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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.45 no.83 São Paulo dez. 2012
INTERFACES
O ator-compositor e o analista em formação - inspirações, aspirações e processos criativos
The actor-composer and the analyst in training - inspirations, aspirations and creative processes
El actor-compositor y el analista en formación - inspiraciones, aspiraciones y procesos creativos
Rodrigo Lage Leite
Membro filiado do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp. Psiquiatra pelo Instituto de Psiquiatria da FM-USP
RESUMO
A partir da observação do percurso de diferentes artistas de teatro, como Constantin Stanislávski, Vsevolod Meyerhold e Klauss Vianna, o autor sugere que sirvam de inspiração para o analista em formação, no tocante a características como autonomia, criatividade e autenticidade. Também apresenta algumas reflexões acerca do tempo e das divergências como importantes aspectos da formação em psicanálise.
Palavras-chave: formação psicanalítica, Psicanálise e teatro, processo criativo, autonomia
ABSTRACT
Observing the course of theater artists such as Constantin Stanislavski, Vsevolod Meyerhold and Klauss Vianna, the author suggests that it serves as inspiration for the analyst in training, regarding issues such as autonomy, creativity and authenticity. It also presents thoughts about time and divergences as important components of a training process in psychoanalysis.
Keywords: analytical training, psychoanalysis and theater, creative process. autonomy
RESUMEN
A partir de la observación de la trayectoria de diversos artistas de teatro, como Constantin Stanislavski, Meyerhold Vsevolod y Klauss Vianna, el autor sugiere que sirvan de inspiración para el analista en formación, en relación con características tales como autonomía, creatividad y autenticidad. También se presentan algunas reflexiones sobre el tiempo y las divergencias como aspectos importantes de la formación en psicoanálisis.
Palabras clave: formación psicoanalítica, Psicoanálisis y teatro, proceso creativo, autonomía
Quem pode nos garantir o resultado? O que é, no teatro, um resultado?
A capacidade de acertar no coração e na mente de cada
um dos espectadores?
(Barba, 2010, p. 131)
Eugênio Barba, importante diretor teatral italiano da atualidade, é quem faz esta provocação ao se interrogar sobre o "pensamento criativo" de um artista, no caso, os artistas de teatro.
A delicadeza e a complexidade de se pensar em resultados quando o assunto é arte faz pensar, de maneira paralela, o que seria um resultado em psicanálise. Seja na formação de um analista, seja nas descobertas e construções do analisando em seu processo analítico, a ideia de resultado sempre colocará em evidência questões como desejo, expectativas, limites e onipotência. Será factível pensar em "um resultado alcançado", ou será mais realista a ideia de resultados que se constroem, desconstroem, e se reconstroem indefinidamente, dentro das possibilidades e dos limites de cada processo e dos horizontes da ideia de ressignificação?
Partindo-se desta perspectiva, a interrogação acerca de com quem aprendemos psicanálise abre um campo de reflexão tão amplo quanto é o universo subjetivo de cada sujeito que se aproxima do ofício psicanálise. Assim, os possíveis resultados alcançados ao longo deste "aprendizado" serão marcados pela pessoalidade e por circunstâncias particulares, muitas vezes inesperadas, decorrentes das relações analista-analisando ou mestre-aprendiz.
A fim de pensar a "aprendizagem" em ofícios marcados tanto pela subjetividade quanto pela existência de uma técnica, foi escolhido o processo formativo do ator como modelo de comparação ao processo de formação analítica.
A observação do parâmetro central do processo criativo no teatro, a saber, a "preparação-formação do ator-compositor", termo que dá nome ao livro do ator Matteo Bonfitto, e que traz para o ofício teatral a ideia de composição, tão cara às diversas formas de arte, como a música, as artes plásticas e a dança (Bonfitto, 2006, p. xxvii), serve aqui de ponto de apoio para a ideia de que tanto o artista, quanto o analista, percorrem caminhos semelhantes na integração de aspectos individuais de sua personalidade e de sua história com o desenvolvimento de uma técnica, um instrumento de trabalho a ser constituído e continuamente aperfeiçoado.
Em contraposição à difundida ideia romântica do "gênio" do teatro, o trabalho do ator vem sendo pensado como um intrincado processo de integração de diferentes habilidades. Ao longo de sua formação, o ator se aproxima por um lado de seu universo psíquico e emocional, através de leituras, reflexões, e estudos. Por outro, aprende a conhecer seu corpo, sua musculatura, suas articulações, e seus movimentos. A partir destas conquistas, gradativamente amalgamadas, cria possibilidades de integrar aspectos subjetivos, como sensibilidade e intuição, com sua capacidade de transformar "ideias criativas" em ações físicas, corporais, e, portanto expressivas. Assim os signos fundamentais para o ato cênico são construídos e poderão, quiçá, "acertar a mente e o coração dos espectadores".
Em psicanálise, a sensibilidade do analista para perceber o outro e se aproximar das questões inconscientes subjacentes ao discurso suscita, em paralelo, o desenvolvimento de habilidades técnicas propiciadoras de um ambiente de trabalho fecundo, em que possam acontecer intervenções produtivas e esclarecedoras para o analisando, e este possa, a partir de suas próprias "construções em análise" (Freud, 1937/2006c), alcançar as descobertas e os deslocamentos possíveis dentro de seu processo analítico.
Observar o processo criativo do artista pode ser inspirador para se pensar o "aprendizado" da psicanálise, seja no tocante à consciência da integração de aspectos subjetivos do analista com sua técnica, seja na percepção da importância de aspectos como o tempo e as divergências de opiniões na constituição sólida dos percursos artísticos e analíticos. Estes são os principais vértices de reflexão que se pretende desenvolver ao longo do artigo.
O método das ações físicas de Stanislávski - da imaginação ao corpo
O diretor teatral russo Constantin Stanislávski (1863-1938) foi o precursor de um método específico de trabalho para o ator. Nos primórdios de sua trajetória, Stanislávski observou, intrigado, as montagens dos vaudevilles e constatou que ali o "trabalho do ator consistia na simples repetição de procedimentos e códigos que caracterizavam as personagens e situações" (Bonfitto, 2006, p. 21).
Insatisfeito com os resultados, passou a desenvolver um método de interpretação que escapasse "do artifício convencional e da cópia mecânica para a vivência natural e a criação orgânica." (Guinsburg, 2001, p. 3). Com inúmeras experiências em diferentes montagens teatrais, observando variados atores e diretores, Stanislávski formulou grandes transformações em sua teoria e técnica, buscando sempre fugir do estereótipo e da repetição automática em direção a uma expressividade que tivesse relação com a verdade de cada ator, levando em conta seu repertório de ações e sua singularidade. Foi assim que evoluíra de seu primeiro método de trabalho, as "linhas de forças motivas" e chegara finalmente ao seu "método das ações físicas".
No início, Stanislávski acreditava que através de recursos de imaginação e do uso da chamada memória emotiva, o ator poderia colocar-se na situação do personagem, e assim construir seu papel. "As forças motivas da vida psíquica: sentimento, mente e vontade, juntas, tinham o papel de desencadear o trabalho criativo do ator" (Bonfitto, 2006, p. 24). Neste período, Stanislávski ainda acreditava que lançando mão da memória emotiva, o ator poderia resgatar sensações e emoções vividas no passado, e aplicá-las na execução de seu papel.
O avanço das pesquisas do mestre russo, sobretudo a partir de 1918, com a experiência no Estúdio de Ópera, muda os rumos desta compreensão. A primazia do "sentimento" do ator e da memória emotiva na construção da personagem fora substituída pela valorização da ação física, concreta e de outras memórias, como por exemplo, a memória muscular. A experiência mostrava que o ator não poderia estar à mercê das instabilidades destas forças motivas, mas que necessitaria de uma técnica de trabalho um pouco mais precisa, capaz de auxiliá-lo no acesso às suas emoções e na possibilidade de repeti-las de maneira autêntica a cada dia.
As ações físicas, na realidade "psico-físicas", seriam a essência do novo método de Stanislávski. Cada gesto, cada ação funcionaria como um catalisador dos elementos ligados aos processos interiores do ator. "No processo de sua execução as ações devem desencadear processos interiores, agindo dessa forma quase como 'iscas'" (Bonfitto, 2006, p. 25). Por exemplo, um determinado modo de movimentar o tórax poderia despertar no ator sensações de angústia ou tristeza capazes de preencher de verdade uma determinada cena, alcançando organicidade e realismo, tudo em conexão direta com o ator que a executa.
Como um musicista que conhece, afina e produz música a partir de seu violino, o ator deveria conhecer profundamente seu instrumento de trabalho, o corpo, para utilizá-lo adequadamente na criação de seu personagem e no jogo vivo com os demais parceiros de cena. Esse entendimento levou décadas para ser construído, e só foi possível graças à observação perseverante e minuciosa de Stanislávski.
Da observação das aves ao desenvolvimento de uma técnica: a dança de Klauss Vianna e a questão da autenticidade
Klauss Vianna (1928-1992) foi o "introdutor, no Brasil, da preparação corporal do ator. Influenciou muito fortemente a formação de diversos atores e bailarinos atuantes nos dias de hoje" (Vianna, 2005, p. 14).
Mineiro, Klauss Vianna se definia como sujeito "mais intuitivo que estudioso" (Vianna, 2005, p. 22). Em seu livro autobiográfico, A dança, realça sua característica de grande observador: das aves no galinheiro, dos cachorros do pai caçador, dos pés, os seus próprios e os dos outros.
A observação atenta e o temperamento introspectivo propiciaram um jeito particular de perceber o próprio corpo e a dança. Como professor questionava os métodos clássicos, e em suas aulas
falava do corpo, das funções dos ossos, brincava de roda, pedia para que ... dançassem o que gostavam de dançar nas festas, lia histórias. Acreditava ... que é assim que se estimula um ser criativo. (Vianna, 2005, p. 46)
A observação íntima, minuciosa e prolongada do próprio corpo e da relação deste com o mundo ao redor era a estratégia proposta por Klauss Vianna para que o artista-intérprete adquirisse um "corpo inteligente" e sensível. A partir da observação corporal durante as aulas e também no cotidiano, o ator desenvolveria uma consciência cada vez maior do seu corpo, sua postura, seus gestos e seu repertório de ações físicas. Aprenderia também a identificar as sensações e emoções associadas ao uso do corpo, e assim poderia passar a usá-lo de maneira mais criativa, autêntica e expressiva.
A atriz e preparadora corporal Luzia Carion Braz escreveu sobre o uso da técnica de Klauss Vianna aplicado ao trabalho do ator, em tese de mestrado, apresentada à Escola de Comunicações e Artes da usp, em 2004:
É proposto ao aluno que direcione a atenção ao uso de seu corpo no cotidiano. A percepção da postura, do andar, de como são mecânicos e repetitivos os gestos, de como os sentidos, principalmente a visão, a audição e o tato estão adormecidos, são referências fundamentais para o aluno. ... A verificação do quanto é pobre o vocabulário gestual no cotidiano, principalmente em decorrência das tensões musculares, é conduzida pela execução de sequências de movimentos simples, como andar, agachar, sentar, deitar e levantar ... quanto mais rapidamente o aluno conseguisse converter gestos comuns em atitudes mais ou menos conscientes, mais facilmente poderia avançar em direção à liberdade, à autonomia para a composição de um repertório mais amplo e eficiente.
Os alunos iniciam um processo de aprendizagem consciente sobre a estrutura óssea, muscular e seus funcionamentos ... os movimentos possíveis de serem realizados pelas articulações, os princípios mecânicos como peso ..., apoios, alavancas e equilíbrio. ... Também são propostos exercícios para que aprendam a explorar o espaço (direções, planos e ritmos), a realizar o desenho preciso do movimento no espaço (começo, meio e fim), a experimentar outras qualidades de movimentos, através de combinações diferentes de ritmo, tônus muscular e desenho do movimento no espaço.
Dessa forma, Klauss buscava propiciar ao intérprete os meios para alcançar uma das primeiras qualidades exigidas em sua atuação: a presença cênica". (Braz, 2004, pp. 65-66)
O amplo percurso do ator no conhecimento de seu corpo e na construção de um "corpo inteligente", afinado com a ideia stanislavskiana de uma criação orgânica, nos remete à questão da autenticidade e da liberdade no trabalho deste. À medida que refina o conhecimento de seu repertório emocional e corporal, o ator torna-se mais conectado com suas próprias verdades e recursos. Pode assim escapar dos artificialismos e das caricaturas. Está mais apto a desenvolver um caminho pessoal e autoral em suas criações. Ao invés de "engessar" o ator, a técnica facilita a aproximação deste com o que lhe é singular.
Essa maneira particular de compreender o processo de preparação do "ator-compositor" faz rememorar a fala do analista italiano Stefano Bolognini, em entrevista ao Jornal de Psicanálise, em 2010, acerca da questão da autenticidade do psicanalista:
Na minha experiência, o problema do analista monoteórico ou pluralista é menos importante, do que o problema do analista autêntico ou não autêntico. Os analistas podem ser monoteóricos e "imperialistas", mas autênticos. Podemos falar algo de bom deles, são verdadeiros. Há outros monoteóricos, que não; podemos dizer que aí existe uma evidente identificação interior, que definirei como identificação projetiva com o objeto incorporado ou interiorizado, mas não introjetado. Nesse caso há um sintoma; é falso. O mesmo ocorre com os pluralistas: há os verdadeiros, que realizaram introjeções autênticas e os outros que nunca introjetaram o objeto, ouviram várias linhas de trabalho, mas não se tornaram verdadeiros. (Bolognini, 2010, p. 53)
Quais seriam então, no tocante à psicanálise, os vetores determinantes dessa autenticidade? Existiriam fatores fundamentais na estruturação de uma "personalidade analítica"?
A capacidade intrínseca de observar e refletir sobre o mundo, citada por Klauss Vianna em A dança ("das aves no galinheiro, dos cachorros do pai caçador, dos pés, os seus próprios e os dos outros") e a liberdade estimulada por ele em seus alunos, de "contar histórias, de dançar, de brincar de roda" podem também ser pensadas, no caso de analistas, como matrizes da capacidade fundamental de observar o próprio mundo mental, seus movimentos sinuosos e muitas vezes enigmáticos. A curiosidade e a liberdade para "saber de si" podem ser pensadas como primeiro vetor constitutivo de um olhar pessoal e autêntico sobre os fenômenos da vida mental "sua própria e dos outros".
A partir dessa matriz de personalidade "curiosa e livre", o analista, assim como o ator, constituirá um caminho formativo próprio, a depender das circunstâncias, apostas e escolhas ulteriores. A análise pessoal, as supervisões e os estudos teóricos serão estruturantes de aprofundamentos da compreensão do psiquismo, das emoções, da técnica psicanalítica e do fazer psicanalítico.
O homem é um ser passional. Como um barquinho, ele é tocado por paixões: amor, ódio, medo, ciúme, inveja, ternura, sedução. As paixões são conhecidas no nosso trabalho nos movimentos transferenciais e para os quais nós criamos um espaço, até certo ponto artificial, no sentido não de falsidade, mas sim de artifício que engendramos ao longo dos anos de nossa formação, quando amalgamamos estudos, supervisões, análise pessoal num constructo próprio, viabilizando as paixões em canais que vão irrigar nossa criatividade. (Azambuja, 2007, p. 177)
Assim, Sônia Curvo de Azambuja nos relembra o caminho longo a ser percorrido nesse "mergulho" em nosso mundo mental, na dinâmica de nossas paixões e na transformação de nossas descobertas, ao longo da formação, em possibilidades de compreender melhor o outro e constituir um modo de trabalhar analítico.
Podemos "aprender psicanálise" na atenção aos movimentos das nossas paixões na relação transferencial com o analista e, mesmo com os supervisores. Assim como os atores de Stanislávski ou de Klauss Vianna aprendem em longos processos a conhecer seu mundo interior e seu corpo, o analista aprende a observar aspectos do seu mundo mental na experiência intensa, cotidiana, repetida na frequência da análise e na "dinâmica das transferências" (Freud, 1912/2006a).
A intimidade continuamente conquistada do analista com seu próprio mundo mental preenche de sentidos os estudos sobre a técnica psicanalítica, seja na teoria, seja na experiência fundamental com os "mestres-supervisores". As reflexões acerca de um setting favorável ao trabalho analítico, as noções sobre abstinência e continência, e a atenção aos movimentos transferenciais e contratransferenciais são conquistas graduais e fundantes de uma técnica profícua, a serviço de um trabalho analítico ao mesmo tempo rigoroso e autêntico.
Outro vetor determinante da autenticidade analítica é a persistência da abertura do analista à auto-observação e ao autoquestionamento, ao longo de toda sua trajetória. A possibilidade de realizar releituras de si mesmo a partir das experiências que o mundo vier a proporcionar é fonte de alimento para criatividade e inventividade. A psicanalista Noemi Moritz Kon afirma em inspirador artigo na Revista ide:
Relato encontros que tive com obras que serviram de suporte para novas leituras que fiz de mim mesma e que me transformaram, ou seja, deslocaram-me. Obras que funcionaram - e continuam funcionando - como espelhos multiplicadores, digamos, caleidoscópicos, de mim, e que despertaram novas possibilidades expressivas que só existiram por nosso encontro. (Kon, 2012, p. 123)
A autora reflete sobre as transformações internas vividas por ela, e que ampliaram os horizontes de seu próprio mundo mental, a partir do contato com quatro diferentes obras de arte: o quadro "Senecio", de Paul Klee, encontrado na antessala do consultório em sua primeira análise; o conto "Amor", de Clarice Lispector; o romance Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust; e um desenho de Saul Steinberg. Ao final de seu artigo a autora ainda ressalta a nova transformação interior que viveu ao escrevê-lo, recuperando parte das experiências estéticas vividas.
Algumas considerações sobre o tempo e as divergências na formação do ator e do analista
O caminho da autenticidade e da criatividade na formação de artistas e analistas compreende, como refletido anteriormente, possibilidades de autoobservação, autoconhecimento e autoquestionamento. Neste sentido, duas variáveis são fundamentais para um desenvolvimento pessoal e singular: o tempo e a possibilidade da divergência de opiniões.
Um exemplo da importância dessas variáveis na história do teatro é a longa e complexa relação entre Constantin Stanislávski e Vsévolod Meyerhold (1874-1940), outro importante mestre do teatro russo. Meyerhold iniciou sua carreira como ator do Teatro de Arte de Moscou, em 1898, sob a direção de Stanislávski. "Três anos mais tarde, fundou sua própria companhia, na província, e começou por copiar as encenações do Teatro de Arte de Moscou, descobrindo, ao longo do trabalho seu próprio caminho" (Meyerhold, 2012, p. 7).
Após nova aproximação com Stanislávski em 1905, as divergências entre os dois tornaram-se flagrantes e uma nova ruptura se estabeleceu. Meyerhold, então, passaria por um período de três décadas distante de Stanislávski, em que construiria seu percurso próprio nos Teatros Imperiais e nos estúdios de pesquisa para formação de atores, tornando-se o "mestre da biomecânica" no teatro.
"A história do teatro moderno tem um de seus eixos na relação antitética Stanislávsli-Meyerhold" (Guinsburg, 2001, p. 85). Curiosamente, o último capítulo dessa história é o chamado "reencontro da morte", quando Stanislávski dá guarida a Meyerhold após o fechamento do Gostim (teatro de Meyerhold) pela ditadura stalinista. A respeito desse período, J. Guinsburg escreve:
Poderia servir de epígrafe ou, se quiser, de epitáfio, a esse longo processo de relacionamento de dois temperamentos artísticos excepcionais e opostos quer psicologicamente quer estilisticamente ... a observação que Stanislávski teria feito antes de morrer: "Cuidem de Meyerhold, ele é o meu único herdeiro no teatro, aqui ou em qualquer outro lugar". (Guinsburg, 2001, p. 86)
Como seria possível a construção de caminhos tão singulares e divergentes se não houvesse espaço para própria observação, para a intuição e tempo para consolidação de ambas? Criatividade e autenticidade parecem demandar ousadia e arrojo, por um lado, mas também paciência e tenacidade por outro. Essas características constituem a história da psicanálise e do teatro desde sempre e estão subjacentes às relações mestre-aprendiz em ambos os ofícios, de Stanislávski a Meyerhold, de Freud e dos analistas criativos em particular.
Ao escrever o obituário de Charcot, em agosto de 1893, Freud ressaltou o gosto do "grande homem" de "conversar sobre o início de sua trajetória e sobre o caminho já percorrido" e de "olhar repetidamente as coisas que não compreendia, para aprofundar sua impressão delas dia-a-dia, até que subitamente a compreensão raiava nele" (Freud, 1893/2006b, p. 22).
A valorização da "observação" desde os primórdios da psicanálise está aí documentada. Ao se encantar com o mestre Charcot e suas pesquisas sobre a histeria, na Salpêtrière, e se desviar dos propósitos de sua bolsa de estudos em neuropatologia, Freud revela a autenticidade com que se guiava, em conexão direta com seus interesses mais genuínos, com suas observações e, sobretudo com sua intuição.
Outras guinadas de impacto viriam depois, como por exemplo, o abandono da hipnose e do método catártico a partir de sua autoanálise e da interpretação dos sonhos, a passagem da teoria da sedução para teoria da fantasia, registrada na clássica carta a Wilhelm Fliess (1858-1928) em que confessa "não acreditar mais na minha neurótica" (Freud, 1897/2006d, p. 309), e a guinada da década de 1920, em que revoluciona sua teoria das pulsões (Roudinesco & Plon, 1998, p. 631). Interessa aqui o registro de que todas essas passagens tiveram relação direta com as experiências pessoais e com as observações no âmbito profissional de Freud.
O tempo de formação do pensador Freud e da própria psicanálise também foi, como nos mestres do teatro, marcado por encontros e desencontros, paixões e divergências, em experiências permeadas pelo confronto de ideias e pelos afetos. É amplamente conhecida a história de aproximações, divergências e rupturas na relação com Joseph Breuer (1842-1925), Wilhelm Fliess, Carl Gustav Jung (1875-1961) e outros. Mais à frente o contraditório marcaria todo o rumo da psicanálise, como por exemplo, na acirrada oposição entre Melanie Klein (1882-1960) e Anna Freud (1895-1982) acerca do "brincar infantil" e da psicanálise de crianças.
Algumas conclusões
A ideia de comparar os processos formativos do ator e do analista surgiu da observação de um ponto comum entre os dois ofícios: a necessidade de integrar aspectos subjetivos do indivíduo em formação com uma técnica em desenvolvimento. A partir daí pôde-se pensar a via de mão dupla entre estes aspectos subjetivos, como sensibilidade, intuição e curiosidade com a técnica em construção, ou seja, como os aspectos subjetivos preenchem a técnica de sentido, e como a técnica pode, por sua vez, criar um ambiente favorável para o florescimento dos elementos subjetivos.
Vários aspectos do "aprendizado" da psicanálise e do teatro puderam ser pensados, desde as matrizes possíveis de um fazer artístico e analítico, como a auto-observação e o autoquestionamento, até os determinantes de um caminho autêntico e criativo.
O caminho de criação da psicanálise, repensado a partir da busca de Stanislávski por um ator autêntico e verdadeiro, nos faz traçar um paralelo entre o caminho freudiano e o caminho de cada analista que se forma, e que passa a formar também o que se entende hoje por psicanálise. Os "resultados" possíveis, múltiplos e variados, estarão em conexão com a apropriação pessoal e única que cada analista fará ao longo de sua vida daquilo que "aprende" e "compreende" como psicanálise.
Acreditou-se aqui que a introspecção e a paciência do ator em seu mergulho psicofísico possam ser fontes de inspiração para o analista que pretende estar em contato direto e permanente com sua intuição e percepção.
Referências
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Recebido em 5/11/2012
Aceito em 28/12/2012
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