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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.41 n.74 São Paulo jun. 2008

 

TRADUÇÕES

 

A análise do analista: análise didática, reanálise, auto-análise

 

The analyst’s analysis: training analysis, re-analysis, self-analysis

 

El análisis del analista: análisis didático, reanálisis, autoanálisis

 

 

Norberto C. Marucco*

Psicanalista da Associação Psicanalítica Argentina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Postula o autor a necessidade do desenvolvimento de instrumentos teóricos, metodológicos e técnicos, a par de recursos psíquicos, através da análise pessoal do analista, que permitam o enfrentamento dos problemas que a prática analítica atual requer. Sustenta ele que, se a análise didática é substantiva à pessoa do analista, é também transcendente para a instituição psicanalítica: em relação à idéia de formação permanente do analista, da relação entre analista e instituição, e de cada um de seus membros com a análise, com a própria análise, ou com as sucessivas reanálises. A análise (e o fim da análise) envolve identificações e impõe a necessidade de desidentificações libertadoras. Incumbirá ao analista didata desmontar essa transferência idealizada, narcisista, amparada pelas exigências e as idealizações que a própria instituição puder promover. O autor sustenta que um objetivo fundamental da análise do analista é promover nele uma capacidade de auto-análise, da qual possa dispor a serviço de sua tarefa clínica e de sua reflexão íntima. Mediante a auto-análise, o analista terá que discriminar entre aquilo que surge de sua resposta transferencial a uma característica do paciente e a contratransferência, que surge como a capacidade para pensar aquilo não pensado pelo paciente. Trata-se, em suma, de deslindes necessários para ensejar a construção do novo, do inédito na história da relação analítica e na memória do processo de análise.

Palavras-chave: Transferência institucional, Idealização, Desidentificação, Pós-análise.


ABSTRACT

The author proposes that training analysis is necessary to face the demands of today’s clinical practice, since it enables the analyst to develop theoretical, methodological and technical instruments, besides psychic resources. He maintains that if training analysis pertains to the person of the analyst, it also transcends to the psychoanalytic institution; in relation to the idea of permanent development of the analyst, of his relationship with the institution, and of each of its members with analysis, his own, or successive re-analyses. Analysis (and the termination of analysis), involves identifications, and imposes necessary liberating de-identifications. It is the training analyst’s duty to dismantle this idealized and narcissistic transference, sustained by the demands and idealizations that the very institution may promote. The author sustains that a fundamental aim of the analyst’s analysis is to develop his capacity for self-analysis which he can make use of, in service of his clinical practice and of his intimate reflections. Through self-analysis the analyst may discriminate between that which occurs due to a response to the patient’s characteristic transference, and that which is a counter transference response that emerges as a capacity to think what is unthinkable to the patient. It is a necessary boundary for the possibility of the construction of something new and fresh in the history of the psychoanalytical relationship, and in the memory of the analytical process.

Keywords: Institutional transference, Idealization, De-identification, Post-analysis.


RESUMEN

El autor plantea la necesidad de desarrollar instrumentos teóricos, metodológicos, técnicos, y aún recursos psíquicos, a través del análisis personal del analista, que permitan enfrentar las problemáticas que plantea la práctica analítica actual. El autor sostiene que, si bien el análisis del analista es sustantivo a la persona del analista, es además trascendente para la institución psicoanalítica; en relación con la idea de formación permanente del analista, de la relación entre analistas en la institución, y de cada uno de sus miembros con el análisis, con el propio análisis, o con los sucesivos reanálisis. El análisis (y el fin de análisis) involucra identificaciones, e impone la necesidad de des-identificaciones liberadoras. Será una tarea del analista didacta desmontar esa transferencia idealizada, narcisista, amparada por las exigencias y las idealizaciones que la misma institución pudiera promover. El autor sostiene que un objetivo fundamental del análisis del analista es el de promover en él una capacidad de autoanálisis de la que pueda disponer al servicio de su propia tarea clínica, y de su reflexión íntima. Mediante el autoanálisis el analista tendrá que discriminar entre aquello que surge de su respuesta transferencial a una característica del paciente, y esa contratransferencia que surge como la capacidad para pensar aquello no pensado por el paciente, de otorgar representación a lo no representado por él. Se trata, en suma, de deslindes necesarios para la posibilidad de la construcción de eso nuevo, inédito, que puede generarse en la historia de la relación analítica, y en la memoria del proceso de análisis.

Palabras clave: Transferencia institucional, Idealización, Desidentificación, Post-análisis.


 

 

Talvez convenha começar pontuando que a atualidade da clínica nos exorta a uma compreensão e a um exercício da prática, que dista bastante do que poderíamos classificar como classicismo ou ortodoxia. Os pacientes borderlines, as patologias narcísicas, as neo-sexualidades, a anorexia e bulimia, a drogadição, etc., constituem verdadeiros desafios terapêuticos — daí a importância do estudo exaustivo e pluralista da teoria psicanalítica, numa formação permanente dos psicanalistas, já que não se trata apenas de “adotar” teoria, senão de revisá-la criticamente durante o exercício de sua prática, e de manter a teoria em constante produção a partir dela. Para tanto, se faz necessária a busca de instrumentos teóricos, metodológicos, técnicos e, ainda, de recursos psíquicos — através da análise pessoal do analista — que permitam enfrentar as problemáticas propostas pela prática analítica atual.

O analista, enquanto objeto e sujeito da experiência de análise, deverá dar conta desses instrumentos em si mesmo e não só em seus pacientes. No terreno da análise do analista, será fundamental que este possa “ver-se” com seus ideais, discriminar entre os desejos próprios e os alheios, desentranhar os mandatos, os desígnios, as forças pulsionais que orientam sua vocação; enfrentar sua própria tendência a idealizar (seu analista, a instituição, a psicanálise, seus colegas), e sua revolta em abandonar o lugar idealizado redivivo em seu próprio narcisismo. O imenso mundo do não-sabido abre-se perante ele, mais uma vez, na sua própria análise, nos mistérios da clínica, na vastidão da teoria, e deverá ser sondado, explorado e, ao mesmo tempo, suportada e tolerada sua ferida. O superego, povoado de imagens e presenças, adotará durante a formação novas facetas e uma vez mais convocará o sujeito-analista a enfrentar-se com ele. O analista também estará sujeito às suas próprias repetições, se não for capaz de analisá-las, podendo estas “ganhar” sua prática, e conduzi-la a fenômenos sintomáticos — como a iatrogênia, o doutrinamento, as atuações contratransferenciais, que abrangeriam o uso inconsciente da sugestão até situações mais perversas.

Assim, também o sujeito-analista, durante e depois de sua formação, vê-se “formado” e “deformado” por múltiplas identificações, enriquecido e/ou alienado por elas. Estas, dialética e dialogicamente, o fazem ser e, simultaneamente, não ser. A análise (e o fim da análise) envolve identificações e impõe a necessidade de desidentificações liberadoras.

Para poder “dialogar” com a sexualidade do analisando, expressa através de seu amor de transferência, será preciso dar um determinado lugar teórico à sexualidade do analista, tal como deverá merecer lugar na sua própria análise o âmbito adequado e fértil para seu desdobramento.

Revisar a teoria da sexualidade em geral e resgatá-la como transferência, abre, a partir do presente do campo analítico, novos caminhos para a pulsão: sua repressão mais adequada, em alguns casos; seu nascimento ou recriação, em outros, e sua inscrição como fantasia nas patologias mais severas. Trata-se, nada mais e nada menos, da revivificação de um conceito princeps da psicanálise: exumar e enfrentar, com a possibilidade de renovar os votos da vocação e de se ver cara a cara com o mais complexo, maravilhoso e enigmático do ser humano — ou seja, nós mesmos.

 

A reanálise, a análise didática e a instituição analítica

Se a análise do analista é substantiva à pessoa do analista, enquanto a faz segundo seu modo de ser na prática (e, mesmo, poderíamos dizer, seu modo de vida), é também transcendente em relação à instituição psicanalítica. Em primeiro lugar, pelo que diz respeito à idéia de formação permanente do analista, e também pela relação entre analistas na instituição, que remete, em última instância, à relação de cada um de seus membros com a análise, com a própria análise, ou com as sucessivas reanálises.

Na instituição psicanalítica, a análise didática é um dos vértices substantivos do tripé da formação. Em vista disso, a adjetivação “didática” implica, de alguma maneira, ter que driblar a dificuldade de terminologias que aludem a certa ideologização da análise. Como interfere, no candidato, a presença de um analista didata com o associar livremente? Como isso determina um âmbito de transferências narcísicas que será necessário desalojar? O da análise didática é um âmbito no qual pode se instalar a sugestão, a transferência idealizada na instituição e o risco de uma tendência à confluência/concordância entre os ideais de um candidato, os de um didata, os da instituição e, inclusive, até os da mesma cultura. Será uma tarefa do analista didata desmontar essa transferência idealizada, narcisista, amparada pelas exigências e as idealizações que a mesma instituição puder promover. E, como assinalei no parágrafo anterior, será o próprio erotismo aquilo capaz de conjurar essa tendência à idealização que se faz tão especialmente propícia na “análise didática”, já que a mesma formação transita pela transferência e em transferência.

A maioria de nós analistas temos em nosso haver uma ou várias análises; assim como também há pacientes que, em seguida a uma experiência de análise, vêm nos consultar para uma nova tentativa analítica. Em vista disso, há uma idéia de reanálise que supõe a existência de uma análise que se completa, que conclui e se conclui na finalização da transferência, na liquidação da neurose infantil. No entanto, parece-me que a idéia de uma análise acabada e completa fecha as possibilidades que a reanálise detêm. César e Sara Botella propõem, no interessante trabalho El inacabamiento fundamental de todo análisis (1997, cap. 10), uma pós-análise que se continuaria a posteriori à “conclusão” de uma análise. Vale esclarecer, então, que a conclusão de uma análise não é equivalente a um final de análise, e nisso parece-me acertada a consideração da continuidade da análise, apesar de seu término. Há pelo menos duas citações de Análisis terminable e interminable (Freud, 1937/1986) que apoiariam esta concepção. Na primeira delas, Freud diz: “Confia-se que as incitações contidas na análise pessoal não terminarão com a interrupção desta, que os processos de modificação do ego continuarão espontaneamente no analisando, e que utilizarão todas as experiências ulteriores no novo sentido adquirido” (Freud, 1937, p. 250). Como se isto não fosse suficiente, mais taxativo, acrescenta: “É tempo de desfazer um mal-entendido, não teremos já como objetivo eliminar todas as particularidades humanas em benefício de uma normalidade esquemática. A análise deve instaurar as condições psicológicas mais favoráveis para as funções do ego. Isto é o que fará que a tarefa esteja realizada” (Freud, 1937, p. 251).

Pois bem, o fato de a tarefa estar realizada não significa que esteja concluída; significa, em meu entender, que o aparelho psíquico está em posição de iniciar um processo, e que as pulsões têm possibilidades de constante transformação; ou, como diria Laplanche (1989), que o significante enigmático encontre-se em algum lugar da vida. Isto é o que faz com que um indivíduo que foi atravessado por uma análise permaneça preso à análise para sempre, porque para sempre haverá uma incógnita a desvendar.

Sendo assim, quando poderíamos falar de falhas numa análise (já transcorrida) de um analista, para convocar a uma reanálise? Poderia responder a esta pergunta de diferentes ângulos. Se tomarmos a linha da análise acabada, a que me referi, as falhas poderiam se atribuir (como habitualmente se faz) a uma transferência não suficientemente resolvida ou, ainda, a uma neurose infantil não suficientemente compreendida. Porém, parece-me que, para se pensar na categoria de uma reanálise, algo que define o problema é a idéia do fim da análise. A idéia de um fim de uma análise totalmente inacabada implicaria, de algum modo, renunciar a idealização do falus para cair na idealização da castração. No meu ponto de vista, o fim da análise tem mais a ver com a sustentação de um enigma, daquilo que é indecifrável. Refiro-me com isto que sempre haverá algo que não alcança a representação. Nem tudo é representável, e há análises que chegam mais ao campo da representação do que outras. De fato, temos um campo na psicanálise contemporânea, que é a zona do não-representável. Certo “imperialismo teórico” limitou em outros tempos as possibilidades potenciais da análise, deixando fora dela áreas inexploradas, que hoje estamos tentando incluir. Uma maior pluralidade teórica e ideológica da psicanálise atual abre melhores possibilidades para se poder pensar a análise.

Pois bem, se pensamos a reanálise em relação à instauração ou não da “pós-análise”, as falhas estariam em não ter havido a instalação de um trabalho analítico que permitisse que a análise continuasse além da presença do analista. Quando então, nessas condições, poderia um analista ter que retomar uma análise? Eu diria que quando se detém esse trabalho da pós-análise. E nisso haveria vários níveis para levar em consideração. Por exemplo, há um problema que se produz porque muitas análises didáticas terminam sem nunca, na realidade, terem se instalado. Talvez porque tenham sido levadas a cabo, prioritariamente, em cumprimento às exigências da formação, mas sem a motivação do desejo de análise. Daí a necessidade de, nas instituições psicanalíticas, repensar-se o começo de uma análise didática em termos dos denominados “aspectos vocacionais”. Obviamente, a não instalação de um processo de análise pode responder também às dificuldades de índole pessoal do analista didata, que fazem esses pontos cegos que impedem que se instale a situação analítica no analisando. Os problemas que se produzem no desenvolvimento de uma análise pelos “imperialismos” teóricos em voga constituem outro fator de incidência importante. As instituições psicanalíticas sabem desses imperialismos, que têm conduzido, em muitos casos, a que as análises transcorressem de acordo com normas teóricas. E nisso se incluía o tema do final de análise que, concebido a partir de uma postura dogmática, priorizava a adesão a uma teoria psicanalítica sobre o âmbito do desejo, do mundo pulsional; ou, em outras palavras, do mundo do significante enigmático.

Há outros sintomas que, parecem-me, traduzem a importância que adquire para um analista a descoberta de que sua pós-análise já não funciona. Um deles acontece quando, dentro do campo analítico, começa a ser produzida uma paralisia da atenção flutuante do analista, que reduz o que poderíamos chamar a capacidade de reverie do analista para se conectar com determinadas situações. Outro sintoma, dessa vez mais complexo e doloroso, é o da aparição de um sentimento de certa hostilidade com o trabalho analítico. Quando isso ocorre, a psicanálise está em perigo. São situações que introduzem um grande risco para o analista, e, naturalmente, também para a instituição, e requerem a ajuda do outro para recompor as possibilidades de se continuar levando adiante um trabalho analítico. O analista se inclui numa ética que deve necessariamente assumir, e, a meu ver, a psicanálise contemporânea tem ainda que desenvolver um debate mais intenso no seio das suas Sociedades, que se encaminhe no sentido de promover a definição de uma clara posição ética do nosso “ser analistas”.

Por outro lado, um aspeto da reanálise que, acredito, acarreta vantagens, é constituído pelo fato fundamental de que se trata de uma decisão pessoal, tomada a sós, sem a intermediação institucional; uma decisão que tomamos a partir das situações que experimentamos na prática analítica e, obviamente, daquelas outras que provêm da própria vida. Aqui, é interessante assinalar o fato de que a eleição pode ser feita fora da instituição a que o analista pertence. As análises que transcorrem fora da instituição de pertinência, longe de se tornarem um problema, implicam, creio, uma maior possibilidade de enriquecimento para o analista e para a instituição.

Para finalizar este ponto, quero fazer um breve comentário a respeito da escassez de trabalhos em psicanálise sobre o tema da reanálise. Creio ver nisso razões de índole institucional, devido a certa atitude de proteção com respeito aos fracassos terapêuticos. Parece-me que seria conveniente e saudável fazer em algum momento um branqueamento, uma vez que tanto a psicanálise como a instituição psicanalítica em si seriam muito beneficiadas com o reconhecimento dos fracassos terapêuticos e das razões que poderiam explicá-los: talvez fosse assim possível aprender e desenvolver uma metapsicologia do reconhecimento dessas situações. Além do mais, considero que uma questão muito importante é saber como incluir tal problemática na formação do analista. Caberia pensar, por último, se não se falar suficientemente desses temas não poderia estar produzindo uma perda de credibilidade nos potenciais terapêuticos da psicanálise.

 

A auto-análise do analista

Talvez o objetivo fundamental da análise do analista seja promover nele uma capacidade de auto-análise, da qual possa dispor a serviço de sua própria tarefa clínica e de sua reflexão íntima. Com isso, não me refiro à auto-análise que o exonere da análise com outro analista, senão a um recurso com o qual a tarefa da análise o tenha enriquecido, possibilitando-lhe um “fazer próprio”, um instrumento de pensamento que continua uma vez terminada a análise.

Os alcances da auto-análise são basicamente de dois tipos. Um deles é a possibilidade que oferece de aumentar a compreensão da própria história pessoal. Acredito que todos nós temos a experiência de que na análise com nossos pacientes vamos conhecendo mais de nós mesmos. E isso é assim por meio da auto-análise. Outro tipo de auto-análise é a que se utiliza dentro da sessão analítica. Isto implica, em primeiro caso, um reasseguramento ante o risco do abuso contratransferencial pela possibilidade que oferece de discriminar entre o que é próprio e o que é do outro; porém, é ainda uma ferramenta eficaz para restituir o valor operativo da interpretação, ao ajudar a dissolver os próprios falsos enlaces que se produzem no analista durante a consecução de um processo analítico. Decorre disso também a importância de definir os diferentes âmbitos em que se move a contratransferência e os lugares particulares em que intervém a auto-análise como elemento essencial e definitivo para o exercício da psicanálise. A partir da auto-análise de sua transferência recíproca, o analista deverá se enfrentar com sua identificação com a mãe fálica (inerente a todo sujeito que passou pela identificação primária passiva, no sentido de “ter sido” identificado) (Marucco, 1997). Para des-ligar a criança narcísica de seu encantamento, da fascinação, o analista deverá começar por se desligar, ele mesmo, daquelas promessas que o mantém unido à sua mãe fálica. Mais, por meio da auto-análise, o analista terá que discriminar entre aquilo que surge de sua resposta transferencial a uma característica do paciente, dessa contratransferência que surge como a capacidade para pensar aquilo não pensado pelo paciente, de outorgar representação ao não representado por ele. Trata-se, em suma, de deslindes necessários para a possibilidade da construção desse novo, inédito, que pode se gerar na historia da relação analítica e na memória do processo de análise.

Embora concorde com Freud de que nenhuma análise vai além do que os pontos cegos do analista lhe permitem (o ilimitado das análises encontra aqui seu limite), pergunto-me se esses pontos cegos não poderiam aceder a uma possibilidade de auto-análise através das denúncias que as transferências do paciente revelam do inconsciente do analista. Desvelá-los (mediante auto-análise ou reanálises) implicaria uma ampliação do campo analítico e teria, além do mais, um efeito terapêutico sobre o próprio analista. Poderíamos então diferenciar aquelas transferências, que podem ser compreendidas e resolvidas da maneira habitual, como resistências dessas “outras”, cuja compreensão torna-se mais complexa, porque se apóiam em algo que não é consciente para o analista e que pertence à sua singularidade real. Não se trataria neste caso somente de um obstáculo à função, senão de algo que provindo do analisando toca a pessoa do analista naquele inconsciente que não foi antes mobilizado na sua própria análise (o inacabado de toda análise). O problema é o que faz o analista com isso. Declará-lo inexistente — ou seja, um obstáculo? Ou é possível interrogar isso que o paciente faz vibrar no analista e transformá-lo em um instrumento?

Talvez esse inconsciente não resolvido do analista (que obviamente não está na função analítica) possa ser invocado, com alguma possibilidade, em uma espécie de auto-análise, tanto quanto há um outro que o convoque. Nesse sentido, poderíamos dizer que na pessoa do analista vão se albergando diferentes elementos da relação com o analisando, que têm que ir caindo da pessoa do analista ao dispositivo, ou seja, à função analítica. Porém, o dispositivo analítico não só implica uma posição de suposto saber, quando não inclui os afetos do analista, com seus efeitos de ligação e de desligamento, e mais, o inconsciente inédito da pessoa do analista, que é posto a vibrar pelo inconsciente do analisando.

Pois bem, se a análise tem um final, a auto-análise deve ser interminável. A atenção flutuante do analista não se dirigirá só à escuta de seu paciente, também se dirigirá a recolher os ecos gerados em si mesmo. A referência clínica da postulação teórica da capacidade de sonhar1 materna é lícito traduzi-la na utilização da contratransferência; ponto de inflexão decisivo na prática clínica para dar conta daquilo que está “para além” ou “para aquém” do verbal.

Ante o exposto, penso que a psicanálise deverá incluir em seu tripé de formação o ensino do exercício contínuo e reiterado da auto-análise, não só fora da sessão, mas também dentro dela. Não que com isso se proponha desalojar o papel da reanálise: não acredito, porém, que o campo analítico possa se desenvolver sem o exercício ativo, na sessão, da auto-análise do analista. Auto-análise que pode ser definida não só como a que restitui a potência da interpretação, como assinalei, senão também como aquilo que restitui uma condição terapêutica perdida no analista. Garantiria isso, ainda, o fato de que o exercício da psicanálise em tais condições seria terapêutico tanto para o paciente quanto para o analista.

 

Referências

Botella, C., & Botella, S. (1997). El inacabamiento de todo psicoanálisis. Los procesos irreversibles. In: Más allá de la representación. Valencia: Promolibro.        [ Links ]

Freud, S. (1986). Análisis terminable e interminable. In S. Freud, Obras completas (Vol. 23, pp. 211-254). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1937.)        [ Links ]

Laplanche, J. (1989). Nuevos fundamentos para el psicoanálisis. Buenos Aires: Amorrortu.        [ Links ]

Marucco, N. C. (1998). Cura analítica y transferencia: De la represión a la desmentida Buenos Aires: Amorrortu.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Norberto C. Marucco
San Luis 3364, C1186 ACN
Buenos Aires, Argentina
Fone (54 11) 4864-5302
E-mail: Marucco@ciudad.com.br

Recebido em: 25/05/2008
Aceito em: 20/06/2008

 

 

Tradução de Marta Úrsula Lambrecht
* Psicanalista da Associação Psicanalítica Argentina.
1 No original, em espanhol: ensoñación. (N.T.).

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