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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo dez. 2011

 

EDITORIAL

 

Os tempos da psicanálise

Zigmunt Bauman, em seu livro Modernidade líquida, considera que, do ponto de vista sociológico, a modernidade pode ser pensada como a "história do tempo", pois começa quando o tempo passa ser compreendido a partir de uma definição própria, desvinculada das práticas e afazeres humanos. O ponto de partida dessa mudança foi a invenção das máquinas e veículos movidos a carvão, que permitiram o desenvolvimento de velocidades mais rápidas e potentes que as dos seres humanos; o tempo aparece então como um elemento independente e passível de ser controlado. A aceleração do tempo constitui-se como um dos grandes temas da modernidade. Lembramos a esse respeito o filme Tempos modernos, de Charles Chaplin.

Bauman propõe o nome de "modernidade líquida" à pós-modernidade – pela característica que os fluidos têm de não manter a forma – em contraposição à "modernidade sólida", do período anterior. Considera que "tudo está agora sendo permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de alguma permanência". Tudo é temporário, a atual organização da temporalidade procura abolir qualquer outra forma de tempo que não a de um ajuntamento solto, ou uma sequência arbitrária de momentos presentes. Essa fragmentação do tempo em uma série de presentes contínuos define um novo cenário de referências para homens e mulheres pós-modernos.

Parece-nos que essa configuração social traz um desafio para o psicanalista, confrontado com as questões de uma temporalidade que afeta o nosso modo de vida a ponto de criar o que se tem chamado de "patologias contemporâneas".

Não temos ainda a resposta para esse desafio. No entanto, o modelo proposto por Freud cada vez ganha mais importância, pois a temporalidade para a psicanálise é bem mais complexa, escapando do sentido vetorial unidirecional. Ogden sugere uma curiosa inversão cronológica, ou "bi-direcionalidade" de influências na construção do corpo teórico psicanalítico, pois a leitura de algumas obras de autores como Freud está sempre sendo ressignificada por novas configurações conceituais. O próprio termo nachträglichkeit, a posteriori, é um exemplo disso. O mesmo acontece na clínica, pois no processo analítico, o passado, a história vão se (des)construindo, (re)contando-se. Sendo assim, na transferência, abre-se uma fenda no tempo do atual, considerando-se o presente como originário, buscando-se – não como fechamento instantâneo, mas como abertura do tempo, – a abertura para o infantil como uma fonte vivaz, inesgotável, uma fonte no presente para este infantil que é sem idade. Pontalis diz: "a psicanálise não é de um outro tempo mas de um tempo outro."

O corpo editorial do Jornal de Psicanálise tomou essas referências para ajudar a compor este número que finaliza o volume sobre o tema da temporalidade. Pudemos contar com diversas e valiosas contribuições de nossos colegas, a começar pelo debate que promovemos sobre o tema com Ana Maria Azevedo, Antonio Sapienza e Bernardo Tanis, em que os colegas nos trouxeram reflexões fulcrais sobre o nosso trabalho enquanto psicanalistas hoje.

Em uma homenagem ao nosso colega Laertes Moura Ferrão, republicamos seu artigo que marcou uma época, "Eu vi um balão no céu!", para uma leitura a posteriori, com introdução e contextualização de Antonio Carlos Eva.

O tema do tempo em psicanálise ganhou possibilidades de expansão através de diferentes pontos de vista, quais sejam pela revisão crítica de Paulo Cesar Sandler dos conceitos a priori de tempo e espaço na filosofia kantiana, em diálogo com os conceitos psicanalíticos – no artigo "Sobre a transitoriedade: a flecha do tempo" –, e com Ana Maria Azevedo que, por sua vez, em "Algumas considerações sobre o tempo", pondera que muito se tem escrito sobre o espaço e pouca coisa tem sido dita em relação ao tempo. Toma como referência textos de Freud, Green e Rolland, reconhecendo na obra de Freud pelo menos quatro tempos: o tempo do sonho, o tempo do inconsciente, o tempo da repetição e o tempo da sexualidade e da cultura. Consideramos estes como artigos ligados à epistemologia psicanalítica.

Leda Herrmann nos brinda com um trabalho clínico no qual ilustra a concepção de tempo dentro da Teoria dos Campos, "Os tempos na análise – um ponto de vista psicopatológico", que diz respeito ao tempo do andamento, como em uma peça de música; mas, tratando-se de psicanálise, são tempos que se imbricam e operam simultaneamente no processo analítico. "Sessões termináveis e intermináveis: reflexões sobre o uso temporal do encontro analítico", de Alexandre Socha, nos remete ao tempo da sessão, do encontro analítico, principalmente no momento em que o analista dá por encerrada a sessão. Este artigo traz uma contribuição valiosa quanto à questão da técnica e da observação em psicanálise. Por fim, o trabalho "O nascer do outro na mente <–> o nascer da própria mente. Antes...Agora...E depois?" de Cleuza Perrini, permite, através do relato clínico, uma abertura para esse tempo outro, que é o da psicanálise.

Quanto aos artigos não temáticos, temos autores da França, Hélène Parat, do México, Raquel Tawil Klein, que, sem terem um estímulo comum prévio e sem saber, compõem através dos seus artigos um diálogo com nossos autores brasileiros: Denise Feliciano, Audrey Souza, Marcella Souza e Silva e Anne Lise Scappaticci. No conjunto esses artigos se comunicam e acreditamos que isso possa ser compartilhado com os leitores.

Na seção Formação Psicanalítica, temos dois artigos instigantes sobre novas formas de experimentação na transmissão da psicanálise. "A delicadeza no campo analítico: estudando contratransferência e enactment pela internet", artigo escrito a várias mãos, com participação conjunta dos coordenadores Roosevelt Moisés Smeke Cassorla, Ana Clara Duarte Gavião e membros filiados participantes de um seminário eletivo, além do trabalho "Repercussões de uma experiência", de Josefina Paulon.

Para a seção Interface, o Jornal de Psicanálise convidou o professor de linguística e semiótica da USP, Izidoro Blikstein, que nos enviou o seu artigo "O inferno na obra de Graciliano Ramos: uma obsessão semiótica", e nosso colega psicanalista, Luiz Carlos Uchoa Junqueira Filho, que escreveu "A 'grandeza repulsiva, amiúde detestável' do inferno de Dante". Através do que seria o Inferno, podemos refletir não apenas sobre uma interface possível entre a semiótica e a psicanálise, mas também sobre a intertextualidade que permeia a nossa comunicação.

Temos ainda, no que chamamos Breves escritos, a elucidação do que é o Prêmio Goethe, a comunicação de D. Adele no dia em que foi homenageada pela sbpsp, a homenagem a D. Lygia Amaral, além da resenha do livro Cartas a uma jovem psicanalista.

Abrimos o nosso número com uma homenagem à Sônia Azambuja, com o tocante texto de Olgaria Matos, que por ora nos serve de consolo – sublime e delicado consolo. Queremos deixar registrado o nosso pesar pela perda de nossos colegas e amigos também tão queridos e importantes para nós: Homero Vettorazzo Filho, Oscar Resende de Lima e Nelson Montag.

E tudo isso tem a ver com o tempo....

 

Eunice Nishikawa
editora

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