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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.43 no.79 São Paulo dez. 2010
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
A consulta terapêutica: um espaço potencial para a construção da parentalidade1
The therapeutic consultation: a potential space for the construction of parenthood
La consulta terapéutica: un espacio potencial para la construcción de la parentalidad
Maria Cecília Pereira da Silva2
Psicanalista, membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Membro do Departamento de Psicanálise de Criança
Professora do Instituto Sedes Sapientiae do Curso de Introdução à Intervenção Precoce na Relação Pais-Bebê
Colaboradora e supervisora do Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo
RESUMO
Este trabalho discute como as consultas terapêuticas utilizadas em intervenções nas relações iniciais pais-bebês são favorecedoras da constituição da parentalidade. Destaca como este setting constrói um espaço potencial fundamental para o estabelecimento da parentalidade e a prevenção de transtornos de desenvolvimento, especialmente naquelas duplas pais-bebês que se caracterizam como em situações de risco. Ilustra com algumas vinhetas de consultas terapêuticas realizadas com uma mãe adolescente e seu bebê.
Palavras-chave: Consultas terapêuticas, Espaço potencial, Parentalidade, Intervenção nas relações iniciais, Vínculo pais-bebê.
ABSTRACT
This paper debates as to how therapeutic consultations utilized in initial parentinfant relations interventions favour the constitution of parenthood. It outlines how this setting builds a fundamental potential space for the establishment of parenthood and the prevention of development disorders, especially in those parents-infant pairs characterized as at risk situations. It is illustrated with some therapeutic consultation’s fragments of a teenage mother and her baby.
Keywords: Therapeutic consultation, Potential space, Parenthood, Precocious intervention, Parent-baby bond.
RESUMEN
Este trabajo discute como las consultas terapéuticas utilizadas en intervenciones en las relaciones iniciales padres-bebés son favorecedoras de la constitución de la parentalidad. Destaca como este setting construye un espacio potencial fundamental para el establecimiento de la parentalidad y la prevención de trastornos del desarrollo especialmente en aquellas duplas padres-bebés que se caracterizan como en situaciones de riesgo. IIustra con algunas viñetas de consultas terapéuticas realizadas con una madre adolescente y su bebé.
Palabras clave: Consultas terapéuticas, Espacio potencial, Parentalidad, Intervención en las relaciones iniciales, Vínculo padres-bebé.
Para todo indivíduo, o uso desse espaço (potencial) é determinado
pelas experiências de vida que se efetuam nos estádios primitivos de sua existência.
(Winnicott, 1971/1975c, p. 140).
As consultas terapêuticas, originalmente introduzidas por Winnicott (1971, 1988a) e desenvolvidas por Lebovici (1986), propiciam a observação da interação mãe-bebê e, sempre que possível, com os outros membros da família, sobretudo o pai. Elas permitem que os pais falem sobre o bebê, sobre eles mesmos e sobre suas famílias, sobre seu passado e sobre a repetição de suas condutas. Procura-se colher a história do bebê desde o relacionamento de seus pais com seus próprios pais, até a concepção, nascimento, desenvolvimento e eventual sintoma. Busca-se o acesso às diferentes representações do bebê imaginário fantasmático, cultural e real, que os progenitores, em função de sua história, têm de seu pequeno filho (Lebovici & Stoleru, 1983; Lebovici & Weil-Halpern, 1989; Lebovici, Mazet & Visier, 1989; Lebovici, 1991, 1993, 1998). Nesse setting é oferecido um relacionamento humano e natural em que a dupla pais-bebê e o terapeuta possam se surpreender com os sentimentos e insigths que surgirem durante os encontros (Mélega, 1997, Silva, 2002). Dessa forma, esse setting se configura como um espaço potencial entre o bebê/criança e seus pais, quando a experiência emocional produzida no aqui-e-agora da sessão permite que a criança experimente um alto grau de confiança de que a mãe não deixará de estar ali quando subitamente necessária (Winnicott, 1971, 1975a).
Já a parentalidade é uma função que se desenvolve interiormente quando se origina o desejo de ter um filho e na relação com ele. O bebê "faz" seus pais, assim como os pais "fazem" o bebê existir. Para além da procriação e da função biológica, a parentalidade é produto do parentesco biológico e do processo de tornar-se pai e mãe. É uma reflexão sobre a descendência que implica um complexo processo psíquico-simbólico que articula diferentes perspectivas teóricas num contexto psicossocial. O conceito de parentalidade, portanto, contém a ideia da função parental e a ideia de parentesco, a história da origem do bebê e das gerações que precedem seu nascimento (Silva, 2009 e 2011; Solis-Ponton, 2004).
Nesse sentido, as consultas terapêuticas buscam favorecer as condições básicas da função parental para que se estabeleça o vínculo mãe-bebê: "a mãe ter maturidade emocional suficiente para poder vivenciar todos os tipos de sentimentos suscitados pelo cuidado do bebê sem senti-los como ameaçadores, o bebê ter capacidade de solicitar o contato, a mãe ter suporte ambiental e um limite de demandas que ela possa suportar" (Shuttleworth, 1989/1997, p. 29-30). E para que os pais sejam capazes de "gerar amor, manter a esperança, conter a dor depressiva e promover o pensar" (Meltzer & Harris, 1986/1990, p. 36).
Neste trabalho procuro ilustrar como as consultas terapêuticas se constituem em um setting que pode recriar um espaço potencial para a construção da parentalidade, especialmente naquelas duplas mãe-bebê que se configuram como em situações de risco. Dentre as situações de risco estão: gestações de risco, duplas mãe-bebê com bebês prematuros ou com alguma malformação, mães adolescentes, mães com depressão, mortes ou lutos não elaborados de parentes próximos aos pais, além das novas geometrias familiares: matrimônios mistos, separações, famílias reconstituídas, unoparentais ou homoparentais, as reproduções assistidas, adoção sob múltiplas formas etc. Nestes novos arranjos, os pais se encontram muitas vezes despojados de sua função parental e os filhos são projetos narcísicos concebidos sob o impacto de violência emocional (tanto para os pais como para os bebês). Essas situações, acrescidas às dificuldades cada vez mais comuns para a constituição dos vínculos iniciais pais-bebê, podem se configurar em traumatismos parentais e dificultar o exercício saudável da função materna e paterna, interferindo no desenvolvimento emocional do bebê, demandando uma atenção sobre a função parental e sobre a construção das relações iniciais.
Em minha pesquisa de pós-doutorado, A construção da parentalidade em mães adolescentes com vistas à prevenção de transtornos de desenvolvimento (Silva, 2009 e 2011), convidei para algumas consultas terapêuticas jovens, entre 11 e 18 anos, que tinham acabado de ter seus bebês no Hospital do Campo Limpo. Meu objetivo era favorecer a construção da parentalidade nessas duplas mães-bebês caracterizadas como duplas de risco (Brasil, 2005). Como a jovem mãe se encontra em um período de construção da sua identidade, incluir a parentalidade nesse momento da vida torna-se uma tarefa difícil de ser desempenhada satisfatoriamente sem a ajuda da família ampliada ou de uma intervenção psicológica preventiva. Além disso, a qualidade das primeiras relações emocionais pais-bebê, especialmente mãe-bebê, é determinante para o desenvolvimento global sadio das crianças.
As consultas em geral iniciavam com a proposição aberta: "Conte para nós sobre seu bebê". Nossa preocupação era indagar a respeito da representação imaginária, fantasmática e real que a mãe tinha de seu filho, representação aqui entendida como uma construção subjetiva. Dessa forma, iniciava-se uma narrativa daquela dupla mãe-bebê desde a concepção, gestação, parto até o momento de cada consulta. Uma narrativa recheada pela história pessoal, real e imaginária da mãe com seu filho, construindo um espaço potencial e mental para parentalizar o bebê. Além disso, o resgate da história pessoal permitia que os aspectos transgeracionais fossem nomeados e os mandatos pudessem ser desfeitos (Silva, 2002, 2003; Bydlowski, 1997). Depois, a cada consulta, convidava os pais/mães a falarem sobre o que era ser pai/mãe para cada um, o que percebiam das necessidades e competências do bebê, de tal forma que o processo de parentalização pudesse ir se construindo (Silva, 2009 e 2011).
Apresento a seguir algumas vinhetas de nove consultas terapêuticas realizadas com uma dupla mãe adolescente e seu bebê que ilustram como este setting se constituiu em um espaço potencial favorecedor para a construção da parentalidade e a prevenção de transtornos de desenvolvimento.
Maria Lúcia e Laura: uma dupla assustada
Maria Lúcia e Laura foi uma dessas duplas mãe-bebê que participaram da pesquisa. Na primeira consulta Maria Lúcia nos contou que, aos 17 anos, cursava o segundo ano do ensino médio, já namorava há alguns meses quando ficou um mês sem usar a camisinha e engravidou. Levou um susto, não queria. Tentou de todas as maneiras abortar, pois sempre foi muito "baladeira" e não queria perder as festas para cuidar de um bebê. Seus amigos tiravam "sarro" dela, diziam que ela não iria mais poder sair, teria que ficar presa em casa, iria perder sua liberdade. Então, sentindo-se influenciada por eles, tomou vários medicamentos para interromper a gravidez.
Quando souberam de sua gravidez, seu pai quis morrer e sua mãe ficou muito nervosa, quis bater, depois aceitaram. O pai do bebê ficou ao seu lado, assumiu a filha e disse: Se você quiser tirar você tira, se você quiser nós vamos criar. Eles continuaram namorando, mas cada um morando em sua casa com seus respectivos pais.
Laura nasceu a termo de parto normal, mas com sequelas na laringe e por isso ficou 21 dias na UTI neonatal em observação, sendo alimentada por sonda. Quando foi para casa, no início tudo foi difícil. Laura não conseguia pegar o bico do seio, tinha dificuldade para mamar, ficou gripada e precisou ser internada para inalação, pois tossia muito e chegou a ficar roxinha.
Maria Lúcia tinha muito medo do que poderia acontecer com seu bebê, achava que era muita responsabilidade ser mãe. Os avós maternos ajudavam bastante e muitas vezes tornavam-se os pais do bebê, o que aumentava ainda mais o desafio para Maria Lúcia tornar-se mãe. A forma intrusiva da avó já pôde ser observada na primeira consulta em que ela compareceu atropelando a fala de sua filha. Essa era a rede de apoio de Maria Lúcia: muita gente, porém pouco continente.
Então, durante as consultas, procurava apontar as competências de Maria Lúcia, legitimando sua função materna, oferecendo suporte diante dos conflitos com a figura materna, especialmente por ela ser ainda uma adolescente e estar em meio ao processo de construção da própria identidade, momento em que os conflitos edípicos se reeditam. Apontava suas competências para que ela se apropriasse dessa nova função e não fosse engolfada pela figura da avó.
MC – Sua mãe te ajuda?
Mãe – Muito, parece que ela é a mãe da menina. Ela fala que ela é mais mãe do que eu porque ela é avó e mãe, né? Não que ela cuide mais do que eu. Quando ela está chorando ela pega… até enjoa de ver… Ela fala que ela é muito linda… Eu fico com raiva. Eu digo que a mãe sou eu, não vai pegar não. Meu pai quando eu falo não pega, ele não pega… Eu faço tudo, dou banho, brinco com ela.
MC – Como se ela fosse mãe ao quadrado por ser avó… mas a filha é sua…
Mãe – Então, mas ela que fica pegando. Eu falo: não pega (a nenê resmunga, se mexe). Ela fica agoniada… olha como ela fica. Tem hora que ela belisca o rosto dela… Quando ela não consegue pegar a chupeta também ela fica assim.
MC – Ela está falando alguma coisa. O que foi? (bebê chora e mãe a abraça). Quando você fica abraçadinha com ela, ela gosta… Olha como ficou quietinha.
Mãe – Ela está morrendo de sono.
MC – Olha só… você a pegou apertadinha e ela parou (mãe fica olhando para bebê em seu colo). Ela tem uma mamãe que a entende… Você sabe cuidar, nem sempre precisa da sua mãe.
Assim, procurava contribuir para a subjetivação da mãe e narcisizá-la, indicando suas mínimas competências nos cuidados físicos e emocionais para com o bebê, ou mesmo aquelas em potencial. Todo tempo meu olhar estava voltado para a potência e não para a falha ou para aquilo em que a mãe se mostrava incompetente. Deste modo, ia tecendo um trabalho de subjetivação e de asseguramento da função materna que se iniciava, pois suas dificuldades no estabelecimento dessa função se evidenciavam durante as consultas por meio dos adjetivos que atribuía à filha: bagunceira, agoniada, medrosa, assustada, gulosa, traiçoeira, escandalosa, enganadora, enjoadinha, sapeca, danada. Por outro lado, ela nos contou que foi ela quem escolheu o nome do bebê: era o nome de uma menininha que conhecera na praia e achava bonita e esperta. Aos poucos, ela nos descrevia o bebê imaginário que fora construindo durante a gravidez e sua capacidade para lidar com seus sentimentos ambivalentes, indicando um potencial materno a se desenvolver. Quando o bebê estava com um mês, ela disse:
– Ser mãe é bom e é ruim. Não é por poder não sair mais, é muita responsabilidade, eu tenho muito medo agora de acontecer alguma coisa com ela. Ela me dá susto. Tem vez que eu dou mamadeira e ela fica engasgada, ela perde o ar sabe, sei lá. Aí depois ela volta, eu espero ela descansar depois dou de novo. Eu não deixo ninguém dar mamadeira para ela. Todo lugar tem que levar. É complicado… É, por um lado é ruim, por outro é bom. Ah, sei lá, é bom que ela é minha filha. É tudo. Por outro lado é ruim, nem tudo eu posso ir, não posso sair. Meus amigos ficam me pirraçando. Eles vão para a balada e me ligam duas horas da manhã. Mandam eu escutar a música, dá a maior raiva. Esse dia um amigo meu me ligou, estava passando a música que eu adoro, e ele falou: olha eu tô aqui curtindo e você está aí. Respondi: vai chegar a minha hora, mas eu vou curtir bastante, né, com a minha filha.
Durante as consultas procurava favorecer a disponibilidade emocional dessa jovem mãe adolescente – assustada e despreparada – para maternar e para se reconstruir subjetivamente e não somente trabalhar sobre suas defesas. Isto só foi possível graças à transparência psíquica e ao estado de preocupação materna primária próprias desse período. Conversamos sobre os conflitos gerados pelo desejo de viver a adolescência e não se responsabilizar pela maternidade. Maria Lúcia expressava sua frustração em abdicar dos prazeres da adolescência e os estudos: não voltou a estudar. Ela, que adorava sair à noite, na hora da balada seu bebê acordava, dava-lhe um "baile", fazia-lhe companhia, enquanto os amigos lhe telefonavam, provocando inveja e raiva. Maria Lúcia também nos contou que quando saía e levava o bebê, às vezes o esquecia e voltava para casa sem ele: esquecia que tinha uma filha.
Ao favorecer o vínculo mãe-bebê buscava ajudá-la nas dificuldades do aleitamento e nos cuidados com o bebê, pois havia uma tentativa de delegar a outrem essas funções. Maria Lúcia se sentia desaparelhada para compreender o choro de sua filha e logo se sentia insuficiente: amamentou exclusivamente até o primeiro mês, depois passou a complementar com leite em pó e, aos três meses, não amamentava mais, pois seu leite havia secado. Introduziu a mamadeira, assegurando-se ao ver a quantidade de leite administrada ao bebê. Além disso, havia um desejo de que o bebê crescesse logo e ficasse independente dela, pois tinha muito medo de a criança engasgar com o refluxo; quando isso ocorria ela se assustava.
Mãe – Não pega mais no peito, meu leite secou… Está só na mamadeira agora… Tem ainda, mas ela não pega, eu dou o peito e fico uma meia hora e ela não pega. Com a mamadeira ela pega rapidinho, mas no peito acho que o bico é menor, aí é mais difícil. Ela mama de uma em uma hora. É muito gulosa… Mas eu estou diminuindo agora, senão vai ficar muito gorda. Há três dias ela estava chorando, ela já tinha mamado e eu dei mais 90 ml, aí ela voltou tudo… Acho que estava muito cheia a barriguinha dela. Mas ela está bem.
MC – E por que você acha que o seu leite secou?
Mãe – Não sei, porque eu acho que eu dava os dois, eu acho que eu dava mais mamadeira do que peito e tem que ficar estimulando. Aí ainda tem, mas não é o suficiente, o meu leite não sustentava.
MC – Parece que ela percebe que você está dividida. Um lado seu que quer ser mamãe e amamentar e um outro que quer ser garota e ir para a balada. Tem as duas coisas em você…
Mãe – É minha mãe falou isso, minha mãe falou que ela está enjeitando o meu peito.
Buscava, então, contribuir para a subjetivação do bebê, possibilitando que Maria Lúcia identificasse e atendesse aos diferentes significados das demandas físicas e emocionais de Laura. Isso foi possível ao perguntar para Maria Lúcia o nome do bebê; sobre os seus traços, com quem ela achava que o bebê se parecia, se lembrava o pai, ou a avó, ou a tia, o que havia em comum e o que havia de diferente. O processo de subjetivação foi se dando por meio de uma narcisização do bebê, quando apontava alguma característica de Laura que ajudasse sua mãe a olhá-la como uma pessoa diferente que acabara de nascer, com necessidades e um jeito próprio de ser, dependente dela, diferente de uma boneca. E, ainda, chamando atenção para alguma característica do bebê, identificando o choro e as suas necessidades.
No início Maria Lúcia sentia-se insuficiente na função materna e acreditava que o colo da avó era melhor que o dela. Entretanto, quando o bebê estava com sete meses, a função materna se esboçava de uma forma mais consistente:
– Agora está bom. Assim é bom, porque ela não é chata… às vezes eu perco a paciência… Depende do jeito que a gente fala, ela sente. Só de olhar feio para ela, ela começa a chorar… Vai melhorar mais quando ela estiver andando e souber pedir as coisas… Era bem difícil, agora é fácil, agora eu sei. Mais ou menos. A fralda eu olho, se é água, ela bebe muita água, dor de cabeça… Assim, eu sinto quando ela está muito quente, aí eu dou um remedinho. Precisando de banho também, porque ela sua muito.
E quando Laura estava com um ano e três meses, Maria Lúcia falou:
– Eu acho que está na melhor fase, ela sabe pedir as coisas. A Laura é a filhinha que eu pedi a Deus.
Assim, ora brincando ora somente observando o bebê, expressando os sentimentos de Laura e acolhendo a dupla, procurava me oferecer como modelo de parentalização. Lebovici denominava essas ações do terapeuta de enactment e as intervenções empáticas de empatia metaforizante. Esses momentos carregados de emoções Winnicott os denominavam de momento sagrado.
Por meio da empatia da mãe com o bebê e da terapeuta com a dupla mãe-bebê, Laura foi capaz de internalizar um objeto suficientemente bom e sentir-se a salvo em sua passagem da dependência à autonomia, pois é apenas através dessa confiança que um espaço potencial começa a existir. Esse é o paradoxo proposto por Winnicott (1971/1975c), segundo o qual o momento em que o bebê se separa da mãe é o mesmo momento em que preenche o espaço potencial com o brincar e a experiência cultural, como veremos a seguir.
Brincando de assustar e elaborando situações traumáticas
A experiência criativa começa com o viver criativo,
manifestado primeiramente na brincadeira.
(Winnicott, 1971/1975c, p. 140)
Winnicott nos ensina que é por meio do brincar que podemos comunicar e elaborar nossos sentimentos. Com Maria Lúcia e Laura não foi diferente.
O tema do engano, do susto, do medo, esteve presente na história relacional dessa dupla desde o início: a notícia da gravidez, as tentativas de aborto, os medos do que causaram os medicamentos que ela tomou para abortar, o receio das sequelas ao se deparar com o nascimento de Laura e os dias de UTI neonatal devido aos problemas na laringe. Depois em casa, os barulhinhos que ela fazia para respirar e para mamar, seus engasgos, o refluxo, a falta de ar e o ficar roxinha, a dificuldade para amamentar, o leite que secou, foi um início com muitos sustos e medos.
Essa relação vinha carregada de sentimentos de culpa relacionados à rejeição inicial à gravidez e ao desejo de abortar, obstaculizantes do desenvolvimento da função materna e da constituição do vínculo. Como o bebê nasceu com sequelas na laringe, que provocavam dificuldades na alimentação/respiração deixando-a sem ar, Maria Lúcia assustava-se e nesses momentos reeditavam-se as angústias de quando recebeu a notícia da gravidez. Ela sentia-se enganada, traída pelo desejo inconsciente de ser mãe e Laura tornara-se o bebê do susto e do engano. E num círculo vicioso a situação traumática se repetia. Meu trabalho foi o de desfazer essa experiência de susto e engano, contribuindo para a subjetivação do bebê.
Essa situação, ainda traumática e sem representação, foi sendo elaborada nas consultas por meio de brincadeiras que no início partiam de Maria Lúcia para Laura e no final de Laura para a mãe e para mim, quando ela estava com dois anos e sete meses.
No início, quando Laura estava com dois meses e 26 dias, Maria Lúcia pegava uma cobrinha de pelúcia e fazia coceguinhas em seu rosto, ora tirava a cobrinha de sua frente e ora a apresentava novamente de forma brusca, assustando o bebê. Laura reagia arregalando os olhinhos e mexendo os bracinhos e perninhas, expressando desamparo e uma tentativa frágil de se defender. Maria Lúcia ria, meio embaraçada meio nervosa. Essa brincadeira (poderíamos chamar de uma brincadeira?) continha uma tensão emocional sem representação que necessitava ser descarregada. Contratransferencialmente, percebia que essa "brincadeira" comunicava entraves que poderiam estar presentes nessa relação mãe-bebê impedindo uma entrega, um estado de dependência, o estabelecimento de um campo de ilusão na relação mãebebê, ou seja, aquele espaço relacional criado entre a mãe e o bebê que permite o desenvolvimento da curiosidade investigativa e da capacidade criativa (Winnicott, 1951/1988b).
Quando Laura estava com um ano e três meses, pude observá-la andando pela sala de forma solta e curiosa, interagindo de forma comunicativa e brincando de fazde- conta com as xícaras de café, com o processo de simbolização instalado. Laura também brincou de esconde-esconde com a cadeira e a mãe fez o mesmo com a chupeta, como um resquício das brincadeiras iniciais que envolviam enganar o bebê. As duas pareciam elaborar, assim, o processo de separação e individuação. Nesse momento, a mãe pareceu mais amadurecida, embora ainda disputando a função materna com sua mãe/avó. Sentia-se mais segura na maternagem à medida que o bebê conseguia se expressar pedindo o que queria.
Na última consulta em que nos encontramos Laura estava com dois anos e sete meses e por duas vezes me surpreendi com o jogo simbólico que a menininha nos propôs. Laura chegou nessa consulta muito curiosa. Fazia um ano que não nos encontrávamos, mas ela parecia se recordar do local e dos brinquedos. Entrou na sala grudada em sua mãe, muito observadora, e aos poucos foi se soltando enquanto sua mãe contava orgulhosa sobre os feitos da garotinha e de como ela vinha se desenvolvendo bem. Maria Lúcia também estava satisfeita consigo mesma: continuava namorando o pai de sua filha, havia retomado o trabalho e "dado" uma boa mãe.
Laura, mostrando suas competências, brincou de mamãe-filhinha, dando uma mamadeira para uma bonequinha (bem identificada com a figura materna) e com uns óculos de plásticos (novo olhar para a história relacional?). Depois, encontrou um dinossauro e, surpreendentemente, brincou de nos assustar. Em meio a essa brincadeira, de repente, Laura grita apavorada e chora. Ela havia se assustado com um objeto da sala. Identificada com o medo de Laura vou falando lentamente com ela: você se assustou… parece um bicho… você quer ver de perto… (ela vai se aproximando de mim). Surge, mais uma vez, a possibilidade de repetição e de elaboração da situação traumática inicial e Laura ao se assustar agora, no aqui-e-agora da sessão, não fica acuada nem aprisionada pela experiência inicial do susto, do medo. Ela se aproxima e investiga o objeto que a assustou e verifica que não é de verdade, pois já conta com uma representação interna disponível para um trabalho de elaboração e significação própria, pessoal.
Embora as consultas terapêuticas não tenham a mesma regularidade que o setting analítico clássico, pudemos ver como "é axiomático que se um setting profissional correto é fornecido, o paciente que se acha em sofrimento trará a aflição para a entrevista sob uma forma ou outra" (Winnicott, 1965/1994, p. 246). Nessa consulta o brincar se configurou como um campo em que as situações traumáticas puderam emergir para que fossem tomadas em consideração. Eu estava ali, disponível, para tomá-las em consideração e oferecer alguma representação. E, com a facilitação do espaço potencial criado pelo setting da consulta terapêutica, Laura, a partir de seus recursos internos e representacionais, demonstrou a possibilidade de confrontar o objeto e a situação traumática, inicialmente sentidos como corporificados e reais.
Como diz Winnicott (1971/1975b):
É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e usar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self). Ligado a isso, temos o fato de que somente no brincar é possível a comunicação, exceto a comunicação direta, que pertence à psicopatologia ou a um extremo de imaturidade. (p. 80)
Considerações finais
Os bebês, para se desenvolverem de forma saudável, necessitam de cuidadores que exerçam as funções materna e paterna. Alguém que cuide com prazer e disponibilidade – função materna, o que permitirá a construção da confiança e da crença no encontro de um objeto que a compreenda. E alguém que coloque limite de forma firme e sólida – função paterna, o que favorecerá o processo de separação, individuação e simbolização. Se for mais de um cuidador, é fundamental que haja uma sintonia e parceria entre eles, um vínculo cooperativo para que sejam capazes de conter os ataques dissociantes e incestuosos que venham a eclodir durante o crescimento. Na construção desse vínculo cooperativo os cuidadores também deveriam transmitir às crianças valores éticos em relação à realidade e à verdade em que vivem (Di Loreto, 1997).
Acredito que as consultas terapêuticas, configuradas nesse setting de intervenção, possibilitam um encontro emocional entre a mãe/pai e o bebê, especialmente para aquelas duplas que sofreram algum traumatismo no momento da constituição dos vínculos iniciais, pois à medida que são tecidas redes de sentido (Mendes de Almeida, Marconato & Silva, 2004) permite-se que um espaço potencial restabeleça a confiança do bebê na mãe/pai e a mãe/pai se ofereça como um objeto que atenda às necessidades do bebê, exercendo a função parental.
Além disso, ao se oferecer um holding ao ser humano desde seu nascimento, oferecemos sustentação ao sujeito em sua identidade, em seu espaço e tempo, em suas linhagens paterna e materna, tecendo uma rede para as fantasias que envolvem a construção do processo simbólico e de sua inscrição no mundo intersubjetivo das relações humanas. Assim, creio que se previne, em muitos casos, as complicações que levam freqüentemente a transtornos de relações precoces.
Acompanhando Maria Lúcia e Laura até os seus dois anos e sete meses, pude descobrir como o brincar criativo e a experiência cultural têm o seu lugar no espaço potencial existente entre o bebê e a "figura materna humana (e, portanto, falível) que é essencialmente adaptável por causa do amor" (Winnicott, 1971/1975c, p. 140). Como assinalou Winnicott (1971/1975c), esse espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo, vai depender da experiência que conduz à confiança, como pudemos compartilhar em momentos sagrados, durante as consultas terapêuticas.
Referências
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Endereço para correspondência
Maria Cecília Pereira da Silva
Rua Joaquim Antunes, 490/94
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Tel: 11 3081-9159
E-mail: mcpsilv@gmail.com
Recebido em: 5/5/2010
Aceito em: 7/7/2010
1 Este trabalho é parte da Pesquisa de Pós-Doutorado do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica Núcleo de Psicanálise, intitulado A construção da parentalidade em mães adolescentes com vistas à prevenção de transtornos de desenvolvimento. Supervisor: Prof. Dr. Gilberto Safra. PUC-SP, 2009 e apresentado no XVIII Encontro Latino-Americano sobre o Pensamento de D.W. Winnicott. Rio de Janeiro, 1/11/2009.
2 Psicanalista, membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Pós-doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Doutora em Psicologia Clínica e mestre em Psicologia da Educação pela PUC-SP. Membro do Departamento de Psicanálise de Criança e Professora do Instituto Sedes Sapientiae do Curso de Introdução à Intervenção Precoce na Relação Pais-Bebê. Colaboradora e supervisora do Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo.