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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.85 São Paulo jun. 2013

 

RESENHAS

 

O psicanalista na comunidade

 

 

 

Autores: Jassanan Amoroso Dias Pastore e Sylvia Salles Godoy de Souza Soares (Orgs.).
Editora: SBPSP, 2013
Resenhado por: Marlene Guirado1

O memorial de Melanie Farkas como uma genealogia da psicanálise na comunidade

Eis um livro surpreendente! Isto, por várias razões. E é delas que faço a linha mestra desta resenha de que muito me orgulho por ter sido convidada a escrever.

Melanie Farkas, autora de alguns dos artigos e homenageada por seus colegas, com todo o livro, tem desenvolvido na SBPSP, há muitos anos, um trabalho pioneiro de formação de núcleos de interesse e atuação, voltado para o que, genericamente, se arbitrou chamar comunidade.

Pode-se dizer que ela é uma psicanalista atípica: levou para seus anos de formação na Sociedade as marcas da escuta e da atenção ao contexto de relações e discursos das instituições em que trabalhou. Uma vez membro efetivo, por decisão pessoal, deu preferência a não ascender ao lugar de analista didata e continuar dedicando-se aos seus trabalhos de supervisão, orientação e acompanhamento de profissionais que tivessem relação direta com a clientela de instituições de saúde, educação, cultura e promoção social, de Secretarias oficiais ou de organizações não governamentais. Desta feita, estendia (como faz até hoje) discussões relativas à viabilidade de a psicanálise acontecer fora dos padrões estritos e historicamente consagrados. Pelo que relata em seus textos, essa experiência traz de retorno à clínica, sua e de seus colegas de ofício, algumas recomendações de postura e alterações de rota. Éticas, técnicas. Exigências inevitáveis pelo que se pode acompanhar no que diz e escreve nos textos "O psicanalista fora do consultório: os diferentes settings", "Psicanálise sem divã", "Psicanálise e cidadania" e na "Entrevista".

Melanie foi minha analista nos tempos em que eu, militante de esquerda nos movimentos de Comunidade de Base, era uma aguerrida crítica da psicanálise, e que só me deitei no divã porque uma angústia incômoda me estrangulava a garganta e o pensamento (meados da década de 1970). Recém-formada em Psicologia, por essas contradições produtivas de nossa vontade, admiti que era a hora de fazer análise, e, por uma indicação de que não me recordo a origem, eu a procurei. Em dez anos, minha vida saiu de meia dúzia de recusas à área clínica, apoiadas num discurso marxista, para um trabalho com a clínica psicanalítica, tanto no plano imediato do consultório quanto no plano de uma discussão conceitual e metodológica sobre a possibilidade de um exercício da Psicologia aproximado da psicanálise. É sob o crivo deste meu trabalho que li o livro ora em resenha. Mais que isto, foi sob este crivo que reencontrei, na Melanie Farkas da Entrevista, texto inicial, uma referência que eu não conhecia. Reencontrei-a em informações concretas que ela, decidida, nos oferece e que, até certo ponto, são tão estranhamente familiares a mim.

Se apresento algo assim, de natureza pessoal, é porque penso que este é um dos grandes feitos desse livro: ele nos "pega" pela simplicidade com que apresenta algo tão forte e provocativo, tão próximo e possível e, ao mesmo tempo, tão único.

Trata-se (a "Entrevista", sobretudo) de uma espécie de memorial da trajetória profissional de Melanie, que desenha uma ética e estética de existência, em que ao cuidar de seus compromissos com o trabalho junto à população que busca (e, portanto, se expõe a) serviços institucionais públicos e/ou comunitários, cuida dos outros. E isto, desde os tempos em que os discursos de esquerda não se apoiavam na dimensão de cidadania, mas de humanidade e de justiça social (vide a fala da entrevistada sobre sua formação política como inevitavelmente determinante de sua postura no exercício da Psicologia na Santa Casa). Aliás, é exemplar o jogo da produção de um "cuidar de si" para bem "cuidar do outro", nas suas lidas concretas da vida (pp. 24, 27 e 31). Aí a matéria-prima da ética. Uma ética calcada no ethos e na demanda daquele que se atende, e não na técnica e na teoria da psicanálise, em princípio.

Mesmo antes de Michel Foucault tratar, com tanta propriedade e distinção no cenário filosófico-intelectual, essa questão da ética, do cuidado e do saber de si, do governo de si e do governo dos outros (2004; 2010), Melanie, que se diz alguém não afeita a discussões teóricas (p. 41), com maestria, pelo modo como disciplina sua atenção aos movimentos do contexto concreto (em) que opera, já era, em ato, todo esse discurso. Aliás, seu discurso é ato, é acontecimento que modifica a situação concreta, pelo simples fato de acontecer. Um dos rumos, ou melhor, um dos efeitos desse modo de fazer as coisas, de dizê-las e, por que não, pensá-las, é que ele tem, como diria Freud em "Além do princípio do prazer", o poder de causar tensão ali onde a inércia está prestes a se instalar; isto é, é (pulsão de) vida impedindo que a (pulsão de) morte cumpra seu destino de destruição.

Essa parece ter sido, desde os trabalhos desenvolvidos junto ao Centro de Higiene Mental da usp (década de 1960) até aqueles de psicanálise em extensão junto com grupo de membros da Sociedade interessados (dias atuais), a intenção expressa de Melanie com o exercício de sua profissão. A prática clínica não a isola. Pelo contrário, é ocasião de instigantes questões que ela se coloca e que coloca aos outros a quem supervisiona, que fazem sua formação contando com discussões de suas ideias e princípios ou que, pelo que atestam os autores dos capítulos do livro, são-lhes consonantes.

Alguns extratos dessa contundente fala:

Até hoje, na minha vida, no meu trabalho, mantenho a preferência por trabalhar com pessoas responsáveis pelos atendimentos.

Como você pensou em fazer formação na SBPSP?

Achei que uma formação mais sistemática seria bom para mim ..., achei que seria um bom espaço. (p. 26)

Pela primeira vez, foram convidadas pessoas de fora e que trabalhavam com Saúde Mental para falar no auditório da Sociedade. (p. 28)

Você traz para o seu consultório uma coisa que é muito importante, não é o homem abstrato; é o homem concreto. (p. 31)

Eu chamo isso de psicanálise para a vida e, não, de psicanálise para a psicanálise. (p. 37)

não é que os psicanalistas nunca se interessaram, mas acho que a SBPSP abafou isso, não fez desenvolver. ... pelo menos na minha experiência de formação, nunca vi uma experiência de formação, um seminário clínico, com uma atenção explícita para outras configurações que não as individuais, as mentais, as inconscientes. (p. 32)

Não sei muito bem como isso poderia ser feito, só que isso poderia ser menos proibido. (p. 33)

A força dessas palavras corrobora seu efeito de ruptura. Isto se pode depreender se atentarmos para o lugar de enunciação, o lugar de onde fala Melanie. Um lugar complexo, tenso, porque marcado por uma superposição de dois outros: é de "dentro" da SBPSP que seu discurso carreia uma história talhada no compromisso ético-político com o "fora". Tal superposição, na complexidade e pela tensão, cria um lugar de fala que se legitima à medida em que esta mesma é exercida, por meio da própria entrevista concedida por uma psicanalista da Sociedade, publicada em 2000 por um jornal da própria instituição, e, agora, no contexto de um livro que faz um elogio à posição de Melanie na psicanálise, na contramão dos caminhos mais clássicos, repetitivos e estereotipados da instituição pioneira da psicanálise em São Paulo. É de seu interior que vozes assumem a necessidade das práticas psicanalíticas se estenderem para além das quatro paredes do consultório, agregando outras vozes, como as de Fabio Herrmann e Leopold Nosek, que, por linhas paralelas, propuseram também seus discursos (outros) para esse saber.

É assim que, no dito e no dizer, este livro é uma genealogia da saída do psicanalista para os trabalhos comunitários. Saída de onde? Dos interiores das comunidades discursivas, dos círculos de produção e reprodução de conhecimentos e técnicas, de relações de poder/saber da psicanálise. Como? Pelas palavras e pela escritura do memorial de Melanie Farkas. Mais ainda, ao leitor que buscar no Psicanalista na Comunidade inspirações para seu próprio trabalho, há generosas contribuições, desde as mais ensaísticas até aquelas que, mais diretamente, referem-se a experiências concretas.

São, ao todo, 24 textos, com prefácio e, portanto, chancela, do então presidente da SBPSP, Plinio Montagna, também responsável pela autoria de um relato de experiência de atendimento psicanalítico a uma paciente terminal. As organizadoras do livro, Jassanan Amoroso Dias Pastore e Sylvia Salles Godoy de Souza Soares, respondem pela escritura de outros artigos, individualmente ou em parcerias com psicanalistas, resgatando trabalhos com a escuta psicanalítica em instituições que atendem clientelas com diferentes tipos de demandas, de diferentes idades, exercendo lugares igualmente diferenciados no fazer cotidiano institucional; e o fazem, instrumentando recursos que buscam se ajustar, o máximo possível, às condições do contexto.

Os outros capítulos, em sua diversidade, seguem a mesma tônica. Destaco, entre eles, um de autoria de Fabio Herrmann, que, sob o nome "Clínica Extensa", saborosamente como sempre, nos brinda com um vivo relato de suas incursões psicanalíticas: agora, num hospital geral.

Por fim, comento o escrito de Leopold Nosek. Eu havia dito, na abertura da resenha, que este era um livro surpreendente. Pois bem. Leo Nosek é uma surpresa dentro da surpresa. Parte de um ponto subversivamente distinto, no contexto discursivo sobre a "saída da psicanálise", para além dos muros em que é regiamente reconhecida, lá onde o psicanalista é o técnico rei: o consultório. Parte não das autossuficiências e das complacências ou intransigências da psicanálise e de suas organizações institucionais com o "fora" de seus âmbitos, mas das crises pelas quais, como profissão, está passando. Quase como uma necessidade de reinvenção para continuar existindo, como uma forma de saber e de fazer na cultura, da psicanálise se exigem mudanças. Diz ele: "Precisamos saber da cultura local e não, quixotescamente, 'levar a psicanálise', 'expandir a psicanálise', 'difundir a psicanálise'" (p. 101). Um pouco antes, desfechara:

Assim, se tempos atrás a atuação fora dos muros institucionais era o começo da carreira, hoje é um apelo que atrai um número cada vez maior de colegas experientes. Somos chamados a nos posicionar nas universidades, nos hospitais e nos diferentes grupos culturais. Somos chamados a partir de nossos pontos de excelência. Somos chamados como analistas. Teremos que encontrar formas, linguagem e expediente apropriados. Isso não significa uma atenuação do nosso saber, nem que a psicanálise corre perigo, mas, sem dúvida, serão necessários um desenvolvimento e uma confiança maiores na nossa especificidade. (p. 96)

Então, caro leitor, escolha seu assento, porque como já pode perceber, será provocado a se desacomodar, a qualquer momento, nessas quase 400 páginas de instigação a pensar a psicanálise que faz e o psicanalista que é.

 

Referências

Foucault, M. (2004). Ditos e escritos V. Rio de Janeiro: Forense.         [ Links ]

Foucault, M. (2010). O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 10/11/2013
Aceito em: 19/11/2013

 

 

Marlene Guirado. Rua Canário, 755 04521-002. São Paulo, SP, mguirado@terra.com.br
1 Livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, psicóloga, psicanalista e analista institucional do discurso. Autora de A clínica psicanalítica na sombra do discurso (Ed. Casa do Psicólogo, 2000), Análise Institucional do discurso como analítica da subjetividade (Annablume/fapesp, 2010), entre outros.