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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.78 São Paulo jun. 2010

 

DEBATE

 

O lugar da criatividade na formação psicanalítica

 

The role of creativity on the psychoanalytical formation

 

El lugar de la creatividad en la formación psicoanalítica

 

 

No dia 28 de abril de 2010 o corpo editorial1 do Jornal de Psicanálise recebeu os colegas Ester Sandler, João Frayze Pereira e Reinaldo Lobo2, que debateram vivamente sobre as condições para a emergência de processos criativos na clínica psicanalítica, na Instituição de formação e na vida de todo ser humano. A conversa abordou, entre outros temas interessantíssimos, os vários significados da noção de criatividade, de espaço potencial em Winnicott e possíveis afinidades da Psicanálise com as Ciências e as Artes.

 

JP – Gostaríamos que vocês falassem um pouco sobre a concepção de criatividade que tem e se a ideia da criatividade faz parte de sua prática clínica.

Reinaldo – Há uma frase paradoxal do Merleau-Ponty – filósofo que pensou a partir da Psicanálise – que é a seguinte: “O ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência”. O ser humano se constitui ao criar. O sujeito do conhecimento também se instala criando e experienciando. A primeira mamada teórica é um ato fundamental de criação. O bebê cria a mãe e a encontra. A mãe é – como diz Winnicott – a primeira criação do bebê e seu signo inicial do self. Para mim, criação tem, simultaneamente, um sentido ontológico e um epistemológico. As dimensões ontológicas e cognitivas são faces do mesmo processo de “vir a ser”. Portanto, o que importa é a densidade ontológica das palavras criação e criatividade. Suponho que esse seja um ponto de vista psicanalítico. É bom esclarecer que a psicanálise nada tem a ver com uma “psicologia da criatividade”, nem se reduz a uma explicação das motivações da criatividade, especialmente da criatividade artística. Winnicott chegou até a dizer que não estava tão interessado na criatividade artística. Ele não se referia à arte especificamente quando falava do assunto. Esclareceu que procurava, antes, conceber o ser humano e o seu amadurecimento como criação. Ou seja, afirmava o primado da ontologia. Mas também apontou que a arte é um meio de habitar a vida e de acessar a experiência muito próxima e enriquecedora da prática psicanalítica. Quanto à clínica, penso que todo o encaminhamento do processo está ligado, e até mesmo subordinado, à criação. De um ponto de vista clínico, todos os componentes do processo estarão subsumidos ao principal, que é a poiesis. Considero a psicanálise não uma ciência no sentido tradicional, mas, por ter uma dimensão de prática criativa, uma praxis-poiesis. Poiesis é a criação. É o aspecto estético da psicanálise, ou estésico, se quisermos. É justamente aí que se instaura a existência.

Tem a forma de imaginação, de colorido imaginário, em toda a situação que o bebê vive e experimenta quando ele encontra o mundo. Há uma continuidade entre ele e o mundo. E é esse encontro que abre para o simbólico. A poiesis é criação simbólica. É a entrada no transicional, na área intermediária.

Ester – Em primeiro lugar, não vim com respostas prontas às perguntas sugeridas pelo Jornal. Não me considero especialista em Winnicott, tema desse número, embora aprecie muito suas ideias e as utilize na clínica. Achei que seria interessante se alguma coisa nascesse da nossa conversa, desse debate. Não penso em uma definição para criatividade, isso se pode encontrar no dicionário. Meu ponto de vista é estritamente psicanalítico. De acordo com ele, percebo que algumas coisas estão essencialmente ligadas à criatividade. Por exemplo, uma qualidade de vitalidade como produto de uma relação entre dois ou mais objetos, sejam esses objetos pessoas ou objetos internos, aspectos da mesma pessoa. Penso que tudo o que acontece na minha prática clínica tem a ver com essa ideia de uma criação conjunta, de algo que surge a partir de uma parceria. Não importa tanto o resultado, nem a originalidade. Liberdade e espontaneidade sim, como no brincar. O seio, psicanaliticamente falando, é o protótipo do objeto criativo. Mas isso só ocorre na relação com um bebê. Money Kyrle chama a atenção para o fato de que a criatividade partenogenética é uma ilusão megalomaníaca.

João Frayze – Quanto à concepção de criatividade, lembro de um princípio que norteia a prática de alguns artistas contemporâneos que diz o seguinte: “criar é destruir”. É uma ideia paradoxal que tem relação com algumas ideias de Winnicott que diz, em um dos seus artigos sobre criatividade, que para ser criativa a pessoa tem de existir, isto é, a existência é a condição básica a partir da qual uma pessoa pode criar. Mas o que significa existir? Depois de ler Winnicott e também alguns filósofos, em particular Merleau-Ponty, penso que existir significa transcender o dado com vistas ao possível. Transcender quer dizer ultrapassar alguma coisa ou situação imediatas tendo em vista algo que não é ainda, mas que poderá vir a ser. Portanto, significa transformar o dado em outra coisa e, para isso, ele terá que ser destruído. Essa ideia de existência como transcendência está contida na frase citada pelo Reinaldo – “o ser é o que exige de nós criação para dele termos experiência”. É uma frase que aparece na última obra de Merleau-Ponty na qual ele elabora a ontologia do ser bruto ou selvagem, pré-reflexivo. Mas, ela é emblemática de toda filosofia de Merleau-Ponty. A frase reúne três conceitos importantes: ser, criação e experiência. Experiência, nesse caso, é aquilo que nos abre para o que não é “nós”. E aquilo que não é “nós”, aquilo que é “outro”, é o não-ser. Quer dizer, tudo aquilo que não é “eu” exige de mim criação, isto é, exige que eu exista para que eu possa ter experiência dele. Ora, esses conceitos – “ser”, “experiência” e “criação” – são definidores da própria percepção. A percepção é intrinsecamente criativa no sentido de que é perspectiva. E o perspectivismo da percepção é estrutural. Qualquer coisa sensível, quando é percebida, é um todo significativo apreendido a partir de uma parte que se articula a ele. Essa é uma lei gestáltica que significa que há relação emblemática entre a parte e o todo sensível, relação esta que é de caráter simbólico, pois a parte representa o todo. Nessa medida, a criação perceptiva sempre acontece pela destruição do imediato, uma vez que pela percepção ele se torna mediação para algo maior. Dá para entender porque os artistas afirmam que criar é destruir. Considerando que as artes existem para serem percebidas, posso pensar que a criatividade é esse processo paradoxal que, ao mesmo tempo em que põe alguma coisa nova no mundo, destrói o dado do qual parte para realizar essa operação que é perceptiva, existencial. Essas ideias encontram-se bem fundamentadas na obra de Merleau-Ponty que, nessa medida, também demonstra ser a percepção reflexiva, isto é, que há pensamento no plano do sensorial, do sensível, ideia nada cartesiana, nem kantiana, e muito próxima das ideias de Winnicott. É uma concepção que aparece na arte moderna e permanece na contemporânea. E não é uma concepção que se pode encontrar nos dicionários. Ela surgiu, para mim, a partir de muitos anos de pesquisa com diferentes artistas. Tem o mérito de ser válida para muitas poéticas e contribui para fundamentar o vértice estético na clínica.

Quando Winnicott diz “não é possível ser original se não num contexto de tradição”, isso significa que é preciso contar com um patrimônio para que se possa ser original ou colocar algo singular no mundo. Portanto, o ponto de partida não é a transformação do patrimônio, mas a sua destruição. Agora, o que acontece é que desse movimento destrutivo surge algo transformado, por exemplo, a obra de arte. Então, a obra de arte é a concretização de um processo de transformação que possui dois movimentos intrinsecamente ligados, o destrutivo e o construtivo, que constituem um processo que se chama – a palavra é gasta, mas é isso – dialético. É um processo que, na filosofia, também pode ser chamado de “negatividade formadora”. Quer dizer, o patrimônio sobrevive à destruição, permanecendo como memória, em relação àquilo que é novo e que a partir dele surgiu. A história da arte confirma isso o tempo todo. Por exemplo, o impressionismo não deixou de ser porque foi superado, portanto, destruído, pelo advento do expressionismo que precisou dele para se construir como poética. E a clínica também confirma isso. Quando o paciente sente que se transformou ao longo da análise, ele continua se reconhecendo, até para poder ter essa percepção da transformação. Lembra como era e não é mais.

Reinaldo – Há uma dimensão estética na psicanálise e uma dimensão estésica, que diz respeito à sensibilidade. Mas suponho que a psicanálise não se reduza a essa dimensão, até porque costumo pensar – e Freud, aliás, tinha consciência disso – que nossa disciplina é multidimensional, até por ser, como disse antes, uma praxis-poiesis, ligada por hífen. A práxis diz respeito à outra dimensão: a ética. Significa, no sentido quase kantiano, uma prática na qual o outro é visado como fim em si mesmo, nunca como um meio. Sua própria autonomia é um meio de atingir esse fim. Nesse sentido, não há criação, na psicanálise, sem o outro. É uma prática na qual os valores estão subsumidos à liberdade do paciente. A dimensão estética, por sua vez, diz respeito à própria experiência da criatividade e não significa, portanto, uma teoria da arte nem julgamento do gosto. O artista vive com as coisas e os próprios objetos culturais, destrói todos, reconstrói, transforma todos, burila. Essa forma de habitar o mundo das coisas, de acessar no inconsciente os limites do tradicional, é muito próxima da psicanálise. Mais até do que a ciência, que se recusa a habitar as coisas, mas rodeia-as por meio da formalização, das leis da causalidade, desinteressada do sentido da experiência e imersa na fé perceptiva. A ciência parte da fé perceptiva, a pressupõe e trabalha sobre esse solo. A arte arrebenta com essa fé e reflete sobre ela. A psicanálise também. Aliás, o momento da psicanálise é quando o sujeito sai do cotidiano, passa a não pensar no cotidiano e sim pensar o cotidiano. Nesse momento estamos refletindo sobre a fé perceptiva: sobre a crença de que o sol vai surgir no dia seguinte, de que as coisas sempre se repetem eternamente, de que a sociedade presente é a única realidade possível, de que as crenças individuais são única maneira de ser do mundo…Psicanálise implica naquilo que Fábio Hermann chamava de “colocar em questão a identidade construída do sujeito”. A psicanálise faz isso: quebra essa identidade. Vai contra o que Simone de Beauvoir chamava de “sabedoria das nações”: o senso comum. A arte também faz isso, pela riqueza do imaginário, atravessa fronteiras e limites do senso comum. A ciência separa sujeito e objeto, mediada pelo método. Tanto a arte quanto a psicanálise vinculam-nos inextricavelmente, com ou sem a pretensão de possuir um método. A psicanálise nos transforma em outro ser ou, no mínimo, em outro modo de ser. É preciso criticar um pouco o reducionismo que existe na psicanálise, muitas vezes, quanto à interpretação da arte. É escandaloso ver a arte como reflexo da patologia do autor e coisas assim. Estamos cansados de ouvir isso. Já vi muito, também, reduzir-se uma instância social a questões individuais, à psicologia do indivíduo. Tenho combatido insistentemente esse reducionismo. O que é o reducionismo? É uma generalização. Toma-se um elemento de um fenômeno ou de uma obra de arte, por exemplo; reduz-se esse elemento a um ponto central e generaliza-se. Um romance como “Père Goriot” é “explicado” a partir de uma possível natureza invejosa de Balzac – ele seria um invejoso e ressentido com os ricos, daí ter pintado um personagem mesquinho e quase repugnante. Generalizou-se, transformou-se a inveja em algo que dá sentido a toda uma obra sofisticada e reduziu-se um fenômeno complexo como o estético a um elemento específico da psique individual. A ideia que tenho de multidimensionalidade é justamente para evitar esse tipo de redução. Insisto nisso: a psicanálise não é arte, mas tem uma dimensão estética. Para usar o jargão societário da moda, ela tem um vértice estético.

JP – Parece-nos pertinente aqui aquela frase do Manuel de Barros: “tudo que eu não invento é falso”. É isso. Passa pelo ser.

Reinaldo – É um dos meus poetas prediletos. “Eu brinco com a inutileza das coisas”.

JP – Pensamos que criatividade e fenômenos transicionais remetem a Winnicott, mas ele não tem a posse desses conceitos. Nesse sentido, nossa proposta é falar sobre “criatividade”, para abrirmos para outras abordagens em psicanálise.

Reinaldo – A expressão “área intermediária” não foi criada por Winnicott, mas por Marion Milner com quem ele tomava chá todas as sextas-feiras. Ela disse: “tem um momento na experiência em que não há bordas, mas uma outra área”.

JP – É o meio maleável…

Reinaldo – Meio maleável. Um processo. As bordas são abertas, como Milner diz. A ideia de transicionalidade nasceu basicamente dessas conversas. Foi ela que bolou a ideia dos limites.

JP – Do seu ponto de vista, é possível pensar a psicanálise como arte?

Ester – Concordo com o que o Reinaldo disse: A psicanálise não é arte. Talvez um artesanato? Algo que precisa ser construído detalhe por detalhe, mano a mano. Mas é um equívoco colocar esse dilema se psicanálise é arte ou ciência.

João Frayze – A dificuldade toda é essa. É um campo extremamente original que os psicanalistas tentam reduzir ao conhecido, à ciência ou à arte. E, no fundo, não é nem uma coisa nem outra.

Ester – É o nosso ornitorrinco.

João Frayze – É um campo extremamente complexo, com epistemologia específica e ontologia particular. A psicanálise não é arte embora haja muita proximidade entre elas, e essa proximidade ocorre pelo tipo de experiência que se realiza em ambas. Se entendermos a experiência como o que nos abre para o que não é “nós”, para o que, aparentemente, está fora de nós no mundo sensível, a experiência possui uma dimensão estética. Ela é aquilo que nos abre para o outro, mas quem seria o outro? É algo ou alguém que exige de mim criação, isto é, que eu exista, para que eu tenha experiência dele. Ou seja, para que eu o perceba. Nesse caso, há um movimento reflexivo de interiorização e de exteriorização do objeto que constitui a própria percepção. Essa é a dimensão estética da experiência na qual não há separação entre o dentro e o fora, o eu e o outro. Merleau-Ponty nos leva a pensar assim com a descoberta do “corpo reflexivo” que é simultaneamente sujeito e objeto. Um psicanalista que também é muito próximo dessa maneira de pensar é Christopher Bollas, que também propõe a proximidade entre arte e psicanálise. Mas, mais ainda do que isso, se pensarmos que o processo psicanalítico que se cumpre é aquele que é levado ao ponto em que o paciente chega à sua plena potencialidade para habitar o seu destino com um pouco mais de clareza, podemos aproximar mais ainda a psicanálise enquanto processo e o processo artístico. Esse conceito de “cura”, proposto por Fábio Herrmann, também pode se aproximar do pensamento de Bollas quando este aborda a experiência do indivíduo que desenvolveu o seu “idioma pessoal” entendido como linguagem do “verdadeiro self”. Então, se a arte é um fazer amadurecer, é um processo de formação, de cura, da obra – e vem daí a palavra curadoria que significa um criar condições para que a obra encontre o melhor de si numa exposição –, o processo artístico pode ser relacionado ao que acontece na psicanálise. Em ambas há um processo que se perfaz temporalmente. Do lado da Teoria da Arte, alguns autores chamam esse processo de “formatividade”. É um processo que visa à formação da obra que, por sua vez, é o processo formado, digamos assim, perfeito. Nessa medida, tanto na arte, quanto na psicanálise, verifica-se um processo que, enquanto faz, nega (destrói) o feito e afirma (constrói) o por fazer e o modo de fazer. Essa é uma definição que cabe para o processo artístico e para o psicanalítico. Se considerarmos que este é mediado pela pessoa do próprio analista, essa definição cabe mais ainda, pois a pessoa do artista, o seu corpo, também é o ponto de articulação entre o dentro e o fora, o sujeito e o objeto, no formar a obra.

JP – Quando o analista se deixa usar pelo paciente – o Bollas diz que ele é criado pelo paciente – qual seria o conceito de criatividade?

João Frayze – Acho que cabe essa concepção de criação-destruição. E acho que Bollas, um autor que eu aprecio muito, concordaria com ela. Ele mesmo fala desse processo de transformação composto de dois tempos: construção e desconstrução. Então, ao se deixar usar pelo paciente, gradualmente, o analista se torna apto, como objeto, a ser encontrado em vez de ter sido colocado pelo paciente no mundo. Nesse processo, o objeto é destruído e, ao mesmo tempo, sobrevive à destruição porque é percebido como independente do sujeito. É a passagem do objeto subjetivo ao objeto objetivo como transformação.

Reinaldo – Tem um aspecto ontológico. Se a gente usa muito livre e genericamente a palavra criatividade, ela se torna reducionista. Castoriadis diz que o ser é criação e destruição. Quando vamos criar, tentamos dar forma ao caos da destruição. Quando o paciente cria o analista, é criação no sentido mais forte do termo. É existencial. Ele está dando sentido àquele analista na vida dele. E de modo tão forte que às vezes a vida dele depende do analista. Esse é o sentido que o Bollas dá; ele está preocupado o tempo todo com a questão do ser. O último livro dele se chama The infinite question. É a permanente interrogação do ser. Isso seria a psicanálise.

João Frayze – Concordo. Se a gente quiser aprofundar mais ainda a questão da criatividade na arte e na psicanálise, a coisa pode ficar bem complicada, porque não é possível falar em arte seriamente sem pressupor determinada poética, ou seja, determinado programa de arte. Quer dizer, na arte, a criatividade pode ser entendida de muitas maneiras e não como criação apenas. Pode ser entendida como produção, invenção, expressão, impressão etc., e cada um desses termos tem um significado específico porque pressupõe determinada teoria da arte ou determinada poética. Por exemplo, quando digo que eu “crio”, do ponto de vista da arte, estou dizendo necessariamente que não estou inventando, nem produzindo, nem exprimindo. E por quê? Porque criação é um termo que designa o processo criativo para os artistas do chamado renascimento, para os chamados maneiristas. É uma palavra, na verdade, um conceito que tem certo compromisso teológico. Deus criou o mundo a partir do nada. E o artista, desde que inspirado por Deus, também vai criar um mundo. É por isso que eram chamados de “divinos”. Michelangelo era dito “o divino”, assim como Leonardo, Rafael, o “divino Rafael”, que foi considerado paradigma de todos os artistas do maneirismo. E vejam que coisa curiosa: o artista era tão inspirado por Deus que a sua mão não precisava estar presente na obra. Tanto é assim que os grandes artistas do renascimento assinavam suas obras, mas nem sempre faziam a obra de cabo a rabo. Eles dirigiam os ateliês, herança das corporações medievais, e quem trabalhava eram os assistentes. E, como se sabe, a História da Arte desenvolveu técnicas para descobrir onde estaria a mão do mestre ou a de um discípulo seu em determinada pintura. Outra coisa é que essa ideia de criação colocava limites para a possibilidade de o artista expressar algo da sua subjetividade na obra. Acontecia que, agraciado por Deus, ele concebia a composição, segundo regras muito rígidas e específicas. O seu talento estava no saber usar rigorosamente essas regras de composição, que eram mentais no sentido de cognitivas, para realizar a obra como “cosa mentale”, como dizia Leonardo. Então, muito esquematicamente, essa era a ideia de criação no maneirismo. Já o conceito de “produção”, quando aparece na arte, está associado às vanguardas. Os artistas produzem uma obra como o trabalhador produz um objeto de uso. Essa noção de produção é enaltecida pelos futuristas, por exemplo, mais tarde, pela Bauhaus. Para eles, criatividade não é criação, mas é produção, por analogia com a indústria nascente. Outra noção de criatividade surge com o surrealismo, a criatividade como “invenção”. Quando, num dos Manifestos, Breton define a beleza como “a associação entre um guarda-chuva e uma máquina de costura que se encontram por acaso e fazem amor”, isso é a invenção surrealista. Não é nem produção, por analogia ao processo industrial, nem criação como pensavam os artistas do Renascimento. Diferentemente para os surrealistas, a beleza surge no encontro casual entre objetos e, nessa medida, a criatividade é pensada como invenção surreal de novas formas que surpreende o próprio artista. Outra concepção de criatividade surge no século XVIII com o romantismo, antes do advento da arte moderna e contestado por ela. O romantismo usa a palavra “expressão” para falar da criatividade, para definir o que o artista faz. E é a primeira vez na história da arte que uma poética inclui certa psicologia, a subjetividade do artista, nas obras. Entre os psicanalistas, essa concepção de criatividade é bastante generalizada. Mas, do ponto de vista da arte, essa generalização não tem sentido. Por exemplo, Freud tratou Leonardo como um gênio romântico, o que se mostrou um equívoco criticado pelas ciências da arte e acabou gerando preconceitos contra a psicanálise como perspectiva viável para o estudo crítico da arte. Em resumo, dependendo da poética, da tradição que uma obra pressupõe para existir, a criatividade pode ter um ou outro significado. É nessa medida que eu disse, no começo, que a ideia de criação como destruição é interessante porque é ampla, vale para muitas poéticas, e ainda pode ter relação com a psicanálise. Por exemplo, há uma fase da produção pictórica de De Kooning que ficou conhecida como “poética do apagamento”. Ele era um pintor, já consagrado nos anos 1950, que fazia e refazia uma obra diversas vezes, numa mesma tela ou passando de uma tela para outra, como se estivesse sempre fazendo a mesma obra. E conta-se que Rauschemberg, quando tinha uns 27 anos e era um artista iniciante, considerava De Kooning o grande mestre. Então, ele vem a este que, na época, tinha uns 49 anos, e lhe pede uma obra. “Para que você quer uma obra minha?” – perguntou De Kooning. “Para apagá-la”, respondeu Rauschemberg. Bom, o mestre deu ao jovem artista uma obra sua que cuidadosamente a apagou e depois a mostrou numa exposição sua como um trabalho de De Kooning segundo Rauschemberg. É muito interessante esse gesto na arte se comparado com a psicanálise, se pensarmos no uso do analista pelo paciente. Ao oferecer a ele a obra, que realmente é destruída, De Kooning oferece ao outro aquilo que este precisava. Quer dizer, Rauschemberg precisava desse gesto, naquele momento, para se tornar artista. E, ao fazer o que fez, ele respeitou a poética do mestre que trabalhava por apagamento, ao mesmo tempo em que se diferenciou dele. Considerou a poética de De Kooning e a recolocou de outra maneira. Essas situações são mais complicadas na psicanálise, pois as ligações que se formam no campo psicanalítico são emocionalmente mais complexas. Mas, ainda que não se reduza a psicanálise à arte, a arte pode nos inspirar muit o.

Roberto Azevedo – Uma das coisas que me preocupa muito é o problema da criatividade na ciência. Como é a relação entre a psicanálise e ciência? Como é a relação entre análise e psicopatologia? Quando falamos em arte, há uma autonomia do ponto de vista da reflexão, pois estamos nos ocupando de arte. Quando nos ocupamos de ciência, o problema da criação também tem seu lugar. Como é a distinção nisso e quais são as características que o indivíduo ou o paciente pode ter que dificultam a criatividade?

João Frayze – A relação entre arte e ciência é uma preocupação atual do ponto de vista da própria arte. Mas existem distinções que devem ser observadas. A atenção que é dada à forma do processo é muito mais forte no campo da arte do que no campo da ciência. A ciência está preocupada com a verdade, qualquer que seja a sua forma. Na arte, não: há uma relação intrínseca entre forma e verdade. O artista não chega a pôr uma obra no mundo sem uma pesquisa prévia, a elaboração do seu projeto, que ele definirá em função de determinada poética. Nesse aspecto, a psicanálise tem mais proximidade com a arte, pois no processo analítico também existe uma preocupação com a forma. Meltzer fala em “forma estética”, Bollas fala em “forma da inteligência psíquica” e em “poética da estrutura psíquica”, pensando no paciente. Já na ciência essa dimensão estética não é necessária, sobretudo se pensarmos que a ciência é governada por três princípios básicos (positividade, universalidade e objetividade) que são contrários aos que presidem a arte (ficção, singularidade e subjetividade). Quer dizer, “a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las”, como escreveu Merleau-Ponty. Portanto, convenhamos, a convivência entre ciência e arte é muito difícil.

JP – Pensando nessa relação dialética entre a destruição e a construção, da arte e da psicanálise, gostaríamos de refletir sobre a experiência clínica. A questão da resistência é um pouco mais complexa do que o metabolismo digestivo. Não há uma ingestão e uma destruição. É algo que se faz concomitantemente e muito rapidamente. É com razão que nossos pacientes chegam – ou nós, quando nos dirigimos à análise – com muito medo. Porque temos a noção de que algo em nós precisará ser outro, abrir-se para o outro, para que possamos encontrar um ser dentro de nós no qual possamos habitar melhor. Pensamos que toda a questão que vocês colocam sobre a estética, sobre o processo de destruição e construção, cria uma questão fundamental para os institutos de formação, que é a questão da liberdade. Trata-se de contribuir para abrir espaço nos candidatos a analistas para o nascimento do outro, entendendo esse outro como o outro no paciente e também, o outro no próprio analista. É uma questão difícil, pois não pode ser enfrentada de forma doutrinária, nem ideológica. A Dra. Judith Andreucci nos dizia: “o analista se forma na vida e não nos institutos de formação.” Hoje podemos pensar que ainda que a vida seja soberana, os institutos de formação têm sua função no preparo dos jovens analistas.

Ester – A pergunta já contém a resposta, aqui, pois fala em espaço transicional, em criatividade, em experiência de vida. Isso me faz lembrar um trecho de Diálogo com Guimarães Rosa3, de Gunther Lorenz, que vou tentar sintetizar aqui, pois as ideias me parecem preciosas para ressaltar meus pontos de vista.

Lorenz, o entrevistador, pede para o escritor falar de sua vida. Este recusa, dizendo que sua biografia não é muito rica de acontecimentos e que sua vida foi completamente normal. O entrevistador não aceita esse ponto de vista e enumera alguns acontecimentos notáveis na vida do escritor: o fato dele ter sido médico, participado de uma guerra civil e sido diplomata. Responde Guimarães Rosa:

Chegamos novamente ao ponto que indica o momento em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte…

O entrevistador insiste em atribuir a esses eventos uma importância especial, por exemplo, na criação da obra prima Grande sertão, veredas. Guimarães concorda em parte, mas chama a atenção para o perigo de uma simplificação excessiva caso fossem desconsideradas outras experiências que contribuíram para a formação de seu mundo interior: a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas. O entrevistador, provavelmente surpreso, comenta tratar-se de uma sucessão e uma combinação um tanto curiosa de motivos.

Rosa pondera: “Bem, tudo isto é curioso, mas o que não é curioso na vida? Não devemos examinar a vida do mesmo modo que um colecionador de insetos contempla seus escaravelhos”.

O entrevistador tenta ainda conciliar sua visão, que eu poderia dizer pré-concebida, ou até preconceituosa, na qual as coisas “importantes” como a diplomacia, o conhecimento de religiões e muitos idiomas teriam um lugar de destaque. Evoca a fama legendária do escritor como poliglota, sua coragem, ao ter desafiado Hitler, transgredindo normas diplomáticas, mas salvando assim a vida de muitos judeus.

Rosa, munido de paciência, diz:

tudo isso é verdade, mas não se esqueça de meus cavalos e minhas vacas. As vacas e os cavalos são seres maravilhosos. Minha casa é um museu de quadros de vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende muito para sua vida e a vida dos outros. Isto pode surpreendê-lo, mas sou meio vaqueiro, e como você também é algo parecido com isto, compreenderá certamente o que quero dizer.

Quando alguém me narra um acontecimento trágico, digo-lhe apenas isto: “Se olhares nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo”. Eu queria que o mundo fosse habitado apenas por vaqueiros. Então tudo andaria melhor.”

Lorenz: “Desculpe, mas relacionado com a sua biografia isto não parece um tanto paradoxal?”

Guimarães Rosa:

E não apenas isto, mas tudo: a vida, a morte, tudo é, no fundo paradoxo. Os paradoxos existem para que ainda se possa exprimir algo para o qual não existem palavras. Por isso, acho que um paradoxo bem formulado é mais importante que toda a matemática, pois ela própria é um paradoxo, porque cada fórmula que um homem pode empregar é um paradoxo.

JP – Nessa entrevista a qual você se referiu, quando o entrevistador pergunta o que é brasilidade, Guimarães Rosa responde que brasilidade é um pensar-sentir. Podemos incluir nessa concepção – que não separa o pensar do sentir – a condição para a emergência do processo criativo. Como vocês acham que está nossa formação nesse sentido? Como vocês vêem isso no nosso instituto?

Ester – Não acho que tenhamos uma formação só. Temos múltiplas formações. Isso representa ao mesmo tempo uma riqueza, uma complexidade e uma esperança de salvação. Se por um lado, acirra conflitos, por outro abre caminhos. Existem condições dadas, “constitucionais”. Se oferecermos às pessoas que nos procuram uma gama de estímulos, os mais variados, incluindo os que chamamos de destrutivos, é possível que ocorra algum desenvolvimento, embora não seja possível prever ou controlar os resultados.

Quando falamos em formação, penso numa metáfora usada por Winnicott em uma carta para Melanie Klein, citada na introdução do livro Gesto espontâneo. Ele comenta a respeito de um colega: “Se ele estivesse cultivando um narciso, pensaria estar fazendo um narciso a partir de seu bulbo e não capacitando o bulbo a se desenvolver num narciso através de traços satisfatórios”. É isso que a gente teria de oferecer ao paciente e aos analistas em formação.

JP – O que corresponderia ao espaço potencial dentro de um instituto de formação de psicanalistas?

Reinaldo – Acho que o instituto de formação pode ser um espaço privilegiado de elaboração e realização simbólica. Suponho que todos que estão no instituto já ultrapassaram o período dos primeiros fenômenos transicionais, chegaram à constituição de um espaço potencial e um objeto transicional e já devem estar abertos ao campo da vida cultural. Ela se situa nessa terceira realidade, nem interna nem externa, chamada de área intermediária, que é justamente a do símbolo e do pensar. O instituto é, portanto, o próprio espaço para isso. É adequado para que as pessoas nele se desenvolvam. Os requisitos necessários são, a meu ver, a liberdade e a ausência de autoritarismo. Quanto mais um postulante a analista puder escolher traçar seu caminho sem muita invasão e sem imposições desnecessárias, sendo respeitada sua singularidade e mesmo certa iconoclastia, mais espontâneo e autêntico será seu desenvolvimento. Nunca, jamais, em tempo algum o instituto deveria ser um lugar de cooptação ou doutrinação. É preciso conhecer a tradição, os autores do passado, a psicanálise clássica e mesmo a contemporânea, pois só se cria a partir da tradição. Mas muitas vezes esquecemos que esse “a partir” pode resultar em criar contra a tradição.

João Frayze – Como disse a Ester, eu também acho que a nossa Sociedade atualmente oferece condições para que as escolhas de cada um possam acontecer. Eu também acho que a presença da grande heterogeneidade de teorias psicanalíticas é uma riqueza que exige a convivência com as diferenças o tempo todo. Agora, conviver com as diferenças pode ser convívio com os complementares, mas pode ser também, relação com os incompatíveis. Nos dois casos a experiência é complexa porque é sempre problematizadora. No âmbito de uma instituição, os participantes precisam estar interessados na própria liberdade de pensar, dispostos a interrogar as suas próprias certezas, seguros para problematizar as suas concepções. Na nossa Sociedade, parece que essa tem sido uma experiência possível. Nunca houve cisões.

Reinaldo – E a democracia dá muito trabalho.

JP – Partindo da ideia de que a criatividade e a consideração pelos espaços transicionais são capacidades necessárias ao exercício da função analítica, quais seriam as condições favorecedoras em uma análise de formação para esse desenvolvimento? E, ainda, seria diferente em se tratando de uma análise que não visasse à formação de analistas?

João Frayze – Em princípio, acho que não há diferença.

Ester – Acho que uma análise de formação encontra algumas circunstâncias mais difíceis, que merecem atenção. Gostaria de lembrar aqui das muitas e importantes contribuições de nosso colega Luiz Meyer a esse respeito. A manutenção de um espaço protegido para que aquilo que é genuíno em cada um possa vir a se desenvolver. A entrada de um analisando “comum” para formação no Instituto de Psicanálise deixa muito clara a diferença entre o “antes” e o “depois”. A situação é complexa, mas uma das complicações é a contaminação, a invasão do espaço privado e privilegiado para observação e contato com o mundo interno, das maneiras mais variadas. Tudo isso, precisa ser considerado com atenção pela dupla analítica para que se consiga uma condição de trabalho próxima àquela que faz com que para mim a psicanálise com crianças seja uma experiência tão rica e fluente, o play e o estabelecimento de uma atmosfera onírica em uma realidade compartilhada. Mesmo que existam demandas dos pais, da escola ou da instituição.

João Frayze – No meu entender, uma instituição psicanalítica “suficientemente boa” seria aquela que facilitaria ao candidato a passagem da dependência à autonomia. Mas, como a gente sabe que em nenhuma área cultural é possível ser original a não ser que se tenha por base certa tradição, toda inventividade teria que contar com certo patrimônio. De certa forma, a nossa Sociedade oferece essas condições para a formação. Como a gente sabe, temos uma base comum e, a partir dela, um leque de diferentes tendências ou modos de pensar a psicanálise. Creio que isso é indicativo de que existe abertura para o candidato encontrar o seu destino como psicanalista. Agora, em toda instituição sempre há o risco da hegemonia de uma tendência sobre as outras. Mas, no meu percurso, eu mesmo nunca senti esse risco. A situação de ser cooptado pela instituição, eu nunca vivi, nem na minha análise, nem nos cursos que fiz, nem nas supervisões. Não sei se foi porque entrei no Instituto velho demais, depois de um longo percurso em outra instituição altamente hierarquizada como é a USP, eu já tinha certa liberdade de saber o que eu queria e o que esperar de uma instituição. Não que eu não tenha me deparado com algumas dificuldades, mas encontrei a possibilidade de transcendê-las. E, sobretudo, reconheço que o que eu vim buscar nesta instituição, eu encontrei.

JP – João você teve um caminho muito pessoal e quando chegou pôde fazer um uso das experiências vividas. Será que o fator tempo é então importante?

Ester – Existem as condições “constitucionais”, que mencionei antes, podemos acrescentar a elas tudo aquilo que Guimarães Rosa mencionou: a experiência de vida, o tempo e a variedade de percurso, a maturidade pessoal ou algo assim. Temos que considerar o acaso, os encontros fortuitos, as circunstâncias, a oportunidade, ou felicidade, de podermos nos tornar aquilo que verdadeiramente somos. E o ambiente, qual é seu papel? Há tendências – e não podemos ser ingênuos a ponto de ignorar – que pensam de modo diferente e acreditam na necessidade e na possibilidade de se criar um determinado narciso a partir dos diferentes bulbos. Nesse sentido precisamos nos preocupar.

Roberto Azevedo – Se fosse como você está dizendo, estaríamos no melhor dos mundos. Eu já participei de tantas sociedades em que não há essa harmonia, esse bom relacionamento, tolerância, permissão de você ser você. Ao contrário, existe um trabalho de sufocamento.

Reinaldo – Temos a tendência de ver as coisas psicanaliticamente. Numa instituição há fatores que escapam à análise psicanalítica. Já faz algum tempo que penso nessa questão das Sociedades. O sociólogo Pierre Bourdieu diz que encontramos o poder onde ele menos aparece. O poder se exerce onde menos está visível. E é dentro da análise didática que ele acontece. É na análise do sujeito que o poder se instaura. Não é só na instituição em geral. E há fatores sociológicos como, por exemplo, certa distinção de classe; isso existe na nossa Sociedade, como, por exemplo, categorias de pacientes. Já vi inúmeros trabalhos que começam assim: “Meu paciente é um executivo muito bem sucedido”. Pronto. Ele já está na distinção do luxo, numa certa categoria de seres humanos. Aparentemente isso não tem a menor importância do ponto de vista psicanalítico. Dir-se-á que todos são seres humanos, e são mesmo, etc. Mas numa análise mais refinada do poder, essas coisas são importantes. Na análise didática é onde a distinção e a categorização nos “habitus”, como diz o Bourdieu, são mais exercidas. O famoso Hélio Pellegrino usava uma expressão: “baronato da psicanálise”. A questão do “baronato” é forte. Tem também o aspecto gerontológico: os mais velhos é que passam a tradição e os instrumentos de poder. O poder, às vezes, é exercido pela cooptação, não há a menor dúvida. Você é bom, se estiver naquela linha. Como passei por várias linhas – fiz cinco análises –, conheci diversas perspectivas e tive vários contatos com pessoas. Foi muito interessante do ponto de vista observacional. E cheguei à ideia de que existe cooptação, sim. Uma “cooptação amorosa”, às vezes passional, no dizer de Piera Aulagnier. Você passa a ser persona non grata a partir do momento em que não pertence a determinado grupo. Mas eu gostaria de retomar essa questão das “capacidades necessárias no exercício da função analítica”. E digo o seguinte: Freud, um iluminista, apontou como sinais de saúde psíquica “trabalhar e amar”. O modelo do trabalho percorre toda sua obra. Ele era um modernista, um moderno, um típico pensador da modernidade. O trabalho para ele era essencial: trabalho dos sonhos, e-labor-ação, trabalho psíquico, etc., energias que movem o trabalho psíquico. E a sua utopia predileta também foi assinalada nessa fórmula trabalhar-amar: o amor genital, o primado da genitalidade. Hoje temos que questionar, em parte, tudo isso.

Winnicott acrescentou um novo modelo: o brincar (play). A capacidade de brincar é crucial para um psicanalista. A meu ver, se ele não puder brincar, não pode ser psicanalista. Winnicott dizia que a psicanálise é uma forma especializada do brincar. E eu concordo. Ainda que trate dos assuntos mais escabrosos e mais difíceis, existe um prazer fino em ser analista que está ligado ao brincar. Ela é diferente da noção de jogo (game), que pode envolver uma estereotipia mecânica e regras geridas na rigidez.

Winnicott era um analista que sabia brincar: no setting, com as palavras, com as coisas, com o chiste, a arte e as ideias. Brincar é criação, além de estar em sintonia com a flutuação atenta na análise.

Não se enganem com a “leveza” do modelo: o brincar é coisa muito séria. Observem uma criança brincando, à vontade. Ela está muito concentrada, com uma atenção que raramente vemos no trabalho escolar e está lidando com assuntos fundamentais do seu mundo interno. O prazer faz parte, mas o excesso de excitação, o rictus compulsivo interrompe o brincar (play), o transforma ou em jogo (game) ou em masturbação. Brincar envolve um prazer do ego, mas não se reduz a isso. Quando pais me procuram para uma análise de uma criança, pergunto a eles: “Ela brinca? Como?” São critérios diagnósticos.

Um analista bastante conhecido nosso, Yutaka Kubo, perguntava aos surpresos postulantes à análise, nas suas entrevistas: “Você tem um hobby?” Kubo tinha razão em fazer essa pergunta, apesar de não ter sido winnicottiano.

Com relação à questão sobre a análise didática, como penso que não há diferença de fundo entre ela e a chamada análise comum, mas uma diferença de poder, limito-me a dizer as capacidades requeridas de um analista em geral. Além do que todos já sabem sobre lisura ética, responsabilidade e sensibilidade é preciso acrescentar que um psicanalista não precisa parecer um cientista voltado para o saber segundo o padrão clássico. Para mim – a partir de minha experiência limitada, é claro –, um psicanalista precisa ter acesso à vida mental e ser capaz de interrogar o senso comum, ir contra ele, questionar a fé perceptiva e refletir sobre ela, mesmo sendo uma pessoa comum.

Ester – Queria continuar a refletir um pouco a respeito do que o Reinaldo disse. Quando se discute a questão da análise didática, esquecemos que desde que consideramos necessário usar algum critério de definição de funções, algum limite, esses sempre serão mais ou menos arbitrários e nascidos dentro de um determinado contexto histórico na Instituição. Qualquer que seja, o critério escolhido irá demarcar dois territórios: o território de inclusão e o de não inclusão. Outros gradientes, de maior ou menor experiência acabam por estruturar hierarquias funcionais espontâneas. Que por sua função estruturante são essenciais ao funcionamento de uma instituição. Essa estrutura, porém, não pode ser excessivamente rígida, impermeável. Deve permanecer viva e ter capacidade de se autoremodelar. Sempre haverá frustração, insatisfação e questionamento. O que é muito salutar, caso leve à autoreflexão, investigação e diálogo no interior da instituição. Fica sempre o desafio de diferenciar esse tipo de interrogação de outros tipos de manifestação de insatisfação e mal-estar que apontariam para outras direções.

Quanto à época do Hélio Pellegrino, especialmente meados e fim da década de 70, tínhamos diferenças importantes em relação ao momento atual. Uma delas, focalizando apenas o ambiente intra-institucional para simplificar, e desconsiderando aqui outras variáveis, como o cenário cultural e político, diz respeito à ordem de grandeza, ao tamanho dos grupos, à quantidade de seus componentes, o que muda radicalmente a sua dinâmica.

Por exemplo, quando apresentei meu currículo para o Instituto havia meia dúzia de analistas didatas, número que aproximadamente dobrou quando fui escolher um analista. Esperei dois anos para começar a análise didática com o analista que escolhi.

Hoje temos aqui na SBPSP, tanto em termos de quantidade como de diferenças de orientação, uma possibilidade tão ampla de escolha que até poderíamos pensar em termos de seleção natural. Metaforicamente, não teríamos mais um baronato e sim uma pequena burguesia…

João Frayze – Em relação à análise didática, posso até ser visto como conservador, mas eu considero essa função importante, assim como acho importante a hierarquia institucional, o processo cerimonial de passagem de um estágio para outro. Os rituais de passagem dão forma ao desenvolvimento humano. As sociedades primitivas mostram isso. Sartre pensava assim. Agora, há analistas e analistas. Nós sabemos que no nosso trabalho o aspecto pessoal é fundamental. Então, o problema não é a função didática. Existe a questão da pessoa que cumpre essa função. Agora, sobre a questão da burguesia, há um aspecto que não podemos esquecer que é o do custo da formação. O indivíduo que se candidata ao Instituto sabe previamente que terá que fazer um investimento econômico alto. E como a Ester falou em critérios, esse aspecto econômico é um critério tácito que pré-seleciona os candidatos, antes de qualquer seleção oficial acontecer. Isso tem que ser considerado porque pode ter consequências muito sérias. De fato, da burguesia nenhum de nós escapa. No entanto, a burguesia não é homogênea. Há uma burguesia ilustrada, esclarecida, que aprecia verdadeiramente a cultura. Mas, há também uma burguesia tosca que utiliza o capital apenas para o consumo de signos de status que ornamentam a sua própria imagem, atitude que é disfarçada com algum verniz. Afinal, a cultura do espetáculo é, no mundo contemporâneo, hegemônica e esses dispositivos do culto à imagem e do disfarce são fortes, desde que instituídos socialmente. Assim, se o indivíduo não tiver espírito crítico e abertura para interrogar a fé perceptiva, como lembrou o Reinaldo, esses dispositivos são assimilados naturalmente e passam a regular a ação. Ora, pode acontecer que o indivíduo selecionado seja filiado a essa burguesia tosca que vê a Sociedade como grife, mas não tem verdadeiro apreço nem pela arte, nem pela cultura. Aí a situação é triste porque o culto à pura sensibilidade é uma atitude romântica que, como se sabe, leva ao obscurantismo e ao autoritarismo.

JP – Houve um congresso interno da SBPSP em Atibaia, há uns dois anos, no qual se discutiu muito a questão da análise didática: a frequência da análise, a manutenção da figura e da função do analista didata. Um grupo defendeu a ideia de que a função didática deveria ser fruto da generosidade e da gratidão do analista formado dentro da instituição. Deveria ser uma análise de baixo custo e o critério deveria ser a reprodução, aperfeiçoada se possível, do conhecimento e da formação que se teve. Houve a principio uma grande aceitação dessa ideia, mas que acabou abortando, o que nos desagradou muito. Mas a questão que vocês trazem é fundamental: precisamos tomar muito cuidado em manter a democracia como coisa fundamental no funcionamento do nosso instituto. E também a questão do perigo que existe de formarmos e ajudarmos a reprodução de analistas que provêm de uma classe social muito semelhante. Isso que vocês dizem hoje, que existe certa inconsciência sobre a nossa inserção de classe, sobre o nosso patrimônio econômico, sobre o quanto nossa formação é cara, é algo que nos prejudica, mesmo. É ruim não estarmos conscientes da nossa condição social. Sem essa consciência passamos a fazer uma reprodução dos preconceitos, das hierarquias sociais, de ideias que parecem ser comuns e são ideologias.

Em que medida pode-se considerar que o paradoxo e o espaço transicional modificam a concepção de transferência? E o conceito de interpretação?

Reinaldo – O espaço transicional é paradoxal, é o próprio campo do paradoxo. Em uma de suas “conferências brasileiras”, André Green, um freudiano bem influenciado pelo pensamento de Winnicott, disse que “o campo transicional é uma grande ideia que recusa a fechar-se no dilema: será que é interno ou será que é externo? É uma ideia que transforma a noção de limite. O interesse da noção de limite é separar dois campos. Winnicott nos diz: o limite não é uma linha, o limite é, ele próprio, um território”. É uma no man’s land, que nos coloca problemas lógicos: onde está o objeto interno? O que é o objeto transicional: interno ou externo? As coisas concretas do mundo externo, usadas pela criança, têm um sentido exclusivamente interno ou constituem apenas o sensorial externo? O sujeito e o objeto estão separados? Saímos da lógica binária do computador e entramos no reino do “talvez”. Diz Green: “É externo ou interno? Responda: sim ou não?”. Winnicott diz: “Eu não respondo nem sim nem não: o objeto transicional é e não é o seio”.

Ao se abrir esse território, evidentemente, mudam-se as noções de transferência e de interpretação. A meu ver, a transferência, não só para Winnicott, mas para todo o chamado Middle Group, já vinha mudando desde Ferenczi, uma das principais influências, deixando de ser apenas, como em Freud, reedição, rememoração e, consequentemente, reconstrução do passado. Deixou de ser somente busca do que teria havido, mas principalmente uma apreensão do que não houve, do que não aconteceu: a mãe que faltou, a experiência emocional que não ocorreu, áreas constitutivas que não nasceram etc. Com o surgimento da ênfase na relação de objeto, pela qual Klein foi bastante responsável, a noção de limite entre sujeito e objeto também se foi transformando: partes do self enquistadas no objeto e vice-versa, contratransferência produtiva, primado da transferência no aqui-e-agora, o analista como depositário de partes do self não realizadas do paciente, etc.

Tudo isso se encontra também em Winnicott, o mais kleiniano, junto com Bion, dos psicanalistas ingleses. Digo essa frase como provocação. Um amigo, o Outeiral, costuma dizer que Winnicott foi o mais freudiano dos ingleses. Digo que ele foi o mais kleiniano. Winnicott acrescenta algo que decorre disso tudo, mas é uma nova concepção da transferência: a vê como um processo inédito, novo, uma relação nunca havida entre o Eu e o Outro que remete para o futuro e o desconhecido, visando não o desconhecido em si mesmo, mas visando a dar guarida aos anseios não vividos e mesmo não formulados do paciente, efeitos daquilo que não ocorreu. Como um processo transicional, a realização simbólica está presente, mas nem sempre na forma de interpretação verbal. Às vezes, até o silêncio que acompanha um gesto espontâneo do paciente, ou a presença do analista e os objetos do consultório fazem o papel de apresentação do objeto, sobretudo nos casos em que há algum grau de regressão ou de falha constitutiva.

Se considerarmos que existe um processo de ilusão, anterior à entrada plena na transicionalidade, onde o objeto escolhido é complementar ao sujeito – o famoso objeto subjetivo – então é necessária a diferenciação precisa entre o que é ilusão (expressão do objeto subjetivo) e o que é alucinação. Se interpretarmos uma ilusão como se fosse uma alucinação, incorremos numa invasão de território perigosa, impedindo o paciente de evoluir e gerando, quem sabe, uma transferência negativa.

Outra concepção relativa à transferência negativa: ela é vista muito mais como consequência da falha, intrusão ou falta de empatia do analista, e não como uma obra exclusiva do paciente ou derivada apenas de projeções identificativas (exitosas ou não) do paciente. Muda muito a concepção. Quem falha e provoca a transferência negativa nesse caso pode ser o próprio analista

Ester – Acho que há uma evolução no trabalho clínico que traz em seu bojo, entre outras contribuições, essa. Eu fico muito aflita com preconceitos, estereótipos. Quem acompanha a correspondência de Winnicott, publicada em O gesto espontâneo, verá alguém muito atento, participante e às vezes contundente em suas críticas. Sem qualquer proximidade com a caricatura do “analista bonzinho”. Precisamos tomar cuidado com os preconceitos. Existem sim invariantes em psicanálise, e com elas a possibilidade de diálogo e troca entre os diferentes caminhos e preferências conceituais. Uma experiência marcante para mim se deu em um congresso da Fepal, na apresentação de um colega argentino cuja orientação era estritamente freudiana com acento lacaniano, isto é, um trabalho muito fundamentado na linguagem. A delicadeza do trabalho clínico, a apurada observação dos fatos, e a precisão da comunicação, embora em um dialeto diferente, permitiu que os presentes chegassem a um consenso clínico através de diferentes pontos de vista e ferramentas conceituais diversas. Quando estamos em contato com o analisando e conseguimos lançar as bases para um trabalho conjunto, inevitavelmente estamos numa área compartilhada. Não podemos esquecer que foi Melanie Klein que introduziu o brincar na psicanálise. Quando acompanho as descrições clínicas de Klein ou de Winnicott não vejo grandes diferenças. A distância surge no modo de conceitualizar a experiência e aumenta a passos largos quando as ideias de um determinado autor passam a fazer “escola”. E a cada “geração”, pequenas diferenças se acentuam, assim como dialetos e idiossincrasias.

João Frayze – Sobre as duas concepções de transferência, eu também penso que não é possível hierarquizá-las como melhor ou pior. Elas são diferentes. Porém, é preciso notar que a partir das ideias de paradoxo e de transicionalidade, nem que a gente queira, não é possível trabalhar com a concepção de transferência como atualização de uma situação passada do paciente no presente da relação com o analista, o que envolveria repetição. Ao ser entendida como o que não foi vivido anteriormente pelo paciente e é experienciado na análise pela primeira vez, a transferência situa-se num campo de grande complexidade porque ao paciente não é possível fazer um reconhecimento. Diante de algo desconhecido porque nunca foi vivido ele terá que conhecê-lo. E a interpretação terá que ser compatível com essa experiência de conhecimento. O importante é que o analista possa, transferencialmente, compartilhar com o analisando esse conhecimento que é novo para ambos e exige criatividade de ambos. Nesse caso, cabe o conceito de interpretação como processo tal como foi elaborado por Fabio Herrmann. É a “arte da interpretação” como “ruptura de campo” que segue o princípio do “deixar que surja para, então, ser tomado em consideração”. A ideia é que, no decorrer do processo, rompe-se a lógica que sustenta o campo banalizado das comunicações do paciente. E, então, a percepção do novo pode acontecer. É um movimento de dupla mão, como diria Bollas, de destruição-construção.

Ester – Há pessoas para as quais às vezes é necessário um trabalho prévio e outras que têm um grau de desenvolvimento em que é possível trabalhar de outra maneira. O próprio Winnicott fazia questão de diferenciar isso. O manejo ou o holding, como ele propunha, não era para qualquer paciente. Era para aqueles a quem isso talvez tivesse faltado. Do modo como ele descreve em seu artigo sobre o uso de um objeto.

Reinaldo – Winnicott dizia que a análise de um neurótico é muito parecida com a kleiniana, enquanto a análise de um psicótico, de um borderline ou de uma criança é feita, necessariamente, de maneira diferente. Concordo que Klein introduziu o brincar, mas ela não assumiu o brincar como parte intrínseca e natureza do processo analítico. Ela analisava a criança como se fosse análise de adulto. Mantinha o esquema rigorosamente igual. Havia uma diferença entre Klein e Winnicott. Mas ele foi profundamente influenciado por ela. Vários autores se perguntam como era possível que figuras como Merleau-Ponty e Winnicott tivessem pontos de convergência tão grandes. Um filósofo, inicialmente resistente à psicanálise, que se foi encaminhando para ela e fez um trabalho muito próximo ao do Winnicott. Diz coisas absolutamente semelhantes. As pessoas lembram: “Eles tiveram um amigo comum que era o Lacan”. Acho que o elo fundante foi a Melanie Klein. Merleau-Ponty estudou bastante Klein e estava muito interessado na questão da ontologia do corpo. O corpo-sujeito, que é próximo do psicossoma do Winnicott. Ele foi buscar a ideia do corpo-sujeito, em grande parte, em Melanie Klein.

JP – Poderíamos pensar em atos criativos que favorecem integrações psíquicas e maior apropriação do self e outros que, em função da compulsão à criação, nem sempre possibilitam vínculos organizadores? João, o que pensa da body art?

João Frayze – Acho que se o ato é criativo, ao fim e ao cabo, ele sempre favorece alguma integração psíquica. Agora, a compulsão à criação envolve os riscos da repetição, as falsas elaborações. Joyce McDougall, por exemplo, distingue a criatividade que acontece na arte como ilusão da realidade e a que acontece na perversão como ilusão imposta ao sujeito como realidade. Agora, no caso da body art, é preciso considerar como ela surgiu, caso contrário ela fica sem sentido e parecendo pura atuação. Então, há uma ideia desenvolvida por Adorno que pode nos ajudar a entender o que move esses artistas da body art. Ele escreve o seguinte: “Depois de Auschwitz, a poesia não é mais possível, só resta ao poeta, ao artista, o silêncio”. Os artistas contemporâneos partem dessa situação. Quer dizer, todas as esperanças da arte moderna foram frustradas pelas duas grandes guerras. Os artistas tinham esperança no poder transformador da arte e tal esperança foi finalmente anulada pelo holocausto. Então, no final dos anos 40, os artistas começam a se reerguer, encontrando no próprio corpo – como Pollock, por exemplo – a possibilidade de instauração de alguma coisa nova em relação à arte moderna. E a partir daí houve uma radicalização do uso do corpo vivo do artista que resultará na body art. Não podemos esquecer que muitos desses artistas vêm do leste europeu, região da Europa devastada pela guerra, cujas propostas chegam a ser verdadeiramente sacrificais. Já nos anos 60, no contexto da guerra fria e da guerra no Vietnã, os norte-americanos aderem ao movimento e, mais tarde ainda, novas propostas surgem no contexto das guerras étnicas, na Europa. O corpo passa a ser o centro de ações variadas que podem ser ritualizadas e muito violentas, inspiradas em cultos e religiões tradicionais. Ou, então, inspiradas em práticas cotidianas ou em acontecimentos extraordinários da vida nas metrópoles. Em todos os casos, essas ações definem uma poética que recusa a mercantilização da arte e que procura rearticular arte e vida ainda que, para isso, seja necessário coagir o corpo a manifestar sentidos através da dor. Mais recentemente, o alvo da interrogação desses artistas é o constrangimento estético que a contemporaneidade passou a exercer sobre os corpos, ao discipliná-los com padrões de beleza cada vez mais exigentes. Com esse questionamento, denunciam a relação de exterioridade entre indivíduo e corpo próprio. Vejam que a posição que os artistas assumem é, sobretudo, política e que uma das perguntas que os move é a seguinte: que arte é possível fazer depois da brutalidade das guerras, da ação totalitarista, nazista e fascista? E nisso a gente pode reconhecer a tese do Adorno de que, depois do holocausto, acontecimento absolutamente irreparável, a arte não seria mais possível. Claro que ele estava se referindo à arte moderna que, em larga medida, desde a origem, era movida pela esperança utópica de transformar o mundo num mundo justo. E mais do que instaurar a desesperança, o impacto da segunda guerra sobre os artistas foi o de mostrar aquilo que a racionalidade humana foi capaz de fazer. Daí, surgir, inicialmente, o expressionismo abstrato e, pouco depois, a body art. Com essas poéticas, os artistas voltaram-se para si mesmos, buscaram matéria para a arte nas emoções, no corpo, ou em qualquer vestígio corporal. Não caberia, portanto, falar em excesso compulsivo ou aplicar qualquer psicopatologia a esse tipo de manifestação da arte, como poderiam imaginar alguns ideólogos. Ao contrário, trata-se de uma poética que deliberadamente não representa coisa alguma, mas apresenta aos olhos míopes de um público que só quer diversão aquilo que se passa ao seu redor e que ele não quer ou não pode ver. Daí o caráter excessivo da forma das propostas que tematizam a dor, a solidão, o vazio, o absurdo, a violência, presentes na vida coletiva, relacionados à perversão das relações interpessoais. São aspectos da vida contemporânea que a body art interroga e que também podem ser observados na clínica. No Brasil, não são muitos os artistas body art. Mas, como todos os demais artistas contemporâneos, eles também deixam claro que na arte o que importa é o processo mais do que o resultado, mais a forma da verdade do que a forma da beleza. Então, sem o conhecimento do projeto, não é possível apreender o sentido do que é exposto. E ao examinar os projetos da body art conclui-se que não são catárticos, nem espontâneos, mas refletidos e elaborados conceitualmente com recursos encontrados nas outras artes, na história da arte, nas ciências, na medicina e na própria psicanálise.

Reinaldo – Tem um artista inglês, Paul McCarthy, que faz vídeos e se apresenta masturbando-se em público. Em certo ponto, diz: “Eu não toco violino, eu me masturbo.” É a inversão da famosa questão da equação simbólica. Na Modern Tate Gallery tem um vídeo dele se masturbando. É chocante. É a dessublimação, como dizia o Marcuse.

João Frayze – Muito provavelmente esse artista leu Melanie Klein ou Hanna Segall. Isso é recorrente entre esses artistas, ler um autor e realizar um trabalho, uma performance, como citação. De qualquer maneira, na plêiade de artistas body art, há artistas muito bons e outros medíocres, como em qualquer campo. O que chama a atenção dos pesquisadores é a força dessa poética que ainda é muito presente. Só para terem uma ideia, neste ano, o MOMA de Nova York realizou uma grande retrospectiva da obra de Marina Abramovic, uma artista importante cujos trabalhos são muito bem fundamentados. Visitei essa mostra e pude ver que uma das perguntas dela ainda diz: “É possível fazer arte hoje que não venha da guerra?”. Bom, ela vem da Sérvia. E realiza instalações-performáticas dramáticas nas quais interroga a questão dos limites da condição humana, do corpo, do autocontrole, da comunicação, da memória pessoal e coletiva. Também problematiza a arte e os espaços da arte. Há propostas comoventes como Balkan Barroque, que interroga a contradição entre ternura e violência, apresentada na Bienal de Veneza, em 1997. Outras violentas, outras com certo humor, outras em que apresentam referências multiculturais, cantos folclóricos, depoimentos de pessoas, memórias de parentes (dela inclusive), ou ainda performances de longa duração. Em geral, as performances são registradas em fotografia ou vídeo que, depois, são apresentadas ao grande público. Mas, nessa retrospectiva, além do conjunto da obra, o público teve acesso a uma manifestação viva da artista que durou 600 horas. É a performance mais longa de que se tem notícia, em que a artista retoma uma performance mais antiga, realizada por ela mesma em parceria com seu companheiro, trabalhando a imobilidade e o silêncio na comunicação. Na performance ela fica horas imóvel, sentada numa mesa. O público pode sentar em frente dela e confrontar.

Outro aspecto é que se alguns artistas vão ao limite de si mesmos, outros usam técnicas teatrais para a apresentação de algo traumático do mundo atual. Com isso, pretendem fazer o público refletir. Para Marina Abramovic a performance é um instrumento para elevar o espírito do público, justamente porque ela sabe que ele pode matar o artista quando convidado a participar de certas manifestações. Agora, não pensem vocês que essa é a linguagem da arte que eu mais curto. Para mim, as artes são uma área de pesquisa. Há muitos anos, eu integro um grupo interdisciplinar que investiga a dinâmica das exposições de arte contemporânea. São focados os artistas, as obras e, também, os receptores, isto é, o crítico, o curador, o cenógrafo e o espectador comum. Então, por exemplo, há perguntas sobre o processo da recepção. Assim: qual a demanda psíquica do receptor em relação à arte atual? Há “reciprocidade estética” (Meltzer) entre receptor e artista? A arte, hoje, oferece aos receptores um lugar para a “experiência ilusória” (Winnicott/Bollas)? Que significa o silêncio do público nas mostras contemporâneas? Que relações existem entre a destruição-criadora e a “pulsão de morte” (Freud/Bollas)? Diante dessas questões, sem dúvida, a psicanálise terá o que oferecer à crítica de arte. Mas, para isso acontecer, é preciso realizar pesquisa de campo junto às exposições, em particular, aquelas que perturbam a recepção. Daí, a body art.

Reinaldo – Quanto à pergunta do Jornal, sim, podemos pensar nessa direção. O manejo do setting, às vezes, é criativo e integrador. Mas cada situação é específica. Exemplo: o paciente pede uma sessão extra, por ansiedade ou desespero momentâneo, e o analista recusa por obedecer ao número de sessões convencionado – este pode ser um gesto obstaculizador do vínculo. Alguns analistas “cedem” ao risco de “atuação” e realizam a sessão extra, mas inferem que o paciente apresenta um avanço integrador na sessão seguinte em função das interpretações dadas sobre, por exemplo, as identificações projetivas do paciente, e não pelo gesto. Isso é um equívoco muito comum. Winnicott dizia que a própria interpretação pode ser sentida pelo paciente como um holding e um gesto integrador. Aliás, dizia que o melhor holding é uma boa interpretação.

É possível constatar também que é preciso fazer distinções entre as formações simbólicas possíveis. Algumas são integradoras, têm origem na espontaneidade, outras não. O sujeito pode ter a capacidade simbólica sem ter acesso ao campo dos fenômenos transicionais; muitas vezes nestas situações há uma utilização de símbolos que leva quase sempre ao surgimento do falso self. O sujeito parece estar fazendo análise e até criando, mas há falsificação. Nesses casos ocorre imitação, intelectualização, às vezes precocidade ou prematuridade (o célebre “bebê sábio”). O símbolo que tem sua origem no espaço potencial, na relação intersubjetiva, põe em formação – como diz nosso amigo Gilberto Safra –, põe em realização, expande, recria o self. O símbolo e os fenômenos transicionais apresentam e representam o self no mundo da realidade compartilhada. Ao brincarmos com uma criança, estamos participando de gestos criativos nessa direção, além, muito além, da pura interpretação verbal, às vezes, necessária.

JP – Para finalizar, agradecemos nossos convidados por esta essa instigante conversa. Temos o privilégio de participar de uma sociedade como a SBPSP, que abriga uma diversidade de tendências e diferentes formas de pensamento psicanalítico. Esse encontro de hoje só comprova como é possível um diálogo fértil e produtivo entre colegas e como saímos todos enriquecidos.

 

 

1 Cândida Sé Holovko, Mirian Malzyner, Eduardo Boralli Rocha, Eliana Rache, Silvia Lobo, Yeda Saigh. (Roberto Azevedo).
2 Ester Sandler, médica e psicanalista. Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Docente do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes. Tradutora de artigos e livros de Roger Money-Kyrle, Wilfred R. Bion, Antonino Ferro e Stefano Bolognini. João Frayze, psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Professor livre-docente do Instituto de Psicologia e do Programa Interunidades em Estética e História da Arte da USP. Membro da Association Internationale des Critiques d’Art (AICA). Autor de livros e artigos sobre estética, arte e psicanálise. Reinaldo Lobo, psicólogo, psicanalista, formado em Filosofia (Bacharel, Mestre e Doutorando pela USP). Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
3 Guimarães Rosa: coletânea organizada por Eduardo F. Coutinho, Editora civilização brasileira, 1983, pp. 62-89.

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