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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo jun. 2014
PSICANÁLISES POSSÍVEIS
O desejo do psicanalista e o sintoma como fonte de sofrimento1
The psychoanalyst's desire and the symptom as source of sufferancee
El deseo del psicoanalista y el síntoma como fuente de sufrimiento
Júlio Eduardo de Castro
Psicanalista, professor e pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise (NUPEP) da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ)
RESUMO
Este artigo aborda a ética da psicanálise, que é transmitida antes de tudo a partir da experiência intensiva, também chamada de "a análise do psicanalista". Para tal, recorre à obra de Freud e ao ensino de Lacan, principalmente no que diz respeito ao estatuto do sintoma na teoria psicanalítica e aos aqui chamados "operadores éticos do psicanalista". Do ensino de Lacan, extraímos esses operadores clínicos da ética psicanalítica: o desejo do psicanalista; o discurso do psicanalista; o ato do psicanalista; o saber do psicanalista. O desejo do psicanalista cumpre aqui a função de coordenada ética por meio da qual nos orientamos na abordagem do sofrimento proveniente do sintoma, principalmente do sintoma como condição indispensável ao tratamento psicanalítico. Da tomada/abordagem do sintoma no campo da ética da psicanálise, retiramos consequências quanto aos atos do psicanalista na operacionalização dessa mesma ética.
Palavras-chave: psicanálise em intensão, sintoma, ética da psicanálise, desejo do psicanalista
ABSTRACT
This article approaches the ethics of psychoanalysis that is transmitted through intensive experience, also called the psychoanalyst's analysis. In order to do that, it falls back upon Freud's work and Lacan's guideline mainly in what is related to the rule of the symptoms in psychoanalytic theory and also the so called "psychoanalyst's ethical operators". From Lacan's teachings, we extract these clinical operators of psychoanalytic ethics: the psychoanalyst's desire; the psychoanalyst's discourse; the psychoanalyst's acting; the psychoanalyst's knowledge. The psychoanalyst's desire achieves here the function of ethical coordinate through which we mainly guide ourselves in the approach of the suffering originating from the symptom, of the symptom as indispensable condition to psychoanalytical treatment. Concerning the approach to the symptom in the field of psychoanalysis' ethics, we take consequences with regard to the acts of the psychoanalyst when operating this same ethics.
Keywords: intensive psychoanalysis, symptom, psychoanalysis ethic, psychoanalyst's desire
RESUMEN
En este artículo se aborda la ética del psicoanálisis que se transmite fundamentalmente a través del psicoanálisis en intensión o "análisis del analista". Para ello, se utiliza la obra de Freud y la enseñanza de Lacan, principalmente respecto al estatuto del síntoma en la teoría psicoanalítica y a los llamados "operadores éticos del psicoanalista". De la enseñanza de Lacan se toman los siguientes operadores clínicos de la ética psicoanalítica: el deseo del psicoanalista; el discurso del psicoanalista; el acto del psicoanalista y el saber del psicoanalista. El deseo del psicoanalista cumple una función de coordenada ética que nos orienta en el abordaje del sufrimiento generado por el síntoma, principalmente del síntoma como condición indispensable para el tratamiento psicoanalítico. Del abordaje del síntoma en el campo de la ética psicoanalítica, retiramos consecuencias respecto de los actos del psicoanalista en la operación de esta ética.
Palabras clave: psicoanálisis en intensión, síntoma, ética del psicoanálisis, deseo del psicoanalista
É tempo, agora, que empreendamos um levantamento do jogo de forças colocado em ação pelo tratamento. A força motivadora primária na terapia é o sofrimento do paciente e o desejo de ser curado que deste se origina. (Freud, 1913/1980a, p. 186)
Lembrar-se-ão os senhores de que foi uma frustração que tornou o paciente doente, e que seus sintomas servem-lhe de satisfações substitutivas. É possível observar, durante o tratamento, que cada melhora em sua condição reduz o grau em que se recupera e diminui a força pulsional que o impele para a recuperação... Cruel como possa parecer, devemos cuidar para que o sofrimento do paciente, em um grau de um modo ou de outro efetivo, não acabe prematuramente. Se, devido ao fato de que os sintomas foram afastados e perderam o seu valor, seu sofrimento se atenua, devemos restabelecê-lo alhures, sob a forma de alguma privação apreciável; de outro modo, corremos o risco de jamais conseguir senão melhoras insignificantes e transitórias. (Freud, 1919[1918]/1980b, p. 205)
A partir dessas duas citações freudianas nos perguntamos: qual será o lugar do psicanalista e de seu desejo? Será possível defini-lo ou ao menos delimitá-lo topologicamente? Se esse lugar existe, será possível apreendê-lo/ abordá-lo por meio do saber acadêmico, ou seja, do saber teórico-conceitual? Ou será que sua transmissão se faz de um modo diferenciado e, antes de tudo, na experiência intensiva do sujeito com a psicanálise? Como abordar esse lugar que é a-conceitual e radicalmente fora do sentido? Estas foram as questões elementares - inerentes à ética da psicanálise - que nos levaram a considerar o sofrimento proveniente do sintoma (no contexto do tratamento psicanalítico) como um problema digno de pesquisa.
Do ensino de Lacan, extraímos que o psicanalista é tão indefinível quanto a mulher. Não há significantes que os definam - a não ser que nos contentássemos com os semblantes oferecidos pelo "serviço dos bens",2 o que não é o nosso caso. A impossibilidade de definição desses dois termos, o psicanalista e a mulher, aponta, então, para um denominador comum: há neles a presentificação de algo que escapole ao gozo do sentido, à significação fálica. Ocupar um espaço fora do sentido, sempre fálico, cada um ao seu modo, é, portanto, o que aproxima o psicanalista da feminilidade.
Entretanto a impossibilidade de definição do que seja o psicanalista não impediu Lacan de abordá-la por meio de três escritas específicas: a aforística, a algébrica e a topológica. Praticamente todas as referências de Lacan ao objeto a são tentativas de delimitação do que seria o lugar do psicanalista. A esse respeito, "fazer semblante de objeto a" é certamente sua formulação aforística mais conhecida. Sobre esse objeto, Lacan diz ser ele insólito (Lacan, 1960-1961/1992a), oco, hiância, lugar da falta, do vazio necessário à criação, manutenção e funcionamento de toda estrutura subjetiva.
Outra formulação digna de destaque, esta sim nitidamente topológica, localiza o objeto a na interseção dos três registros RSI (Lacan, 1974-1975/s.d.), no tradicional nó borromeano a três. Mas a referência digna de nota que apontamos aqui (Lacan, 1971-1972/1997) delimita o lugar do psicanalista entre o UM e o ZERO, entre UM SEXO e o OUTRO SEXO. Também o objeto a é situado nessa posição de metaxi, sendo aproximado dos chamados números irracionais. Nesta última referência, a alusão a Frege e sua teoria dos conjuntos é aberta, principalmente, quando Lacan focaliza o que seria o conjunto vazio: um conjunto com ZERO elemento. Lacan argumenta que o UM pressupõe o ZERO ou mesmo nele se sustenta, já que o vazio de elementos é o que se repete subentendidamente em todo conjunto possível. Talvez essa possa ser uma delimitação topológica consistente para o lugar do psicanalista: o conjunto vazio - que tem a vantagem de trazer a dimensão matemático-binária dos significantes ZERO e UM.
Uma vez que, literalmente, "lugar" remete a uma parte do espaço, não há como desconsiderar o quanto o espaço analítico é complexo, porque subjetivado, por um lado (da parte do psicanalisante) e, por outro, des-subjetivado (da parte do psicanalista). E é entre esses dois extremos - o sujeito em análise e o des-ser do psicanalista - que a "psicanálise em intensão"3 se faz.
O desejo do psicanalista
Lacan não dedicou um seminário ou escrito específico ao desejo do psicanalista, todavia tal expressão ocorreu em seu ensino inúmeras vezes, principalmente a partir do Seminário dedicado aos conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, 1964/1979). Ter chegado a essa fórmula, o desejo do psicanalista teve como antecedente o fato de Lacan ter se ocupado do que teria sido o desejo de Freud, inferindo-o a partir do exame da teoria edipiana, principalmente do valor aí atribuído por Freud à função do pai (Lacan, 1960-1961/1992a). Tal exame permitiu a Lacan postular um para além do Édipo freudiano, um para além do pai simbólico (enquanto função ligada à castração e ao desejo). Lacan ainda redescobre na função do pai real - o pai figurado no mito freudiano da horda primeva - o grande pilar para a construção de sua teoria dos gozos, principalmente naquilo que diz respeito à diferença estrutural do gozo masculino (por excelência fálico) para com o gozo feminino (o chamado Outro gozo) (Lacan, 1972-1973/1982).
Entretanto gradativamente a expressão "desejo do psicanalista" diminui sua aparição no ensino de Lacan à medida que outras similares surgem: o discurso, o ato e o saber do psicanalista. Todas estas quatro expressões estão radicalmente ligadas ao que se pretende transmitir na psicanálise em intensão: a ética do desejo sustentada na política da falta-a-ser. Elas podem ser ainda, para o psicanalista, tomadas como coordenadas que o auxiliem a se situar no campo clínico/ético, nitidamente nas análises que conduz. O uso lacaniano dessas quatro expressões nos fez entendê-las como referências à operação de transmissão da ética do desejo, antes de tudo na experiência intensiva. Por isso designamos o desejo do psicanalista, ao lado das outras três expressões citadas, como "os operadores éticos da psicanálise". Se a ética da psicanálise é um campo de problemas dignos de pesquisa, ela, contudo, necessita daquilo que restou de um sujeito, o psicanalista, para operacionalizá-la para outro sujeito, o psicanalisante. Por isso, não é demais lembrar o elementar: se a ética é da psicanálise - ética esta inerente ao campo delimitado por seus conceitos fundamentais -, quem, contudo, a presentifica na situação é o psicanalista. É ele quem, ao fazer semblant de objeto a, põe o jogo em movimento.
Portanto o desejo do psicanalista pressupõe o trabalho de des-subjetivação vivido já desde a experiência intensiva. Aí o psicanalista desaprende a desejar para o psicanalisante, desaprende, principalmente, a desejar para o seu bem a cura ou mesmo a eliminação do sintoma - enfim, desaprende a conduzir as análises em nome de todo e qualquer ideal, I(A).4 O próprio Freud, conforme a epígrafe deste artigo, não se furtou a dizer que a força motriz de todo tratamento analítico é o sofrimento gerado pelo sintoma - e que cabe ao psicanalista manejá-lo, não o incentivando e nem tampouco permitindo ao psicanalisante esquecê-lo. Deste modo, registramos aqui, a título de argumento, que o manejo da transferência corresponde ao manejo do sofrimento gerado pelo sintoma. Para Freud (1925/1980c), este manejo auxiliaria, por contraponto, o psicanalisante a suportar as frustrações às demandas exigidas pelo tratamento psicanalítico.
O sintoma
Já sabemos desde Freud que, além da transferência, o sintoma é uma das condições necessárias à entrada em análise. Por esse aspecto, o sintoma é outro nome para o mal-estar, sempre particularizado, presente na vida de um sujeito. Entretanto sabemos que não basta a existência desse mal-estar sintomático para que uma análise seja feita ou ao menos iniciada. Além de sua presença, é necessário que o sofrimento gerado pelo sintoma traga em seu bojo um toque de questão/ enigma endereçada ao Outro, ou seja, é necessário que haja nesse sofrimento um a mais que desperte o sujeito do suposto saber. Transferência e sintoma são, portanto, indispensáveis à experiência intensiva. Todavia se sem o sintoma não há como chegar à psicanálise, como o desejo do psicanalista lida com o sofrimento daí decorrente? Podemos pensar no sofrimento sintomático em diversos tempos do processo analítico: no início, no meio e no fim de uma psicanálise? E em cada um desses tempos, esse sofrimento teria uma função diferente?
Sobre o mal-estar, no sentido lato, nunca é demais lembrar que Freud o tem como inevitável e, mais ainda, como o preço pulsional pago pelo homem civilizado pelo seu acesso aos recursos simbólicos e normativos veiculados pela cultura. Qualquer ganho cultural implicaria, portanto, segundo Freud, perda de satisfação pulsional: mais-gozar da cultura e menos-gozar da libido. E se a neurose é tida por Freud como um dos efeitos da civilização, o nome por ele usado para nos dizer sobre esse efeito na clínica é "sintoma". Logo, na teoria freudiana, sintoma e sujeito são termos que, mais do que articulados entre si, em alguns aspectos se sobrepõem, mantêm entre si uma interseção. O próprio Freud insistia que, quanto mais subjetivado fosse o sintoma, ou seja, quanto mais ele se afastasse dos padrões/estereótipos/tipos nosológicos, maiores seriam as chances de formulação e de solução do enigma que lhe é inerente. De modo que o toque particular (atípico) dado ao sintoma, justo por já evidenciar certa implicação do sujeito aí, traz a chance de abertura do inconsciente.
O sintoma é, ainda, a formação do inconsciente que mais causa sofrimento ao sujeito. E é somente a partir "do sofrimento gerado pela doença neurótica" (Freud, 1925/1980c e 1929/1980d) que uma análise tem uma chance de se fazer. Por esse aspecto, o sintoma é a formação do inconsciente característica da estrutura neurótica. Com certeza, essa maior proximidade do sofrimento é o que faz dele, do sintoma, uma condição indispensável a toda e qualquer entrada em análise. Por isso, o sintoma, ao lado da transferência, é indispensável à entrada em análise.
Percorrendo a obra de Freud, observamos que o sintoma neurótico é constituído a partir de duas dimensões: a do enigma e a da vazão/satisfação libidinal. Esta díade, enigma-libido, foi retomada por Lacan sob a égide dos três registros: sir (Lacan, 1953/1998a) e, posteriormente, RSI (Lacan, 1974-1975/ s.d.). No último ensino de Lacan, o sintoma passou a ser composto: por um núcleo (irredutível) real/libidinal; pelas sobredeterminações simbólicas do Outro (Uberdeterminierung); e pelas formas imaginárias ancoradas no narcisismo (o seu envelope formal, os seus véus). Portanto com o mote de que há Outro gozo, para além do fálico, inerente ao sintoma, Lacan recuperou a radicalidade dos conceitos freudianos de libido e pulsão.
Em seu ensino, Lacan destacou ainda que, se o sintoma-enigma, ancorado no sujeito suposto saber, abre a perspectiva ao inconsciente, o real do sintoma anuncia seu fechamento por meio do desengano do sujeito suposto saber. Notamos que Lacan localiza o sintoma do início ao fim da experiência intensiva. Portanto "se haver com o sintoma" envolve passar por essas duas modulações: a de abertura e a de fechamento do inconsciente. Há um tempo de abertura, marcado pelo engano do sujeito suposto saber (Lacan, 1967/2003b) - e um tempo de fechamento, marcado por sua destituição. Enganar-se e desenganarse quanto às suposições tecidas ao redor do sujeito e do saber trazem, então, a marca de dois tempos clínicos, segundo a abordagem lacaniana do sintoma.
O sintoma e o saber do psicanalista
No Seminário dedicado ao saber do psicanalista, Lacan (1971-1972/1997), ao render homenagem a Marx (tido como o inventor do sintoma enquanto contendo um valor de verdade social), retoma a fórmula do sujeito suposto saber como fundamento e pivô dos fenômenos de transferência. Reafirma, então, que o saber é pressuposto à função do psicanalista pelo que o sintoma indica do valor de verdade subjetiva. Portanto "o sintoma não se cura, da mesma forma que na dialética marxista e na psicanálise. Na psicanálise, diz respeito a algo que é a tradução em palavras de seu valor de verdade" (Lacan, 1971-1972/1997, p. 31). E a escrita singular desse valor, no final de análise, envolve a sua redução/literalização à libido como modo de escrita da impossibilidade da relação sexual.
A dicotomia semblante-verdade é superada por Lacan por meio da criação da expressão composta "semblante de verdade", expressão feita para se referir à transferência e seu eixo: o sujeito suposto saber. "Fazer semblante de objeto a" é, antes de tudo, suportar esse engano necessário à entrada em análise - é, mais ainda, precisamente se deixar usar como semblante de verdade (a) que põe em movimento (→) o sujeito ($). Temos aí o matema da estrutura do desejo do psicanalista e sua ligação com o saber suposto pelo sujeito, antes de tudo, ao sintoma. Lacan ainda se pergunta aí: "se verdade ou semblante não é tudo um" (Lacan, 1971-1972/1997, p. 32). Diz ainda, sobre o sintoma que "é o amor da verdade, se posso dizer, por si mesma, que o condiciona" (Lacan, 1971-1972/1997, p. 33).
A teoria dos discursos é, nesse mesmo Seminário, evocada por Lacan, com ênfase no discurso do psicanalista, para afirmar a importância do lugar de "semblante de objeto a". Ao partir do matema desse discurso (a→$), principalmente pela posição que o objeto a aí ocupa, qual seja, a posição de semblante, ele nos diz:
O objeto a é certamente um objeto, mas apenas no sentido de substituir definitivamente toda noção de objeto enquanto suportado por um sujeito. Esta não é a relação dita do conhecimento. É muito curioso, quando a estudamos em detalhe, ver que termináramos fazendo com que um dos termos dessa relação do conhecimento, o sujeito em questão, não fosse mais que a sombra de uma sombra, um reflexo perfeitamente evanescente. O objeto a só é um objeto no sentido de que está aí para afirmar que nada da ordem do saber existe sem produzi-lo. É completamente diferente de conhecê-lo. O discurso analítico só pode ser articulado ao mostrar que este objeto a, para que haja chance de psicanalista, é necessário que uma determinada operação, chamada experiência psicanalítica, tenha trazido o objeto a ao lugar do semblante. (Lacan, 1971-1972/1997, p. 37, lição II, de 2/12/1971)
Portanto no Seminário acima referido, Lacan pretendeu indicar o estatuto do psicanalista no âmbito do semblante, principalmente no que diz respeito às continuidades e descontinuidades do semblante com a verdade e com o gozo sexual.
Se o sintoma é um índice clínico do mal-estar na cultura, o que o desejo do psicanalista faz dele é tomá-lo como motivo e chamada para o trabalho analítico, tomá-lo como força motriz elementar para a realização da psicanálise em intensão. E o saber do psicanalista deveria levá-lo a sério do início ao fim do processo analítico. Afinal, o sintoma é criação do sujeito ao modo de gozo que insiste e retorna sempre ao mesmo lugar. Do início ao fim de uma psicanálise o sintoma marca um tempo e uma função. Ele passa da condição inicial de motivo da análise (e do trabalho de des-enignatização dele decorrente) à condição final de escrita de seu valor de verdade (feita a partir do que dele resta, seu núcleo real). No trabalho analítico, enquanto o psicanalisante é destituído de algumas de suas identificações secundárias (S2) - vendo assim tremer as identificações primárias (S1) -, acontece, por efeito, a exoneração da face cifrada/enigmática do sintoma. Todavia resta sempre o seu núcleo (real/libidinal) irredutível a toda e qualquer interpretação, justo porque se encontra em interseção com aquele que o carrega, o sujeito. Daí a tese lacaniana de que, no final de análise, o sujeito se identifica com esse núcleo real e com ele se reconcilia.
Ainda sobre o Seminário "O saber do psicanalista" (Lacan, 1971-1972/1997), Lacan, já com sua teoria dos quatro discursos5 constituída, o inicia assinalando a importância da ignorância na construção de todo e qualquer saber estabelecido. Para tal, recorre à expressão utilizada pelo cardeal Nicolau de Cusa ao se referir a um "saber mais elevado", somente alcançado por partir de um ponto indispensável: a douta ignorância. A douta ignorância é aí tomada como um antídoto epistemológico contra qualquer tentativa de totalização do saber. Na verdade, um alerta lacaniano se fez presente já desde o início desse Seminário: cuidado com os saberes que se apresentam na cultura como totais ou totalizantes, pois esses saberes desconsideram o ponto de ignorância ou o furo a partir do qual se estruturam! A presença desse furo elementar, S()6 é o princípio topológico em torno do qual é constituído o registro do Simbólico - e presença esta que, por decorrência, marcará todo e qualquer saber possível, somente elaborado por meio dos recursos/significantes do Outro. O Simbólico, portanto, como saber articulado, deve a sua existência e funcionamento a esse furo estruturante.
A diferença entre "saber" e "verdade" é o passo seguinte dado por Lacan para destacar que é aí, nessa "fronteira sensível entre a verdade e o saber, que o discurso psicanalítico se sustenta" (Lacan, 1971-1972/1997, p. 14). Localizar essa fronteira sensível entre a verdade e o saber leva em conta, nos sistemas simbólicos construídos através dos recursos do Outro (a começar da língua), um lugar vazio e exterior ao sistema, lugar este ao qual o sistema deve a sua ex-sistência. E é por isso que a referência à alíngua se fez presente nessa mesma lição (Lacan, 1971-1972/1997, p. 15). Se a língua é o lugar em que os recursos do Outro se encontram presentes - o lugar em que há certa subordinação da Coisa (das Ding) à palavra, devido à prevalência da metáfora paterna (NP), enfim, o lugar em que a abordagem do Real se faz por meio do Simbólico -, a alíngua é a pura manifestação de das Ding em sua vertente de voz, voz esta desvinculada de toda e qualquer articulação com o código linguístico, com a palavra cifrada e com o sentido. Portanto a alíngua é o Real que sustenta o Simbólico, bem como os saberes aí gerados. Uma vez mais Lacan localiza o lugar vazio, a hiância, a falta, o furo [S()], na base de todo saber estruturado como linguagem.
Em psicanálise, já destacamos a importância de o sujeito ser forçado (pelo sofrimento) a buscar saber de seu sintoma. Quando o sintoma se faz questão/ enigma para o sujeito, temos aí a entrada em análise. É, portanto, a partir do sintoma que o sujeito abre e desenrola um discurso.
Entretanto e é o que cabe aqui nuançar, o psicanalista deveria saber de antemão que essa abertura do jogo necessita, da parte do psicanalisante, de um duplo engano: engano quanto a si próprio como sujeito (tido como uno, estável e coerente) e quanto ao que saber de seu sintoma (tido como integral, como todo-saber). É por esse viés que sujeito e saber são, antes de tudo, supostos e, por isso mesmo, abertos à enganação.
Além de saber desse engano inicial necessário - caracterizado por suportar essa posição de semblante de objeto a -, o psicanalista deveria ainda saber da não existência da relação sexual ou, em termos matemáticos, da enorme distância que separa o gozo do um (Φ) do gozo do Outro sexo (Ø). Isso o favoreceria a não ceder ao saber ingênuo que tentaria fazer existir, normalmente por meio de formas totalizantes, a relação entre os sexos, e mesmo a não desconsiderar a importância dos modos de gozo nas amarrações do sujeito ao sintoma e ao Outro sexo. Foi isto o que depreendemos do ensino de Lacan sobre a implicação do desejo do psicanalista para com o sintoma do sujeito neurótico.
O objeto a nos atos de abertura e de fechamento do inconsciente
No Seminário "O ato do psicanalista", Lacan (1967-1968/s.d.) faz um longo comentário sobre as relações do final de análise com o objeto a e, consequentemente, com o ato do psicanalista. A finalização da psicanálise é por ele tida como uma "passagem esclarecida" ao ato do psicanalista. Contudo nos é lembrado que essa passagem somente se tornou possível pelo ato de fé inicial no sujeito suposto saber. Esse engano inicial é, portanto, condição necessária a toda e qualquer entrada em análise. Todavia a redução desse engano inicial ao objeto a (que aqui Lacan faz equivaler ao des-ser do psicanalista) deveria marcar a finalização das análises.
O ato do psicanalista na entrada consiste em dar ao fazer psicanalisante (a associação livre) o devido suporte e autorização. Consiste, então, em suportar pro tempore essa ficção de verdade, chamada sujeito suposto saber, fazendo aí semblante de agálma. No início, destarte, o psicanalista sustenta a ilusão do psicanalisante acerca da existência do Outro (A) - com a condição de que o psicanalista já o tenha destituído [S()], já tenha dado corpo à outra face do objeto a como abjeto ou, simplesmente, dejeto rejeitado. Dar corpo ao dejeto que é insuportável ao sujeito-psicanalisante - tanto quanto o ato analítico o é - é, portanto, função do psicanalista, principalmente no final do processo: "Não há apenas merda no objeto a, mas é frequentemente a título de merda que o analista é rejeitado" (Lacan, 1967-1968/s.d., p. 269).
Entretanto aquele que viveu o des-ser do sujeito suposto saber, o psicanalista, o restaurará no início das análises que conduzirá, visto não haver ato analítico possível fora da transferência. No final, já caberia ao psicanalista suportar ver sobre ele ser projetado o objeto a, ver-se assim reduzido à função de causa de um processo em que se desfaz/destitui o sujeito suposto saber, principalmente por ser o suporte desse dejeto/resto da operação analítica (a) - o que terá, para o psicanalisante, valor de efeito de verdade.
O final da análise consiste na queda do sujeito suposto saber, e sua redução ao advento desse objeto a, como causa da divisão do sujeito, que vem ao seu lugar. Aquele que, fantasmaticamente, joga a partida com o analisando como sujeito suposto saber, a saber, o psicanalista, é aquele (o analista) que vem, ao término da análise, a suportar não ser nada mais que esse resto. Esse resto da coisa sabida que se chama objeto a. É ao redor disso que deve incidir nossa questão. (Lacan, 1967-1968/s.d., pp. 89-90)
Ainda acerca do final de análise, Lacan afirma que - se a falta e a indeterminação são constitutivas do sujeito, e se a perda do objeto originário deixa um traço inscrito como objeto a - o ato analítico diz respeito tanto à nomeação do real da falta inerente ao sujeito como ao luto do objeto perdido proveniente da rejeição do objeto a.
Deste modo, o que é insuportável ao ato do psicanalista é o encargo de ser o suporte da redução do sujeito-psicanalisante à condição de dejeto. Por esse aspecto, o ato do psicanalista seria aquele capaz de criar um desejo inédito: o desejo do psicanalista. E desejo este que se emparelha ao ato do psicanalista e que implica, segundo a argumentação lógica desenvolvida por Lacan (1967-1968/s.d.), a separação de -φ e objeto a.
A tese lacaniana relativa à inexistência da relação sexual tem - com a teoria dos gozos (Lacan, 1972-1973/1982 e 1974-1975/s.d.) - seu pleno desenvolvimento. Nela encontramos formulações dignas de nota, como as que seguem: "Para nós se trata de tomar a linguagem como aquilo que funciona em suplência, por ausência da única parte do real que não pode vir a se tornar um ser, isto é, a relação sexual" (Lacan, 1974-1975/s.d., p. 51); "O que vem em suplência à relação sexual é, precisamente, o amor" (Lacan, 1972-1973/1982, p. 62). Portanto a teoria dos gozos é mediada pela tese da inexistência da relação sexual, o desenvolvimento dos motes "não há verdade sobre a verdade" e "não há Outro do Outro".
Se "Fora do que chamei manejo da transferência, não há ato analítico" (Lacan, 1967-1968/s.d., p. 46), destacamos aqui o uso que Freud fez da expressão "manejo da transferência" e a leitura lacaniana que, além de aproximá-la do ato do psicanalista, o faz por meio do manejo do tempo em psicanálise. Para Lacan, portanto, manejar a transferência é manejar o tempo - da entrada à finalização do processo analítico. O ato do psicanalista está, portanto, intimamente ligado ao funcionamento da transferência e, mais especificamente, ao seu elemento pivô (o sujeito suposto saber) - sujeito este "imanente ao próprio ponto de partida do movimento da procura psicanalítica" (Lacan, 1967-1968/s.d., p. 56). Como vimos, esse movimento partiria do engano (necessário) do sujeito suposto saber e chegaria, no final, ao seu desengano e destituição. É, portanto, nesse momento de finalização, quando o saber suposto ao sujeito falta e, o que dá no mesmo, quando o sujeito suposto ao saber falta, que a verdade (a) faria irrupção. Este seria o momento de suportar o real por meio da condição e viés de objeto a - já sem o suporte/engano do "sujeito suposto saber" ou de qualquer outro semblante - e de fazer daí o ato de passagem: de psicanalisante a psicanalista.
Ora, o que quer dizer a análise da transferência? Se ela quer dizer alguma coisa, não pode ser senão isto: a eliminação deste sujeito suposto saber. Não existe para análise, e bem menos ainda para o analista, não existe em lugar algum - e está aí a novidade - sujeito suposto saber. Há apenas o que resiste à operação do saber fazendo o sujeito, a saber, este resíduo que se pode chamar "a verdade" ... . O que é a verdade é precisamente a questão que eu levanto para introduzir o que diz respeito ao ato propriamente analítico. O que constitui o ato analítico como tal é muito singularmente esta simulação pela qual o analista esquece o que, na sua experiência de analisando, ele pôde ver reduzir-se ao que é: esta função do sujeito suposto saber. Donde, a cada instante, todas essas ambiguidades que transferem para outro lugar, por exemplo, para a adaptação à realidade. A questão do que é a verdade, é também simular que a posição do sujeito suposto saber seja sustentável, porque está nela o único acesso possível a uma verdade da qual o sujeito vai ser rejeitado, para ser reduzido à sua função de causa de um processo em impasse. (Lacan, 1967-1968/s.d., p. 57)
Para Lacan, então, essa redução do sujeito à função de objeto-causa (a) é o que caracterizaria, por decorrência, o ato de passagem do sujeito suposto saber ao desejo do psicanalista.
O analista, claro, não deixa de ter necessidade, diria mesmo, de se justificar para si mesmo, quanto ao que faz na análise. Faz-se qualquer coisa, e é bem desta diferença entre o fazer e o ato que se trata. O banco no qual se atrela, se coloca o analisando, é o de um fazer. Ele faz qualquer coisa. Chamem-no como quiserem, poesia ou manejo, ele faz, e é bem claro que justamente uma parte da indicação da técnica psicanalítica consiste em um certo deixar rolar. Mas será isso suficiente para caracterizar a posição do analista, quando esse deixar rolar comporta, até certo ponto, a manutenção intacta, nele, deste sujeito suposto saber, embora ele conheça, por experiência, a queda e a exclusão desse sujeito, e o que resulta do lado do analista? (Lacan, 1967-1968/s.d., pp. 57-58)
Deste modo, o saber do psicanalista - na medida em que o seu ato é desconhecido, em que o sujeito e tal ato se excluem mutuamente - implica necessariamente um déficit em relação ao que poderia ser totalizado, ao que a experiência poderia armazenar/acumular de saber. Seu saber é, portanto, mais do que incompleto, impossível de totalização.
O ato do psicanalista se articula, portanto, com um saber que não é cumulativo e, menos ainda, transmissível nos moldes do discurso universitário, ou seja, como conhecimento, como epistemologia.
Se "No começo era o ato", Freud, miticamente, nomeia esse ato (ou crime da humanidade) de parricídio e o atribui à herança arcaica, ao Isso, à ontogênese que repete a filogênese. Portanto para Freud, no parricídio estaria o início de uma nova ordem cultural. E de "lá onde o isso (das Es) está, eu devo tornar-me psicanalista", comenta Lacan - já que, no seu ato, o psicanalista não pensa. "Jamais se é tão sólido em seu ser como quando não se pensa" (Lacan, 1967-1968/s.d., p. 83), visto que "o ato sexual constitui uma aporia" (Lacan, 1967-1968/s.d., p. 85) radical. Por conseguinte, localizar o ato do psicanalista em um saber no qual o psicanalista não pensa foi o modo lacaniano de apontar para a dimensão que se destaca no final do processo psicanalítico: o real do sintoma, real este manifesto como fechamento do inconsciente, como interrupção da associação livre, como estar à prova da falta de saber/sujeito e, assim, suportar ver-se reduzido à condição de "ser de objeto".
A título de conclusão, constatamos haver bases sólidas, em Freud e em Lacan, para afirmarmos, categoricamente, que não é possível haver entrada em análise sem a ação do sintoma - aqui tomado como um modo diferenciado e privilegiado de mal-estar - e tampouco fim sem que o sujeito tenha de se haver com o seu núcleo pulsional irredutível. Descarnado do verbo, o sintoma apresenta-se em sua fixidez pulsional, em sua face de compulsão à repetição do excesso de desprazer nele envolvido, portanto como lugar de manifestação do objeto a ao modo de mais-gozar - ou, na linguagem freudiana, como um antigo caminho de satisfação pulsional aberto pela libido. Des-ficcionado, ele é o que há de mais próximo do real pulsional. Para o psicanalista, ele é o que resta da operação agenciada, já desde a abertura ao discurso analítico, pelo objeto a.7 Todavia no que concerne ao sintoma no final de análise, não bastaria apenas descortiná-lo dos véus da significação fálica e, assim, revelá-lo como modo de gozo - seria ainda necessário, de seu núcleo irredutível, fazer letra, literalizá-lo naquilo que, mediante a contingência da finalização do processo analítico, "para de não se escrever".
Referências
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Recebido em: 30/4/2013
Aceito em: 5/2/2014
Júlio Eduardo de Castro julioecastro@mgconecta.com.br
1 Este artigo é derivado da pesquisa de pós-doutorado por mim realizada (Castro, 2012).
2 O "serviço dos bens", conforme Lacan (1959-1960/1988), diz respeito à manutenção dos bens privados, dos bens de família, dos bens da casa, dos bens do ofício, dos bens da profissão e dos bens da cidade.
3 "Psicanálise em intensão" é a expressão criada por Lacan (1967/2003a, p. 251) para se referir à experiência de formação do psicanalista a partir de sua própria análise (didática), ou seja, ao que ele aí aprendeu/desaprendeu ao se preparar/despreparar, sempre a partir do sintoma, como operador da ética da psicanálise.
4 Matema lacaniano lido como: os ideais do Outro ou ideais do eu.
5 Teoria em que o saber é reduzido ao termo algébrico S2. S2 é o significante que, justamente por vir acompanhado do número 2, designa o caráter de cadeia articulada. Para a psicanálise, o saber é, portanto, fruto de uma construção em que os significantes se apresentam articulados (S1→S2) a partir de S1 (o significante mestre) (Lacan, 1969-1970/1992b).
6 Matema lacaniano lido como: significante que falta ao Outro, que denota a incompletude do Outro.
7 Relembramos aqui a localização topológica atribuída por Lacan (1974-1975/s.d.) ao objeto a: na interseção dos registros Real, Simbólico e Imaginário. Pensamos que, do mesmo modo, o sintoma envolve, da formação à desconstrução, essas três dimensões: 1- a pulsional (R), ou seja, o que aqui chamamos de seu núcleo real/libidinal irredutível; 2- a fálica (S), lugar em que ele se estrutura como linguagem e ao modo de enigma; 3- a dos seus envoltórios formais/narcísicos (I).