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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. v.39 n.71 São Paulo dez. 2006
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
O corpo do analista: clínica, investigação, imaginação1
The analyst's body: clinic, investigation, imagination
El cuerpo del analista: clínica, investigación, imaginación
Eliana Borges Pereira Leite*
Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
RESUMO
Este trabalho trata da presença de sensações e manifestações corporais entre os efeitos que a escuta produz no analista, acompanhando seus processos associativos e de alguma maneira relacionados com o que acontece na sessão. Estes efeitos estão presentes especialmente na clínica dos chamados "casos difíceis" nos quais está em jogo a dificuldade de representar, mas também podem ocorrer em momentos críticos de qualquer análise, exigindo elaboração. Para examinar estas manifestações, é sugerida uma aproximação entre o trabalho do analista e o trabalho do ator, que tem no corpo seu instrumento principal. O método de Constantin Stanislavski oferece ao ator meios de construir as características físicas e psíquicas da sua personagem com naturalidade e é utilizado para um diálogo com as formulações de Freud sobre a prática psicanalítica, de modo a permitir uma reflexão sobre a presença do corpo do analista na dinâmica da sessão.
Palavras-chave: Escuta, Corpo, Teatro, Figurabilidade.
ABSTRACT
This work deals with the presence of sensations and other bodily manifestations among the effects that listening produces in the analyst, following his associative processes and somehow related to what happens during the session. This effect shows up specially in those cases in which the difficulty to represent is at stake, but it may also happen in any analysis, in critical moments. To investigate these effects, an approach is suggested with the actor's work, whose body is the main instrument. Constantin Stanislavski's method provides the actor a way to built physical and psychological traits of a character as naturally as possible and is employed in a dialogue with Freud's advices about psychoanalytical practice so as to elucidate the presence of the analyst's body in the session.
Keywords: Listening, Body, Theater, Figurability (Representability).
RESUMEN
Este trabajo trata de la ocurrencia de sensaciones y manifestaciones corporales entre los efectos que el processo de escuchar produce en el analista, acompañando sus procesos asociativos y de alguna manera relacionados con lo que acontece en la sesión. Estos efectos están presentes especialmente en la clínica de los llamados "casos difíciles" en los cuales está en juego la dificultad de representar, pero también pueden ocurrir en momentos críticos de cualquier análisis, exigiendo elaboración. Para examinar estas manifestaciones, se sugiere una aproximación entre el trabajo del analista y el trabajo del actor, que tiene en el cuerpo su instrumento principal. El método de Constantin Stanislavski ofrece al actor medios de construir las características físicas y psíquicas de su personaje con naturalidad y es utilizado para un diálogo con las formulaciones de Freud sobre la práctica psicoanalítica, de modo a permitir una reflexión sobre la presencia del cuerpo del analista en la dinámica de la sesión.
Palabras clave: Escuchar, Cuerpo, Teatro, Figurabilidad.
Que nome podemos dar a essas correntes invisíveis
que usamos para nos comunicar uns com os outros?
Algum dia, este fenômeno será objeto
de pesquisa científica.Constantin Stanislavski (1936/2002)
Este trabalho tem como ponto de partida uma questão que, com certa freqüência, aparece entre as considerações finais de artigos e livros que tratam da clínica psicanalítica. Não é raro que um autor, ao concluir suas reflexões sobre alguma categoria clínica, mencione como o contato com o paciente que a apresenta afeta a escuta do analista, de que maneira interfere em sua atenção flutuante e em seus processos associativos, e se refira à ocorrência de sensações e manifestações corporais como um efeito particular, um "algo mais" na comunicação analítica. Em geral, este efeito é relatado quando a problemática examinada rompe as fronteiras da neurose e faz pensar em dificuldades de constituição e funcionamento dos processos de representação, mas também pode ocorrer em momentos mais críticos de qualquer análise. Examinar mais de perto estas manifestações, tentar abordá-las com os recursos da metapsicologia, interrogar o modo pelo qual o corpo do analista participa do seu trabalho em sua dupla natureza de investigação e clínica poderiam ser propostas de uma reflexão que, no entanto, quase sempre permanece apenas sugerida.
O corpo do analista parece ser resguardado por uma sorte de recato investigativo, talvez o mesmo que levou Freud a colocá-lo fora de vista, mas tal disposição não o exclui nem faz dele um corpo inerte. Quem ocupa a poltrona tem na lembrança seus tempos de divã e sabe, certamente, como cada sinal, um movimento ou a quietude, a oscilação da voz e o silêncio, um suspiro, um bocejo, um olhar trocado na entrada ou na saída, qualquer traço físico ou manifestação percebida ou imaginada no analista, pode se tornar o motivo de muitas conjeturas que, mesmo silenciadas pelo paciente, alimentam o movimento da análise. O ocultamento à visão faz da presença do analista uma virtualidade, faz do seu corpo o cenário de múltiplas possibilidades imaginárias e mobiliza o campo do afeto. Mas como acolhe e o que faz o próprio analista do que se manifesta em seu corpo? Sobre esse tema pouco se fala, como se abordá-lo pudesse representar alguma concessão em relação aos princípios de um método que opera pela palavra. Entretanto, um analista habita um corpo que faz parte da situação analítica, é parte do seu dispositivo, e não deixa de lhe fazer certa exigência de trabalho como condição inerente ao surgimento do pensamento e da linguagem de que fará uso na sessão.
Da escuta do corpo ao corpo em escuta
A psicanálise teve de se haver com o corpo desde as suas origens. Foi pelo que se manifestava em seus corpos que as histéricas chegaram a Freud e o guiaram em suas investigações iniciais. Um corpo-cenário, apresentando repetidamente o roteiro de uma cena traumática, corpo reminiscente de uma sedução, nos primeiros tempos entendida como um fato da infância, mais tarde como uma produção da fantasia. A concepção de um aparelho psíquico que recebe, representa e transforma tanto as percepções do ambiente quanto as sensações corporais esteve presente no pensamento de Freud desde muito cedo. Passando pela formulação da teoria das pulsões, das quais é a fonte, o corpo percorreu um trajeto teórico no qual adquiriu diversos registros, até lhe ser atribuída, na segunda tópica, a condição de sede das experiências mais primárias e fundamentais para a constituição do ego. Embora privilegiasse inicialmente a perspectiva surgida na clínica das neuroses na qual o corpo tem estatuto representacional e participa dos recursos de expressão simbólica do conflito psíquico a reflexão freudiana, a partir das reformulações teóricas de 1920, abriu-se a possibilidades mais amplas, incluindo situações nas quais as manifestações pulsionais podem não encontrar representação no psiquismo. Nessa perspectiva, o corpo pode ser capturado no extravio da pulsão e tornar-se o palco de um destino alternativo, o que lança alguma luz sobre uma variedade de manifestações inicialmente não abordadas pela clínica psicanalítica e que hoje se encontram na ordem do dia.
A dificuldade de representar é o denominador comum do que, há mais de uma década, Julia Kristeva designou como "novas doenças da alma", referindo-se a problemáticas que se tornaram ainda mais presentes em nossos dias. Seria esta dificuldade o sintoma de uma época, o produto de mudanças históricas, efeito da vida moderna sobre as condições familiares e as dificuldades infantis? As somatizações, os estados-limites e os falsos-selves e, poderíamos acrescentar, o pânico, as adições e as depressões seriam variações contemporâneas de carências narcísicas presentes em todas as épocas? Ou, por outra perspectiva, esta dificuldade passa a se configurar a partir de uma mudança na escuta dos analistas que vem se refinando na apreensão de problemáticas antes não percebidas? De qualquer forma, observa a autora, a dificuldade ou a incapacidade de representar pode matar o espaço psíquico. De várias maneiras, o analista se vê hoje solicitado a restaurar, a fazer renascer este espaço, o que o convoca a se engajar, como ocorreu com Freud, em um projeto de redescoberta do psíquico (Kristeva, 1993/2002, pp.15-16).
A ampliação dos horizontes da clínica, a partir da revisão da teoria pulsional, não só trouxe a possibilidade de acolher um leque mais amplo de patologias como deu origem a novos desenvolvimentos conceituais e solicitou a atenção dos analistas para situações em que se pode fazer necessária a flexibilização da técnica. Como André Green observa, além de implicar a coexistência de dois modelos no pensamento de Freud o primeiro baseado no sonho, o segundo na pulsão o advento da segunda tópica promove uma mudança de paradigma que permite antecipar a inclusão, no campo clínico, dos casos-limites e de outras estruturas que colocam em xeque a técnica clássica (Green, 2001/2003, p. 486). A variedade de formulações que resultam desta ampliação dá testemunho da vitalidade do pensamento psicanalítico, de sua capacidade de renovação, mas não deixa também de produzir alguma inquietação. Por certo, cada analista se constitui à sua própria maneira e percorre um caminho singular em sua formação. Porém, a multiplicidade de perspectivas pode chegar a dificultar o reconhecimento e a manutenção de referências comuns entre as várias práticas ditas psicanalíticas, bem como a elucidação de suas diferenças.
É neste contexto que me parece pertinente e instigante retomar a vertente indicada por Ferenczi, que tanto insistiu na importância de investigar os processos em jogo do lado do analista, para nela inscrever uma reflexão sobre o que se passa com o corpo que ocupa a poltrona. A especificidade da escuta analítica os processos que nela operam e a ruptura que ela efetua em relação à escuta médica é a marca de origem da psicanálise, seu selo de garantia, e se o corpo do analista vem sendo cada vez mais mencionado como uma superfície de repercussão desta escuta, sujeita hoje à incidência de formas de organização psíquica que se fazem sentir mais do que se dão a ouvir, talvez seja o caso de retirá-lo da penumbra e de investigar mais de perto como ele se inscreve e toma parte no desenrolar de uma análise.
Do ponto de vista metodológico, coloca-se de início a questão do investigador que investiga a si mesmo, com a qual a psicanálise convive desde que Freud começou a analisar seus próprios sonhos e deste procedimento inédito fez surgir uma concepção do aparelho psíquico e uma teoria do seu funcionamento. A esta questão, Daniel Widlocher responde observando que é preciso reconhecer como diferencial do método psicanalítico uma racionalidade que não repousa sobre os mesmos princípios que sustentam as ciências naturais. Os conhecimentos que ela formula não são refutáveis e se inscrevem numa lógica prática, cuja validade não resulta do seu valor de verdade mas do seu valor de inteligibilidade. O método psicanalítico tem como objeto "a aventura intrapsíquica que se estabelece em cada cura" e se adapta a cada situação intersubjetiva do vínculo entre o paciente e o analista, vínculo que não se confunde com uma relação interpessoal, pois "diz respeito às induções recíprocas de dois aparelhos psíquicos em comunicação" (Widlocher, 2001/2003, pp. 52-53). O consenso sobre o valor de um novo conhecimento, de um modelo ou de um conceito gerado pelo método psicanalítico não é obtido por meio de replicação experimental ou pelo teste de sua adequação a uma situação real, mas pela confrontação das comunicações entre psicanalistas de suas observações clínicas, na medida em que certos fenômenos podem ser por eles identificados e definidos em termos análogos. Na psicanálise, o julgamento de inteligibilidade ocorre pela confrontação de modelos, pelo questionamento do que pode faltar em um modelo em relação a outro e pelo constante exame da articulação entre a teoria, a clínica e a técnica que ele deve possibilitar (Widlocher, 2001/2003, pp.54-58). Investigar os processos que se passam do lado do analista, inclusive os que o afetam corporalmente, poderia contribuir para ampliar a inteligibilidade do próprio funcionamento do método, tão mais necessária quanto mais se defronta o analista com solicitações que lhe exigem flexibilidade em relação às modalidades de trabalho desenvolvidas no contexto da clínica das neuroses.
Frente à necessidade de resgatar referências e de detectar dificuldades e variações surgidas em conseqüência da ampliação do campo, a situação clínica é o terreno natural de investigação e reflexão. Algumas considerações de André Green a respeito das características da comunicação nesta situação oferecem indicações do modo pelo qual o corpo tanto do paciente como do analista é nela incluído. Para Green, na análise o corpo trabalha:
Ele se esforça para trabalhar e se comunicar na ordem do psiquismo inconsciente e da fala. O mesmo ocorre no que se refere ao analista há pacientes que nos dão dor de cabeça, que provocam no analista estranhas sensações, às vezes até momentos de confusão, outros de irritação, angústia e até mesmo reações somáticas (Green, 1990, p. 67).
A situação analítica se caracteriza como uma troca entre duas partes, analista e analisando, que elegem o canal verbal como modo de comunicação. No entanto, a relação entre o modo de comunicação escolhido, a natureza do que é comunicado e o objeto da comunicação é problemática, pois a linguagem exerce um impacto tanto sobre a expressão do que se dá a conhecer do psiquismo do analisando quanto sobre a recepção por parte do analista. Os planos de organização do aparelho psíquico não são homogeneamente sensíveis a este impacto, permitindo que fatores extraverbais produzam efeitos que se combinam com a linguagem. "A comunicação verbal (representações de palavras) é acompanhada pelas representações de coisas, pelos afetos, pelos estados do próprio corpo", diz Green, acrescentando que os efeitos de sentido se distribuem em diferentes registros, portadores, em diversos graus, de tensões que podem perturbar a continuidade do discurso e provocar efeitos disruptivos. Do lado do analista, torna-se necessário "um modo de atividade psíquica que desempenha o papel de receptor complementar: a regressão formal " (Green, 2001/2003, pp.477-482).
Também pensando na especificidade da situação analítica, no que permite distingui-la de outras práticas, César Botella chama a atenção para a importância do funcionamento regressivo que une na sessão o psiquismo do analista e o do paciente:
É da regressão e de suas particularidades que dependem as dinâmicas que suscitam e determinam os processos de mudança do tratamento; ela é essencial para a apreensão dos acontecimentos, para além do que o procedimento e a técnica podem prever, e além da circularidade dos preliminares teóricos (Botella, 2001/2003, p. 428).
O estudo das modalidades e da amplitude da regressão permite, segundo este autor, que analistas de diversas tendências se situem uns em relação aos outros, em função do modo de considerar a regressão na prática de cada um. Botella retoma o roteiro da noção de regressão na obra de Freud, lembrando que ela é formulada em relação ao movimento retrógrado do trabalho do sonho, possibilitando a transformação do conteúdo onírico em imagens de natureza alucinatória e conferindo a este conteúdo uma inteligibilidade sob a forma da figurabilidade. Embora parcialmente inibida, a regressão não deixa de estar presente na vida diurna em diversas situações, e é particularmente favorecida pelas condições da sessão analítica. A importância da regressão formal, bem como da metapsicologia de 1900, do modelo do sonho, ficou em parte negligenciada durante o período em que o foco da investigação teórica privilegiou a dinâmica das representações, como nos trabalhos metapsicológicos de 1915. Enfaticamente, Botella defende a sua revalorização e a articulação dos dois momentos da metapsicologia, de modo a poder acolher tanto os processos representacionais quanto os movimentos pulsionais, o além da representação que, na clínica dos nossos dias, se manifesta pela via regrediente e requer uma inteligibilidade pela figurabilidade (Botella, 2001/2003, pp.429-431).
Indo ao encontro das considerações de Widlocher, Botella também se refere à participação da via regrediente na produção da teoria por Freud, tanto na primeira tópica, a partir da análise dos seus próprios sonhos, quanto a partir de 1920, quando fica claro que o sonho pode ser algo além da realização de um desejo infantil: "... foi no estudo da regrediência do seu próprio pensamento que Freud pôde apreender os fundamentos de sua teoria". E acrescenta: "Isso nos parece essencial para captar a especificidade e a originalidade tanto da psicanálise quanto da pesquisa em psicanálise" (Botella, 2001/2003, p. 432). O contato regressivo com as dificuldades de certos pacientes em deixar de repetir suas experiências mais sofridas, a manifestação da reação terapêutica negativa, o interesse renovado pelo sonho, em particular o sonho da neurose traumática, e pelo jogo repetitivo de seu neto com o carretel atraíram a atenção de Freud para processos psíquicos que escapam ao regime do princípio do prazer, distintos daqueles característicos das lembranças recalcadas. A reflexão teórica transitou do cenário das representações para o movimento pulsional, sem que a via regrediente da escuta deixasse de ser o meio de apreender a clínica. Parafraseando Freud, Botella sugere: "As condições regressivas da sessão formam a via real que leva ao conhecimento dos processos inconscientes" (Botella, 2001/2003, p. 433).
Nas considerações destes três autores encontram-se entrelaçadas as questões que me motivam a prosseguir na linha de investigação que comecei a percorrer em trabalho anterior (Leite, 2001). Minha inquietação era e, vale dizer, continua sendo com os efeitos das mudanças constatáveis na clínica contemporânea sobre a prática da psicanálise, descrita por seu criador como método de investigação e tratamento do mal-estar humano, sobre o modo de conceber o dispositivo clínico, a situação psicanalítica e, em particular, a escuta do analista. Como modalidade de recepção do que se passa com o analisando, esta escuta vem sendo solicitada a se transformar para acolher as problemáticas que tomam forma na psicopatologia do nosso tempo. Frente a novas exigências, seria ainda possível afirmar e preservar a referência ao sonho como paradigma da constituição da situação psicanalítica e dos processos que caracterizam a escuta do analista e seu funcionamento psíquico, precedendo e alimentando suas intervenções na sessão? Ao reconhecer o trabalho do corpo entre estes processos, seria ainda possível manter a correspondência, sugerida por Freud, entre o dispositivo analítico e o espaço em que se produz e se dá a ver o sonho?
As respostas, a meu ver, são afirmativas. A referência ao sonho continua a ancorar qualquer possibilidade de compreensão dos processos que emergem e se desenrolam na situação analítica, por mais que esta esteja sujeita, em nossos dias, a condições que podem ser bem diferentes daquelas que permitiram a Freud realizar suas primeiras descobertas. Tanto André Green como César Botella se referem à ampliação que a segunda tópica promove quanto ao alcance do método psicanalítico, e ambos sublinham o interesse renovado de Freud pelo sonho, a partir do enigma do sonho repetitivo da neurose traumática. É justamente este movimento em direção aos processos mais primários de inscrição pulsional que permite entrever, já na reflexão freudiana, a possibilidade de uma transformação do modelo do sonho capaz de revelar outras faces de sua potência heurística e de lançar alguma luz sobre as solicitações com as quais os psicanalistas vêm se defrontando cada vez mais em seus atendimentos. Tanto quanto em seus primórdios, a psicanálise se encontra hoje às voltas com a tarefa de construir uma inteligibilidade, como diz Widlocher, para aquilo que a aplicação do seu método permite desvelar. A pesquisa, como os autores mencionados são unânimes em afirmar, é inerente à situação analítica, sendo suas marcas essenciais a especificidade do envolvimento do analista na situação, a natureza singular do vínculo que nela se instala, e o movimento regressivo que favorece a revelação do funcionamento intrapsíquico. Face à multiplicidade de novas formulações, é mais uma vez na fecundidade dos modelos freudianos, nas suas potencialidades de renovação e desenvolvimento que se encontram as coordenadas que permitem navegar em meio à dispersão.
A ampliação do campo e a mudança de perspectiva introduzida pela segunda tópica tiveram efeitos significativos sobre a situação analítica, que passou a ser concebida em estreita relação com as dinâmicas mais inaugurais e delicadas da vida psíquica, ou seja, com as condições de possibilidade da ligação da pulsão à representação. Em correlação com esta mudança de ponto de vista, muda também a perspectiva pela qual levar em conta o sonho como modelo do funcionamento psíquico extensível à sessão, amplia-se o seu alcance. Se a psicanálise, num primeiro momento, atribuiu ao sonho sua importância paradigmática como via regia para o inconsciente por meio da interpretação, a esta se acrescenta, na atualidade, a importância de considerar as condições e vicissitudes da sua produção, já que, como Freud percebeu ao se defrontar com o sonho da neurose traumática, um longo caminho deve ser percorrido para que seja possível sonhar. São as marcas deste caminho, suas diversas possibilidades, impasses ou impedimentos, a maior ou menor integração destes processos desde os primórdios da vida psíquica, ou mesmo seu colapso, que cada analista é convocado a encontrar em certas situações junto a cada analisando. Nestas condições, como observa Botella, é preciso que o analista tenha disponibilidade para abrir sua escuta à regressão formal, uma regressão de natureza alucinatória, cujo alcance pode, por alguns momentos, transpor os limites da representação. Numa formulação que vem ao encontro do meu pensamento, ele afirma:
É possível que nossa cientificidade se apóie no estudo do sonho... Se não nos limitarmos a considerar a análise, sua teoria e prática, como uma disciplina fundada essencialmente, se não unicamente, na idéia de interpretar, mas também considerarmos as qualidades criadoras que são inerentes ao funcionamento psíquico, poderíamos, a partir delas, do seu estudo nas sessões, começar a refletir sobre uma teoria e uma prática na qual o modelo já não seria o da interpretação do sonho, mas o estudo dos processos criativos, construtores do psiquismo, na sessão como no próprio sonho. O modelo seria o do trabalho do sonho, a investigação das qualidades que ele contém, além das que já descreveu Freud (Botella, 2000, p. 233).
Por essa perspectiva, a figurabilidade pode ser considerada não só como o processo de transformação dos pensamentos latentes em imagens visuais, como Freud a definiu, mas também como o trabalho pelo qual a pulsão não ligada encontra uma forma inicial de ingressar na dinâmica psíquica. Na situação analítica, o corpo se inscreve como uma superfície de recepção e de passagem da pulsionalidade não ligada, uma interface de afetação ativada na regressão alucinatória do analista que acompanha a regressão do analisando e da qual se sustenta sua atividade figural de nomeação e construção2.
O trabalho do sonho, Freud comenta, tenta diversas vezes até chegar a ser bem-sucedido. A angústia indica sua insuficiência, seus impasses, e pode até interrompê-lo. Frente a certos impactos, o aparelho de sonhar pode não dar conta da sua tarefa de representação, elaboração e preservação da atividade psíquica. No contexto da sessão, é a atualização destas situações que submete a escuta analítica às experiências mais intensas, inclusive na forma de sensações corporais. Tais experiências se caracterizam pelo predomínio de registros extraverbais de constituição do sentido que estão presentes nesta comunicação, e sua investigação se inscreve no campo do estudo das modalidades e da amplitude da regressão, tema de interesse para uma pesquisa dos fundamentos da prática psicanalítica atual.
Também para Pierre Fédida é cada vez maior a importância de integrar o corpo na reflexão psicanalítica em direções diferentes daquelas inicialmente indicadas pela histeria. Em suas palavras, "o aprofundamento psicanalítico da questão do corpo mostra o que é feito do corpo do analista no tratamento, isto é, revela como na prática psicanalítica e psicoterápica muitas coisas são impressionadas sobre o corpo do analista" (Fédida, 1999, p. 81). Referindo-se às dificuldades no atendimento de patologias graves, como os estados-limites, os transtornos narcísicos e os comportamentos aditivos, ele observa que tais situações dão testemunho da existência de processos regressivos que remetem a formações arcaicas da vida psíquica e a carências vitais. "No entanto", comenta, "geralmente nada se diz das condições nas quais o analista trabalha e se comunica com seu paciente" (Fédida, 2000, p. 4). Interessado em promover um retorno revitalizador sobre a noção de regressão, Fédida sublinha a importância da percepção endopsíquica e das transformações com as quais o analista opera em sua atividade interna, e de que este se dê conta do material psíquico de que se serve para escutar, construir e interpretar: "A materialidade deste material não é apenas uma produção do paciente, mas procede, no essencial, da capacidade alucinatória do analista, na forma hipnóide da sua atenção flutuante" (Fédida, 2000, p. 7).
Numa perspectiva que dá destaque aos processos criativos presentes no psiquismo e também converge para uma revalorização da figurabilidade, encontra-se a discussão desenvolvida por Cornelius Castoriadis, em um dos seus últimos trabalhos, sobre a antinomia que marca a obra de Freud quanto ao tema da imaginação. Na leitura crítica oferecida por este instigante pensador, destaca-se o paradoxo de que Freud, autor de uma obra na qual se poderia dizer que a imaginação tem um lugar central e constitutivo da psique, faz todo empenho em apresentar as produções psíquicas, em especial a fantasia e o sonho, como uma simples recombinação de coisas vividas e escutadas, de maneira a encobrir e minimizar a força criadora que lhes dá origem. Ao tratar do trabalho do sonho, Freud dá relevo especial, entre os processos primários, às operações de deslocamento e condensação, afirmando, ao mesmo tempo, que o sonho não pensa, não calcula, não julga, mas se limita a transformar. Para Castoriadis, esta é uma posição ambígua. Como ele assinala, tal transformação não é de uma coisa qualquer em outra coisa qualquer. Portanto, há no trabalho do sonho alguma forma de julgamento, de pensamento, assim como em qualquer atividade criativa seja ela a música, a escrita, ou qualquer outra , pois nenhuma obra surge somente da pura inspiração. Na mesma medida, a colocação em imagens em que consiste a consideração pela figurabilidade também está sujeita a alguma lógica própria, um trabalho criador, sem o qual o sonho não seria interpretável. A figurabilidade não é uma operação coadjuvante do sonho, mas uma de suas condições, e como questão em aberto é análoga à da delegação pela qual se constitui o representante da pulsão. O infigurável se torna figurável ou figurado de alguma maneira. No entender de Castoriadis, pelo trabalho criador e indeterminável da imaginação (Castoriadis, 1991/1999, pp. 264-265).
A criação corresponde "à obrigação e ao trabalho permanente da psique de dar figurabilidade ao que, por si só, não tem figura para a psique" (Castoriadis, 1991/1999, pp. 266-267). Avançando em sua proposição de conferir à imaginação o papel instituinte do humano e do social, Castoriadis indica uma direção ainda mais radical:
Devemos postular, "para trás" do inconsciente freudiano, ou "abaixo" dele (ou do Id) um não-consciente que é o corpo vivo, como corpo humano animado, em continuidade com a psique. (...) Há uma presença do corpo vivo a ele próprio, inextrincavelmente misturada com o que consideramos habitualmente como os "movimentos da alma" propriamente ditos. E há homogeneidade substantiva, flagrante, evidente e incompreensível entre a psique e o soma da pessoa singular (...)É também sob este ângulo que deveríamos considerar a idéia de uma imaginação sensorial e, mais geralmente, corporal (Castoriadis, 1991/1000, p. 273).
Uma imaginação corporal, uma figurabilidade que nasce no corpo em múltiplas sensações viscerais, cinestésicas, táteis, acústicas, visuais e que, no silêncio da sessão, movimenta o funcionamento psíquico do analista em sua atividade de construção de uma linguagem singular em cada análise. Como começar a desvelar um espaço tão íntimo?
O ator e o analista: uma aproximação possível
Não raro, ao procurar um ponto de partida para abordar uma questão, Freud recorria a outros campos da cultura com os quais tentava estabelecer contrapontos, analogias, paralelismos que lhe permitissem construir caminhos de pensamento até chegar ao que seria próprio da psicanálise. Muitas vezes a ciência e a literatura foram parceiras deste trabalho de construção da teoria. Em algumas oportunidades, foi na arte teatral que encontrou os recursos para refletir sobre certas problemáticas constitutivas do humano. Personagens do teatro, Édipo e Hamlet, em particular, foram tomados como modelos de conflitos fundamentais da vida psíquica. No, entanto, não se encontra na obra de Freud uma reflexão a respeito do trabalho do ator, da singularidade do seu lugar, nenhuma tentativa de análise sobre os processos que poderiam estar em jogo quando o ator constrói e desempenha um papel, no exercício do seu ofício. A natureza do trabalho do ator e o que nele se movimenta a partir do seu encontro com o texto que irá pôr em cena são questões que não parecem tê-lo instigado, ao contrário do que ocorreu em relação ao espectador e ao autor o escritor criativo, o poeta , sobre os quais algumas hipóteses foram elaboradas.
Os recursos do teatro como arte, seus meios de expressão, embora não investigados diretamente, estão presentes no pensamento de Freud, que deles se apropria como faz com elementos de outros campos, a física, a geologia para tecer comparações, construindo metáforas e adotando os termos que lhe parecem próprios para expressar seu pensamento e dar materialidade à teoria. Nos escritos de Freud, como observa Octave Mannoni, "pode-se dizer que, com muita freqüência, a vida psíquica é toda ela comparada a um teatro com seu palco, seus bastidores e seus personagens" (Mannoni, 1988/1992, p. 8). O exemplo mais imediato desta aproximação é, sem dúvida, a conhecida descrição do sonho em termos de uma outra cena.
As considerações de Mannoni contribuem para um exame mais atento da aproximação entre o teatro, o sonho e a situação analítica, aproximação mediada pela referência a um espaço, um dispositivo com seus elementos e transformações. O sonho, considerado por Freud como uma manifestação cifrada cuja interpretação desvela o desejo inconsciente, dá origem inicialmente ao modelo do aparelho psíquico que toma a forma de um instrumento óptico com suas operações e efeitos, e este se estende à própria sessão analítica. Porém, nesta concepção, apresentada no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, o analista figura como intérprete ou decifrador de um texto enigmático, um tradutor. Acompanhando as primeiras descobertas de Freud, num artigo em que examina o parentesco entre o sonho e a transferência, Mannoni nos lembra que, em uma primeira fase, à época dos Estudos sobre a histeria, a transferência foi entendida unicamente por meio do deslocamento e da repetição, como um obstáculo à recordação e ao trabalho da análise. O deslocamento, mecanismo essencial na compreensão do sonho, é o elemento comum aos dois fenômenos, e "a transferência (sobre o analista) na cura ainda é apenas um caso particular da transferência do desejo inconsciente sobre uma outra representação suscetível de se substituir a algum outro objeto" (Mannoni, 1969/1973, p. 160).
É com a análise de Dora, iniciada algum tempo depois da redação de A interpretação dos sonhos, que se impõe a Freud uma ampliação da compreensão da transferência e da sua relação com o sonho. O que se torna necessário admitir é que a transferência traz para o terreno do jogo da análise, ou seja, para a cena analítica, o que está representado e encoberto na cena do sonho: "Em todo caso", comenta Mannoni, "nada seria compreensível se não fosse preciso admitir que Dora chega com um roteiro já constituído; os papéis já estão escritos e prontos para ser distribuídos, o cenário instalado, com a porta por onde, se nada mudar, ela sairá" (Mannoni, 1969/1973, p. 162). O equívoco de Freud foi não ter reconhecido o papel que lhe havia sido designado. O acting out de Dora lhe ensinou que, além do deslocamento entre representações, há na análise um espaço para a ação no qual a transferência se manifesta como um script, e isso finalmente o leva, sublinha Mannoni, "a tratar a cena do sonho, o teatro do acting out e o `terreno do jogo' da transferência como projeções do mesmo espaço" (Mannoni, 1969/1973, p. 163). Já não basta que o analista se considere como um intérprete dos deslocamentos, um decifrador de enigmas. O percurso da noção de transferência indica-lhe uma outra posição, na qual ele está implicado no próprio desenrolar do roteiro que se atualiza na cena analítica, e na qual se põe em jogo o reconhecimento ou não de um papel, o que pode decidir, como Freud aprendeu, os rumos de uma análise.
De Dora até nossos dias, a clínica, na medida em que ampliou suas fronteiras, não cessou de se defrontar com o alcance desta implicação que ultrapassa em muito a concepção relativamente restrita na qual Freud pensava, de início, poder manter a prática analítica. Neste sentido, J.-B.Pontalis observa que, a par da extensão que acabou tomando a noção de contratransferência, da qual Freud pouco se ocupou, merece atenção a maneira como os analistas se referem hoje ao que sentem no atendimento de seus casos difíceis, com expressões como "paralisado'', "petrificado", "bombardeado", "indefeso", para nomear sensações de impotência e de falta de recursos experimentadas no próprio corpo. E esclarece:
Ocorre que, na dupla função que o constitui como analista intérprete e objeto-suporte da transferência a segunda vem ocupar todo o espaço, mas mudando radicalmente de sentido: o analista já não é exatamente um simples suporte, que permaneceria diferenciado de quem ele é em sua realidade, mas é efetivamente visado. Os efeitos são sentidos nele, geralmente após certo tempo, física e mentalmente, estando este "e" a mais, pois ele se sente tão paralisado nos movimentos do seu corpo quanto em seu "movimento" associativo (Pontalis, 1974/1977, p. 211).
Estar em cena como analista é viver, com freqüência, situações nas quais é intensa a pressão para deixar de sê-lo. É expor-se aos efeitos da transferência ou de além dela, vindos dos limites do analisável. Questões que colocam em jogo o exercício do ofício e cuja investigação talvez tenha a ganhar com o recurso àquele elemento do teatro em que Freud não se deteve: o trabalho do ator. Entre as duas situações, a do teatro e a da análise, qualquer aproximação tem necessariamente um limite, pois não se trata para o analista de atuar, pelo menos não no sentido de personificar física e intencionalmente um papel, passando à ação. Mas há também uma tensão, pois ele o recebe, até mais de um em cada análise, e isso o afeta, exige um trabalho de elaboração, talvez como cada novo personagem solicite do ator um preparo e uma construção antes de entrar em cena. Os destinos desta elaboração são diferentes para um e outro. Contudo, até certo ponto do caminho, talvez suas experiências sejam semelhantes. O ator empresta aos personagens suas emoções, e com elas seu corpo. Talvez, no que ele tem a dizer sobre sua prática e seu método, seja possível encontrar indicações que, tanto por afinidades quanto por contrastes, contribuam para construir uma compreensão da presença do corpo do analista em sua escuta.
Uma referência fundamental para qualquer tentativa de aproximação ao trabalho do ator, tal como o conhecemos hoje, é a obra de Constantin Stanislavski. O grande mestre do teatro fundou, juntamente com Vladimir Danchenco, em 1897, o Teatro de Arte de Moscou, companhia à qual dedicou toda a sua carreira, tendo sido seu diretor por quarenta anos. Atuou no palco até 1928, quando adoeceu gravemente. Recuperado, mas incapacitado para se movimentar em cena, continuou a dirigir, ensinar e escrever até sua morte, em 1938. Seu primeiro livro, A preparação do ator, foi publicado em 1936, nos Estados Unidos, antes de ser editado na própria Rússia. Foi, portanto, contemporâneo de Freud, e estas poucas indicações sobre sua vida, bem como a natureza e a importância da sua obra, ajudam a lançar alguma luz sobre a ausência de uma reflexão sobre o ator nas referências freudianas ao teatro. Antes de Stanislavski, o teatro tradicional, a não ser por raros atores mais intuitivos, caracterizava-se pela adaptação de recursos de oratória, por uma técnica que hoje seria classificada como convencional, declamatória e artificial. Foi a partir da ruptura por ele proposta que se tornou possível ao ator o uso de sua emoção e uma elaboração criativa na composição da personagem.
Stanislavski nunca pretendeu estabelecer teorias, pois considerava sua arte uma busca sempre ativa de novas formas, para a qual é necessária uma formação ampla do ator nos planos intelectual, espiritual, físico e emocional. Receoso de que seu pensamento fosse tomado como um conjunto de regras, hesitou durante muito tempo em dar-lhe forma escrita. Em sua obra mais importante, o mestre russo transmite sua experiência e dá a conhecer um método que permite ao ator moderno livrar-se de artificialismos e construir as características do seu personagem com independência e naturalidade. A imaginação, juntamente com o que Stanislavski designa como estado interior de criação, e a memória das emoções são alguns dos recursos de que o ator deve se valer em seu trabalho, recursos que são desenvolvidos ao longo da sua preparação caberia dizer formação e nos quais, naturalmente, o corpo está implicado. Explicando a jovens atores a importância da imaginação, ele diz:
Nossa arte requer que a natureza inteira do ator esteja envolvida, que ele se entregue ao papel, tanto de corpo quanto de espírito. Deve sentir o desafio à ação, tanto física quanto intelectualmente, porque a imaginação, carecendo de substância ou corpo, é capaz de afetar, por reflexo, a nossa natureza física, fazendo-a agir (Stanislavski, 1936/2002, p. 103).
Certamente não dispunham desta formação os atores que Freud viu nos palcos de Viena em sua juventude, o que talvez o tenha impedido de vê-los como artistas criativos, no mesmo sentido em que, já psicanalista, veio a considerar o poeta, o romancista ou o dramaturgo, capazes de explorar as suas próprias paixões humanas e dar a elas formas passíveis de serem compartilhadas. E, ainda que fosse este o caso, mesmo após seus revezes com Dora e a ampliação da noção de transferência seria muito pouco provável que, em relação ao trabalho do analista, Freud pudesse tomar o ator como um duplo, como chegou a se referir ao escritor, na carta dirigida ao poeta Arthur Schnitzler, em 14 de maio de 19223. Preocupado em inscrever a psicanálise no campo da ciência, ele relutava em admitir algum parentesco desta com a arte. Se o fez, cautelosamente, em relação à literatura, foi por admirar a sensibilidade de grandes escritores para observar e retratar a complexidade da alma humana e não por reconhecer a presença da criatividade e da imaginação no trabalho analítico, que definia como um método de investigação e tratamento. A afinidade que percebia entre o escritor e o psicanalista repousava sobre o reconhecimento das características literárias dos seus próprios escritos. Assim, para que possa ser pensada uma aproximação, ainda que exploratória, entre o trabalho do ator e o do analista, é necessário, transpondo a ambigüidade de Freud quanto às afinidades entre a psicanálise e a arte, considerar as transformações ocorridas tanto na concepção do trabalho do ator que se tornou efetivamente criativo e pessoal a partir da ruptura promovida por Stanislavski como do lado do analista, com o passar dos anos cada vez mais confrontado com as exigências da clínica além dos limites imaginados por seu criador.
A proposta é convidativa, porém ultrapassaria os limites deste artigo.
A título de indicação do que esta aproximação pode propiciar, vale adiantar que a leitura de A preparação do ator revela pontos de vista que, nascidos da experiência do teatro, são muitas vezes convergentes com os da psicanálise, desconhecida por Stanislavski. Para o diretor, o ator deve ter por objetivo utilizar sua técnica para fazer da peça uma realidade teatral, termo que evoca, no leitor analista, o estatuto da realidade na clínica e a concepção de realidade psíquica formulada por Freud. Sua concepção de imaginação é a de um processo em atividade permanente, tanto na vigília quanto no sono, semelhante às concepções freudianas sobre a atividade da fantasia no devaneio e no sonho. Ao criar a vida física de uma personagem, o ator, segundo a concepção de Stanislavski, cria também sua vida psíquica, uma vez que o elo entre o corpo e a alma é indivisível. A ação física é inerente a momentos emocionais intensos, e é através de ações e sentimentos tirados de sua vida real e transferidos ao personagem que o ator cria sua vida física e psíquica. A memória emocional do ator consiste na sua capacidade de evocar sentimentos já experimentados e é um elemento essencial do seu processo de criação. Ao utilizar suas emoções, o ator irá encontrar, entre suas lembranças pessoais, aquelas mais especiais, que lhe permitam expressar sentimentos análogos aos do seu papel. Assim, a qualidade do desempenho de um papel depende do repertório emocional que cada ator consegue encontrar em si mesmo, e que deve desenvolver através de um constante trabalho interior. Cada ator precisa realizar um trabalho de descoberta de suas características humanas, boas e más, mesmo quando estas não se manifestaram em sua vida, num processo que evoca o da análise do analista.
Como Stanislavski em relação ao teatro, Freud também hesitou em escrever e divulgar trabalhos sobre a técnica, vendo com ceticismo o valor que tais escritos poderiam ter para os jovens analistas. No seu entender, a enorme diversidade de constelações psíquicas fazia obstáculo à fixação de regras, sendo mais importante o conhecimento dos fundamentos da terapia psicanalítica. Strachey, na introdução aos escritos técnicos de 1911-1915, ressalta que Freud nunca deixou de insistir em que o domínio da técnica tinha como condição a experiência adquirida na clínica e, principalmente, na análise pessoal do próprio analista. Uma leitura da obra freudiana que busque rastrear o lugar do corpo no dispositivo analítico indica, desde o início, seu reconhecimento de que todos os processos anímicos, tanto os pensamentos como, e de modo muito especial, os afetos, são acompanhados por manifestações corporais (Freud, 1890/2001a, p. 118). Por observar que, enquanto escuta seus pacientes, seu corpo está sujeito a gestos e expressões involuntárias que acompanham seus processos inconscientes é que Freud decide ocultá-lo, colocando a poltrona à cabeceira do divã (Freud, 1913/2001d, p. 135). Inventa, assim, um dispositivo que visa tanto a evitar a contaminação da transferência pelas interpretações que possam ser dadas pelos pacientes aos sinais corporais observáveis no corpo do analista quanto a prover este último da reserva necessária ao trabalho interior pelo qual tais sinais possam encontrar seu lugar na análise. A posição da poltrona em relação ao divã, a retirada do analista do campo de visão do paciente, se justifica pela presença do corpo em sua escuta, em estreita relação com seus pensamentos inconscientes. Ao escrever seu artigo "Sobre a dinâmica da transferência", em 1912, Freud já tem em mente que, como o sonho, a transferência é da ordem de uma experiência presente, atualizada, alucinatória, e já não supõe que o analista possa se manter na posição de tradutor-intérprete, como lhe parecia inicialmente. Em torno dos fenômenos transferenciais, cria-se um campo no qual se polarizam a tendência a atuar e o trabalho de discernir, e é preciso reconhecer que aí o analista se depara com grandes dificuldades. No entanto, "não se deve esquecer que estas nos prestam o inestimável serviço de tornar atuais e manifestas as moções de amor escondidas e esquecidas dos pacientes, pois, em definitivo, nada pode ser vencido in absentia ou in effigie" (Freud, 1912/2001c, p. 105). Na cenografia da análise, o corpo do analista se oculta, mas tem sua parte de experiência, talvez tão intensa quanto a do ator no encontro com o seu papel.
Tanto para o ator quanto para o analista o corpo é parte de um processo de construção de sentidos. No caso do ator, a técnica inclui, a partir do estudo da peça, um uso intencional da imaginação e da memória pessoal, para despertar tanto as sensações como a emoção e suas manifestações corporais que irão fornecer consistência à vida física e às ações do seu personagem. Para o analista, por outro lado, a solidão obtida por meio de seu recolhimento é a condição de uma técnica que dispensa toda a intenção, e na qual a atenção flutua à deriva na escuta. Em lugar das circunstâncias criadas por um autor, que no caso do ator orientam a atenção e despertam a atividade imaginativa, é a fala do analisando que, inadvertidamente, toca e desperta a memória, a imaginação, os pensamentos inconscientes, as sensações e manifestações corporais do analista, e estas não se destinam a fundamentar uma ação física, mas à reconstituição da dimensão inconsciente presente nas palavras vindas do divã. Não é dado ao analista o tempo de conhecer previamente como um ator que estuda seu texto o roteiro transferencial que se apresentará na fala do paciente nem o lugar que nele lhe será designado. Porém, o dispositivo analítico é concebido por Freud de modo a permitir o espaço e o tempo de uma recepção reservada, cujo instrumento é o inconsciente e na qual o corpo está naturalmente implicado. O corpo do analista fornece seu espaço a uma cena psíquica, revelando, por vezes de maneira contundente, sua intensidade e natureza, os afetos que ela transporta. Mas o trabalho a ser efetuado pelo analista prossegue num palco interiorizado, afastando-se, neste aspecto, do trabalho do ator.
A arte do analista
"Com efeito, o instrumento anímico não é fácil de tocar", escreve Freud, preocupado em deixar claro, já em 1905, que a psicanálise requer de quem a pratica o conhecimento profundo dos seus fundamentos, para dar suporte a uma técnica que não se reduz à aplicação direta de alguns procedimentos (Freud, 1905/2001b, p. 251). Mas isso não é tudo, a julgar pelas referências à atividade do analista como a "arte da interpretação" (Freud, 1923/2001e, p. 235). Ainda que tendo no horizonte sua aspiração científica, Freud deixa aparecer, aqui e ali, por meio de sua linguagem metafórica que não se contenta em recorrer apenas a imagens emprestadas do campo da ciência indícios de uma força de atração que mantém por perto, mas a uma distância cautelosa, a arte e seus modos de produção. A imaginação, a fantasia e a especulação criativa são admitidas em certos momentos, sempre acompanhadas por argumentos que as inscrevem como recursos provisórios mas necessários para o avanço da investigação e da descoberta científica.
Aproximar o trabalho do ator e o do analista é uma tentativa que, talvez de um modo um tanto atrevido, não só procura tirar proveito desta "licença artística", uma certa flutuação que Freud introduz nas bordas da investigação psicanalítica, como também procura fazê-la trabalhar em benefício de uma elucidação do que pode estar nos bastidores da cuidadosa formulação dos princípios que sustentam a técnica. O que ali se encontra, o que permanece sombreado, semi-oculto no cenário da análise, é o analista em pessoa. A regra da abstinência orienta a sua conduta, diz respeito à sua atitude, mas não se aplica aos seus processos psíquicos. Ao contrário, ela interpõe um espaço/tempo para que estes processos possam ser empregados, justamente, como instrumento do ofício. A análise pessoal é o suporte essencial deste emprego, permitindo ao analista afinar o instrumento, regulá-lo para, na medida do possível, elaborar o que inevitavelmente o implica e discernir como isso o informa sobre o paciente e sobre a situação analítica. Estar à cabeceira de um divã é ir ao encontro do que a fala do paciente pode fazer ressoar nos recantos de si mesmo, é se deixar surpreender por movimentos inesperados do pensamento, e também do afeto e do pulsional não pensado, que fazem aparição no corpo.
A arte do analista põe em cena o seu próprio inconsciente e obtém sua matéria-prima das múltiplas dimensões da memória, dos afetos, dos traços de experiências de uma vida real. Compartilha, assim, das mesmas fontes que alimentam o "estado interior de criação", no qual, como ensina Stanislavski, germina o trabalho do ator. Daí, a meu ver, o interesse e o envolvimento que os ensinamentos do mestre do teatro podem despertar no analista que o lê. E também a inquietação que impõe a essa leitura um movimento oscilante e uma certa tensão entre o inevitável reconhecimento de semelhanças e a necessidade de demarcar diferenças , evocando a formulação de Freud pela qual as dificuldades do analista se colocam entre a tendência a atuar e o trabalho de discernir. Em proporções diferentes, esta polaridade está presente nos dois ofícios. Se a técnica, no trabalho do ator, se apropria da tendência a atuar e faz dela o meio de expressão necessário à vida física do papel, o ator encontra seus limites na direção que lhe é dada pelo autor. Sua liberdade de atuar encontra nas circunstâncias da peça tanto os elementos de criação quanto a fronteira que não pode transpor, pois não lhe é permitido mudar a trama, decidir com pessoa pelo personagem. Quanto ao analista, se o trabalho de discernir lhe propõe como condição a abstinência, seu recolhimento na poltrona não exclui a presença da imaginação e do afeto, bem como do corpo que os experimenta e fornece suas impressões tanto à atividade associativa, ao trabalho de sonho e de interpretação, quanto ao que o precede, à construção necessária de certas passagens de uma vida psíquica. Uma análise é uma obra aberta.
Freud admitia a presença da imaginação especulação criativa na construção da teoria, assim como reconhecia em seus escritos o parentesco com a narrativa literária e no escritor a sensibilidade compartilhada em relação à alma humana. Uma aproximação ao trabalho do ator, tal como é dado a conhecer por Stanislavski, talvez lhe parecesse hoje um recurso possível para investigar mais de perto a experiência do analista em trabalho. Como dois fios que ora se cruzam ora se afastam sem se amarrar, os dois ofícios têm pontos de contato mas mantêm entre si um intervalo, dado pelos diferentes destinos do corpo. Intervalo que, na medida do possível, cada analista é convocado a reconhecer e sustentar no interior da sua prática, sempre que a fala de um paciente o afeta e desperta sua tendência a atuar na reciprocidade ou na identificação, no equívoco de tomar-se como pessoa pelo personagem ausente a quem se destinam as demandas transferenciais ou ainda outras, mais arcaicas. A arte do analista reside em acolher a verdade do afeto reeditado na situação analítica sem sobrepor sua pessoa ao destinatário e, quase sempre, em acolher a dor sem nome do evento traumático. Sustentar o intervalo, fazendo do corpo o espaço de recepção e transposição das impressões para o palco do sonho. Fazer do corpo a matéria da figurabilidade.
Referências
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Endereço para correspondência
Eliana Borges Pereira Leite
Av. São João, 323/12
12242-000 S. José dos Campos, SP
Fones: (12) 3941-2530/3921-9825
E-mail: elianabpl@directnet.com.br
Recebido em: 30/08/06
Aceito em: 02/10/06
* Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Doutora em Psicologia Clínica, PUC-SP.
1 Este trabalho é baseado na tese de doutorado A escuta e o corpo do analista, desenvolvida na PUC-SP, sob orientação do Prof. Dr. Renato Mezan e com apoio do CNPq, e defendida em dezembro de 2005. Agradeço à Dra. Leda Codeço Barone o incentivo para a escrita deste artigo.
2 Em A figura na clínica psicanalítica (2001) sustentei a hipótese de que a psicanálise é um método de construção e interpretação figural, tomando como referência a noção literária de figura, tal como é estudada pelo romanista Erich Auerbach, e buscando uma aproximação desta noção literária com a figurabilidade que opera no sonho e na sessão analítica.
3 Esta carta não se encontra nas Obras Completas de Freud. Noemi Moritz Kon, em seu livro, Freud e seu duplo (S. Paulo: EDUSP/FAPESP, 1996, pp.128-129) , emprega a versão transcrita por Jones em A vida e a obra de Sigmund Freud (Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. 3, pp.430-431), e relaciona outras obras em que esta carta é citada parcial ou integralmente.