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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. v.40 n.73 São Paulo dez. 2007
ENTREVISTA
Entrevista com Fabio Herrmann* em 2000
Interview with Fabio Herrmann (2000)
Entrevista con Fabio Herrmann en el 2000
No volume 33 de 2000, foi tema do Jornal de Psicanálise “Memórias de formação do analista”. Fabio concedeu, para esse número, uma entrevista que a equipe editorial resolveu agora republicar na íntegra. Ela responde, de certa forma, à constante queixa dos leitores de sua obra de que Fabio não faz citações nem explicita de que fontes, psicanalíticas ou não, bebeu. Decidiu-se, também, introduzir uma pequena nota sobre sua trajetória autoral e psicanalítica.
Fabio desfrutou de uma vida breve, mas muito feliz e produtiva. Nasceu em São Paulo em 11 de julho de 1944 e aí viveu sessenta e um anos, quase sessenta e dois. Faleceu a 8 de julho de 2006. Viajou muito, escreveu muito, era um gourmet e um bom conhecedor de vinhos. Apesar do sofrimento físico, durante todo o período de sua doença esteve produtivo e em paz. Publicou mais de dez livros, contando as edições revistas e ampliadas de alguns, participou, com artigos, na publicação de outros trinta, além de ter mais de cem artigos publicados em jornais e periódicos científicos.
Ingressou aos dezoito anos na Faculdade de Medicina da USP. Tornou-se psiquiatra, para poder tornar-se psicanalista, viveu Psicanálise por mais de quarenta anos. Estudou-a, praticou-a, pensou-a. Cursando o primeiro ano da faculdade, por intermédio de sua colega Betty Milan, teve a oportunidade de conhecer Regina Schnaiderman e Isaias Melsohn, com quem prosseguiu em seminários seus estudos de Freud, cuja leitura já iniciara isoladamente.
Médico recém-formado e já com alguns anos de lida psicanalítica, mesmo antes de iniciar sua formação no Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), começa a construir um pensamento psicanalítico original. Torna-se um autor da Psicanálise Brasileira, e, militando na burocracia institucional do movimento psicanalítico internacional nas décadas de 80 e 90, institui a Psicanálise Brasileira como sua bandeira política. Nesse período, Fabio ocupou a presidência da SBPSP, da Federação Psicanalítica da América Latina (FEPAL) e diversos postos na hierarquia científica da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). A luta pela Psicanálise Brasileira foi durante sua vida uma luta importante, mas solitária. Apesar de abrir frentes no movimento psicanalítico internacional, não contou com apoio dos colegas conterrâneos. No entanto, a Teoria dos Campos — como passou a ser conhecido seu pensamento — difundiu-se nos meios intelectuais brasileiro e latino-americano e vem agregando produção escrita de colegas, principalmente na forma de teses e dissertações acadêmicas. A par do movimento psicanalítico da IPA, Fabio batalhou em outras frentes. Fundador do curso de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae em 1976, desde 1984 exerceu a função de professor do programa de estudos pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP e em 1999 criou e presidiu até sua morte o Centro de Estudos da Teoria dos Campos (CETEC).
No final dos anos 90 abandona as atividades burocráticas do movimento psicanalítico internacional, dedicando-se à produção intelectual, à clínica e às atividades de ensino e pesquisa em Psicanálise.
Leda Herrmann
Dezembro de 2007
Nossa conversa começou com Fabio contando de um trabalho que vem desenvolvendo com um grupo de enfermagem do Hospital das Clínicas da FMUSP, que atende pacientes terminais transplantados. Em suas palavras: “Uma espécie de treinamento, cujo objeto é o próprio grupo. Tentamos mapear o campo que organiza as relações dentro da clínica, usando o método psicanalítico. Descobrimos, por exemplo, que o discurso grupal mimetiza a linguagem popular do transplante. É como se transitasse de um plano a outro, do organizacional para o familiar, e, de golpe, surgem as imagens e as expressões do transplante. Falando de como ingressa uma nova enfermeira na equipe, dizem que foi adotada, que recebe uma mãe postiça, que se sente rejeitada, mas que geralmente pega… o jeito. É interessante como uma microcultura se dá a ver por ruptura de campo. No fundo, todos os que participam da experiência, mesmo os observadores, sentem-se capturados pela função terapêutica do método, acabam sentindo-se em atmosfera analítica. É uma excelente introdução à Teoria dos Campos”.
Jornal: Você falou da Psicanálise, da Teoria dos Campos, fora do contexto de consultório, questionando o aprisionamento da Psicanálise à prática de consultório. Poderíamos começar falando disso, que é uma questão pouco pensada na Psicanálise.
Fabio Herrmann: Numa palestra recente, pediram-me para classificar uma e outra, eu preferi o termo psicanálise horizontal, ou seja, com o paciente deitado, versus psicanálise vertical, com pessoas sentadas, de pé, correndo, ou com grupos. Sempre me impressionou que a Psicanálise se tivesse reduzido a uma ciência da psicoterapia psicanalítica, ou seja, que a Psicanálise se tivesse reduzido a um estudo teórico, ou uma ciência da terapia. De certa forma, eu penso que comecei na Psicanálise usando a psicanálise vertical, não horizontal, não estritamente de consultório, e nunca deixei de fazer isso, explorar as possibilidades do método psicanalítico.
Jornal: Em que momento você começou a pensar essas idéias — já que nosso foco é acompanhar sua trajetória —, como elas começaram a surgir na sua vida, na sua formação?
Fabio: Quando comecei a aprender Psicanálise não podia exercê-la como psicanalista, porque eu estava no primeiro ano da faculdade de medicina.
Jornal: E foi na faculdade que você teve contato com a Psicanálise?
Fabio: Não, foi um pouco antes. Na verdade, eu entrei na faculdade para ser psicanalista. É uma coisa meio cômica, olhando retrospectivamente, porque eu não sabia o que era Psicanálise, eu fazia científico engenharia, meu irmão é engenheiro. Eu gostava muito de ciência — ainda gosto, de modo que cada vez menos eu tenho uma idéia clara do que sejam os limites da ciência. Por outro lado, eu gostava de literatura, gostava de escrever, gostava muito do contato com gente, de teatro, e era apaixonado por filosofia. Agora, meus pais me diziam que com filosofia eu ia acabar mal, não ia ter profissão. Eu comecei a puxar desse quadrado algumas linhas — filosofia, ciência, contato humano, literatura —, e acabou se formando uma pirâmide que foi dar em algo como a Psicanálise. Eu não sabia bem, psicanálise, psicoterapia. O nome psicanálise parecia reunir alguma coisa que me permitiria ter uma profissão em que eu tivesse contato com gente, que pudesse ajudar pessoas, que fosse também uma ciência, que fosse ligada à filosofia e que, evidentemente, dava oportunidade de fazer uma espécie de literatura prática — não que eu quisesse me tornar um escritor, mas a coisa que eu mais fazia era escrever. Pareceu-me como se fosse uma disciplina da literatura prática.
Jornal: O nome psicanálise vinha do teu contato com Freud, você já o tinha lido nesse momento?
Fabio: Muito pouquinho. Não sei dizer que idéia eu fazia na época, mas certamente era uma idéia profundamente heterodoxa da Psicanálise — um conhecimento que era também uma prática clínica e que servia para revelar o que estava escondido, o sentido das coisas, ou da cultura, ou das pessoas. Eu tinha uma idéia muito vaga, mais até o nome do que o objeto. Tanto que eu não sabia bem o que fazer, medicina ou psicologia, aí acabei consultando alguns profissionais e a opinião era unânime pela medicina, a psicologia não estava ainda regulamentada como profissão. Quando eu entrei na faculdade, na Pinheiros — com uma dose considerável de sorte porque o exame mais difícil que houve foi o de física e eu tinha feito o científico engenharia —, meu irmão me deu de presente a obra do Freud em dois volumes, o terceiro ainda não existia naquele tempo. Eu já entrei para ser psicanalista — só faltava descobrir o que era Psicanálise.
Comecei a ler Psicanálise e o que rapidamente descobri é que, se não de medicina, pelo menos de anatomia, que era a primeira cadeira do curso, eu não gostava. Dava um jeito de escapar das aulas de anatomia e ia estudar na biblioteca da faculdade, com o meu Freud debaixo do braço. Numa dessas vezes, abri o livro nos “Estudos sobre histeria” e vi que, ao meu lado, estava sentada uma colega de classe fazendo exatamente a mesma coisa — era a Betty Milan. Começamos a estudar juntos por um tempo. Fugíamos da aula e, até depois da aula, ficávamos estudando, e não chegávamos, claro, a parte alguma, porque não entendíamos o que Freud estava querendo dizer com aquilo. Um dia, Betty me disse: “Olha, tenho uma amiga mais velha que sabe o que é isso, disse-me que quer conhecer você e que ela nos ensina”. E fomos estudar com Regina Schnaiderman. Ela tinha passado da química para a psicologia e estava terminando o curso de psicologia. Para mim era uma idosa senhora de quarenta e dois anos, e eu, um pirralho de dezoito. Na verdade, acho que ela era mais velha que a minha mãe, ou tinha a mesma idade. Parecia-me fantástico que alguém me obrigasse a tratá-lo de você logo da primeira vez. Aquele jeito todo acolhedor, e ao mesmo tempo extravagante da Regina. E, de fato, ela conhecia já um pouco da Psicanálise, aprendia com o Isaias Melsohn. A Betty começou a fazer análise com o Isaias, e com a Regina tínhamos seminários, no começo acho que umas duas vezes por semana, depois três, depois eu não sei, acho que tínhamos seminários quase todos os dias. Ela tinha uma disponibilidade enorme, atendia poucos pacientes, e nós, é claro, não tínhamos paciente algum, não tínhamos condição de clinicar, estávamos passando do primeiro para o segundo ano de faculdade, nessa altura. Começamos a estudar tudo o que nos caía nas mãos, Freud, Melanie Klein, Merleau-Ponty, Sartre, fenomenologia da percepção, e a Regina coordenando.
Jornal: Quem fazia parte do grupo?
Fabio: Só os três, Regina, Betty e eu. Regina precisava estudar mesmo, e nós mais do que ela. Depois, juntaram-se outras pessoas e ficou um grupo grande. Era o único grupo alternativo em relação à Sociedade de Psicanálise. Claro que o grupo funcionava na casa da Regina.
Jornal: Quanto tempo durou esse estudo?
Fabio: Foi do primeiro ano da faculdade até alguns anos depois de formado.
Jornal: Em que momento você procurou a Sociedade?
Fabio: Nós procuramos a Sociedade, a Betty e eu, em 67, um ano antes de nos formarmos. Soubemos, então, que como estudantes ainda não poderíamos nos candidatar à Sociedade. Aí, voltamos a mandar carta quando nos formamos, em fins de 68. A Betty foi aceita antes, me parecia que era porque fazia análise com o Isaias. Talvez nem fosse, porque mais tarde, quando fui verificar, perguntar para a Adele sobre a resposta ao meu pedido que não chegava, ela contou que a minha carta tinha caído para trás da gaveta do arquivo, e ficou lá quase um ano.
Terminada a faculdade, fui fazer um curso de psiquiatria com o Professor Aníbal Silveira. A essa altura, eu já tinha supervisão com o Isaías, já atendia pacientes — comecei a atender pacientes no segundo ano de faculdade
Jornal: Dentro do hospital?
Fabio: Na verdade, no Sedes, na antiga clínica do Sedes Sapientiae. Há algo importante para dizer. Existem duas mulheres, na verdade, no começo dessa história. Uma que me ensinou Psicanálise, minha primeira professora de Psicanálise, a Regina, e a outra, que me jogou na vida profissional, a Madre Cristina, de um jeito um pouco... bem, a Madre Cristina nunca foi muito delicada. Havia um curso no Sedes, Extensão em Psiquiatria Dinâmica, um nome assim, dado por um grupo grande de pessoas, o Bernardo Blay, o pessoal da Sociedade, o Roberto Azevedo. Quando eu estava no fim do segundo ano de faculdade, comecei a freqüentar esse curso — só com dois anos de curso aceitavam alunos de graduação. E, então, a Madre Cristina perguntou-me: “Você tem uma roupa branca?”. Eu disse que não. “Você tem avental, pelo menos?” Eu respondi: “Avental, não, mas tenho jaleco”. No seu jeito decidido disse-me para ir vestido com ele que iria atender uma pessoa, um paciente. “Mas, o que eu faço?”, perguntei. “Depois te explico, você faz e depois te explico”, a madre respondeu. Além desse curso e do grupo da Regina, freqüentei também nessa época a clínica do Galdêncio, onde estavam o Sapienza, o Manuel e outros.
Jornal: E a passagem pela psiquiatria?
Fabio: Ela foi curiosa. Na verdade, eu nunca passei mais profundamente pela psiquiatria. O atendimento no Sedes era atendimento em psicoterapia, claro que, se tivesse que medicar, não poderia, não era médico ainda. Foi cômico, eu estava com o jaleco branco e a Madre Cristina disse para uma moça que estava sentada: “Esse é o doutor que vai te atender”, e eu quase olhei para trás, porque nunca ninguém tinha me chamado de doutor na vida. E ficou uma situação embaraçosa, era uma moça mais velha do que eu, terceiranista do curso de psicologia. Por sorte, ela tinha um feitio um pouco mais obsessivo, o que ajudou a me colocar no lugar. Lembro que comecei a entrevista dizendo: “A senhora veio me procurar por quê?”. Devo confessar que uma vez disse isso, para meu eterno opróbrio —ora, ela não era senhora, eu não era senhor e ela não tinha vindo me procurar, coisa nenhuma. Mas a paciente fez seu papel direitinho e disse: “Porque eu tenho uns problemas de timidez” — que é o que todo mundo fala, pelo menos numa situação intimidante. Quase que lhe disse: “Eu também, pelo menos agora”. Mas, imagine, com dezenove anos atender assim uma pessoa, fica-se completamente sem saber o que fazer.
Voltando à sua pergunta, psiquiatria, eu nunca pratiquei muito. Quando estava na faculdade, a par dessas coisas de psicanálise que estudava feito doido, eu, é claro, freqüentava a clínica de psiquiatria e, no sexto ano, como não podia fazer psiquiatria porque o internato não permitia, só permitia fazer uma cadeira básica, então fiz neurofisiologia, um pouco inspirado no exemplo do mestre Freud, só que neurofisiologia de outro tipo, experimental.
Agora, realmente, quando se fala de formação, a minha história é muito esquisita, porque a formação mesma, o estudo de psicanálise, eu fiz nesse tempo, até 67, 68, quando me formei na faculdade. Eu entrei para o Instituto creio que em 70, ou 71.
Jornal: Em “Reflexões de menoridade”, artigo que o Jornal republicou em 95, vinte e cinco anos depois da primeira publicação, você comenta que já tinha escrito “Campo e relação” em 69. Como foi a escrita desse texto?
Fabio: Foi uma situação que cada vez mais se torna mais freqüente nos consultórios paulistanos. Quando eu estava no internato, estava interessado em ter um consultório meu, porque eu já atendia pacientes em clínica privada, mais ou menos de graça, primeiro no consultório da Regina, depois no da Betty, que acabara de montar um consultório para trabalhar. Eram outros tempos, era possível montar um consultório que os pacientes apareciam, e eu já tinha a essa altura uns cinco anos de alguma prática. Na penúltima clínica que estava passando no internato, estava na UTI, comecei a negociar o aluguel de um consultório. A Leda um dia telefonou-me no plantão e disse: “O homem concordou”. O proprietário havia decidido me alugar o conjunto por um preço bem camarada. Então, nós montamos um consultório com muita imaginação e pouco dinheiro. Foi meu primeiro consultório.
Terminada a faculdade, decidi não fazer residência em psiquiatria e sim fazer, por conselho do Isaias, um curso de psiquiatria com Aníbal Silveira, para conhecer Kleist, a psiquiatria alemã. Nessa época, eu tinha muito tempo, tinha poucos pacientes, que recebia da Regina e de outros colegas. Tinha uma quantidade imensa de horas livres, o que parece que vai se tornando cada vez mais freqüente nos consultórios paulistanos. Decidi aproveitar o tempo para escrever. Havia tido uma formação teórica, até um pouco exagerada com respeito à formação clínica, e isso ajudou. Normalmente espera-se que uma fundamente a outra — bom, se tivesse começado aos trinta anos, e não aos dezoito, claro que ia fazer uma formação mais integrada. Uma das coisas interessantes é que nós recebíamos as apostilas de todos os cursos do Instituto, via Isaias, é claro. Fizemos, através dessas apostilas, o curso teórico inteiro do Instituto, e as supervisões fazia com Isaias. Com essa formação quase exclusivamente teórica, com uma prática clínica meio descompassada, já tendo estudado no grupo com a Regina (que se ampliara com a chegada de Marilene Carone, Marilsa Tafarel, Miriam Schnaiderman e alguns de seus colegas de faculdade de psicologia) Freud, Melanie Klein, Lacan, Bion, os textos da ego psychology, decidi escrever para mim mesmo um texto. Queria me pôr em ordem, e não a essas diferentes linhas de pensamentos. Já havia percebido que elas eram literalmente incomensuráveis, mas, também, que se podia tentar ver o que havia por trás de todas, e comecei a fazer uma operação de desbaste dessa babel lingüística e dessa selva conceitual. Eu não tentei achar uma trilha propriamente dentro do mato, mas ver em que solo tudo isso cresce.
Jornal: A necessidade de fazer isso aconteceu antes de você se ter engajado na formação da Sociedade?
Fabio: Uns dois anos antes.
Jornal: Porque o texto é anterior à sua entrada. Não é mesmo?
Fabio: Bem anterior. Aí, comecei a pensar que as práticas diversas eram muito mais parecidas do que diferentes. Via que tinham um efeito comum e que devia haver uma característica comum. Pensando nos diálogos que se entretinham nas salas de analistas de correntes diversas, percebia que alguma coisa devia haver, uma causa comum, para produzir um efeito comum. E pensei: “Deve ter um método operando aqui, um método no sentido próprio do termo, como forma de saber e de operação de conhecimento, não como conjunto de técnicas. Aqui deve haver um método funcionando que não é visível nos diferentes textos teóricos”. E comecei a dar tratos à bola para ver o que podia ser esse método.
Jornal: Foi uma necessidade lógica sua que o levou a procurar pelo método que dirigia o trabalho psicanalítico, a investigação psicanalítica, é isso?
Fabio: Me parecia que era muito complicado esse mundo que me ofereciam, devia ter alguma coisa mais simples, no sentido filosófico do termo, uma substância simples, no sentido químico do termo, por trás de todas essas complicações. Não era possível que precisasse saber tudo aquilo que cada um propunha para conversar com uma pessoa e produzir esse curioso efeito que se conhece como diálogo analítico, e que não pode ser creditado às intenções dos parceiros da análise. Alguma coisa devia estar funcionando que ninguém contava, não por maldade, mas porque provavelmente se fazia sem perceber o que havia no fundo. Era, então, uma necessidade lógica de simplicidade. Parecia-me que devia haver alguma coisa simples, clara, mais unificada.
Jornal: Você já tinha uma certa formação científica? Porque a ciência pede pelo simples mesmo, por um princípio único, inequívoco.
Fabio: Alguma. Primeiro, eu tinha formação em medicina, naturalmente, mas a medicina não reflete muito sobre as suas bases gerais. Mas eu lia o que me caía nas mãos, do positivismo lógico até a lógica formal — lembro ter perdido horas e horas resolvendo problemas de lógica elementar. Ao mesmo tempo estudava filosofia, um pouco influenciado pelo Isaias e pela Regina, que tinham tido contato com Anatol Rosenfeld. Para mim não era possível que aquele emaranhado todo fosse o tronco da árvore, devia ser no máximo a guirlanda, ou melhor, uma parte de flores e uma parte de parasitas, que nem eram da árvore. Queria saber onde estava o tronco, pelo menos.
Foi aí que comecei a pensar que se há uma coisa bem conhecida, que é a relação, devia haver outra que fica por baixo e que devia ser a expressão geral disso que nós chamamos, com Freud, de inconsciente. Fui procurar essa coisa que, depois, resolvi não chamar de inconsciente, para evitar confusão. Resolvi chamar de campo.
Como eu tinha muito tempo — é preciso pensar que não se trata de genialidade mas de tempo ocioso —, comecei a pesquisar na psicanálise vertical, estudar temas para saber qual era o seu campo. Estudei os tabus alimentares através do livro de Josué de Castro — não fiz pesquisa de campo, não tinha condição para isso. Fui fazendo análise dos tabus descritos para ver o que havia de comum a essas diferentes relações de proibição, do tipo “laranja de manhã é ouro, de tarde é prata e de noite mata”: laranja é fria, o frio da noite, frio com frio mata; frio/calor é muito bom, frio com mais ou menos..., e começava a fazer desmontagens. Depois, descobri que precisava fazer essa operação por comparação e fui estudar superstições, o campo sorte/azar. Também superstições descritas em livros. Nessa altura, além de mim estava a Leda e supervisionandos dela em serviço social, que se reuniam com a gente para estudar livros de superstições, para fazer análise de superstições, para examinar uma em relação com a outra. A mesma coisa fiz com alguns apólogos bíblicos. Quando fiquei com um pouquinho mais de confiança, decidi estudar, interpretar contos de fadas fazendo a mesma operação em larga escala, usando o método dos contos de fadas.
Jornal: Você disse que, desde muito cedo, quis saber qual era o tronco. Você poderia talvez ter dito que o tronco é Freud e se restringir — se bem que também não seria uma restrição — à teoria e à linguagem freudianas. Você foi em busca de plantar algo. Esse tronco freudiano não lhe foi suficiente, porque você até criou uma outra linguagem — falou de campo ao invés de falar de inconsciente.
Fabio: Poderia, é claro, e não que eu tivesse alguma dúvida disso. Mas acontece que todas as outras correntes também consideravam Freud como tronco. Ora, se Freud é tronco de todas as correntes, de todos os galhos, cada macaco no seu galho e cada galho define o tronco, não é o mesmo Freud. Era perfeitamente claro na época que, quando lia alguma coisa de Lacan, o Freud de que ele falava não era o mesmo Freud de que a Melanie Klein falava, e, quando lia os textos americanos, era um outro Freud, ainda. Então, que tronco eu ia escolher? O Freud de Klein, de Lacan, de Anna Freud. Este seria o mais confiável até, pelo menos era a filha. Mas nem por isso: a Regina nos mostrava que a herança de Freud não passava por Anna Freud. Mesmo quando lemos com ela O ego e os mecanismos de defesa, nós percebemos que aquilo era simplesmente a continuação de Inibição, sintoma e angústia.
Então, se todo mundo, partindo de Freud, vai chegar a coisas as mais diversas, Freud pode ser um tronco mas, nesse caso, qual é a raiz desse tronco? Agora, por outro lado, é também preciso pensar que eu não era um erudito em Freud, nunca fui. O meu interesse era tomar a Psicanálise como um fenômeno do nosso mundo, e examiná-la como qualquer cientista examina um fenômeno, isto é, fazer com a Psicanálise o que Freud fez com o ser humano.
Jornal: No texto “Reflexões de menoridade”, você explicita o caráter do método da Psicanálise, esse caráter que é distinto do método das ciências naturais, das ciências que nós conhecemos, e que é um método que implica o comprometimento do investigador com a situação que está sendo investigada. A partir daí, já se teria um distanciamento seu de qualquer posicionamento de cientista nos padrões clássicos. Você abraça a Psicanálise a partir dessa posição, que tem a ver, talvez, com a situação clínica mesma. Mesmo que você estivesse pesquisando essas situações que você mencionou antes, o quanto você estaria formado a partir da posição transferencial? Especificando mais a pergunta: o analista ou investigador em Psicanálise como aquele que se permite uma apreensão de uma situação humana onde ele também é parte do campo, e desprender-se desse campo é poder fazer essa ruptura, que se abre para algum tipo de conhecimento novo? Em que momento isso fica mais bem formado, a partir de que experiências, talvez da sua própria análise, da leitura de Freud? Ou vem de outras fontes essa clareza?
Fabio: Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, nessa época, era muito popular a idéia de que toda observação sempre altera o fenômeno. Essa é daquelas frases feitas que gostamos de repetir. Porém, parecia-me que o grau de participação do pesquisador no fenômeno não tinha nada a ver com a Psicanálise, usávamos os mesmos termos, estava na moda usar na Psicanálise esses termos para nos dizer cientistas, mas uma coisa não tinha nada a ver com a outra. A Psicanálise não tem nada a ver com isso, ao contrário, é uma situação que acontece, artificialmente, entre duas pessoas, é diálogo vivo, não existe um fenômeno a ser observado. É algo muito mais parecido com um momento da literatura, ou do teatro, do que com a observação de um fenômeno físico, ou até de uma situação médica, por um fisiologista.
O que me parecia necessário nessa época, no período em que entrei na Sociedade, era tentar ver em que sentido a Psicanálise era ciência, e não uma mera prática clínica, respeitável de qualquer modo, mas mera prática clínica. Se fosse uma mera prática clínica, não precisava ter toda essa literatura e teoria, seria um exagero. Havendo a ambição de ser uma ciência, era evidente para mim que tanto a nossa ética, como a nossa epistemologia, têm de ser inteiramente diferentes do positivismo, positivismo generalizado que existia, e ainda existe, na pesquisa, que fala de erro humano, de desvio devido a erro humano. A minha questão era um pouco com os behavioristas daquele tempo, que exigiam uma espécie de limpeza do campo — está certo, para os ratos. Com alguém com quem estou conversando, que limpeza há? Que sentido tem isso? A nossa ética, a nossa formação e a nossa maneira de pensar cientificamente tinham de ser próximas da literatura, por exemplo, do conhecimento que há na literatura, não do conhecimento que há na física teórica. Até aí, não é alguma coisa que eu tivesse propriamente aprendido, mas era algo absolutamente evidente para mim. A questão é como poderia, não obstante, vir daí a se constituir uma ciência, uma ciência respeitável, digamos.
Jornal: É uma questão que foi evoluindo e está no seu último livro, A psique e o eu, inclusive.
Fabio: É ainda uma questão para mim, mas estou achando que podemos constituir essa ciência.
Jornal: E quanto você acha que avançou nessa questão, desde o começo?
Fabio: Acho que tive várias mudanças de posição. Eu sempre achei que a Psicanálise devia ser uma ciência. No começo, achava que poderíamos redefinir o campo das ciências de forma que coubéssemos nela — que a Psicanálise tinha pulso suficiente para redefinir a própria epistemologia na sua medida. Porque a epistemologia vigente é fundamentalmente fisicalista e tecnológica, e me parecia que nós tínhamos suficiente força para poder instaurar dentro da Psicanálise um novo diálogo sobre o saber entre os homens e modificar a epistemologia de modo que a Psicanálise nela coubesse — seria alargar o campo da epistemologia.
Depois, passei por uma fase de tentar ser extremamente criterioso dentro da Psicanálise e fazer o crivo dos conceitos psicanalíticos, tentando eliminar aqueles que me pareciam redundantes, tautológicos — foi a fase de peneira, um tamisar conceitual da Psicanálise, para tentar descobrir em que sentido, cientificamente falando, faziam sentido os conceitos psicanalíticos.
Depois, por um tempo, considerei não ser a questão tão importante assim. Lembro-me de discussões antigas com o Bento Prado, naqueles tempos dos encontros de epistemologia e lógica, na UNICAMP, em que ele dizia não haver nada de mal em não ser ciência, que devíamos nos orgulhar disso, pois não é tão importante ser ciência. Dava-lhe razão; não obstante, afirmava ter a Psicanálise a vocação de constituir uma ciência.
Deixei de lado, por muitos anos, essa questão da cientificidade da Psicanálise. Mas, mais ultimamente, nos últimos cinco, seis anos, comecei a pensar que em cada um desses três períodos há um pouco de verdade. É claro que há conceitos psicanalíticos que não são conceitos, são opiniões de pessoas, opiniões bem fundadas na experiência clínica, mas opiniões, não conceitos. Mas, mesmo com conceitos confusos, pode-se ter ciência, mesmo com meras noções, desde que se tenha uma clareza perfeita do método que se está seguindo, desde que se tenha um sistema de problematizar os conceitos, não só sua formulação pura, ou seja, um sistema que nos permita considerar o que os conceitos valem, o que produzem.
E, nesse último livro, o que eu proponho é uma coisa ainda mais simples. De um lado, a Psicanálise pode caminhar para o que muitas vezes chamei de horizonte da sua vocação, constituir uma ciência geral da psique. De outro, nesse processo, se tiver força para isso, ela vai, necessariamente, modificar o campo do que se conhece como ciência, de forma que ela mesma construa a cidade da qual possa ser cidadã. Essa era a minha primeira idéia. Ela voltou com a diferença de que, voltando trinta anos depois, já não tenho esperança de fazer isso em vida, de que alguém o faça no meu tempo de vida, mas que no futuro isso possa acontecer, que a Psicanálise abra esse espaço constituindo uma forma de ser ciência, e que influa mais, que aproxime a ciência do homem, do cotidiano, da experiência comum.
Não se esqueçam de que eu passei pelas angústias de ameaça de guerra nuclear: havia sempre aquela idéia de que o mundo ia acabar por causa da ciência, por causa de uma ciência que ignora seu fundamento na humanidade, que considera o homem uma espécie de estorvo.
Jornal: Queria retomar a questão que você apontou, da proximidade entre Psicanálise e literatura. O texto “Reflexões de menoridade”, que você escreveu no final de sua formação — é seu primeiro artigo publicado —, já mostra um analista pleno, “de maior”, não “de menor”, no sentido de alguém que tem uma concepção clara da especificidade da Psicanálise. Já é o texto de um excelente escritor com um trabalho clínico bastante interessante, coerente com aquilo que está propondo — a própria noção de verdades contingentes que têm características muito peculiares. Intriga, então, o termo “menoridade”: por que “Reflexões de menoridade”? Acho que é uma alusão irônica à coisa do candidato ser infantilizado — você fazia uma crítica no final do texto, referindo-se ao candidato analista, que já é analista, ser tratado como menor. Mas ocorreu-me outra associação, com o campo da literatura, com uma expressão de Kafka que está em seus Diários, a de uma literatura menor — Kafka refere-se assim à literatura judaica que circula nas aldeias, nos povoados, uma literatura feita pelo povo, por homens e mulheres dos mais diversos ofícios que escrevem em jornaizinhos pequenos contos, anedotas, numa circulação pequena, barata. Kafka lista uma série de vantagens dessa literatura, em relação à literatura feita por grandes talentos. Ele diz que essa não é uma literatura frente à qual uma maioria deveria se silenciar, é uma literatura que está colada à história do povo, e que funciona como uma espécie de diário dos agrupamentos humanos, permite a circulação das idéias, etc. Depois, Deleuze e Guattari retomam esse termo, escrevendo um livro chamado Kafka: por uma literatura menor, no qual exprimem uma concepção política de uma literatura que deveria ser feita pelas minorias, e que dá voz às diferentes minorias. O seu texto “Reflexões de menoridade” pode ser lido sob essa perspectiva, a de um analista jovem que está propondo uma reflexão pessoal. Não só isso, em diversos momentos do texto você refere ter convidado colegas para um debate, para uma circulação de idéias sobre a formação, e ter se frustrado pois eles não aceitaram o convite. Também no texto você já propõe, através da noção de verdade contingente, essa produção de teoria que se daria em pequena escala, no campo de cada um, na relação de cada um com seu paciente. Acho que a proposta daquele momento manteve-se, permanece como sua proposta de formador de psicanalistas. E, até no comentário que atualiza o texto para sua republicação, você diz que o grande problema do nosso Instituto é a falta de produção, uma produção criativa como resultado da formação. Diria, portanto, que não há produção dessa literatura menor circulando.
Fabio: Você tem toda razão. Não é que o termo “literatura menor”, de Kafka — eu o conheço —, tivesse sido o motor desse título, não foi, que eu me lembre, não foi. Porém, imagine o que teria acontecido comigo se eu tivesse publicado em 70, pouco antes de entrar para o Instituto, “Campo e a relação”. Na verdade, depois disso eu escrevi quase todo o primeiro volume dos Andaimes do real, uma parte do segundo e o esboço do terceiro volumes, foi tudo nesse época de formação. Parecia-me que, apesar do nosso Instituto não ser dos mais fechados, se eu tivesse publicado naquela época, eu ainda teria permanecido candidato, de alguma turma de madureza, digamos... Talvez, por teimosia, ficasse, para ver por quanto tempo. Não era admissível, talvez hoje ainda não seja, alguém pretender, aos vinte e poucos anos, publicar uma obra psicanalítica — esquisito, porque os matemáticos geralmente fazem suas grandes obras aos vinte anos, quem não fez aos vinte, não faz mais: por exemplo, Bertrand Russell, cuja obra matemática fundamental, a teoria dos tipos lógicos, foi concebida aos vinte e um anos. Claro, na Psicanálise o psicanalista precisa de experiência, isso é óbvio. Eu não tinha a menor esperança de poder publicar, sentia nos seminários e discussões com os professores, quando, por vezes, introduzia algumas idéias, que o resultado não era muito bom. Não que fosse perseguido, nada disso, mas sempre fui discreto, em tom menor.
De qualquer forma, estava com todas aquelas coisas escritas e não podia publicar, como, também, não tinha como discutir. No começo o que eu esperava do Instituto era acolhimento e orientação, porque, mesmo tendo escrito essas coisas, que depois acabaram adquirindo algum valor, não tinha nenhuma segurança sobre elas. Eu queria que me orientassem, e algumas pessoas o fizeram, mas não tinha como conversar sobre elas. Já no fim da formação, queria pelo menos ter possibilidade de debate, e também não tinha — é do que reclamo naquele texto. Parecia-me que faltava, na formação analítica, que todos os candidatos fossem, desde o início, fazendo sua obra psicanalítica — uma obra pequenininha, é claro, maior para uns, menor para outros, formulando suas prototeorias. Imaginava seminários em que nos reuníssemos para discutir as teorias de cada um, a elaboração feita sobre tal conceito, ou sobre tal sessão, não importa muito, e não precisaria ser publicada. Justamente isso que parece arrogante e ambicioso, exigiria da instituição e dos professores e colegas a extrema humildade de poder fazer algo bem precário. E, por discutir um com outro, do conjunto, poderia sair um pensamento mais interessante. Imaginava o estofo das nossas relações como uma produção clínico-teórica constante, ao invés de simplesmente uma transmissão fechada.
Jornal: Constituiria uma espécie de diário do grupo e uma tradição.
Fabio: Isto. Porque eu percebia que só conseguia dialogar em torno das minhas idéias com outras pessoas que tinham as próprias idéias. Por exemplo, com a Amazonas (Alves Lima): ela era uma espécie de irmã mais velha que fazia suas elaborações também, então, podíamos conversar. Hoje eu não estou sozinho, mas naquele tempo, sim, estava. Porque, primeiro, estava querendo que alguém me explicasse se o que produzia tinha valor, ou era bobagem, e, depois, almejava pelo menos o clima de debate para poder trocar idéia com outros colegas sobre a produção teórica de cada um. Para isso, precisaria justamente essa humildade do exercício, não da tal da literatura menor, mas de uma produção mais modesta.
Jornal: Menor, tirando o sentido pejorativo...
Fabio: Não é pejorativo. É, como dizia o Inácio Gerber, uma vez que estávamos conversando, que a praga foi a invenção do CD, porque o CD permite ouvir música sem nenhuma distorção, na hora que se queira. É desanimador para alguém que começa a tocar piano. Horroriza-se com os sons que tira, comparando com o Gould executando na própria casa a qualquer hora que se queira. Não se pode competir com Gould. Antigamente, as pessoas tocavam nas casas aquelas sinfonias caseiras, uma parte com instrumento convencional e uma parte com panelas, as crianças batiam garrafa, sem problema, nem sabiam que essa música podia ser executada muito melhor. Era isso que eu esperava do Instituto. As propostas que fiz, posteriormente, de modificação, eram sempre nesse sentido. Coordenei seminários que eram para a produção de pequenas teorias. Lembro-me de um que foi em torno de um caso da colega Leda Barone, trabalhado por um semestre inteiro. Ao fim o grupo produziu uma prototeoria daquele caso, e foi interessante. É necessário, simplesmente, ter a modéstia de não dizer “eu e Freud”, “eu e Bion”, ou então, dizer só “Freud, Melanie Klein e Bion”.
Jornal: O que, nesse texto, você parece propor é um modo de se produzir Psicanálise sem estar impingindo sobre o paciente uma teoria exterior.
Fabio: Esse texto é muito orientado por um problema ético. Não esqueçam que os anos 70 foram de uma rigidez muito grande da e na Sociedade, em que se negava a teoria e ao mesmo tempo se aplicava teoria diretamente à prática analítica, dizendo que não era teoria, mas observação. Então, ao mesmo tempo eu digo que observação em clínica psicanalítica, como em ciência, não existe, e que a aplicação de teoria na clínica é antiética, ela tem que ser criada a partir da clínica.
Jornal: O texto de 99, “Análise didática em tempos de penúria teórica”, fala, de algum modo, dessa mesma questão, mas o tom é diferente, é um tom mais esgotado.
Fabio: Um tom menos adulto do que o do primeiro.
Jornal: Um tom menos apaixonado, já um pouco exasperado, mas parece que as questões são as mesmas.
Fabio: Substancialmente as mesmas. Eu diria que sim.
Jornal: O que poderíamos pensar disso?
Fabio: Mudaria o Natal ou mudei eu?
Jornal: Você falou de um tempo, do tempo de candidato, em que a Sociedade sofria dessa restrição de perspectivas teóricas, havia uma política de restrição a um só tipo de teoria, a um pensamento legitimado. Mas o texto a que me referi é de 99 e você está falando num congresso brasileiro de psicanálise, não está falando só para psicanalistas formados aqui na SBPSP. Seria um problema maior da psicanálise brasileira, esse?
Jornal: A propósito, queria retomar, também, a conferência que você fez na abertura do Primeiro Encontro da Teoria dos Campos, também em 99, em que você aponta a radicalidade da episteme negativa criada por Freud para expor a posição contraditória do conhecimento humano, que nos repele a todos como os pólos de mesmo sinal de dois ímãs. Acho que essa radicalidade, que implica uma contínua produção de conhecimento, é o que há de mais complexo nas idéias da Teoria dos Campos. Contraponto a essa questão da episteme negativa há o que você chama de sugestão metafórica, quer dizer, impingir mais ou menos bem, ao paciente, certas noções, às vezes confusas, que a gente aprende na formação. Como conciliá-las? Aí, penso que independe de polêmicas regionais, é uma questão epistêmica. Nesse sentido eu queria voltar um pouco ao seu quadrado — o cientista, o filósofo, o interessado em relações humanas e o literato —, e me pergunto se não é o cientista que tem falado mais alto (claro que um cientista peculiar).
Fabio: Vamos dizer que, quando fui construir aquela pirâmide, não era sequer um aprendiz de cada uma dessas coisas, era um aprendiz de aprendiz. Mas, com o tempo, depois de um certo encantamento com a estranheza dos conceitos freudianos e com uma certa lógica que, apesar da estranheza, me despertavam, o que eu passei a admirar mais em Freud, e esta é a razão de eu nunca ter sido um freudiano erudito, foi ele ter construído esse sistema. Primeiro, por ter construído uma ciência de um homem só, o que já não é pouco. Depois, ter construído alguma coisa que está recheada de opiniões, impressões, conselhos e, de vez em quando, de algumas observações conjeturais mais amplas. O que parecia extraordinário era ter Freud construído um sistema de pensamento, um método, que produzia, revelava, o outro lado da consciência, o estofo da consciência e o estofo das próprias relações sociais. Ele mostrava o oculto, essa espécie de maravilha da criança que desmonta o brinquedo para ver o que tem dentro, só que ele abre o brinquedo e de lá de dentro sai outro brinquedo mais interessante que o brinquedo original.
Qual a diferença entre campo e inconsciente? Em primeiro lugar, a idéia de campo cobre uma porção de coisas que não estão no inconsciente codificado da Psicanálise, como, por exemplo, o campo de uma clínica do HC. Não é possível achar um lugar no inconsciente freudiano onde colocar esse inconsciente. Por outro lado, por que Freud haveria de ter descrito todo o inconsciente, e todos os inconscientes? Por um lado, a noção de campo exprime isto, todos os campos onde se inclui o campo freudiano, campo do inconsciente. Mas, por outro lado, a idéia de campo é a de tentar descrever a forma pela qual o inconsciente se dá a saber, que é absolutamente negativa, não é alguma coisa oculta que simplesmente aparece, é algo que, como constelação, está mais ou menos congelado, que ao se romper aparece, e nesse aparecimento se esgota o nosso conhecimento sobre ele, e só vai aparecer de novo não por acumulação, mas por outro efeito que se produza sobre outro sistema de pensamento, e assim por diante, seja um paciente, uma teoria, etc. Então, o campo é a posição diante do conhecimento do inconsciente. Pois bem, isso é uma coisa meio de cientista, meio da filosofia e muito da literatura. A Psicanálise e a literatura atacam as palavras pelas costas, elas são covardes, abrem a palavra e fazem surgir aquilo que parecia não estar lá, e nisso produzem e nisso se esgotam.
Então, a idéia de campo, ou seja, de ruptura de campo, é a de produção de um conhecimento que dá um coice na psicologia, mesmo — ao invés de ir para frente, ela problematiza o que é saber. No começo de “Reflexões de menoridade”, eu falo mais ou menos isso, só que, como já disse antes, eu era mais maduro naquele tempo, provavelmente. Eu tinha mais ou menos trinta anos e ainda fazia análise com o Ferrari. Estava em análise, estava fazendo movimento de candidatos, tinha sido presidente da Associação de Candidatos. Então me parecia que, se eu estava trazendo um problema — e esperava depois trazer outros problemas parecidos para um simpósio de discussão, um simpósio platônico —, que as pessoas não necessariamente iriam concordar, discordar ou brigar, mas iria ser possível construir, o que me parecia evidente, a psicanálise brasileira. Quando, logo em seguida, ingressei na Sociedade como membro, continuei insistindo na mesma tecla. Depois, fui passar uns tempos no Sedes, como professor do curso de psicanálise que se iniciava. Mais lá que cá. Mas não por escolha. Como não aceitei deixar o Sedes, sob pressão, acabei sendo cortado das atividades da Sociedade.
Jornal: Mas você não foi desligado...
Fabio: Não, mas houve uma ameaça. Houve uma assembléia e se propôs o desligamento dos analistas que participavam do curso do Sedes. A maioria já tinha saído, estavam ainda o Isaias, o Roberto Azevedo e eu. Não chegou a haver desligamento, houve uma discussão feia, mas ficou nisso. Foi em 76.
Quando pude voltar a participar da Sociedade, e também no Sedes, continuei pensando em tentar criar a psicanálise brasileira, a mesma idéia da literatura menor, uma Psicanálise que fosse sendo criada discutindo problemas que para mim pareciam que tinham que ser discutidos. Nunca imaginei que alguém pudesse continuar a praticar a clínica psicanalítica e ler a teoria sem responder a essas questões que são anteriores, e vão mais para o lado da filosofia até do que da ciência.
Só que, depois que eu escrevi o trabalho sobre a penúria teórica, talvez um pouco destemperado, olhando para trás, constatei que não tinha mudado nada nesses quase vinte e cinco anos do artigo “Reflexões de menoridade”. Eu me lembro de sérias conversas dentro da ABP sobre a constituição da psicanálise brasileira, mas sempre terminava assim: “A gente precisa citar uns aos outros”, “Dá uma força aí”. Só que não é esse o jeito com que se pode avançar, não é uma questão de respeito, é uma questão de produção mesmo.
Jornal: Há também algo intrigante no seu percurso dentro da Sociedade, não só porque você constituiu um sistema de pensar próprio e singular, mas porque você disse que foi para lá em busca de acolhimento e orientação —acolhimento para as suas idéias você não encontrou, orientação você falou que encontrou, pouca. O que o manteve na Sociedade? A esperança, entre 71 e 99, de que essa psicanálise brasileira se produzisse?
Fabio: Que pegasse a idéia? Essa é uma coisa engraçada, não era para ser original, quer dizer, era para ser original no sentido de ir para as origens, ou ser radical, mas não era para ser original, um ramo isolado, eu achava que ia ser de todo mundo.
Jornal: Era para ser radical, é diferente de ser singular.
Fabio: Era para ser de todo mundo, por que não? Alguém pensa alguma coisa e os outros todos participam, discutem, ou aprendem, ou superam, ou explicam o que está errado. Não me considerava criando um pensamento original e singular, que é o que sempre falam de mim. Não era para ser assim, era para ser de todo mundo. Pensava estar criando uma psicanálise brasileira, uma das muitas. Era só haver umas dez ou vinte pessoas fazendo o mesmo e pronto, num intercâmbio disso tudo alguma coisa seria criada.
Quando fui percebendo que isso não dava muito certo, que não havia um debate possível, tentei de um jeito um pouco diferente, participando da direção da Sociedade, tentando abrir um espaço dentro da política internacional, através da FEPAL, depois na minha participação na IPA, mas com a idéia de abrir espaço para a psicanálise brasileira — tipo ultrapassagem de Fórmula 1, um abre o vácuo e o outro vai atrás. Mas também não aconteceu isso, porque, ao invés de apresentarmos uma psicanálise para o mundo, apresentamos nomes para ocupar cargos.
Dentro da Sociedade, não acho que tenham sido um fracasso total o ensino e a discussão da Teoria dos Campos. É que, aos poucos, ela foi ficando complicada demais para poder ser transmitida de uma forma simples, foi crescendo como cresce qualquer sistema, só que, quando há outras pessoas participando do sistema, ele se diversifica mais. Na Psicanálise, não é assim, parece que é preciso que a pessoa faça a coisa inteira e depois transmita. E, assim, junta-se um grupo de pessoas que aprendem aquilo e passa à frente. Não é um problema brasileiro, acho que é um problema da Psicanálise.
O que me mantém na Sociedade?, vocês me perguntam. Bom, talvez a esperança seja a última que morre. Acho que o que me mantém na Sociedade, o que mantém várias pessoas aliadas à Sociedade, é que ela é um lugar de possibilidade, é um dos centros nervosos da Psicanálise, digamos assim, com comunicação com a Sociedade Internacional, com a IPA, e é um lugar onde há muitas pessoas trabalhando clinicamente bem. Tinha me parecido ser tão fácil para alguém, tanta gente com paciente, fazer aquela mesma pergunta do começo: “Por que funciona isso que você faz?”. E alguém se propor a explicar.
Também pode se pensar que já está na hora, não por idade minha, que não sou tão velho, mas pela idade da Teoria dos Campos, de que surja uma geração que não se envergonhe de tomar a Teoria dos Campos como sua, e ensine, debata, aprenda, volte a ensinar, discutir, fazer contribuições à Teoria dos Campos. Isso pode acontecer talvez nos próximos dez, ou vinte anos. Senão...
Jornal: Já está acontecendo, não é?
Fabio: Na Sociedade um pouco. Fora, sim. Engraçado, por exemplo, quando fui no ano passado à Noruega, na Sociedade de Oslo receberam bem a Teoria dos Campos, e queriam entender direito. A pergunta mais contestadora que houve foi a de um analista senior, que me perguntou: “O que é vortex?” (a tradução inglesa de vórtice). Quando fui explicar o conceito, ele disse: “O conceito eu entendi, mas o que quer dizer essa palavra?” Aí, expliquei para ele que é essa coisa que acontece quando se destampa o ralo da pia. “Ah, sim, agora entendi”, respondeu-me.
Jornal: Você diria que as pessoas trabalham, de algum modo, efetivamente a partir de um método, sem o saber.
Fabio: Acho que todos os analistas fazem isso, os mais importantes e os menos importantes trabalham usando o método psicanalítico. É condição inerente ao conhecimento da Psicanálise e à produção de efeitos em Psicanálise. Claro que o método, tal como eu o descrevo, é apenas um caminho para revelar o método da Psicanálise. Não quer dizer que toda investigação sobre o método vá necessariamente desembocar em relação, campo, ruptura de campo, vórtice, etc. Esse é um caminho para purificar o método, recuperá-lo. É preciso encontrar outros caminhos e cotejá-los. Era uma das idéias que tinha, que outras pessoas se pusessem o mesmo problema e achassem idéias originais de outro jeito. Quatro, cinco pessoas — não precisava ser mais do que isso — que se pusessem essa questão do que é o método da Psicanálise já criaria um conjunto que, no choque, no confronto dos achados, acabaria por produzir um conhecimento que superaria este, provisório, da Teoria dos Campos.
Jornal: Fazendo uma transposição, o método, o resgate do método, seria o ouro puro, e a sugestão metafórica, o cobre...
Fabio: É, digamos que sim. O problema é que essa metáfora de Freud não se aplica tão bem assim. O ouro puro é o método interpretativo no sentido forte do termo, o cobre são os procedimentos terapêuticos que ocorrem dentro do trabalho analítico. A Psicanálise não é um tecido puro. O mercúrio, por exemplo, em contato com o ouro, faz o ouro desaparecer, transforma em amálgama. Além do quê, mercúrio é uma substância altamente tóxica, faz mal mesmo. A sugestão metafórica funciona assim. As psicoterapias envolvidas dentro do ato analítico, do processo analítico, não, essas eu acho que são inteiramente legítimas, mesmo porque o método é tão poderoso que toma pela mão as psicoterapias que você tenta fazer e as reconduz ao caminho do método. A sugestão metafórica simplesmente elimina as possibilidades do método funcionar. Vocês sabem o que é sugestão metafórica? É o uso por um analista de um modelo explicativo, talvez apropriado ao momento, mas sem esperar que o paciente o produza.
Jornal: E quanto à questão da formação e das instituições? Você sempre esteve na universidade, é professor de Teoria dos Campos na PUC e agora foi criado o CETEC (Centro de Estudos da Teoria dos Campos). Uma questão complexa é a da formação de pessoas trabalhando com psicanálise na universidade, o que você pensa disso? A instituição psicanalítica está apoiada num tripé — análise pessoal, supervisões, teoria —, a universidade funciona em outras bases. Como se forma um pesquisador da Teoria dos Campos? Você acha problemático, por exemplo, não se exigir na universidade que alguém faça uma análise pessoal?
Fabio: Felizmente.
Jornal: Por que, felizmente?
Fabio: Porque o tripé é para a pessoa e não para a instituição, esse é nosso equívoco. O tripé da formação analítica instituiu-se no Instituto de Berlim numa época bastante turbulenta, em que Freud ameaçou morrer e não morreu e, como reação, constituiu-se um sistema de formação rígido dentro da IPA, para protegê-la de certa forma, como diz Bernfeld. Foi uma época em que, dando Freud por morto, todo mundo desovou o que tinha escondido na gaveta. Depois, foi aquele vexame, porque Freud não fez a gentileza de morrer, como se imaginava. Prevaleceu, então, a tendência a criar uma instituição sobre pilares, sobre três pilares, formando um tripé. Mas a análise pessoal é para formar um dos pés do analista, não da formação.
Pois bem, na universidade o que se imagina é que cada qual saiba do que precisa: se de supervisão, procura supervisão, se for de análise, procura análise. Quem procura a universidade é porque precisa cursar um curso teórico, teórico-clínico. Lá nós podemos produzir analistas não-clínicos, por exemplo, pesquisadores. Seria num sentido tão amplo quanto estudar histórias de fadas, como o fiz em Psicanálise do quotidiano, por exemplo. Para isso, não precisa fazer análise individual, a menos que se acredite na magia da imposição das mãos passando fluidos de uma pessoa para outra. A experiência de análise pessoal é riquíssima, provavelmente indispensável para um analista na sua prática, para aquele que queira fazer psicanálise horizontal.
Jornal: Você acha que, para a vertical...
Fabio: Aconteceu um equívoco muito grande ao pensar-se que a análise é transmitida através da análise, na prática, e não através de uma crítica do conhecimento psicanalítico. Quando eu ensino Teoria dos Campos, em pouco tempo as pessoas estão procurando análise, porque o conhecimento é tão diruptivo que até discutir epistemologia, a partir da Teoria dos Campos, põe todo mundo a correr procurando algum tipo de terapia. Então, é importante mesmo. Por que eu preciso obrigar alguém a fazer alguma coisa que é para ela mesma? No CETEC, não pensamos em formar analistas ao modo da IPA, mas, como em qualquer outro departamento universitário, o necessário é ter pessoas que façam investigação em Psicanálise. A Psicanálise é, por exemplo, um auxiliar para o estudo da literatura. Por que precisa fazer análise naquela hora, enquanto está estudando literatura e Psicanálise? Não precisa. Quando o sapato apertar, porque se está mexendo com pólvora, a pessoa acaba procurando algum tipo de ajuda. Mas há de se pensar até em outras formas de ajudar as pessoas sem ser a análise convencional. Por exemplo, a experiência de trabalho de supervisão onde, a partir da discussão do campo transferencial, que envolve transferência, contratransferência e outras coisas mais, há um profundo movimento com as emoções. É claro que isso vai até um certo ponto, depois o supervisionando sai em busca de um analista mesmo. Mas, às vezes, a supervisão, bem administrada, ajuda muito no plano pessoal.
Jornal: De certa forma, esse foi o seu caminho, começou por um conhecimento crítico, e você ressaltou que entrou no Instituto já formado...
Fabio: Meio informe mas, pelo menos, tendo lido muito, tendo participado de seminários clínicos, de supervisões. Se for contar as horas, provavelmente até que tinha as que o Instituto exige. De estudo teórico, muito mais.
Jornal: Pensando no que você traz sobre o conhecimento crítico, posso colocar a questão do inconsciente. Quer dizer, o que aconteceu com a Psicanálise em São Paulo que houve uma verdadeira revolução, uma interrogação bastante radical do conceito de inconsciente? Para um debate, seria importante ter um panorama não só da sua contribuição, mas também da de outros, pois outros psicanalistas na Sociedade questionaram a noção de inconsciente, por exemplo, como o Isaias Melsohn. Estamos publicando neste número um artigo da Vera Stela Telles, que é uma espécie de depoimento dela sobre a trajetória que a levou a pensar numa psicanálise cognitivista, ela que é herdeira da psicanálise bioniana, especialmente a partir de Laertes Ferrão. Vera Stela tem uma preocupação epistemológica rigorosa quando expõe as idéias, ela também está ligada à universidade, quer dizer, ela tem um espaço para tentar fundamentar epistemologicamente o modelo bioniano. Seu trabalho seria como levar às últimas conseqüências certas premissas que não ficam explícitas em nosso modelo de formação, ou em nosso modelo de atendimento clínico. Acho que você optou pela referência metodológica — a idéia de inconsciente seria a idéia de descentramento do sujeito humano, o diálogo analítico seria um diálogo onde se investigariam as condições desse descentramento. Você parte de uma perspectiva metodológica para resgatar a noção de inconsciente, a eficácia do inconsciente. Acho que, quando lamenta essa penúria teórica, talvez você esteja também lamentando o fato de que se perca a condição de investigação, de uma eficácia da investigação psicanalítica, por partir de teorias estabelecidas e reencontrar as mesmas definições teóricas.
Fabio: Isso circunscreve uma pergunta interessante. Eu sei que estou sendo talvez um pouco paradoxal: quando vocês perguntam sobre clínica, eu respondo com teoria, quando vocês me perguntam sobre teoria, eu posso responder como um clínico, porque sou essencialmente um clínico. Na prática clínica, o inconsciente é porvir, ele nunca está, ele é apenas o que pode vir, está por vir, é um por vir que faz com que venha. Isso não pode ser circunscrito, não pode ser acumulado, uma vez que cada ato interpretativo com o paciente é sempre a abertura de alguma coisa realmente surpreendente, inesperada e desconhecida, como queria Bion. E, aí, começam todas as confusões.
A metapsicologia freudiana pode ser entendida do ponto de vista clínico, como uma caixa de ferramentas — lembram-se, os instrumentos que Freud usou para arrombar a casa, o pé-de-cabra, a serrinha, ele guardou numa caixa de ferramentas que podemos sempre ter como referência no nosso trabalho interpretativo com cada paciente. Se metapsicologia indica, como diz o nome, um espécie de metafísica da psicologia, não faz sentido algum. Mas, se ela indica simplesmente um “meta” da psicologia, quer dizer, algo para além da psicologia, metapsicologia pode ser traduzida simplesmente por Psicanálise. A Psicanálise estuda o que está “meta” (além) da psicologia, da psicologia acadêmica, da psicologia tradicional, menos da psicologia cognitivista.
Jornal: Ela está num outro pólo, em relação à psicologia cognitivista...
Fabio: Em primeiro lugar, porque ela também ataca a palavra pelas costas, vai ver o que tem por trás, qual é o estofo do ato psicológico. Metapsicologia quer dizer psicanálise, psicanálise em ação, e não um conjunto de supostos para orientar a Psicanálise. Para Freud, a metapsicologia era isso, era a prática clínica elevada ao seu grau de abstração maior. Se a gente investigar os conceitos metapsicológicos, vai ver que o valor maior que têm na lógica da obra freudiana é o de descrever simplesmente o método da Psicanálise em ação. Só que, aí, você tem que ver a metapsicologia fazendo epoché da noção de instinto, de pulsão, transformando pulsão num movimento interpretativo, num ir em direção ao real que constitui o sujeito e seu desejo. Ou seja, na direção do pensamento metapsicológico, queira-se crítico ou não, que ocorre numa porção de autores. Nos franceses, por exemplo, quando começam a jogar com os termos metapsicológicos.
O que eu penso que acontece aqui em São Paulo? O Isaias pôs um problema muito interessante, absolutamente fascinante, que é preciso levar muito a sério — a impossibilidade psicanalítica de existir um inconsciente como um depósito de coisas, como um lugar onde estão guardadas certas figuras preexistentes ao ato psíquico. Por parte da psicanálise bioniana, a noção de inconsciente transforma-se de uma outra maneira, porque há um desejo — não deveria dizer desejo; vamos dizer uma intenção — de investigar de forma observacional, de fazer a observação da vida psíquica, e essa observação, evidentemente, descortina o panorama das emoções. No entanto, emoções não constituem o inconsciente. O inconsciente freudiano não é um conjunto de emoções, mas uma abertura ao sentido. Por isso, quando se circula por nossa Sociedade temos a impressão de estar sempre diante de uma psicanálise que põe de parte, contorna, a questão do inconsciente.
A solução que eu encontrei foi um pouco inspirada no Isaias, mas não é exatamente a mesma coisa. Isaias se pergunta qual a posição disto que Freud chamaria de inconsciente e vai a Cassirer para falar das diferentes formas simbólicas. O que eu me pergunto é uma coisa bastante diferente, mas inspirada pelo Isaias sem dúvida. Pergunto-me sobre o ato clínico, aquele que faz com que irrompa um sentido desconhecido que dá sentido a tudo aquilo que parece que, no claro, é muito claro, porém no escuro se revela diferente, revela um sentido diferente. Esta é a experiência corriqueira de todo analista numa sessão. É este ato que me parece, em essência, aquilo que se pode chamar de uma metapsicologia. É aquilo que vai além da psicologia, não é um conjunto de coisas eternas, de objetos platônicos, uma metafísica no sentido aristotélico do termo, por exemplo, que determine aquilo que existe, ou pode existir, no inconsciente. Para mim o ato mesmo de descoberta é o conjunto do nosso conhecimento. E o valor da metapsicologia freudiana — que, aliás, é a única — é o de descrever, do jeito de Freud, esse ato de descerramento do estofo do psiquismo.
Jornal: Por que você diz que a única metapsicologia é a freudiana? Acho que sobre isso também não há consenso.
Fabio: Não há consenso. De repente, ficou na moda dizer que há infinitas metapsicologias. Só se metapsicologia for um conjunto de afirmações tão abstratas que você nunca possa responder a elas. Aí, sim, talvez Melanie Klein tenha modificações à metapsicologia. Mas, se entendermos metapsicologia como os traços do caminho de descoberta do inconsciente, de descoberta/produção do inconsciente, a única metapsicologia, tanto quanto posso ver, é a de Freud.
Jornal: Que era a original...
Fabio: Porque é original, ele descobriu o método.
Jornal: Ela seria a parte intrínseca ao método?
Fabio: Ela é o modelo, o paradigma, do método psicanalítico. Assim como a escrita freudiana tem valor original. Em supervisão, vivo insistindo na questão da ficção freudiana. Se se perdessem as teorias de Freud, mas se ficasse com algum fragmento de sua escrita, talvez fosse melhor do que ficar com as teorias e perder a escrita. A escrita de Freud também contém o método psicanalítico, indicações preciosas do método psicanalítico, indicações do jeito que Freud usou para produzir essa coisa esquisita que é a Psicanálise.
Jornal: Você acha importante o norteamento do método pela metapsicologia, onde não haveria propriamente uma anterioridade do método?
Fabio: Não. Há uma absoluta anterioridade do método. Naturalmente. Se a metapsicologia apenas descreve, trata-se de marcos no trajeto do método psicanalítico, é um ponto lá, outro aqui, a idéia de quantidade, de que possa existir alguma coisa de real no psiquismo como a pulsão.
Jornal: E as idéias, por exemplo, de transferência, de inconsciente, de descentramento, a idéia do desejo, ou do real produtor, elas não são simultâneas à própria idéia do método psicanalítico?
Fabio: Elas são, também, expressões, que servem tão bem como a noção de pulsão. Vamos dizer que, se eu chegasse no meio de um grupo — vamos imaginar que tivesse ficado perdido no meio de uma ilha deserta apenas com meus livros —, em que apenas dominasse mais ou menos a idéia de realidade, real, representação, desejo, identidade, e quisesse fazer com que tudo isso fizesse sentido, ia ensinar Freud, a metapsicologia freudiana. Quer dizer, a metapsicologia freudiana é uma série de pegadas, de instrumentos circunstanciais usados no caminho do método, através de Freud. Eu poderia descrever os mesmos que Freud já havia descrito, nada contra. Só que um bom coquetel se faz misturando coisas diferentes: eu fui descrever outras coisas que não estavam na metapsicologia freudiana, sem com isso constituir uma outra metapsicologia. Descrevendo a noção de real, que digo ser o conceito central ausente da Psicanálise, não estou fazendo propriamente uma adição à metapsicologia, mas colocando uma antítese que, misturada à noção de pulsão, produz uma aproximação maior ao método do que só a noção de pulsão ou só a noção de real produziriam.
Jornal: Quando você fala em pegadas, é que há um rastro mesmo?
Fabio: É, rastros, marcas. Vamos dizer que Freud foi marcando o caminho, colocando uma pedra aqui, fazendo uma reflexão lá, uma indicação. Talvez devêssemos acrescentar à metapsicologia freudiana uma porção de outras pequenas descrições que ele faz, menores que a metapsicologia, mas que são indicativas nesse caminho.
Jornal: Como resposta à questão das diferenças presentes na Sociedade, talvez pudéssemos depreender daquilo que você disse que quem está fazendo Psicanálise partilha da mesma metapsicologia. Evidentemente ela não foi descrita inteira por Freud, cabe a cada um colocar o seu cadinho aí, mas quem faz Psicanálise compartilha da mesma metapsicologia.
Fabio: Naturalmente. Compartilha do mesmo caminho, do mesmo método. Esse método tem alguns marcos colocados por Freud, outros cada qual vai colocando de acordo com seu desenvolvimento. É claro que, como Freud fez muito melhor e muito antes, quando se ensina Psicanálise, começa-se por Freud, por boas razões. Mesmo porque quem descobriu o método foi Freud, e com isso colocou as marcas principais indicativas desse caminho.
Compartilhamos, não apenas quando pensamos um caso clínico através da noção de pulsão, mas quando escutamos um paciente dizer alguma coisa e de repente apreendemos um sentido que surge — aí temos, não uma nova metapsicologia, mas um método e a metapsicologia em estado nascente.
Freud era uma personalidade bastante complexa. Por um lado ele descobriu um caminho para a revelação do sentido, de valor inigualável; por outro, ele quis criar um movimento que o perpetuasse. Para isso fez com que as pessoas jurassem por certos critérios, a sexualidade infantil, por exemplo. Esse valor de juramento é que considero um obstáculo à Psicanálise, a que certa vez chamei horkos, como os gregos chamavam o objeto pelo qual se jura. A Bíblia. As barbas do profeta. Os deuses juravam pelas águas estígias, tão sagradas, que em caso de mentira seriam banidos do Olimpo. E nós?... Acho que deveríamos jurar pelos charutos de Freud: ajudaram-no a pensar, ajudaram-no a morrer, a morrer de pensar, e ninguém pode declarar que possui as suas cinzas. É interessante que pareça tão esquisita ou radical essa definição de metapsicologia como uma encarnação do método psicanalítico. Voltando à ciência comum. Quem vai fazer uma experiência científica não precisa jurar pela segunda lei da termodinâmica, faz a experiência. Se ela contradisser a segunda lei da termodinâmica, há duas possibilidades. Em 99,99% a chance é que tenha se enganado na leitura. Em um infinitesimal, que essa experiência possa fundar a contestação da termodinâmica. Vocês lembram quando César Lates não teve dúvida em dizer que a luz não se desviava dentro das grandes massas? Ele leu o resultado e afirmou que tinha refutado a teoria da relatividade. Depois, teve que vir a público dizer que estava enganado, que leu mal os instrumentos. Mas isso é um erro honesto, não é grave, o que mostra que para ele a teoria da relatividade não era uma metafísica. No experimento viu certa coisa e, então, propôs que estava errada a teoria da relatividade, mas foi um erro seu.
Jornal: Em sua conferência de abertura ao encontro sobre a Teoria dos Campos, você mesmo coloca que não se desmonta de uma hora para outra um arraigado esquema de pensamento, e você o diz a propósito da idéia de pulsão. Vou ler o trecho: “Quão difícil é superar a dicotomia psique e corpo. Muitos colegas que há anos acompanham a evolução da Teoria dos Campos e dela participam abrem um parênteses em nossa crítica metodológica para incluir um elo entre corpo e mente reduzido ao mínimo decoroso por abstração, como etérea pineal cartesiana”. Pergunto: a transmissão tem se dado mais na forma da utilização dos conceitos como ferramentas platônicas? Então, este desmonte é radical por referência à nossa tradição, não que seja em si radical.
Fabio: Até em si mesmo é radical, não tenho dúvida de que vai até a raiz do problema. Mas, claro, o jeito de se transmitir a Psicanálise é um problema. Vocês conhecem aquele livrinho do Umberto Eco, sobre as histórias pelas quais se aprende a ler, As verdades que mentem? Ele e uma pedagoga italiana analisaram o conteúdo ideológico das histórias da primeira cartilha, ou seja, o que se passava além da habilidade de ler e escrever. É isso, há alguma coisa que passa com a habilidade de se usar o método psicanalítico. Não quer dizer que o conhecimento teórico da Psicanálise seja minimizado, ele é apenas relativizado primeiro e depois generalizado, porque, se você relativiza, pode depois generalizar condições como as de uma clínica do Hospital das Clínicas, as da constituição da sociedade moderna. Enfim, pode-se produzir, semear inconscientes. Mas isso é freudiano, não lembram que Freud falou qualquer coisa a respeito de ter escavado uma cidade e que lá algumas pessoas encontrariam continentes? Bom, continentes eu acho que é exagero, mas a gente pode encontrar outras cidades.
Jornal: Voltando ao paralelo com a literatura, com a literatura menor que é “de maior”. Podemos dizer que há algumas regras, ou técnicas, ou métodos de bem escrever, e aí um livro bem escrito é um romance. Uma clínica bem feita, com bom uso do método, produz uma ficção teórico-clínica acerca daquele paciente, tão legítima quanto as produções freudianas?
Fabio: Sim, sobretudo porque você nunca vai se encontrar no empíreo para discutir com Freud. Trabalha-se com o paciente, e nesse trabalho vão-se fazendo descobertas. A partir daí, dialoga-se com Freud, com outros psicanalistas também, com toda a literatura psicanalítica.
Jornal: Como fica a acumulação do conhecimento? Você começou, no princípio da sua indagação, preocupado com a dispersão, com o que haveria de comum que funcionava sob a dispersão que não permitia a acumulação de conhecimento...
Fabio: Não permitia que o conhecimento se construísse, mas isso não é acumulação, isto é construção. Minha preocupação era de que houvesse movimentos de produção e conhecimento que não fossem por acumulação.
Jornal: A idéia é que as teorias não se acumulam?
Fabio: Elas se compõem numa dialética, se compõem por ruptura de campo, na verdade. Quando uma rompe o campo da outra, o rompimento faz com que apareça algo ainda melhor. Os romances não se acumulam, o que se acumula é um certo saber sobre a literatura. Agora, se juntarmos três bons romances, não teremos um romance melhor do que qualquer um dos três. Acho que a forma de ensinar Psicanálise é tentar produzir conhecimento. Não porque se vai produzir um conhecimento melhor que o de Freud, mas sim porque vai-se entender como é que uma teoria é construída. E o único jeito de entender é construir uma. É algo frágil, que não contém a Verdade, com V maiúsculo, é uma aproximação que ilumina e faz com que uma outra coisa apareça, e aí o processo continua.
Na minha formação, sempre tentei fazer isso, eu tinha a vantagem e a desvantagem de ter muito tempo e ser muito novo, parecia-me natural que, para ensinar Psicanálise, eu tentasse construir pequenas teorias de uma coisa, de outra. E que o único jeito de formar um analista é esse, construindo pequenas teorias que podem ir crescendo com o tempo, ficando mais complexas, mais bem-acabadas, com um resultado mais maduro. Assim como eu acho que o único jeito de aprender a escrever é escrevendo, lendo muito, escrevendo muito constantemente, todos os dias. Vocês, que analisam pacientes todos os dias, podem ir produzindo, a idéia não é superar ninguém, não é uma competição para saber quem tem a melhor idéia. A única forma de acumulação possível não é por acumulação, é por produção constante.
* Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP. Participaram da entrevista, pelo Jornal de Psicanálise, Belinda Mandelbaum, Cecília Maria de Brito Orsini e Sandra Lorenzon Schaffa.