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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.46 no.85 São Paulo jun. 2013
RESENHAS
Diálogos sobre formação e transmissão em psicanálise
Autor: Ernesto Duvidovich (Org.)
Editora: Zagodoni, 2013
Resenhado por: Monica Seincman1
Formação e transmissão em questão
Impossível, de alguma forma, ao se falar de formação e transmissão, não citar o já conhecido tripé: análise, supervisão e teoria. A coletânea Diálogos sobre formação e transmissão em psicanálise organizada por Ernesto Duvidovich, psicanalista dedicado à formação de pares, não foge à regra, mas também não se detém aí.
Esta discussão é bem-vinda, por ser pouco exercitada formalmente. São poucos os textos que versam em torno deste tema.
Temos, aqui, dezesseis autores convocados a contribuir a partir de suas posições singulares no campo da psicanálise para a discussão deste assunto. Discussão esta que se propõe pluralista e que, em sua base, se revela bastante afinada, iluminando ao longo da leitura dos textos pontos diferentes, mas não divergentes. A homogeneidade de posições inicialmente surpreende, mas aos poucos, como acontece em psicanálise, são as filigranas que surgem e se sobressaem a cada texto.
A regulamentação do ofício do psicanalista é colocada em pauta logo de saída e se reconhece que o lugar de exceção da psicanálise, por ser estrutural, não pode ser erradicado. Como aponta Christian Dunker, impraticável e mesmo indesejável, haja vista a diversidade e proliferação das instituições, este movimento conseguiu o inimaginável, ou seja, o consenso entre as diversas orientações contra tal medida. A formação em psicanálise não pode ser enquadrada em um regime normativo, o que colocaria em risco sua própria essência.
Lacan propõe que o "psicanalista se autoriza a si mesmo", mas Alfredo Jerusalinsky aponta com razão que isto não implica qualquer autonomia ou independência, já que a autorização de sua prática tem seus alicerces obrigatoriamente em sua assunção pública da responsabilidade do que nela se produz: "É na dúvida, no equívoco e na vacilação diante do confronto crítico com os outros discursos que o psicanalista colocará à prova a consistência, e também os limites, de seu saber acerca da posição do inconsciente no tempo e na cultura que lhe toca viver" (p. 34). Jerusalinsky lembra também que historicamente nenhum dispositivo inventado para a formação foi capaz de garantir por si os efeitos necessários, e que esses dispositivos, configurados de acordo com políticas institucionais, ficam aptos a ligar transferências de maestria com posições de poder.
Daniel Kuperman introduz a "transferência nômade" na transmissão psicanalítica, colocando a possibilidade da não filiação, seja a uma corrente específica da psicanálise, seja a uma determinada instituição psicanalítica. Traz a questão da análise didática, aproximando-a à análise com crianças, que é caracterizada pela imposição dos pais ou responsáveis dos quais o analisando depende e pelo enorme risco de contaminação da experiência transferencial. Lembra também a universidade como lugar de formação e transmissão do saber psicanalítico, mas impotente em "proporcionar o elemento transferencial ao processo de formação psicanalítica, de caráter fortemente iniciatório, sem o qual o saber psicanalítico parece não se encarnar" (p. 47).
Radmila Zygouris traz a rua como espaço de formação. A rua como metáfora "onde se misturam o político e o sexual, onde as pulsões são solicitadas e se lançam numa desordem amorosa, de uma espécie não repertoriada pelo discurso familiar e psicanalítico" (p. 53), uma ampliação do inconsciente, não limitando-o ao individual, ao doméstico, convocando à cena não apenas a lei, mas também o poder (Deleuze).
Zygouris lembra Lacan ao dizer: "A psicanálise não se transmite. Ela se reinventa a cada vez", e adverte que a "prática, aquilo que, chamamos clínica, requer um saber totalmente outro e que se adquire sempre de modo singular, sempre diferente de um ao outro, e não é cumulativo" (p. 55), sendo o seu lugar de saber o próprio corpo do analista, onde estão as bases de seu inconsciente.
Luis Hornstein aponta para a relação entre teoria e escuta, afirmando que os "'teóricos' consideram que a única forma de estabelecer a análise como ciência é construindo uma elaboração conceitual cuja relação com a clínica tende a desvanecer e os 'clínicos' se satisfazem com uma teoria rudimentar, apenas indispensável para poder operar tecnicamente" (p. 69). Esta polarização representa para ele o risco de a teoria se formalizar como dogma e a clínica se tornar um pragmatismo empobrecedor.
Ernesto Duvidovich, ao pensar a formação-transmissão, foca três elementos: a inclusão do Sujeito Analista na escuta clínica que tem como instrumento de trabalho o mundo interno, o inconsciente; o pluralismo, que instiga a postura ativa na "invenção" de uma posição própria, procurando evitar a dogmatização do campo, a hierarquização e a homogeneização, "produzindo repetições discursivas e eliminando a criatividade necessária à atividade da escuta clínica" (p. 80); bem como a perda do conforto narcísico do saber teórico quando do encontro com a prática clínica.
Mauro Mendes Dias afirma que a falha na transmissão é o que a torna uma experiência de perda e invenção. Esta é a falha constitutiva, que se transmite "pelo que falha no ato da fala, do sonho, do chiste, como marcas impressas em escrita do inconsciente" (p. 97).
Franklin Goldgrub aponta a diferença entre a "teoria do sujeito, necessariamente genérica (aplicável ao conjunto dos seres humanos), e a teoria do método, consagrada à singularidade, cuja aplicação à escuta possibilita a captação da relação entre a significação das associações livres (consciente) e o respectivo sentido (inconsciente)" (p. 100), pois "quem está em análise (o 'paciente') não sabe que sabe (efeito do recalque) e o analista, por sua vez, sabe que não sabe (ou deveria saber...) (efeito do método)" (p. 99).
Karin de Paula fala sobre os custos assumidos e não assumidos pelo analista em seu fazer com a psicanálise que implicam o dinheiro presente nas análises, supervisões e formação, mas que também põem em jogo a relação do analisando com a falta inerente ao desejo e sua responsabilização por seu Inconsciente. O saber sobre o Inconsciente supõe "estar decidido ao trabalho de construção e desconstrução em relação àquilo que é um saber que não se sabe e por Isso haverá de ser inventado, que engendra o que ainda não se deu, sem garantias e que deixará restos" (p. 114).
Jorge Broide e Emília Estivalet Broide falam sobre a transmissão da perspectiva da supervisão clínico-institucional, cuja experiência é situada fora do âmbito da psicanálise stricto sensu. Com a ampliação do campo da psicanálise para o trabalho com famílias, grupos, instituições, atingindo agora o trabalho junto às políticas públicas, amplia-se o debate sobre a transmissão do saber psicanalítico, tanto na sociedade quanto nas próprias instituições.
José Waldemar Turna reúne-se a Jean Oury para afirmar que a formação é da ordem de uma "modificação", "da modificação de um certo nível da personalidade do sujeito que se engaja neste trabalho; não da transformação, mas uma modificação no sentido de uma sensibilização para alguma coisa específica" (Oury citado por Turna, p. 133). A formação assim como a clínica são viagens intermináveis em direção ao estilo, passando pela análise pessoal, supervisão e pelas "competências passionais" (Oury), propiciando o "encontro clínico e, se possível, seu encaminhamento terapêutico, sua direção psicopatológica e sua construção diagnóstica, enfim, sua 'modificação sensível'" (p. 133).
Enrique Mandelbaum coloca que, "por um lado, toda a formação implica uma transmissão; mas, por outro, a experiência de vida resiste não tanto à transmissão, mas à recepção" (p. 138). A experiência de alguém é sempre própria, pode-se aprender com ela, mas não é possível se transformar no outro a partir dela. "A formação do psicanalista é muito mais um trabalho de desinvestimento do que de investimento de fórmulas e consignas teóricas e técnicas." (p. 141) Enfatiza também um outro lado da moeda quando fala da experiência de formação do analista formador, ou seja, no afã da transmissão há modificação do par.
Rita Bícego Vogelaar propõe como psicanalista aquele que suporta a angústia do não saber e todas as implicações que isto traz para sua prática, aquele que experimentou seu inconsciente até chegar ao desejo de analista, ou seja, aquele que tendo chegado ao final de uma análise pode servir como ferramenta para "levar um outro até essa mesma posição (caso se tenha optado pela arte de trabalhar como analista)... ou servir simplesmente para não se ficar mais desesperado frente aos vagalhões de mudez" (Lispector citada por Vogelaar, p. 150).
Silvia Marina Paiva chama a atenção para as diferentes condições históricas e culturais que geram diferentes leituras do campo conceitual proposto por Freud, gerando metodologias e técnicas diferentes. Adverte que é necessário o cuidado com modelos teóricos prontos, "porque a fidelidade cega a esses modelos podem gerar situações bizarras" (p. 157). Aborda o desenvolvimento peculiar da psicanálise no Brasil, onde se criou uma possibilidade de diálogo entre as diferentes tendências psicanalíticas.
Arnaldo Domínguez fala da clínica em ato por meio de histórias e relatos clínicos. Coloca-se a si mesmo num exemplo de transmissão.
Ricardo Goldenberg, ao ser entrevistado, fala de seu percurso e de seu modo de ser... psicanalista.
A partir do famoso tripé, podemos vê-lo ser um pouco mais expandido pelo amplo leque de questões e abordagens feitas pelos colegas que contribuíram para a construção desta bela e útil coletânea que diz respeito a todos que mantêm algum vínculo com a psicanálise e tenham o desejo de exercê-la. Nesta breve apresentação, foram levantadas, por mim, algumas dentre as muitas reflexões desenvolvidas pelos autores, servindo apenas como uma amostragem, e logicamente uma amostragem enviesada pelos interesses singulares de quem escreve esta resenha. Convido todos a partilharem a leitura destes textos para que se amplie, então, o campo de discussão com o surgimento de novas elaborações.
Recebido em: 9/12/2013
Aceito em: 17/12/2013
Monica Seincman. Rua Ministro Gastão Mesquita,793 05012-010. São Paulo, SP. Tel: 11 97612-7760, monicaseincman@uol.com
1 Psicanalista, linguista, pós-graduada pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP, pós-graduada em Finanças pela FGV-SP, coordenadora do Núcleo de Psicanálise com Crianças do CEP, supervisora da Rede de Atendimento Psicanalítico - Clínica do CEP e docente do Curso de Formação em Psicanálise do CEP.