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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo dez. 2012

 

INTERFACES

 

Merleau-Ponty e a psicanálise: da fenomenologia da afetividade à figurabilidade do afeto

 

Merleau-Ponty and psychoanalysis: from affectivity's phenomenology to affection's figurability

 

Merleau-Ponty y el psicoanálisis: de la fenomenología de la afectividad a la figurabilidad del afecto

 

 

Thamy Ayouch

Psicanalista, Maître de Conférence (Professor Titular) na Université Lille III, e Professor Visitante Estrangeiro no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. É Doutor (Université Paris VII), Mestre em Filosofia (Université Paris XII) e em Psicopatologia (Université Paris VII), e Graduado em Filosofia (Université Paris XII), Psicologia Clínica (Université Paris VII) e Literatura Inglesa (Université Paris IV). Tem experiência na área de Filosofia e Psicologia Clínica, com ênfase em Psicanálise, Fenomenologia, Teoria Política e Teoria do Gênero

 

 


RESUMO

Como entender a afirmação de Merleau-Ponty que "a fenomenologia está em consonância com a psicanálise", e que ambas apontam "em direção da mesma latência"? Este artigo pretende problematizar as dificuldades de aproximação entre fenomenologia e psicanálise, para examiná-las mais precisamente na perspectiva de Merleau-Ponty. Após ter analisado o conceito de inconsciente na obra do filósofo, a leitura merleau-pontyana da psicanálise é confrontada às críticas de vários psicanalistas.
Este diálogo permite ressaltar duas concepções do inconsciente, opostas no que diz respeito às ideias (Vorstellungen), mas próximas quanto aos afetos. A noção de "busca em figurabilidade do afeto" oferece, então, uma nova solução para esta tentativa de aproximação entre fenomenologia e psicanálise, e introduz uma nova leitura da metapsicologia do afeto.

Palavras-chave: Merleau-Ponty, psicanálise, figurabilidade, afeto, fenomenologia da afetividade


ABSTRACT

What did Merleau-Ponty mean when he wrote that "phenomenology is in agreement with psychoanalysis", and that both aim towards "the same latency"?
This article aims to problematize the difficult comparison between phenomenology and psychoanalysis and examine it in Merleau-Ponty's work. After his understanding of the concept of the unconscious is analyzed, Merleau-Ponty's reading of psychoanalysis is confronted to various psychoanalysts' criticisms.
This dialogue conjures up two conceptions of the unconscious, opposed when it comes to ideas (Vorstellungen) but close as far as afects are concerned. The notion of "affect search for figurability" is a new way to bridge the gap between phenomenology and psychoanalysis, and brings in a new reading of the metapsychology of affect.

Keywords: Merleau-Ponty, Psychoanalysis, Figurability, Affect, Phenomenology of Affectivity


RESUMEN

¿Cómo entender la afirmación de Merleau-Ponty que dice "la fenomenología está en consonancia con el psicoanálisis" y que ambas apuntan "hacia la misma latencia"? Este artículo pretende problematizar las dificultades de aproximación entre fenomenología y psicoanálisis, para examinarlas más precisamente desde la perspectiva de Merleau-Ponty. Después de analizar el concepto de inconsciente en la obra del filósofo, la lectura merleau-pontyana del psicoanálisis es confrontada con las críticas de varios psicoanalistas.
Este diálogo permite resaltar dos concepciones del inconsciente, opuestas con respecto a las ideas (Vorstellungen) pero próximas en cuanto a los afectos. La noción de "búsqueda de figurabilidad del afecto" ofrece una nueva solución para este intento de aproximación entre fenomenologia y psicoanalisis, e introduce una nueva lectura de la metapsicología del afecto.

Palabras clave: Merleau-Ponty, psicoanálisis, figurabilidad, afecto, fenomenología de la afectividad


 

 

Problematização: dificuldades da aproximação

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

Assim começa a "Passagem das Horas" de Fernando Pessoa, retomando um tema da estética simbolista do final do século 19, na correspondência estabelecida entre estado anímico e mundo exterior. Esta tensão permanente entre o sujeito que percebe, sonha ou lembra, e o objeto percebido, sonhado, lembrador ou lembrado, além de qualquer perspectiva dualista separando os dois, é o que a fenomenologia chama de "vivência". A dimensão afetiva desta vivência é destacável aqui; porém, trata-se de uma afetividade particular, que não chega a jorrar, nem ser sentida e vivida.

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
...
tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.

Eis aqui a manifestação de um conjunto de afetos que não conseguem ser sentidos, apropriados, simbolizados, fora, evidentemente, do processo de escrita desenvolvido por Álvaro de Campos.

Nessa tentativa de simbolização, Fernando Pessoa não recorre à inversão entre afetos e pensamentos que caracteriza o heterônimo Bernardo Soares, para quem "O poeta é um fingidor. Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor /A dor que deveras sente". Para chegar a sentir afetos, Álvaro de Campos prefere ser o veículo dos afetos dos outros, de todos os outros:

Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim...
...
Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
...
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

Conjuntamente a esta descrição fenomenológica da falta de surgimento de afetos, o poeta evoca uma situação de estranhamento e alienação dos próprios afetos, que dá lugar à tentativa de ser atravessado pelos afetos dos outros. A metapsicologia winnicottiana daria o nome de "falso self" a esta situação, se ela não implicasse tanta criatividade: aqui, a escrita desencadeia a plástica psíquica da fantasia.

Antes de descrevê-la mais precisamente, chamemos de forma antecipada, "busca em figurabilidade", esta tentativa de expressão dos afetos, e observemos que Fernando Pessoa articula aqui uma verdadeira fenomenologia das vivências afetivas. Notemos, por outro lado que os destinos pelos quais passam estes afetos (desafetação, clivagem do ego, despersonalização, inversão entre afetos e pensamentos, denegação, identificação projetiva) são habitualmente descritos pela psicanálise como mecanismos de defesa. O afeto, a afetividade e a criatividade afetiva parecem oferecer, portanto, uma "via régia" para uma tentativa de aproximação da fenomenologia e da psicanálise.

Essa aproximação, porém, não deixa de apresentar várias dificuldades. No prefácio de A. Hesnard L'Œuvre et l'esprit de Freud, Maurice Merleau-Ponty considera que a fenomenologia está "mais que sempre em convergência com a pesquisa freudiana" (Merleau-Ponty, 2000, p. 281). O filósofo tentou várias vezes favorecer aproximações entre as duas disciplinas, acrescentando que "é por aquilo que se insinua o que se descobre no seu limite - pelo seu conteúdo latente ou inconsciente - que a fenomenologia está em consonância com a psicanálise" (Merleau-Ponty, 2000, p. 283).

No entanto, é pelo menos surpreendente que duas disciplinas opostas nas suas definições habituais sejam consideradas como convergentes. Uma centra a sua pesquisa no inconsciente, a outra na consciência; a primeira visa as tendências supostas embaixo dos fenômenos percebidos, a outra se limita à descrição a mais fiel da percepção.

Na definição que Freud apresenta da psicanálise em 1923, o termo indica três áreas ligadas:

psicanálise é o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica. (Freud, 1923/1996b)

Nessa postulação de um objeto inacessível diretamente, fusionando a abordagem, o método do tratamento e o tipo de cientificidade, jaz a dificuldade da aproximação entre fenomenologia e psicanálise. Três níveis são aqui convocados, e tornam esta aproximação problemática:

O primeiro problema diz respeito à atestação. A fenomenologia é somente descritiva: empenha-se em descrever o que aparece à consciência. A psicanálise é construtiva: edifica-se em torno do postulado fundamental do inconsciente, termo que se refere àquilo que nunca aparece diretamente, mas unicamente através dos seus efeitos. Esta construção própria à teoria psicanalítica procede de uma correlação estreita entre prática e teoria analíticas: o ato técnico (associação livre e escuta flutuante) inventa a sua própria positividade, e constrói o objeto da psicanálise, o inconsciente.

Portanto, se a fenomenologia exceder o domínio da descrição, ela se torna metafísica, teorizando sobre aquilo que não pode ser atestado. Para a psicanálise, ao contrário, limitar a sua perspectiva àquilo que é meramente observável equivale a uma captação imaginária.

Face a esta oposição de início, toda comparação entre fenomenologia e psicanálise deve tentar articulá-las nos seus limites respectivos: onde o encontro é ao mesmo tempo contato e separação, e onde o inconsciente da fenomenologia abeira-se do inconsciente da psicanálise.

O segundo problema da comparação entre fenomenologia e psicanálise é ligado à incongruência dos seus enquadres epistemológicos respectivos. Vários fenomenólogos - Husserl, Heidegger, Binswanger, Boss, Ricoeur etc. - reprovaram a dimensão quantitativa reducionista da psicanálise freudiana assim como os seus modelos tomados das ciências da natureza. No seu livro De l'Interprétation (Ricoeur, 1965), Paul Ricoeur mostra como o freudismo se apóia numa indefinição epistemológica: ele revela uma tensão constante entre energética e hermenêutica. Ao contrário, a fenomenologia reforça este divórcio epistemológico opondo a cientificidade das ciências da natureza à aquela das ciências do espírito.

Porém, por mais que pareça se aproximar de um modelo das ciências da natureza, os aspectos biológicos ou econômicos na metapsicologia freudiana não remetem ao paradigma científico destas disciplinas. Observemos que o uso da quantidade em Freud parece resultar de dois motivos:

• o alvo principal em recorrer a metáforas energéticas é desligar o psiquismo da consciência. A quantidade contida na ficção teórica do Projeto para uma psicologia científica, no quantum de afeto ou na teoria do trauma em "Além do principio de prazer" pretende remeter a fenômenos propriamente inconscientes, escapando à lógica qualitativa da consciência.

• Por outro lado, e até 1938, Freud almejava dar à psicanálise a objetividade científica da física e da biologia, projeto que ele abandonou explicitamente só no Esboço da psicanálise.

Contudo, este uso da quantidade não obedece a um alvo de quantificação: detrás da quantidade aparece a problemática questão do sentido em psicanálise. A abordagem freudiana coloca a ênfase sobre o sentido como chave prevalente das formações psíquicas. Vive-se, cresce-se, ama-se, transtorna-se e morre-se por fenômenos de sentido, por conflitos psíquicos nos quais o sentido é central. Mas este processo de significância é concebido além da dimensão da consciência e da sua lógica. Por conseguinte, nem tudo procede do sentido. Há um núcleo do inconsciente, um ponto cego da psique, "o umbigo do sonho" correspondendo a uma falta total de sentido.

Em outros termos, existe uma dimensão da psique que escapa irremediavelmente ao sentido, e talvez as modelizações pseudo-físicas e pseudo-biológicas do Freud sejam uma forma de designá-la.

O terceiro nível desta difícil comparação é a clínica. A definição freudiana da psicanálise torna indissociáveis a pesquisa, a prática clínica e a teorização. O inconsciente freudiano é possibilitado pela técnica e pela clínica psicanalítica, dimensões que nenhuma fenomenologia pode abarcar.

Lembremos, porém, que tanto a psicanálise como a fenomenologia tratam de concepções similares do sujeito. O contexto atual de desenvolvimento de "técnicas psi", desde o reforçamento, condicionamento, adestramento e a readaptação até o coaching, revela muitas vezes abordagens que não se preocupam em decifrar o sintoma nem em escutá-lo. A maioria destes modelos reducionistas e positivistas visam a um resultado imediato e parecem corresponder às exigências do mercado que favorecem, além do sujeito, a eficiência, a rentabilidade e a adaptação. Apesar da sua diferença na abordagem da clínica, fenomenologia e psicanálise almejam a mesma dignidade do sujeito e, portanto, parecem próximas e cúmplices.

Levando em conta estas dificuldades de aproximação, como entender a afirmação de Merleau-Ponty, sobre a convergência entre estas duas disciplinas que apontariam "em direção da mesma latência" (Merleau-Ponty, 2000, p. 285)?

Para examinar mais precisamente estas dificuldades de comparação entre a fenomenologia e a psicanálise na própria perspectiva de Merleau-Ponty, parece pertinente, após ter analisado o conceito de inconsciente na obra do filósofo, confrontá-lo às críticas de vários psicanalistas. Este diálogo permitirá ressaltar duas concepções do inconsciente, opostas no que diz respeito às ideias (Vorstellungen), mas próximas quanto aos afetos. A noção de figurabilidade do afeto oferecerá, então, uma nova solução para esta tentativa de aproximação entre fenomenologia e psicanálise, e introduzirá uma nova leitura da metapsicologia do afeto.

 

Alvos distintos: o inconsciente em Merleau-Ponty e na psicanálise

Psicanálise e inconsciente em Merleau-Ponty

Ainda que Merleau-Ponty aborde a Psicanálise como, e recorde frequentemente que não é psicanalista, ele ocupa uma posição de defesa da Psicanálise contra as críticas principais que lhe dirige a filosofia da consciência contemporânea.

Através da toda obra de Merleau-Ponty aparece uma verdadeira ubiquidade da psicanálise. As referências à psicanálise são constantes e contínuas: o filósofo apresenta-as numa análise do freudismo na Estrutura do comportamento (Merleau-Ponty, 1942), numa reflexão sobre o corpo na Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945), numa nova leitura do Leonardo no texto "Le doute de Cézanne" (Merleau-Ponty, 1996b), ou alusivamente nos artigos "L'homme et l'adversité", (Merleau-Ponty, 1960b), "Le philosophe et La sociologie" et "Partout et nulle-part" (Merleau-Ponty, 1953). A psicanálise é abordada diretamente no prefácio citado da obra de Angelo Hesnard (Merleau-Ponty, 2000), e logo nas notas do Visível e o invisível (Merleau-Ponty, 1960c).

Mais claramente, vários conceitos psicanalíticos são usados nas aulas de Merleau-Ponty na Sorbonne, de 1949 a 1952 (Merleau-Ponty, 1988), ou nas aulas no Collège de France - mais precisamente em "Le problème de la passivité: le sommeil, l'inconscient, la mémoire" (Merleau-Ponty, 2003), em "Le concept de nature. Nature et logos: le corps humain" (Merleau-Ponty, 1994) ou em "La Philosophie aujourd'hui" (Merleau-Ponty, 1996b).

Sem entrarmos nos detalhes, notemos que Merleau-Ponty não retoma as críticas tradicionais dirigidas pelos fenomenólogos da sua época à psicanálise: a crítica do naturalismo (Heidegger, Binswanger) ou a crítica de má fé (Sartre).

Por conseguinte, asseveraríamos que além de constituir uma atmosfera que infiltra toda sua obra, a psicanálise é, várias vezes, uma das fontes principais a partir das quais o filósofo desenvolve a sua própria perspectiva da fenomenologia relacionada com o inconsciente. O propósito que parece percorrer a maior parte dos escritos de Merleau-Ponty é definir uma intencionalidade do corpo, e, portanto, do sentir, que permita abrir a fenomenologia ao conceito do inconsciente.

Antes de examinar esta intencionalidade, precisemos quais são os sentidos do termo "inconsciente" para Merleau-Ponty. No começo da sua obra, na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty assinala a abertura da consciência, e a impessoalização que pode habitar nela, por causa dela ser vinculada com o corpo. O filósofo desenvolve uma leitura do corpo escapando ao mesmo tempo à perspectiva objetivante da ciência reducionista e à perspectiva reflexiva de uma filosofia da consciência. Segundo ele, a própria forma da consciência, definida por um constante descentramento e um contínuo movimento de escape, permite conceber no seu centro um in-consciente. Todavia, este inconsciente não tem regime especial: está desprovido de tópica e de dinâmica.

Nos últimos textos de Merleau-Ponty, o Visível e o invisível e nos cursos contemporâneos, o inconsciente também não recebe nenhum tratamento especial. Segundo Merleau-Ponty, o inconsciente não está no fundo do sujeito, detrás da consciência, mas frente a ele, "é inconsciente porque não é objeto, mas é o que faz com que os objetos sejam possíveis" (Merleau-Ponty, 1960a, p. 234). É o invisível que sustém o visível, o ponto de reversão da carne. Não é uma representação, mas um verdadeiro negativo no coração da consciência, um "punctum caecum" dela, uma cegueira que constitui a consciência. O inconsciente é, por conseguinte, o sentir mesmo (Merleau-Ponty, 1968).

Ao conceber o inconsciente na continuidade da consciência, como expressão indireta da generalidade do corpo, quiasma entre o interior e o exterior, ou como indivisão do sentir, impercepção dentro da percepção, não se exporia automaticamente Merleau-Ponty às críticas da psicanálise, que institui o inconsciente numa separação radical com a consciência?

As críticas dos psicanalistas

A leitura fenomenológica da psicanálise por Merleau-Ponty recebeu varias críticas dirigidas por J-B. Pontalis (Pontalis, 1961; Pontalis, 1971), André Green (Green, 1964), Jacques Lacan (Lacan, 1961; Lacan, 1973) ou Cornelius Castoriadis (Castoriadis, 1971; Castoriadis, 1976). Todos concordam em pensar que o filósofo falha em compreender o inconsciente freudiano ao reduzi-lo ao implícito, ao ambíguo, ou ao sobre-determinado.

As críticas de Pontalis e Green se respondem. Uma filosofia da percepção, dando a primazia ao corpo perceptivo não pode integrar a teoria freudiana sem desnaturá-la, comenta J.-B. Pontalis (Pontalis, 1961). Se Merleau-Ponty concede uma prioridade à percepção, porém, a psicanálise funda-se na noção de estrutura, para a qual a significância vale mais do que o sentido perceptivo, acrescenta Green. Sem evocarmos estas duas críticas em detalhe, ressaltemos que a concepção merleau-pontyana da indivisão entre consciência e inconsciente (sendo concebido o inconsciente no centro da percepção) se limita, segundo Green e Pontalis, ao pré-consciente e deixa de lado o sistema inconsciente. Se Merleau-Ponty evoca um "outro lado" da consciência, este não tem nada a ver com a "outra cena" mencionada por Freud em "A interpretação dos sonhos".

Além de muitas análises esporádicas no primeiro e no segundo Livros do Seminário, as maiores críticas que Lacan dirige a Merleau-Ponty aparecem no obituário que lhe dedica (Lacan, 1961) e no Livro XI do Seminário (Lacan, 1973). "Forçando os limites da fenomenologia" (Lacan, 1973), Merleau-Ponty põe em relevo a precedência do olhar sobre o olho. Na reversão do visível em invisível descrita pelo filósofo (Merleau-Ponty, 1960c), Lacan reconhece a dialética do olho e do olhar na base do engano do imaginário. Todavia, Lacan denuncia a ausência da dimensão simbólica na obra do filósofo. Ao se aferrar a uma concepção do corpo como lugar da unidade, a fenomenologia se limita a um mero plano imaginário (Lacan, 1961). Merleau-Ponty dá a primazia a um sujeito encarnado que procede, segundo Lacan, do Ego imaginário, e assim falha em considerar o sujeito primário constituído pela cadeia da linguagem. É a estrutura da linguagem que determina o inconsciente, segundo Lacan, uma primazia linguística que Merleau-Ponty deixa de lado, ao conceber a linguagem na continuidade do gesto corporal. Para o filósofo, a estrutura do mundo perceptivo precede a estrutura da linguagem, e o inconsciente é estruturado como uma linguagem somente na medida que a própria linguagem retoma a estrutura do mundo.

Finalmente, Castoriadis, o quarto psicanalista lendo Merleau-Ponty, desaprova também a primazia que o filósofo concede à percepção: o fenomenólogo desconsidera a imaginação radical que, segundo Castoriadis (1976), precede toda percepção e toda imaginação. A este esquecimento por Merleau-Ponty da capacidade criativa originária da psique, acrescenta-se a desconsideração do simbólico encarnado na "instituição social-histórica" (Castoriadis, 1971).

Estas quatro críticas se endereçam à negligência por Merleau-Ponty da divergência central entre os modos de funcionamento da consciência e do inconsciente. A continuidade e a indivisão que o filósofo coloca entre a consciência e o inconsciente é diametralmente oposta ao corte, à ruptura e à barra instituída pela psicanálise entre os dois sistemas.

A fonte desta oposição é o divórcio entre a concepção psicanalítica do sentido inscrito na estrutura, e a concepção fenomenológica do sentido imediatamente oriundo da percepção. Estas duas concepções se fundamentam numa perspectiva diferente sobre o corpo. Examinemos estas divergências.

 

Modelos do sentido, modelos do inconsciente

Expressão e significância

Os paradigmas do sentido são, de fato, diferentes entre a fenomenologia e a psicanálise. Ambas, certamente, opõem-se ao modelo de um sentido que adviria da referência de uma representação interna a um objeto externo. Todavia, há uma grande diferença entre o modelo da expressão por um lado - onde o sentido jaz na fusão do exprimido e da expressão - e o modelo estrutural por outro lado - onde o sentido é diacrítico, e se forma por um processo de diferenciação e oposição interna entre os elementos.

O modelo fenomenológico de sentido desenvolvido por Merleau-Ponty é o modelo da expressão, diretamente inscrita no corpo. Esta expressividade do corpo é "uma operação primordial de significação onde o exprimido não existe à parte da expressão, e onde os signos mesmos induzem o seu sentido para o exterior" (Merleau-Ponty, 1945). A própria linguagem é concebida como uma continuação do gesto corporal na sua relação com o mundo sensível. A articulação linguística é, portanto, apresentada como uma conduta do corpo conferindo uma significação ao mundo. Portanto, a fenomenologia de Merleau-Ponty oferece uma verdadeira continuidade entre a linguagem e os fenômenos pré ou alinguísticos, como se se tratasse somente de níveis diferentes de uma única operação expressiva. Acreditamos que esta expressividade é característica do afeto.

A este sentido encarnado, característico da fenomenologia, se opõe a significância, própria ao modo de funcionamento do inconsciente. Essa discrepância aparece claramente se comparamos a expressividade do corpo tematizada por Merleau-Ponty e a do fenômeno histérico descrito por Freud nos Estudos sobre a histeria (Freud, 1895/1996c). Para Freud, a dor histérica tem um estatuto singular: ela é um elemento material provindo de uma verdadeira linguagem do corpo, mas que contém em si, simbolicamente, uma outra lógica psíquica.

Eis uma passagem da análise de Fraulein Elisabeth von R., onde Freud usa o termo expressão:

No caso da Srta. von R., contudo, quando se pressionava ou beliscava a pele e os músculos hiperalgésicos de suas pernas, seu rosto assumia uma expressão peculiar, que era antes de prazer do que de dor. Ela gritava mais e eu não podia deixar de pensar que era como se ela estivesse tendo uma voluptuosa sensação de cócega - o rosto enrubescia, ela jogava a cabeça para trás e fechava os olhos, e seu corpo se dobrava para trás. (Freud, 1895/1996c)

Aqui, o corpo é expressivo numa verdadeira estratificação: as dores das duas coxas, a abasia e astasia das quais Elisabeth padece relatam o conflito entre o impulso amoroso que ela sente por um jovem e a necessidade de se ocupar do seu pai doente, ou este outro conflito entre o desejo inaceitável que ela sente pelo seu cunhado e os imperativos de conveniência moral e social. O sintoma histérico, compromisso entre o desejo e a defesa, oferece um modo desviado de realizar o desejo. Na dor histérica, a representação é recalcada e o afeto convertido: retornando no corpo, ele é transformado em dor, abasia ou astasia. Portanto, o corpo providencia ao mesmo tempo o modo de expressão e o conteúdo exprimido, numa fusão entre expressão e exprimido similar ao modelo descrito por Merleau-Ponty.

Contudo, o sintoma histérico se inscreve unicamente sobre um corpo já investido pela linguagem. No seu processo de lembrança, Elisabeth separa e une as cenas do passado conforme a posição ocupada por seu corpo segundo imagens verbais. Por exemplo, ela é literalmente "plantada no lugar" quando fica em pé frente ao corpo do seu pai levado desmaiado para a casa, ou frente à cama da sua irmã morta. Do mesmo modo, a sua astasia-abasia se refere ao seu doloroso sentimento de solidão (o tradutor do texto alemão recorda que a expressão alemã para solidão diz literalmente "ficar em pé sozinho") ou à sua impressão de não "poder avançar".

Nesse sentido, a continuidade entre corpo e linguagem apontada pela fenomenologia é invertida aqui: não é o corpo que induz a linguagem a partir da sua expressividade, determinando a palavra como continuação do gesto. Ao revés, a linguagem precede o corpo, vivido e sentido unicamente a partir de certas "representações de palavras".

As posições de Elisabeth referem-se a uma outra cena, um espaço de gozo imaginário transformando o seu corpo num lugar mágico onde tudo ocorre com ela, mas sem ela. Este gozo é inscrito numa relação com a linguagem, precedendo qualquer percepção. De fato, o sujeito pode perceber o corpo próprio só a partir de certo tipo de simbolização, e a percepção nunca é primeira. Na concepção psicanalítica, a articulação entre corpo e linguagem é exatamente oposta ao modelo fenomenológico: o corpo é que se assenta sobre a linguagem.

Duas versões opostas do inconsciente

Destas articulações opostas entre corpo e linguagem resultam duas concepções divergentes do inconsciente. O inconsciente fenomenológico remete a uma percepção primordial: ele é a camada anterior a toda codificação, o lugar de um sentido não instituído, estabelecido, ou estruturado.

Esta dimensão de impessoalidade, tal como é enfatizada por Merleau-Ponty (Merleau-Ponty, 1945), é o lugar das sínteses passivas descritas por Husserl (Husserl, 1998). Na concepção husserliana do tempo (Husserl, 1964), o inconsciente é o resultado do escurecimento progressivo das impressões. Husserl teoriza uma continuidade na fenomenalização do tempo: num ato perceptivo, a primeira impressão originaria é conservada numa retenção, correspondendo a um escurecimento desta impressão. À sua vez, esta retenção vira, por escurecimento, retenção vazia, e logo representação vazia, até chegar ao esquecimento. O inconsciente fenomenológico aparece então como o último estágio desta desaparição retencional da impressão, e como grau zero da doação intuitiva. Em outros termos, o inconsciente fenomenológico corresponde ao apagamento progressivo das impressões, que, primeiro conscientes, passam gradativamente a ser inconscientes. Nesse sentido, o inconsciente fenomenológico invita a concepção de uma continuidade entre consciência e inconsciente: as impressões apagadas estão no rasto das ainda conscientes.

A este inconsciente fenomenológico fundamentado sobre o escurecimento perceptivo se opõe o inconsciente simbólico da psicanálise, articulado por uma instituição simbólica encarnada na linguagem e nas redes de relações e intercâmbios humanos. O inconsciente tematizado por Freud ou Lacan se inscreve na instituição simbólica: ele procede da estrutura dos significantes e do grande Outro. Portanto, ele não provém de nenhuma percepção, mas precisamente de lacunas, buracos no sistema perceptivo. O inconsciente é modelizado pelo automatismo de repetição: ele não é nenhuma percepção apagada, mas um desencontro, uma não-percepção, um não-realizado.

Este inconsciente oriundo do Simbólico e não unicamente dos escurecimentos da percepção, dá lugar a um sujeito dividido, fora da concepção merleau-pontyana da continuidade entre consciência e inconsciente.

A crítica da indivisão formulada por vários psicanalistas aparece então perfeitamente justificada com respeito às representações e ideias (Vorstellungen) do inconsciente psicanalítico. Todavia, ela não se aplica à categoria do afeto, cujo estatuto é ao mesmo tempo consciente e inconsciente. Nem verdadeiramente consciente, por ter sido inibido no seu desenvolvimento, nem completamente inconsciente, porque existe somente num estado "rudimentar" no sistema inconsciente, oscilando entre um sentir e uma quantidade - a energia do "quantum de afeto" -; o afeto estabelece uma constante transição entre o soma e a psique, uma comunicação além da separação radical entre eles. Ele é, como escrevia André Green, "um olhar sobre o corpo emocionado" (Green, 1973). Surgindo do corpo, ao ser o representante mais corporal da pulsão, o afeto é frequentemente um sentimento cujo sentido se perdeu, e que retorna no corpo, como quando surge uma crise de lágrimas, explode uma gargalhada ou a angústia paralisa os membros.

Por conseguinte, se há, por um lado, uma verdadeira divergência entre a fenomenologia merleau-pontyana e a psicanálise, no que diz respeito às representações ou ideias (Vorstellungen), as duas perspectivas parecem mais aproximáveis quanto ao afeto. Consideramos que são estes próprios movimentos do afeto, surgindo do corpo e retornando nele, que a fenomenologia de Merleau-Ponty visa.

 

A fenomenologia da afetividade de Merleau-Ponty

Introduzimos aqui uma leitura da perspectiva de Merleau-Ponty não como fenomenologia do conhecimento, na tradição husserliana, mais como fenomenologia da afetividade. Sem entrarmos em análises detalhadas, por falta de espaço e tempo, ressaltemos que esta dimensão afetiva, em vez de cognitiva, da fenomenologia merleau-pontyana é devida a várias razões. Primeiro, o filósofo sempre fez questão de estabelecer um diálogo contínuo entre a fenomenologia e as ciências humanas (antropologia, etnologia, história, teoria marxista, psicologia, psicanálise, teoria Gestalt, psiquiatria, linguística, literatura etc.). Neste sentido, ele procurou construir a sua fenomenologia numa estreita colaboração com estas perspectivas nas quais a psicanálise ocupa um lugar central, evitando assim a hierarquização estabelecida por Husserl (1947) entre a fenomenologia como ciência primária e elementar e as demais categorias do conhecimento (ciências exatas e ciências humanas). Estas ciências são, segundo Husserl, fundamentadas pela fenomenologia enquanto estudo do sujeito transcendental na base deste conhecimento. Diferentemente, a fenomenologia de Merleau-Ponty não almeja esclarecer as dimensões do conhecimento através do sujeito conhecedor, mas dá relevo a um sujeito afetivo, como mostra, por exemplo, a fenomenologia da criança que ele desenvolve nas aulas na Sorbonne (Merleau-Ponty, 1988). Esta fenomenologia antipiagetista das vivências da criança coloca a sua ênfase sobre a afetividade da percepção, revelando-a como um ato psíquico misturado com a imaginação.

Mais fundamentalmente e além desta fenomenologia da criança, a dimensão afetiva da psique é, a nosso ver, o alvo da fenomenologia merleau-pontyana. No prefácio da Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945), Merleau-Ponty procura definir a fenomenologia, e distingue-a de qualquer idealismo transcendental, mas também de qualquer empirismo. Mais do que uma perspectiva formalizada, Merleau-Ponty vê na fenomenologia uma "maneira", um "estilo", que ele encontra em Hegel, Kierkegaard, Marx, Nietzsche e Freud (Merleau-Ponty, 1945, p. ii).

Centrada no corpo, esta fenomenologia dá relevo à "intencionalidade operante" (fungierende intentionalität), muito mais do que a intencionalidade de ato. Esta intencionalidade é antepredicativa: antes de definir o objeto vivido, objeto da ciência ou objeto transcendental, ela unifica o mundo e a vida do sujeito (Merleau-Ponty, 1945, p. xiii). Esta intencionalidade "aparece em nossos desejos, nossas avaliações, nossa paisagem, mais claramente do que no conhecimento objetivo, e fornece o texto do qual nossos conhecimentos procuram ser a tradução em linguagem exata" (Merleau-Ponty, 1945, p. xiii). Trata-se de uma atividade sucedendo sem tematização, sem atenção imanente nem reflexão explícita. A intencionalidade operante, portanto, estende a intencionalidade de ato ao corpo inteiro: a nossa relação com o mundo, antes de ser predicativa, é carnal e corporal. Ela consiste numa ligadura inabalável entre a percepção exterior e uma realidade psíquica afetiva. A fenomenologia de Merleau-Ponty almeja voltar a esta percepção afetiva que não coloca as coisas frente a uma consciência mas vive nelas, retornar à "fé originária", à tonalidade afetiva que me une ao mundo, aos outros, e a mim mesmo. Nesta fenomenologia, o corpo é por conseguinte descrito como "aquele fundo afetivo que deita originariamente a consciência fora de si-mesma". (Merleau-Ponty, 1945, p. 110)

Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty visa a significação primordialmente afetiva das vivências: de uma paisagem de outono, de uma cidade e as suas ruas, de um jardim de noite, de um rosto familiar, ou de um gesto. Inclusive a cor convoca um investimento afetivo do meu corpo: o vermelho, por exemplo, convoca esforço e violência, e nos chama como uma "amplificação do nosso ser motor" (Merleau-Ponty, 1945, p. 245).

Neste sentido, esta fenomenologia tende a buscar o seu modelo primordial na intersubjetividade, momento de intercâmbio afetivo antes do que cognitivo. Esta passagem da Fenomenologia da percepção ilustra tanto o estilo da fenomenologia do afeto de Merleau-Ponty, quanto a sua fundamentação na intersubjetividade:

Paris não é para mim um objeto com mil facetas, uma soma de percepções, nem tampouco a lei de todas essas percepções. Assim como um ser manifesta a mesma essência afetiva nos gestos de sua mão, em seu andar e em sua voz, cada percepção expressa em minha viagem através de Paris - os cafés, os rostos das pessoas, os choupos dos cais, as curvas do Sena - é recortada no ser total de Paris, não faz senão confirmar um certo estilo ou um certo sentido de Paris. E, quando ali cheguei pela primeira vez, as primeiras ruas que vi à saída da estação foram, como as primeiras falas de um desconhecido, as manifestações de uma essência ainda ambígua, mas já incomparável. Nós não percebemos quase nenhum objeto, assim como não vemos os olhos de um rosto familiar, mas seu olhar e sua expressão. Existe ali um sentido latente, difuso através da paisagem ou da cidade, que reconhecemos em uma evidência específica sem precisar defini-lo. ...Uma primeira percepção sem nenhum fundo é inconcebível. Toda percepção supõe um certo passado do sujeito que percebe, e a função abstrata de percepção, enquanto encontro de objetos, implica um ato mais secreto pelo qual elaboramos nosso ambiente. (Merleau-Ponty, 1999, p. 374)1

O alvo de Merleau-Ponty é de definir uma percepção que não se reduza à soma de estímulos (como numa perspectiva cognitivista). Trata-se de capturar a unidade do fenômeno perceptivo, compreendida aqui como estilo, "essência afetiva". Esta, à sua vez, é concebida segundo o modelo da intersubjetividade: os múltiplos sentidos de Paris se inscrevem num "ser total" comparável ao ser total do outro que une as suas múltiplas manifestações. Ainda por cima, a percepção do outro não é uma acumulação de dados (olhos, rasgos), mas o reconhecimento intersubjetivo de uma expressão, acontecendo num "fundo", um "certo passado do sujeito", um "ato mais secreto". Eis aqui, a nosso ver, a dimensão afetiva própria a qualquer ato psíquico, e que chamamos de "busca em figurabilidade do afeto".

É a afetividade que permite desenhar o espaço como se desenha um rosto, e vincular percepção e imaginação, espaço real e mítico. O estilo de Paris ou de qualquer outro objeto é ligado à minha afetividade que seleciona um detalhe, une elementos e vivências. Não é aqui uma camada estritamente fantasmática da experiência, nem estritamente inconsciente (no sentido psicanalítico): é uma camada afetiva, uma atmosfera afetiva comum a representações conscientes e inconscientes, numa continuidade entre consciência e inconsciente que é própria ao afeto.

Essa fenomenologia da afetividade providencia, a nosso ver, ferramentas para reler a metapsicologia do afeto.

O afeto na teoria freudiana e a busca em figurabilidade

A teorização do afeto por Freud apresenta várias dificuldades e aporias. Na metapsicologia freudiana, a pulsão tem dois representantes: o representanterepresentação (Vorstellungsrepresentanz) ou representante ideativo e o representante afetivo. Este parece colocado a uma distância igual do corpo e do ego e convoca, de uma forma distinta, a consciência e o inconsciente. Quando consciente, o afeto é a coloração afetiva de uma situação, uma qualidade apreensível pelo ego. Inconsciente, é um processo energético de tensão e descarga, à base dos movimentos somático-psíquicos inconscientes.

As ideias ou representações inconscientes correspondem a traços mnemônicos dissociados do seu contexto consciente, recalcadas e reorganizadas, ou atraídas pelo recalcamento preexistente. Uma ideia pode ser segmentada, e os processos primários podem ter efeito somente sobre uma parte dela. O afeto, ao contrário, não se decompõe com o recalcamento. Sendo a finalidade do recalcamento evitar o desprazer, o destino do afeto se revela mais importante do que o da representação. Este destino é uma repressão total, ou uma manifestação sob uma coloração afetiva qualquer, ou ainda a transformação total em angústia (Freud, 1915/1996d). Depois do recalcamento, o afeto desaparece totalmente, ou é totalmente reconstruído.

No outro sentido, antes do recalcamento acontecer, numa perspectiva partindo do inconsciente para chegar à consciência, o afeto pode ser considerado como movimento de uma pulsão em busca de "representância" ou figurabilidade. Freud descreve dois destinos do afeto: numa concepção "arrombadora", o afeto chega diretamente do sistema inconsciente à consciência, e "sempre tem um caráter de angústia, contra a qual todos os afetos 'recalcados' são trocados" (Freud, 1915/1996d). Numa concepção vicariante, o afeto se desenvolve a partir de uma representação substitutiva que a pulsão encontra na consciência. Estas duas concepções, tanto na irrupção do afeto em movimentos de angústia, quanto nos vários mecanismos de defesa produtores de mascaramentos e ocultações próprios à neurose, são, a nosso ver, duas vias de busca em figurabilidade dos afetos.

Para teorizar o afeto, Freud usa a noção de quantidade, porém sem nenhum valor de medida. Esta quantidade designa, a nosso ver, um enigma e um instrumento heurístico. Como ressalta Green (1973, p. 261), o ponto de vista econômico introduz também a noção de transformação pelo trabalho. Acreditamos que esta noção de trabalho - como medida da exigência imposta ao psíquico pelo seu vínculo com o somático, como transformação de energia livre em energia ligada, de pulsão em figuração psíquica - permite abordar o afeto como uma demanda de figuração.

Esta busca de figurabilidade não segue a semiologia clássica da "representação" (Vorstellung) (uma imagem mental que remete a uma outra realidade), mas a da "apresentação"(Darstellung), direta, imediatamente perceptível, sem delegação. Encontra o seu modelo, a nosso ver, na intersubjetividade, tal como é definida por Merleau-Ponty, e como aparece, também, na área transicional winnicottiana2.

Merleau-Ponty teoriza um espaço intercorporal e intersensorial entre a minha percepção e a do outro, que constitui a base da intersubjetividade, e é muito similar à área transicional. O ato psíquico convocado na área transicional não é nem percepção (a criança não percebe o objeto só enquanto objeto exterior) nem imaginação (o objeto transicional tem uma dimensão da realidade exterior também). Do mesmo modo, o encontro com o outro procede desta mistura de atos psíquicos. Conforme a análise da intersubjetividade por Husserl (1947), ao perceber o corpo físico (Körper) do outro (estritamente falando, não percebo outra coisa, sequer uma vida psíquica), efetuo uma apresentação do seu corpo vivido e vivo (Leib) a partir do meu próprio Leib, único corpo que posso experimentar como corpo vivo do interior. O ato psíquico aqui mobilizado não é, portanto, nem percepção nem imaginação, mas o que Marc Richir, retomando a teoria husserliana, chama de Phantasia (Richir, 2000, p. 174). O espaço intersubjetivo e a área transicional fundamentam-se, a nosso ver, nesse registro da Phantasia no qual acontece a busca em figurabilidade do afeto.

 

Conclusão: figurabilidade e clínica contemporânea

Se se considera que os movimentos afetivos são ao mesmo tempo os objetivos, os reveladores e as ferramentas do trabalho do analista, os destinos dos afetos se revelam o alvo central da clínica analítica. A primeira noção freudiana de abreação (Freud, 1895/1996c), a noção posterior de perlaboração (Freud, 1914/1996e), e a noção de "verdade histórica" (Freud, 1937/1996a) consistem as três em movimentos afetivos: visam uma busca em figurabilidade do afeto.

Se esta busca em figurabilidade corresponde aos processos psíquicos almejados na cura, ela se manifesta ainda mais em pacientes contemporâneos, cujo aspecto comum é uma grande dificuldade em simbolizar, e cujas defesas - aditivas, psicossomáticas e depressivas - se limitam à passagem ao ato ou à somatização. Para estes sujeitos, os sintomas, posturas e gestos corporais, afetos de angústia, ódio e raiva vêm revelar uma falha que não é da ordem da castração, mas da existência mesmo. Portanto, os afetos aqui concernidos são ainda menos ligados a representações, e o trabalho analítico não consiste em vinculá-los a representações recalcadas, mas encaminhá-los em direção a uma figurabilidade que nunca teve lugar. Isso se possibilita só por via de uma intersubjetividade particular na transferência, implicando os corpos do analista e do analisando e tentando fazer viver a intersubjetivade primária do entorno, que não teve lugar.

Nesse contexto, a figuração do afeto é o objetivo essencial. Trata-se de providenciar, nas "imagens autóctones" do analista, um material sensorial, encarnado, corporal, suscetível a traduzir aquilo que nunca recebeu forma nem figuração no analisando.

Frente à busca em figurabilidade dos seus afetos, falhando em acontecer, Álvaro de Campos escreve:

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
((Fernando Pessoa, Passagem das horas)

Tomara o psicanalista pudesse se colocar como veículo para este sentir desmultiplicado que vem romper à única lógica do ato ou da psicossomatose. Tomara evitasse também permanecer no altar, e procurasse, uma vez acontecida a figurabilidade afetiva, resolver a transferência, e revelar um céu infinito sem deuses.

 

Referências

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Recebido em 5/11/2012
Aceito em 12/12/2012

 

 

18, Avenue du Président Hoover 59000, Lille, França. thamy.ayouch@gmail.com
1 "Paris n'est pas pour moi un objet à mille facettes, une somme de perceptions, ni d'ailleurs la loi de toutes ces perceptions. Comme un être manifeste la même essence affective dans les gestes de sa main, dans sa démarche et dans le son de sa voix, chaque perception dans mon voyage à travers Paris - les cafés, les visages des gens, les peupliers des quais, les tournants de la Seine, - est découpée dans l'être total de Paris, ne fait que confirmer un certain style ou un certain sens de Paris. ...Nous ne percevons presque aucun objet, comme nous ne voyons pas les yeux d'un visage familier, mais son regard et son expression. Il y a là un sens latent, diffus à travers le paysage ou la ville, que nous retrouvons dans une évidence spécifique sans avoir besoin de le définir. ...Une première perception sans fond est inconcevable. Toute perception suppose un certain passé du sujet qui perçoit et la fonction abstraite de perception, comme rencontre des objets, implique un acte plus secret par lequel nous élaborons notre milieu" (Merleau-Ponty, 1945, pp. 325-326).
2 Permito-me remeter a um artigo meu publicado sobre este assunto: Ayouch, T. (2012a).