou às voltas com uma questão com um paciente? E não é a fala explícita, o conceito intelectualizado que me ajuda a pensar, mas é a intuição clínica do analista, essa capacidade de estar em contato com o desconhecido, colocando em trabalho o pensamento. Essa idéia de trabalho psíquico, de trabalho de pensamento, é uma idéia cara a Freud.

Sapienza: Lembraria agora a etimologia, baseada em antropologia, da palavra teoria. Alguns a conhecem, outros não. Quando havia uma competição entre as cidades, chamava-se teoria a uma espécie de procissão em que com emblemas alguns grupos desfilavam para ver quem iria vencer a competição. Então esse é um termo antigo que fala de competição. São expostos emblemas e bandeiras, até que se declare uma teoria vencedora, daí por diante as teorias vencidas são extintas ou tentam sobreviver na clandestinidade.

A outra questão é a da prática clinica. A idéia de clínica é ligada a quem se inclina face ao sofrimento alheio, com tudo aquilo que envolva semiologia, buscando apurar instrumentos, como os ainda úteis estetoscópios ou similares, que permitam apurar as observações. Dito isso, os fatos clínicos se apresentam. Necessitamos de boa e renovada capacidade de observação. Então é inevitável que nós tenhamos um treinamento de natureza teórico-clínica, afora nossas análises pessoais que tentam, de alguma maneira, limpar algumas obstruções mentais e escotomas para refinar nossa capacidade de observar, de sentir e de pensar.

A questão de escolas analíticas é a de quem nela venha a se sentir confortável ou não. Luiz estava brincando comigo quando chegou aqui, dizendo: "Hoje, meu time de futebol, o São Paulo, está por cima". Falei então: "Bem, eu ainda sou palmeirense e também estou quase à beira do rebaixamento". O que acontece com as escolas é que em parte se assemelham a camisas. A questão é saber se podem se transformar em camisas-de-força — nos antigos hospitais psiquiátricos pessoas agitadas prestes a descontroles eram contidas pelo uso de camisas-de-força. Se a pessoa estiver se sentindo confortável numa camisa, ela poderá ser kleiniana, winnicottiana, kohutiana, bioniana, freudiana; o que importa é que seu uso permita convívio respeitoso e amigável na comunidade analítica. Há quem não se sinta confortável de pertencer a uma determinada escola; isto não significa que o indivíduo "não-alinhado" não esteja compromissado com o exercício crítico de atividade psicanalítica. Parece que o problema emergente, a que Sandra estava se referindo, é quando essas escolas se transformam em "ideologias". Aí a função da "escola" muda e passa a assumir outra natureza e finalidades, como a de convencer, converter, garantir a hegemonia, fazer apóstolos extremistas e crédulos.

As análises, se usarmos o modelo do próprio Freud, são comparáveis até certo ponto a um ato cirúrgico; você entra para submeter-se a uma operação e não sabe como dela vai sair. Você tem a esperança de que vai se beneficiar, mas nem sempre o benefício vem enquanto você está em atendimento. Às vezes passam-se quinze ou vinte anos, dependendo do grau de sua capacidade de espera, para você fazer algumas realizações mais precisas de coisas faladas, que na hora não fizeram sentido ou que foram engolidas, sem digestão e maturação suficientes, a partir de pareceres de seu ou de sua analista. Alguns de nós estamos trabalhando nessa questão introjetiva de reabrir nichos contendo "corpos estranhos", visando apurar flexibilidade de funcionamento de analistas com mente própria e não mimética. Sobre isto há alguns escritos de analistas contemporâneos nacionais e estrangeiros. Para o leitor interessado, recomendo a leitura reflexiva de um grupo de seminários clínicos expostos por Bion na Tavistock Clinic, entre os anos de 1976 e 1979, editados pela Karnac em 2005.

Falando de temporalidade, leva considerável tempo para que cada paciente consiga se recuperar de uma análise bem conduzida. Um querido colega psicanalista muito bem-humorado, Carlos Heleodoro P.Affonso, ao apresentar diversos lugares de seu consultório, costumava falar ao paciente que havia também uma sala chamada "choradouro". Dizia que esse era o lugar em que o paciente deveria, quando necessário, nela permanecer por algum tempo depois da sessão, para se recompor não só esteticamente — retocando a maquiagem — mas também para não deixar vestígio algum, que pudesse levar outras pessoas que, ao vê-lo saindo do consultório, ficassem imaginando que ali pudesse estar acontecendo alguma tortura ou algo equivalente.

Sandra Moreira: Lembrei-me de uma frase de Fabio que, a meu ver, é oportuna para esta discussão. Diz respeito à necessidade constante de o analista criar suas teorias: "Quem não cria, crê, e quem cria, desconfia", dizia ele, apontando que nós, analistas, precisamos desconfiar sempre de nossas teorias, se não quisermos correr o risco de fazer delas ideologias ou doutrinas.

Venho trabalhando muito com jovens, o que me permite observar um pouco mais de perto algumas questões que estão sendo tratadas neste debate. Fico impressionada com a exigência que tais pacientes nos fazem de acolher esse estranhamento, fazendo-nos sentir que o trabalho analítico é sempre de exploração, de investigação e de criação. Num trabalho que escrevi para o Jornal, fazendo referência ao texto de Walter Benjamin "Experiência e pobreza", sugeri que a função do analista, com certos pacientes, é a de recompor ou de cerzir a subjetividade ora esgarçada, ora só esboçada. Naquele texto, Benjamin chama de bárbaros os sujeitos pobres de experiências comunicáveis. Porém, ele resgata um aspecto novo e positivo de barbárie, afirmando que este bárbaro é impelido a viver com pouco, a partir para a frente deixando o peso da carga, da bagagem, para acompanhar os novos tempos. Um pouco também como nós analistas precisamos fazer. Assim, é importante entrar em contato com as novidades, em particular com as do mundo dos jovens, das quais não temos a menor noção. É importante poder pensar as diferenças na construção psíquica trazidas pela velocidade, pela virtualidade características de nosso tempo. Pensar a relação com o celular, com a internet, com o Orkut. Pensar também a concomitância dos relacionamentos, nunca somente um, senão dois ou três ao mesmo tempo. Por isso, disse há pouco ser necessário ao analista sair do trono e ir à luta, à investigação.

Sandra Schaffa: Achei bem lembrada a referência de Sandra a Walter Benjamin porque, de fato, se observa em nossa época uma miséria da experiência, quando cada vez mais nossas relações não têm esse tempo, esse tempo nostálgico, a que Benjamin se refere, necessário à narração da experiência vivida, tempo em podíamos contar com as referências recebidas por relatos de experiências e não por slogans.

Essas duas últimas perguntas são complexas porque, por um lado, nós podemos olhar para essa extrema diferença dos sintomas tais como se colocam para nós hoje e essa modalidade de tempo que mudou. O filósofo italiano Agambem retoma Walter Benjamin dentro de uma perspectiva marxista crítica e diz que a revolução de que necessitamos seria uma revolução do tempo. Critica o marxismo pela sua ingênua concepção temporal. Sua fraqueza teria sido adotar uma medida de tempo objetiva e linear. Para pensarmos o sentido forte de uma revolução, temos que pensar como uma determinada época ou uma determinada sociedade administra seu tempo de prazer, seu tempo do trabalho, abandonando essa perspectiva linear e objetiva do tempo. A psicanálise se dá bem com um filósofo que pensa assim porque nosso tempo, Sapienza estava dizendo isso, o tempo de se recuperar de uma sessão, é o tempo de se recuperar do estado regressivo em que a transferência nos coloca. Isso é válido para os dois, é o tempo da experiência que está em questão, a situação analítica está totalmente a contracorrente desse tempo perverso que é o nosso, se considerarmos o de Freud, um tempo neurótico.

Por outro lado, gostaria de insistir que não se trata de recair — como acontece a partir de uma tendência dominante da psicanálise — no erro de olhar para essas novas patologias e achar que elas desafiam nossos fundamentos no sentido de que nós teríamos que funcionar com esse tipo de pacientes de um jeito muito diferente, desprezando os nossos fundamentos psicanalíticos; que deveríamos olhar com maior estranhamento, por exemplo, do que Freud olhou as neuróticas de seu tempo, enfim, que seríamos hoje levados a trabalhar não mais per via de levare como Freud sugeriu. Ao colocarmo-nos junto do Luiz quando aponta para a figura de Bush avaliando a situação do Oriente Médio, não deveríamos achar que as formações sintomáticas do nosso tempo são menos demasiadamente humanas que outras. Freud reconheceu na doença do humano a sua vocação e sua lógica regidas pelo autocratismo do sintoma.

O humano é desvelado na multiplicidade de suas formações sintomáticas através de sua doença autocrática. Freud propôs isso em 1890, quando ainda estava trabalhando com hipnose. Ele diz que o sintoma é autocrático, recusa-se à cura, mas possui uma estrutura. Possui a estrutura de um fóssil que nos cabe analisar para ver desvelar a história que está ali sedimentada. A história pode estar sedimentada num texto ou num sintoma de um paciente. Isso nos coloca em relação à clínica numa perspectiva psicanalítica metapsicológica freudiana que é bastante sólida para enfrentar os problemas clínicos contemporâneos se nós nos ativermos, não aos conceitos de um ponto de vista doutrinário, mas a partir da plasticidade que Freud nos mostrou quando estudou a transferência, os sonhos, os sintomas, os atos falhos, esse funcionamento, essa operação psíquica que a análise cumpre decriptar, seja de um paciente ou numa análise — como Luiz falava — do mundo em que vivemos.

Sapienza: Passo a me referir agora a um pequeno trecho de uma situação clínica ocorrida em uma supervisão e que girava em torno do que se segue. A colega que estava conversando comigo se referiu ao fato de sua paciente ter nascido com uma doença congênita. Aos poucos, foi surgindo uma história de sucessivas análises interrompidas; a idéia da paciente era de que ninguém a conseguia entender. Quando a analista se deu conta do que consistia "não ser entendida", improvisou uma metáfora ali comigo, insinuando que sua paciente parecia um ET, ou seja, um ser extraterrestre, ainda vagando fora do planeta Terra, sem conseguir se encarnar na vida entre os humanos.

Eu fiz um comentário dizendo-lhe que quando um casal, ou uma mulher, gesta e espera um bebê, as funções de uma cópula, analítica ou não, bem como as funções de um casal parental em sua relação com o concepto, irão emergir para atualizações devidas e inevitáveis.

Perguntei à colega mais ou menos o seguinte: sendo uma constante, em área de fantasia e de desejo, as aflições de se gerar um filho ou uma filha poderiam, em um extremo, despertar o medo de o bebê vir a ser um "monstro", e, em outro extremo, o nascimento de um bebê "totalmente perfeito"? Acontece que nenhum de nós nasce perfeito nem imaculado. Se alguém presume assim ser, desde sempre uma criança perfeita, dificilmente aceitaria querer e poder ser viável como psicanalista. Então vivemos paradoxalmente certa marginalidade. Mesmo quem tenha tido forte treinamento para ser "o médico" ou "a psicóloga", na hora H em que fica patente que não se pode realisticamente continuar a exercer a medicina ou a psicologia tal como nossos dourados sonhos juvenis prometiam, sofrerá inevitável ferida narcisista ao cair no mundo da realidade, "acordando para o que venha a ser prosseguir, ou não, na continuidade desta estranha vocação".

Donald Meltzer dizia que, em seu consultório, era como se estivesse fechado numa caverna, vendo e lendo sombras nas paredes, horas a fio, sem porém ficar claustrofóbico, e sentindo-se ao mesmo tempo íntimo participante das relações com o mundo dos humanos, através do seu existir e do contato com seus pacientes. Se assim puder ser, nosso trabalho nunca deixa de ser social. Nós, analistas, mantemos forte relação com o paciente que estamos atendendo, inseridos também no mundo; então vai depender, num certo grau da realização de cada um de nós, do que é podermos nos sentir por vezes também um "monstro", mais ou menos terrível, ou quase um "menino" ou uma "menina" genial. Se tolerarmos um pouco mais essas facetas de nossas personalidades, conseguiremos vir a ter esperança do valor e utilidade que nossas análises e as conversas com nossos colegas possam mobilizar — e para isso também é que existem as Sociedades de psicanálise; porque sozinho tanto não é possível.

Mesmo Freud, que padecendo desta questão infindável, além de não ter experimentado uma análise pessoal, teve que se ancorar numa rede de relações humanas e culturais para levar adiante aquilo que ele foi descobrindo penosamente. Mas, o que estou tentando destacar na seqüência das perguntas quatro e cinco, não é tanto o panorama da sociologia, nem o da macrossociologia, embora elas possam ter suas razões de ser. A questão que focalizo passa a ser a de detectar que tipo de vínculo se estabelece e se cria na relação com o paciente, e que irá envolver não só transferência, mas o apego na transferência, como alguns analistas começaram a falar a partir de Bowlby e de Bion, e que possa abrir nosso olhar para a vida real. Esquematicamente, poder-se-ia falar de apegos seguros, de apegos inseguros, de apegos fóbicos e até apegos caóticos.

Isso não é somente típico da modernidade, trata-se de uma dinâmica constante; talvez macroscopicamente isto se apresente como uma roupagem que pode — como falavam Sandra Schaffa e Luiz Meyer — dizer respeito à "pessoa" que chega até nós por estar assustada e que freqüentemente se encontra desesperada. Presume-se também que o analista esteja relativamente temeroso a cada sessão, pois, se o analista estiver excessivamente confiante de que ali não há novidade, não acontecerá a essência da análise e da vida, novas descobertas e aprendizagem emocional mútua. A ênfase deverá ser então a de buscar atender aquilo que ambos ainda não experimentaram emocionalmente nem conhecem.

Jornal: Segundo Julia Kristeva, um novo paciente surgiu com a modernidade. Para esta autora "os sintomas psicossomáticos e o poder de transformar desejos em imagens caracterizam a vida psíquica na atualidade". Perguntando-se se existem novos pacientes, Kristeva afirma que a experiência cotidiana parece demonstrar uma grande redução da vida interior. "Quem, hoje em dia, ainda tem alma?" "Quanto à recrudescência do interesse pelas religiões, tem-se o direito de perguntar se ela resulta de uma busca ou, ao contrário, de uma pobreza de vida psíquica, que pede à fé uma prótese da alma para uma subjetividade amputada. Porquanto uma constatação se impõe: pressionados pelo estresse, impacientes por ganhar e gastar, por desfrutar e morrer, os homens, as mulheres de hoje economizam essa representação de sua experiência a que chamamos vida psíquica. O ato e seu avesso, o abandono, substitui a interpretação do sentido." Que questões esta colocação de Kristeva traz para a clínica de nossos dias? Surgiu mesmo um novo paciente na modernidade? Como observam isto em sua clínica?

Luiz Meyer: Fiquei muito grato a Sapienza, que falou da quarta questão e da quinta já fazendo um vínculo entre elas. Realmente são perguntas caras para mim e temo estender-me um pouco e sobretudo porque tomei nota de alguns pontos que os colegas falaram.

Vou começar por uma provocação, que é dizer que o grande problema da psicanálise é Freud. Ele é um autor que escreveu vinte e cinco — vinte e quatro volumes mais as cartas. Escreveu como um mestre da escrita, com uma qualidade de observação rara e que de certa maneira mapeou quase todas as questões que o funcionamento do aparelho psíquico suscita. Muitos autores posteriores desenvolveram pontos e tiveram visões diferentes dele mas de certa maneira Freud já havia indicado os pontos que deveriam ser desenvolvidos. Então isso é uma desgraça, porque, se tomamos como referente — vou usar referente, uma vez que é uma palavra que está na questão — de uma prática criativa uma pessoa, você corre o risco de endeusamento. Por isso falei de um certo passo atrás quando a história ganha este peso na psicanálise: ela visa provar a genialidade de Freud e de como ele já tinha de certa maneira entrevisto aquilo que nós estamos desenvolvendo. De modo que nós nunca vamos conseguir desenvolver, levando em conta a atualidade da escrita dele, nada de novo. A prova é que a Schaffa está argumentando que a modernidade é perfeitamente passível de ser lida psicanaliticamente pelas referências freudianas. Não estou dizendo que não é, mas isto é uma visão aistórica, é uma visão de uma teoria geneticista, criacionista, que postula que o mundo (ou a psicanálise) começou com Adão e Eva e que rejeita a teoria darwiniana. Não podemos fazer de Freud o nosso Adão e Eva. Seria redutivo dizer que essas tentativas de entender o mundo em que nós vivemos são sociológicas; ao contrário, elas são tentativas de pensar psicanaliticamente uma situação histórica que nos atravessa.

Vou tomar alguns pontos que foram tocados aqui e ver que associações elas provocaram.

Alguém falou aqui que a entrevista com a Myrna, para o número anterior deste Jornal, precisou ser repetida porque houve um problema com a gravação. Alguém então perguntou: "Qual foi melhor, a primeira ou a segunda?". Isto me fez lembrar uma peça de Friedrich Dürrenmatt, A visita da velha senhora. Nela, há uma cena, a final, que está sendo filmada para a televisão, em que a velha senhora, de maneira extremamente dramática, exige o sacrifício de um cidadão local importante que foi um amor não correspondido. A cidade vai aceitar aquilo para poder sobreviver. Tudo aquilo é filmado e, quando acaba, desligam-se as luzes e o repórter diz: "Olha, a máquina não funcionou, dá para a senhora repetir tudo outra vez?". Vemos que se trata de algo impossível, uma vez que a cena era a expressão direta do que vinha do coração. Aqui, então, nós estamos em outro Walter Benjamin, no da "Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica".

Vou brigar com quem diz: "Um novo paciente surgiu com a modernidade". Não, um novo paciente surgiu com a contemporaneidade. A modernidade criou a psicanálise. O que nós chamamos de modernidade se exprime através da psicanálise e de todo o movimento artístico ligado a ela e que dialoga com ela, que vai desde a produção artística moderna até esses filósofos que pensaram essas questões: todos eles escreveram sobre psicanálise, como Benjamin, Adorno. Todo o movimento artístico e toda a produção literária foram influenciados pela psicanálise, e, sobretudo, se exprime psicanaliticamente. Há um jeito de ser no mundo que já é psicanalítico na modernidade. É impossível a pessoa pensar-se sem pensar psicanaliticamente.

Agora, a contemporaneidade é antianalítica. Ela não esta interessada no espírito. Aquilo que foi o foco de atenção do fim do século XIX, e que atravessou boa parte do século XX, que são as manifestações de espírito e a maneira como ele se materializava e o interesse por isso, desapareceu. O homem contemporâneo não é um homem interessado na sua mente. Ele é um homem interessado em consumir produtos que o representem. A sociedade contemporânea construiu um homem que faz com que ele não se interesse pela sua depressão, mas que se interesse pelo Prozac.

O novo paciente da psicanálise é o que não procura a psicanálise. Tal como diz Viñar ou Kristeva, este é um mundo sem alma. Quer dizer que o conceito de alma nosso é datado, esse é um mundo que tem uma outra alma, por exemplo, as corporações.

Quando falamos do Bush ou de religiões, falamos de um mundo comandado por interesses que não têm face. Assim como fazemos quando ligamos para reclamar na telefônica: "Aqui é central de atendimento da telefônica, ligue 1... ligue 2... ligue 3... vamos passar outra vez o menu". Então você não tem nenhum interlocutor nem a telefônica tem dono. São grandes entidades anônimas se movendo e decidindo os nossos destinos sem que a gente possa se relacionar com elas. Não é que a psicanálise acabou, a psicanálise tem que tentar, com os instrumentos que ela tem e desenvolvendo novos, entender este mundo que se exprime e que está organizado de maneira tão diferente daquele no qual ela foi concebida. Nos relatos freudianos tinha pai, tinha mãe, tinha irmão. Hoje de alguma maneira isso também está configurado, senão as pessoas estariam inteiramente psicóticas, mas o mundo está organizado também para absorver a psicose. O mundo corporativo é um mundo que reifica a contravenção e a contravenção se torna mercadoria. Então ficamos inteiramente perdidos. O rap e DJs, que fazem músicas descrevendo a miséria e a revolta do povo, vão cantar na Globo no horário nobre. Somos todos absorvidos e nós, analistas, vivemos nesse mundo.

A sede desta Sociedade é um exemplo do que estou problematizando. Estamos instalados nesse prédio onde deve trabalhar um doleiro, um representante de uma fábrica de lingerie, um advogado criminalista (não tenho nada contra advogados). Mas isso é um lugar para a psicanálise? Não tenho preconceitos, mas isso já é um sinal de quanto fomos sugados. Estamos aqui e temos que pensar por que nós viemos parar aqui. A questão do casamento homossexual, do desejo de casamento dos pares homossexuais, de gerarem uma família, da produção independente merece nossa atenção. O casal homossexual que quer ter um filho é um casal que quer se integrar. Se a homossexualidade se apresentava, até poucos anos atrás, como uma transgressão, como um desafio — lembremos que os movimentos feministas, os movimentos dos homossexuais, as paradas gueis se iniciaram como movimentos de transgressão —, hoje, o mundo está organizado de tal maneira que os homossexuais querem viver uma vida burguesa, casar e ter filhos. Esse é nosso mundo, não estou fazendo uma crítica, mas esse é o nosso mundo.

Sapienza: Freud utiliza o modelo do monoteísmo em seus conceitos, estudando-o exaustivamente. Lembro de passagem o texto Moisés e o monoteísmo (1939), elaboração extremamente refinada de sua identidade já ao final de sua vida, e que servirá como pano de fundo para o que passo a discorrer. Se percorrermos, por meio de leitura cuidadosa e contemplativa, os achados arqueológicos da civilização grega talvez possamos reconhecer o valor epistemológico em explorar essas camadas de ruínas mentais ou débeis em nossas mentes, e que foram essencialmente rastreadas graças à fina arqueologia desenvolvida por Melanie Klein, em seus atendimentos clínicos junto às crianças, aos psicóticos e aos fronteiriços.

Todas essas questões, que envolvem movimentos de paixões primitivas ligadas aos sentimentos de admiração, gratidão, inveja e culpa face à mulher e a seus objetos, inicialmente representados por útero e seios como modelos biológicos, puderam ser exaustivamente elaboradas nos escritos de Klein, valendo-se de suportes auferidos na literatura e nas fontes de tragédias do teatro grego, basicamente compostas por Ésquilo. É justo afirmar ainda que parte desse acervo já fora rastreado e pinçado por Freud, principalmente a partir das tragédias de Sófocles.A vertente das investigações kleinianas se volta para as questões da sexualidade do mundo fragmentado, do Édipo fragmentado, e das destruições que existem em áreas arcaicas de mente.Trata-se de uma abordagem que integra e complementa movimentos desenvolvidos por Freud, este prevalentemente privilegiando leituras a partir do mundo dos poderes masculinos e patriarcais. Por sua vez, Klein passará a se envolver gradativamente com a mítica ligada ao resgate e compreensão das fantasias do "bebê" dirigidas principalmente ao corpo materno, a seus conteúdos (pênis paterno, bebês já nascidos, bebês mortos e bebês ainda não-nascidos) e à mente da mãe, criando ferramentas em jogos lúdicos que permitem ao analista aprofundar-se em imersões clínicas ligadas aos poderes femininos e matriarcais.

Esse duplo rastreamento, conjugando Freud e Klein, está a exigir dos analistas uma certa plasticidade para ver quais realizações cada analista tem desses recortes de áreas primitivas da sua mente. Quem sabe possamos nos considerar analistas em processo de vir a ser o que ainda não conseguimos viver, ser, construir, amar e conhecer?

Vocês estavam falando, mais particularmente Sandra Schaffa e Luiz Meyer, do contato com analistas estrangeiros. Particularmente pude acompanhar algumas incursões de Fédida ao Brasil, não com a mesma assiduidade e aprofundamento de alguns de vocês, mas poderia citar outros analistas, como Bion, Rosenfeld, Green e Meltzer entre outros, que têm oferecido novos modelos de funcionamento mental e de relações objetais, que se distanciam dos modelos freudianos clássicos. Outros analistas vieram de modo oportuno proporcionar novas penetrações no mundo analítico da SBPSP, rompendo conformismos, sectarismos e modismos. O que não quer dizer que tudo o que seja tradicional esteja ultrapassado e deva ser repudiado. Não se trata disso, mas é oportuno o momento de aberturas para alguma coisa que nos faz falta dentro do conjunto de teorias e técnicas da análise clássica de Freud. Há outras questões nos esperando e que ainda aguardam quem as pense com profundidade. E a meu ver, este é um campo fértil em estado aberto para o trabalho das novas gerações de analistas.

Sandra Schaffa: Tenho necessidade de explicitar um pouco mais uma idéia que coloquei porque não sei como me expressei quando falei de uma perspectiva sociológica ou psicológica de leitura de Freud.

A clínica de Freud não é a de nenhum de nós, é diferente. Estamos, creio que todos aqui concordamos, diante de sintomas diferentes. No início Sapienza falou em formas, agora em novos modelos. A minha referência ao Freud não é a referência que vem do produto das teorias, dos conceitos, da arquitetura dos conceitos, mas é uma referência, vou insistir, dessa formulação metapsicológica de um procedimento que inclui a vida psíquica do analista, que inclui a contratransferência do analista naquilo que ele está pesquisando. Obviamente Freud não se estendeu nesse território kleiniano do arcaico, do feminino ou do continente negro, mas diria que Melanie Klein é uma herdeira fortíssima de Freud e de Abraham. Por isso eu dizia antes das grandes intuições clínicas, que de alguma forma vão se sedimentando como um acervo que temos e encontramos nos fortes textos psicanalíticos. Minha intenção de insistir na perspectiva propriamente psicanalítica de Freud é distinguir uma sociologia ou uma psicologia decorrentes do testemunho freudiano, outra é essa força disruptiva do pensamento analítico. Esse pensamento que tem a força do desejo. Pensamento que está impregnado, que é movido pelo desejo. Quando falamos das ideologias e dos autocratismos, sabemos que os grandes ideais são nutridos pelo que a gente tem de mais arcaico. Piera Aulagnier trabalhou agudamente essa questão diante do problema da formação do analista: no seu livro Les destins du plaisir denuncia a tendência de que o analista possa ser uma presa fácil de ser arrastada pelas ideologias, pelas paixões. Aponta um verdadeiro paradoxo ao dizer que aquele que tem a vocação de analista também tem a vocação de um passional, de funcionar passionalmente na clínica, e a transferência suscita isso por tudo o que mobiliza de arcaico. E nós vivemos nesse estado-limite sabendo que nós somos pesquisadores desse arcaísmo seja na cultura ou no nosso consultório, nós também corremos o risco porque somos convocados a funcionar de tal modo que nossas teorias sejam teorias delirantes, ideológicas, sedimentadas. É uma outra epistemologia que serve à psicanálise, diferente da epistemologia que serve para a filosofia ou para outras ciências. Nós temos todos esses problemas que são problemas da riqueza de uma disciplina, de um ofício que ainda dá muito que pensar embora esteja na contracorrente desse não-interesse que o homem contemporâneo tem pela experiência analítica, optando pelo Prozac, como Luiz estava falando.

Se puder me estender ainda um pouquinho, lembraria um caso clínico, que discutimos no congresso de Lisboa, de um menino que tinha tatuagens e piercings pelo corpo inteiro, era portanto um representante dessa nossa contemporaneidade. Ele foi atendido numa instituição, não procurou o analista e não tinha demanda de análise. O que ele dizia era que queria ser ele próprio o produtor de seu corpo, ter um corpo auto-engendrado que anulasse a sua origem, sua condição de filho, seus pais.. Esse é um sintoma do nosso tempo e talvez eu diria, reagindo às provocações do Luiz (eu adoro as provocações do Luiz, que é um dos mais estimulantes interlocutores que já encontrei, tanto que quando apresento um trabalho eu o convido especialmente porque suas questões sempre tiram do lugar que estou, impondo analiticamente olhar para outro ponto), eu diria, voltando para Freud e para o ato falho de Luiz quando diz "vinte e cinco volumes", que há um vigésimo quinto volume sim: é o do manuscrito não publicado, é o livro sobre as neuroses de transferência em que Freud fala exatamente do tempo de fabricação da neurose. O tempo psicanalítico é ali dimensionado a partir do período glaciário, que possa dar margem de entendimento das formações psíquicas e do seu caráter estranho porquanto fundamentalmente anacrônico. Podemos guardar esse estranhamento como medida para acolher esse paciente e sua doença excessivamente contemporânea. Acho também que nosso recurso para pensar a cultura é o recurso clínico, é com a clínica que nós conseguimos estender esses modelos para pensar o que está acontecendo no mundo. Não nos isenta de olhar por outros vértices.

Sandra Moreira: Como este menino citado por Sandra, quem representa a contemporaneidade provavelmente nunca nos procuraria. Quem nos procura tem alguma questão, algum resquício de inquietação, uma fagulha de alma.

Parece que aqui também temos a questão do que fica e do que vai. Uma questão da permanência. Lembrando outra vez Walter Benjamin,segundo o qual a narrativa da experiência era comum nas oficinas, onde o artesão, o mestre, permanecia e recebia seus aprendizes.A narrativa era tecida nesse encontro. Os aprendizes eram aqueles que traziam as notícias do mundo de fora, enquanto o artesão era quem narrava a história do tempo da cidade, da permanência. Os nossos pacientes nos trazem notícias deste mundo em que vivemos.

Sandra Schaffa: Mais do que uma a notícia, diria que nos nossos pacientes nos dão uma possibilidade de entrada no mundo, uma entrada molecular no mundo, temos esse privilégio, que é o encanto de nossa profissão, de poder enxergar o mundo a partir desse microscópio construído pela Interpretação dos sonhos. Para entender o tempo contemporâneo, não precisamos senão de um olhar formado por uma escuta anacrônica, precisamos nos dar esse tempo de que falava Sapienza, de sair de uma sessão de análise chorando, emocionados, desconcertados, atordoados por esta possibilidade de aceitar que vivemos na inatualidade do tempo.

Sapienza: Como não é possível ficarmos em análise contínua, o que resta aos analistas para não ficarmos ossificados? Aí outras questões de nossa humanidade comparecerão. Esta é uma outra história de novas fronteiras e desafios que talvez possa ficar para outro número, outro debate, outra conversa.

Uma das funções das chamadas reportagens de debate é a de não se fecharem as questões, mas possibilitar novas indagações que permitam circulação e respiração críticas de nossa atualidade clínica, visando atendimento psicanalítico renovado e vitalizado.

Luiz Meyer: Fiquei muito interessado no personagem que Sandra Schaffa comentou, e queria saber como ele chegou a uma instituição.

Sandra Schaffa: Acho que era por uso de drogas. Era um personagem que reunia todos os traumas que um adolescente poderia trazer. Foi apresentado junto com outras colocações e o fragmento que apareceu não tinha dados mais explícitos.

Luiz Meyer: Queria colocar duas questões, uma desse rapaz do comentário da Sandra que podemos usar como modelo que é do desejo de ser incriado. Esse desejo se reporta até a mônada freudiana, o sujeito que se basta a si próprio está dentro de um sistema inviável, só que o mundo está construído para dar a esse sujeito a possibilidade de pensar que isso é viável. Aquilo que chamávamos de narcisismo, as teorias que nós temos de narcisismo, classificariam este caso com facilidade. Acontece que ele está inserido numa cultura que o torna uma espécie de epítome. Mas o analista também esta inserido nessa cultura e, se ele não tem uma relação fraterna com esses aspectos que o adolescente escolheu, terá com outros que convergem para a mesma situação. Para não sermos demasiado pessimistas, o que é possível fazer? A questão histórica que estávamos discutindo aqui, que a desgraça da psicanálise é Freud, deve ser entendida no sentido de que ela se torna um grande problema se nós o tomarmos como oráculo e não como um modelo de postura. A postura psicanalítica, essa, pode ser conservada, e ela tem que ser plástica. O sujeito que pratica psicanálise hoje tem de investigar esses fenômenos, de um lado comungando com eles, e de outro lado podendo se separar, porque toda a sexualidade que Freud foi levantando e descrevendo, e os conflitos que ela causou e a força que ela acabou tomando em sua obra, é também a sexualidade dele, do homem Freud. Como foi possível? Ele mergulhado, e por estar mergulhado naquilo pode ter esse olhar e conviver com aquilo de um modo psicanalítico?

Para terminar diria que psicanálise não é uma sondagem apenas, é um aprendizado de convívio, por exemplo, do convívio do consciente com o inconsciente. Não é transformar o inconsciente em consciente, mas é propiciar o convívio do conhecimento de um pelo outro. Talvez seja o que nos resta nessa situação da contemporaneidade.

Jornal: Queremos agradecer a todos pelo interessante debate.

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