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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. v.40 n.73 São Paulo dez. 2007
A INTERPRETAÇÃO EM JOGO
O mito da dor-de-cotovelo: "se ao menos eu pudesse esquecer"
On the Brazilian myth of being abandoned to grief: “if at least I could forget”
El mito del despecho: “si por lo menos pudiera olvidar”
Ana Cleide Guedes MoreiraI* ; Junia de VilhenaII, III, IV, V**
I Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará, onde dirige o Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental
II Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica-Rio
III Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social — LIPIS — da Pontifícia Universidade Católica-Rio
IV Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental
V Pesquisadora Correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine (Université Denis-Diderot Paris 7 CRPM — Pandora)
RESUMO
A psicanálise ganha com o mito da dor-de-cotovelo uma chave para interpretação de sentimento tão cotidiano quanto difícil de ser tratado, dada sua origem na própria instauração da subjetividade. A partir dessa concepção de Herrmann as autoras buscam desenhar um campo onde se cruzam memória, sentimentos e lembranças do vivido com uma clínica onde a marca do ensino desse psicanalista não se deixa esquecer.
Palavras-chave: Psicanálise, Teoria dos Campos, Subjetividade, Sentimentos.
ABSTRACT
The psychoanalytic interpretation of the Brazilian myth of “being abandoned to grief” as conceptualized by Fabio Herrmann is a key for understanding a feeling often encountered in our consulting rooms. However, dealing with it represents a challenge due to its origin in the beginning of subjectivity. The authors describe a field where memory, feelings and remembrances are intertwined with clinical work in which Herrmann’s conceptions are present and not forgotten.
Keywords: Psychoanalysis, Multiple Fields Theory, Subjectivity, Feelings.
RESUMEN
Con el mito del despecho, el psicoanálisis consigue una clave para la interpretación de ese sentimiento tan cotidiano como difícil de ser tratado debido a su origen en la propia instauración de la subjetividad. A partir de esa concepción de Herrmann, las autoras buscan delinear un campo donde se cruzan memoria, sentimientos y recuerdos de lo vivido con una clínica en la cual la marca de la enseñanza de ese psicoanalista no se deja olvidar.
Palabras clave: Psicoanálisis, Teoría de los Campos, Subjetividad, Sentimientos.
Quando não vivemos na memória de alguém ou de algo, não temos passado
Introdução
Lembranças, memórias e sentimento de perda levaram-nos a refletir sobre a relação estabelecida por Fabio Herrmann entre o mito da dor-de-cotovelo e a clínica psicanalítica. Como não existe produção onde nossas subjetividades não se façam ecoar, apresentamos dois exemplos clínicos onde a perda se faz presente de diferentes formas e com diferentes repercussões. Colegas, ex-alunas, discípulas e amigas de Fabio Herrmann, em diferentes momentos do passado, não há como não transbordar em nossas reflexões também o sentimento de perda e saudade que vivemos. Contudo, seguindo seus ensinamentos, buscamos estabelecer uma análise do campo onde tais sentimentos afloram com a expectativa de enriquecer nossa compreensão da clínica psicanalítica.
Recebi Dona Carolina pela primeira vez no ambulatório do hospital há bem pouco tempo. Ela veio acompanhada da jovem filha, a quem pediu: “Conta para ela”, quando eu perguntei em que podia ajudar. Seus olhos muito abertos e a inquietude de seu corpo idoso e rijo, de mulher trabalhadora, não achavam repouso na poltrona e me levavam a estar atenta também, com todos os meus sentidos, ao que vinha de novo naquela manhã, ainda cedo. Como era de idade, teve prioridade sobre todos os outros.
A filha não escondeu nada, disse sem eufemismos: “O papai deixou ela para viver com uma piranha, mais nova na idade”. Dona Carolina completou: “E ele passa todo dia na porta de casa, rindo, os meninos, filhos e netos falam com ele, uns pedem dinheiro e ele responde que não tem. Por que, meu Deus, ele tem que passar ali todo dia? Ele mora com a rapariga mais para frente, eu não vejo. Um dia de manhã a mãe dele que morava assim de frente para mim, a casa dela não estava mais, ele foi morar com a rapariga e a mãe foi junto. Eles fazem farra, de noite bebem para lá. Mas eu estou aqui, longe, não estou vendo”. Silencia. Com a boca muda expressa uma dor lancinante, lábios apertados, olhos muito acesos, braços encolhidos entre as pernas, tentando escapar às imaginadas bordoadas que pareciam ali se repetir. Quando consegue respirar de novo diz: “Se ao menos eu pudesse esquecer...”.
Viveram juntos desde jovens, lá para o Maranhão, de onde vieram para Belém. Moram em uma “invasão”, ela me disse, para avisar que não tinha dinheiro para vir toda quinta me ver. Que ainda teríamos muito para conversar e que eu iria marcar para ela vir toda semana foi quase a primeira coisa que eu disse, quando ouvi ressoar aquele mesmo grito de Medéia, o grito de uma dor trágica que ecoa há mais de dois mil anos.
Segue contando: “Sabe o que é meu almoço? Às vezes arroz com banana, às vezes uma fruta”. Me olha muito séria enquanto fala que não sabe como veio hoje aqui, ontem passou mal, seus filhos todos acudiram. Tem diabetes e acha que foi isso, estava com fome e deu um passamento, trouxeram bolachas, café, quando viu estava comendo de tudo, foi um alvoroço.
Ela se apresentara com seu primeiro nome e escutei aquele, muito querido, de uma irmã de quem ainda estou carpindo um luto. Disse a ela: “A senhora tem o nome de minha irmã”. Ela comentou com a filha, sorrindo, parece que gostou. Instalou-se um campo transferencial e contratransferencial e uma nova trama de relações. Nada simples, pensei com meus botões, mas um dispositivo analítico, para meu alívio. Instalado este o resto pode ser possível. Se está mesmo ali pode vir a ser útil para tornar mais eficaz algo em mim, de modo a produzir rupturas de campo que tragam à tona a lógica de concepção.
Herrmann ensinou que é preciso deixar que surja e tomar em consideração, regra prática que concentra todo o método psicanalítico (Herrmann, 1991, p. 278). Todo ou quase todo, que há de se levar em conta que a cada ruptura de campo o método se põe na linha de chegada, para logo largar de novo, até que novamente um movimento completo de tomar em consideração esgarce as linhas do campo que se rompe para um novo, onde o inconsciente, ou melhor, sua lógica de concepção, surge em plenitude. A superposição aparente dos campos que vão se sucedendo: o nome familiar, uma dupla mãe e filha, a dor-de-cotovelo exposta em seu nervo teso e ferido, compulsiva tragédia humana se atualizando, tudo aquilo trazia o método à baila, senão como permanecer sentada em minha poltrona? Logo um vórtice poderia arrastar-me não pudesse eu me segurar em algo, o mito servia, o mito onde tudo pode, desde que narrado com alguma verdade, dessas interiores, dolorosas, das quais só sabe quem sente. Ou, como diz Dona Carolina: “Dessa dor que sinto quem também sabe é só Deus”. Poderia ali um analista habitar e se dispor a escutar e saber disso?
O mito
De autoria assumida, a dor-de-cotovelo em seu relato mítico é obra de um só, quiçá já tenha alcançado adeptos, ora ignorados. Como freqüentemente acontece, sua difusão os torna “criação combinada”, alguém aumenta um ponto, e no próximo relato mais uma raiz aflora dando firmeza à construção discursiva. A ele pois: “Contar-se-ia ainda hoje talvez, nas brenhas que margeiam o extremo sul de grande ilha, onde um rio abre seu cotovelo mais piscoso, este velho mito” (Herrmann, 1997, p. 211).
Pescar produções do inconsciente na cultura, levando o divã a passeio, era uma das mais ricas atividades do pensamento de Fabio Herrmann (1992). Dessas novidades saborosas de viagens por distantes terras, que chegava contando e espantando o frio dos ombros, dos ternos, ele mesmo dispensando ternura ao couro dos tempos que acabara de passar, por desejo e vontade próprios.
É dessa qualidade mitopoética a essência do mito da dor-de-cotovelo, nunca antes teorizada, conquanto expressão brasileiríssima, como a cachaça — e daquela do alambique real ele gostava muito. Na fonte a água é sempre mais pura, qualidade do essencial. Pausa feita, tempo para o comentário e o pensamento, sigamos com o mito:
Diz-se lá que quando certo Deus ignoto criou o mundo, separando a luz das trevas, o ser do não-ser, as águas da terra e o tempo da eternidade, a ingratidão das coisas dobrou-se sobre si mesma, como um antebraço dobra-se sobre o braço, e a saudade do estado caótico, anterior à criação, estimulou que se afirmasse teimosamente o desejo de permanecer no estado inaugurado, fazendo com que as coisas insistissem em escolher sua nova forma e em nunca mais mudar. Diz-se então que o rio, que era reto, torceu-se e que a ilha brotou d’água, enquanto o dia e a noite se defrontaram em combate num crepúsculo metafísico. E foi neste ponto do universo, e neste momento exato da criação, que a dobra do ser sobre o não-ser deixou exposto o nervo das coisas, no cotovelo do grande rio. E tal dobra do braço do universo ergueu-se numa afronta ao criador, gesto imemorial que os homens vêm repetindo servis desde então. Mas o diabo, que por lá passava nesse preciso instante, sentindo fome, lançou ao rio sua linha de pesca, armada de pontiagudo anzol e, sentindo que algo nele se enroscava, fisgou-o num puxão brutal. Não era um peixe porém, não dourado, não o filhote, não o jaú — foi o nervo das coisas que o diabo fisgou, exposto pelo gesto imemorial de afronta. E a dor foi tanta, tão aguda e penetrante, que um grito sem fim fendeu o crepúsculo primeiro, perdurando nas brenhas ínvias e desocupadas. E o grito gelado e pontiagudo que o mundo deixou escapar coagulou-se, criou asas, criou penas e um bico duríssimo, e o grito das coisas virou ave, que até hoje, passado tanto tempo, repete o vagido primal da natureza despeitada, para escarmento dos homens que logo se levantaram do barro, por ela despertados e criados à imagem e semelhança do uivo de renegação — e para sempre advertidos de que o gesto que dobra o cotovelo em afronta deixa exposto o nervo do ser, que algum diabo niilista vem fisgar, faminto de vingança contra a criação. Estava pois criada a araponga, criara-se o homem e a dor-de-cotovelo (Herrmann, 1997, p. 211).
“O mais insuportável disto é que esta dor um dia vai passar” — frase estranha, a princípio, que escuto de um paciente enquanto ainda me dói uma perda que insiste fazer-se nervo exposto.
O que será que o “insuportável do esquecimento” poderia significar? Que estranho caminho percorremos em uma análise quando é melhor ter o sofrimento sempre lembrado? Morrer é ser esquecido — não ficar na lembrança, dizia o poeta e me reafirma meu paciente, citado em epígrafe. É preferível a dor insuportável, que nos faz certos de nossos afetos, ao esquecimento da banalidade das relações.
Tomemos aqui a dor-de-cotovelo que insiste em expor nossos nervos em sua determinação de nos fazermos amantes — do saber, do amor, da dor, da vida. Embora seja um inferno dantesco dá saudades. E nós teimosamente nos aferramos a este pedaço de paraíso caído. Como anjos canhotos estendemos o braço e o dobramos sobre o antebraço, até que o nervo fisgue a dor-de-cotovelo e nos remeta ao real.
Assim era Fabio Herrmann — suas construções e elaborações teóricas serviam de pano de fundo não apenas para o entendimento daquele que sofre, mas também da cultura que nos forja, algumas vezes, a ferro e fogo.
Seus textos sofisticados e, muitas vezes, de dura apreensão levavam o leitor a buscar o “cotovelo” da teoria. Mas Fabio era também um contador de “causos”; com um fino humor, sabia como ninguém extrair o ridículo, o cômico e o inusitado das situações. Sofisticado nos mínimos detalhes, era um amante das belas coisas — dos objetos de arte, dos livros, da boa mesa, do requintado consultório ao requinte no uso das palavras empregadas.
Falar sobre alguém é como tentar montar um grande quebra-cabeça, jamais completado, sabendo que sempre deixaremos de fora possíveis montagens. Mas é, também, a possibilidade de, durante a construção, descobrirmos sucessivos fragmentos carregados de sentido, que vão ampliando nossa compreensão. Uma coisa, porém, é certa: só podemos falar de uma pessoa recorrendo à experiência que vivemos com ela.
De diferentes formas, em diferentes momentos de nossas vidas, pudemos conviver com Fabio. Ambas fomos, espinozianamente, “afetadas” por ele — para que a possibilidade de dar sentido à vida não desapareça, é preciso mais do que nunca se destacar a importância do diálogo com interlocutores que nos indiquem caminhos mais consistentes.
Interlocutores como Fabio cumprem funções de espelhos, mapas e bússolas na nossa viagem pela vida, fornecendo provisões suficientes para o desenvolvimento da nossa dimensão intelectual e do nosso potencial criativo.
Fabio deixa saudade — mas suas palavras e a presença para os que tiveram o privilégio de ter convivido com ele permanecem no cotovelo de nossas lembranças.
Referências
Herrmann, F. (1991). O método da psicanálise: Livro primeiro. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Herrmann, F. (1992). O divã a passeio: À procura da psicanálise onde não parece estar. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Herrmann, F. (1997). Psicanálise do quotidiano. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Endereço para correspondência
Ana Cleide Guedes Moreira
Trav. Tupinambás, 540/1301
66033-815 Belém, PA
Fone: (91) 3272-5794
E-mail: acleide@uol.com.br
Junia de Vilhena
Av. Ataulfo de Paiva, 135/613 — Leblon
22440-901 Rio de Janeiro, RJ
Fones: (21) 2512-8222 / 9478-2670
E-mail: vilhena@puc-rio.br
Recebido em: 20/11/2007
Aceito em: 04/12/2007
* Psicanalista. Doutora em Psicologia Clinica pela PUC-SP. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA, onde dirige o Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental.
** Psicanalista. Doutora em Psicologia pela PUC-SP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social — LIPIS — da PUC-Rio. Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora Correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine (Université Denis-Diderot Paris 7 CRPM — Pandora).