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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo jun. 2014
PSICANÁLISES POSSÍVEIS
Permanências e mudanças no lugar do analista: desafios éticos1
Permanence and change in the role of the analyst: ethical challenges
Permanencias y cambios en el lugar del analista: desafíos éticos
Bernardo Tanis
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Doutor em Psicologia Clínica PUC-SP. Editor da Revista Brasileira de Psicanálise
RESUMO
A partir das transformações culturais e socioeconômicas inerentes à passagem da Modernidade para a Contemporaneidade, o autor indaga as mudanças nas relações do sujeito com as dimensões de desejo, poder, passagem ao ato e transgressão. Recorre à crônica "Mineirinho", de Clarice Lispector, como forma de introduzir uma discussão ética ao explicitar novos lugares para os "atos justiceiros", que no atual contexto escapam à simbolização. Conclui apontando que novas configurações clínicas nas quais domina um déficit de simbolização implicam transformações do lugar do analista na clínica e que, consequentemente, demandam uma reflexão sobre a ética no exercício atual da psicanálise.
Palavras-chave: ética, clínica contemporânea, simbolização, ato, lugar do analista
ABSTRACT
Taking as a starting point the cultural and socioeconomic transformations inherent in the transition from Modernity to Contemporaneity, the author reflects upon the individual's changes in his relationships with the dimensions of desire, power, passage to the act and transgression. He makes use of Clarice Lispector's short story "Mineirinho" as means of proposing an ethical discussion for such acts of a "vigilante" nature - as in making justice with one's own hands - which in the current context escape symbolisation. The author concludes by pointing out that these new clinical configurations where lack of symbolisation predominates will entail the need of transformation in the role of the analyst with regard to the clinic as well as subsequent ethical reflection on current psychoanalytic practice.
Keywords: ethics, contemporary clinic, symbolization, act, role of the analyst
RESUMEN
A partir de las transformaciones culturales y socio-económicas inherentes al pasaje de la Modernidad para la Contemporaneidad el autor se indaga respecto de los cambios en las relaciones del sujeto con las dimensiones del deseo, poder, pasaje al acto y transgresión. El autor se vale de la crónica "Minerinho" de Clarice Lispector como forma de proponer una discusión ética al destacar nuevos lugares para "actos justicieros" que en el contexto actual escapan a la simbolización. Concluye señalando que nuevas configuraciones clínicas en las cuales domina el déficit de simbolización implican en una transformación del lugar del analista en la clínica y que en consecuencia demandan una reflexión sobre la ética en el actual ejercicio del psicoanálisis.
Palabras clave: ética, clínica contemporánea, simbolización, acto, lugar del analista
Porque quem entende desorganiza
Clarice Lispector
O título abrange um vasto campo, no entanto o escrito pretende apenas ser um estímulo, um disparador para uma reflexão para a qual, como analista tanto no exercício clínico cotidiano como nas funções inerentes à transmissão da psicanálise, me vejo convocado. Não pretendo trazer uma reflexão fechada, mas recortes que nos permitam transitar por alguns caminhos abertos por Freud, e que se atualizam no contexto das transformações que vêm acontecendo no exercício da clínica na atualidade.
A psicanálise questionou os ideais da Modernidade e se vinculou ao Modernismo2 e às vanguardas europeias do início do século XX. A psicanálise, que desde então teve notório desenvolvimento e expansão em nosso país, trouxe a perspectiva crítica com a qual Freud inaugura uma nova possibilidade de transformação da subjetividade ao privilegiar o registro da liberdade em contraposição ao da submissão como resposta ao desamparo.
Já esse discurso e prática se atualizam nos nossos dias. O mundo mudou. Não estamos na Viena do fim do século xix nem na efervescência dos anos 1920 em Paris. Sobrevivemos a duas guerras mundiais. A segunda tópica freudiana aprofunda-se nas raízes pulsionais do mal-estar, às quais se somam os domínios da incerteza e do efêmero do mundo contemporâneo. Assim, somos convocados a colocar em perspectiva a clínica atual e a ideia do contemporâneo, como diz o curador da 30ª Bienal de Artes de São Paulo, Iminência das poéticas, Luiz Pérez Oramas, na instigante entrevista que concedeu para a Revista Brasileira de Psicanálise em que sintetiza sua proposta para a exposição: "A ideia é ver como o presente projeta sua sombra sobre o passado e transforma um legado histórico em elemento da contemporaneidade" (Oramas, 2012, p. 17). André Green nos convoca nos últimos anos de sua vida a um esforço conjunto para pesar a psicanálise contemporânea. Assim, minha perspectiva pretende ser apenas um convite à reflexão, um estímulo para o diálogo e uma abertura em torno dos problemas e desafios que a clínica e a cultura nos colocam.
Tive várias oportunidades de escrever sobre o mal-estar contemporâneo e as raízes socioculturais de certos estados afetivos e padecimentos subjetivos (Tanis, 2003, 2009). A estes corresponde também, a partir de uma perspectiva clínica, uma transformação na compreensão do sofrimento psíquico e do modo de o analista intervir na sua clínica. Refiro-me principalmente aos lugares possíveis que o analista ocupa nas múltiplas formas de compreender a situação analítica e que demandam do psicanalista um exercício ético de reflexão permanente. Inicialmente irei me distanciar da psicanálise stricto sensu, embora ela esteja presente nos interstícios do texto, já que irei transitar pelo caminho da literatura e de algumas noções históricas em torno da ética para retornar a ela no encerramento do texto.
Por isso o título original se transforma para "Porque quem entende desorganiza", parafraseando Clarice Lispector. Espero que o sentido do mesmo possa pouco a pouco ir se revelando.
"É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo buscar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram mineirinho do que seus crimes." (Clarice Lispector, 1964, p. 252).
Com estas palavras um tanto desconcertantes inicia Clarice Lispector sua crônica "Mineirinho",3 uma reflexão aguda sobre a ética, a moral e a justiça a partir da execução de um criminoso. A crônica se refere à morte de um marginal carioca no dia 1º de maio de 1962. Mineirinho tinha escapado do manicômio judiciário e foi morto com três tiros nas costas, cinco no pescoço, dois no peito, um no braço esquerdo, outro na axila esquerda e o último na perna esquerda, dado à queima roupa (Correio da Manhã Carioca, 1º de maio de 1961).
A crônica de Clarice é uma interrogação sobre o desejo assassino, a lei, a transgressão, a violência no outro e em nós; deste modo adentra, com a sofisticação e a crueza inerentes à sua escrita, no território da moral e da ética, do frágil tecido que sustenta a ideia de civilização tão esgarçada pela barbárie do nosso cotidiano. A autora está longe de reduzir o fato à violência do cotidiano, mas, sem negá-la, mergulha nos sinuosos meandros da subjetividade humana.
Para nós, psicanalistas, "El malestar en la cultura" (Freud, 1929/1976) é um legado a ser permanentemente revisitado, quando tratamos das relações entre o indivíduo e o coletivo, entre psique, pulsão e cultura.
A cultura obedece à obra de Eros, à ligação libidinosa entre os seres humanos; no entanto, a mesma cultura encontra seu obstáculo mais poderoso na disposição agressiva autônoma do ser humano (Freud, 1929/1976, p. 117). A cultura transforma a potência e a tensão pulsional ao mesmo tempo que dela se nutre. Regula os impulsos e desejos através de uma instância interiorizada: a consciência moral, tributária do desamparo e desvalimento inicial do infans, atormentado pelo receio da perda do objeto de amor.
Freud faz uma distinção entre angústia "social" e consciência moral. A primeira, originada no receio da perda de amor pelo objeto, se estende ao social, no entanto mantém o mesmo caráter de perda de amor; a segunda, já oriunda da interiorização da autoridade, é a instauração do supereu.
Essa consciência moral tem, para Freud, sua origem no desfecho do complexo de Édipo. Nasce do parricídio primordial, decorre do arrependimento originado pela ambivalência em relação ao pai da horda primitiva. Sintetizando, para Freud: a) o sentimento de culpa é indissociável da fundação da cultura; b) há tensão permanente entre o desenvolvimento individual e a cultura, um foca no egoísmo, o outro nos interesses do grupo; e c) o supereu age como instância internalizada do recalque, constituindo-se como base da moral e da ética que regula os relacionamentos consigo e com o outro.
No entanto, há a falha, a fratura, o erro, o abominável. No dizer de Kehl: "Excluído da possibilidade de simbolização, o mal-estar silenciado acaba por se manifestar em atos que devem ser decifrados, de maneira análoga aos sintomas daqueles que buscam a clínica psicanalítica" (Kehl, 2009, p. 25).
Voltemos a Clarice Lispector:
Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, no quinto e sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro me assassina - porque eu sou o outro. Porque quero ser o outro. (Lispector, 1964, p. 252)
Pensar e agir eticamente ultrapassa a esfera do eu para nos lançar ao encontro do outro. Novos desafios nos convocam se nos deixamos atingir pela diferença e pela alteridade. Riqueza e maldição, dirá Kristeva. Abertura ética da psicanálise que, deste modo, nos convoca através do reconhecimento da estranheza do desejo inconsciente em nós, reconhecer a estrangeiridade do outro. Sua irremediável estranheza demanda a invenção de um discurso e de uma prática que nos possibilitem conviver com o diferente.
O outro é aquele ou aquilo que não está incluído na representação que faço de mim mesmo. O filósofo Lévinas assim o assinala:
A relação com outro não é uma relação idílica e de harmoniosa comunhão, nem uma empatia na qual possamos nos colocar no seu lugar: o reconhecemos como semelhante a nós e ao mesmo tempo exterior; a relação com o outro é um Mistério. (Lévinas, 1993, p. 116)
Face ao outro, duas respostas se revelam no conto de Clarice: a violência siderada do justiceiro, mas também a empatia e o grito de dor e compaixão de Clarice: "O décimo terceiro me assassina ... porque eu sou o outro. Porque quero ser o outro".
Essa é a lei. O imperativo moral. Não matarás! Essa a transgressão negativa (pois há outra que cria, que transforma) e esta a justiça do justiceiro. "Esta justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada, por precisar dela... Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam..." (Lispector, 1964, p. 252).
Esta justiça do justiceiro está no vértice oposto daquela enunciada por Clarice: "Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado" (Lispector, 1964, p. 252).
Mas de que natureza é esse crime e como compreender uma violência que na sua desmesura viola a integridade do outro? Quais as insuficiências dos mandamentos que norteiam nossos ideais culturais? Será uma fragilidade da consciência de culpa originada pela ambivalência em relação ao assassinato do pai da horda que conduz à miséria neurótica, ou ao seu negativo perverso, ou haverá outro modelo como matriz fundadora?
O aniquilamento do outro, a vazão através do ato que ultrapassa o limite da lei dos homens é metonímia do abuso, do estupro, do maltrato, do domínio sádico do outro, da pedofilia, da humilhação perversa, do racismo e da discriminação. A justiça do justiceiro não preserva a civilização, transgride o pacto social, exerce um domínio brutal sobre o outro.
Nas palavras do antropólogo Roberto DaMatta:
O conceito de transgressão remete, imediatamente, à ideia de ultrapassagem ou rompimento de fronteiras para atingir uma terra de ninguém ou um não lugar. Um espaço negativamente demarcado por alguma regra ou norma de comportamento. Sendo assim, o ato de transgredir nos fala de classificações sociais imperativas (aquilo que a sociedade considera pecado, crime ou tabu), cujo rompimento traria como consequência vergonha, culpa ou renúncia à vida social... (Da Matta, 2008, p. 95)
Será que o clássico operador de leitura Desejo, Lei, Castração, apesar de fundamental, pode ocupar o lugar de único crivo para ler o problema da transgressão e da ultrapassagem dos limites, da fronteira que nos conduz ao hediondo, ao horror?
Parece haver algo que escapa ao tabu do incesto, ao não matarás, à formação do supereu como instância interiorizada. A tensão permanente que Freud assinala, a partir da formulação da segunda tópica, entre as demandas do id e as barreiras impostas pelo supereu, o conflito identificatório no campo do narcisismo e dos ideais abrem uma fresta para ampliar a reflexão em torno da possibilidade ética.
Eis a tese sobre a qual Clarice Lispector discorre para dar conta do seu mal-estar: "na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado".
Esta frase tem o mérito de explicitar de forma contundente o problema ético do qual procuramos nos aproximar. Aponta de modo direto a uma intersecção entre o público e o privado. O que seria a defesa do cidadão na esfera pública, o combate ao crime, é corrompido pela lógica desenfreada de um desejo assassino cuja natureza particular nos é desconhecida. Encontramos aqui o entrelaçamento complexo entre o intrassubjetivo, o intersubjetivo e o social. Três circunferências que na sua intersecção fazem emergir um ato que causa espanto.
Vou me auxiliar de uma das ideias sobre ética sintetizadas pela clareza do pensamento da Marilena Chaui (1992) para aprofundar a natureza dessa discriminação, magistralmente assinalada pela Clarice, e a qual considero hoje ser um ponto de urgência para a teoria e a clínica contemporâneas, dado o grau de anomia que parece reinar na esfera pública.
Para os gregos antigos, "a ética, cujo modo era a virtude e cujo fim era a felicidade, realizava-se pelo comportamento virtuoso entendido como ação em conformidade com a natureza do agente (seu ethos) e dos fins buscados por ele" (Chaui, 1992, p. 347). A virtude ou o comportamento ético é aquele no qual a razão comanda as paixões dando normas e regras à vontade para que esta possa deliberar corretamente. Claro que aqui Aristóteles estava ciente da intensidade das paixões, mas com um excesso de confiança na razão. Neste contexto, as virtudes éticas e políticas, dirá Chaui, eram atualização de um potencial da natureza humana. Isto continha a ideia de que a pólis era o lugar no qual se integravam homem e cosmos, indivíduo e sociedade. Com o advento do cristianismo, a ideia do universal é mantida, mas, como assinala Hannah Arendt, a ideia de liberdade se desloca do campo político para o interior de cada ser humano. Com essa interiorização, instauram-se a moral e a culpa. A ética passa a ser definida em relação a uma vontade transcendental, não mais regulada apenas por uma vontade racional.
Com o advento da modernidade, profundas transformações ocorrem no campo da subjetividade; seria extenso demais abordar essas mudanças, mas cabe destacar para nossa finalidade o que Weber chama de "desencantamento do mundo". O centro ordenador transcendental, seja do cosmos antigo ou da Providência, perde força e será substituído pelas ideias de processo civilizatório, cultura e história, que ditarão os padrões para uma nova ética cujo centro passará a ser relativizado e, neste sentido, seria mais frágil e precário (Chaui, 1992).
Falamos hoje, então, de uma crise de valores morais, num contexto pós-moderno no qual o relativo, o fragmento e o singular têm sido privilegiados em relação às narrativas, aos discursos da representação, da razão, do universal. Abandona-se o cânone e reinam as singularidades, relativizam-se as verdades; trata-se de uma nova geografia a ser ainda investigada no campo do político e que busca novos critérios ante os fracassos ou questionamentos dos modelos totalitários, neoliberais, pragmáticos, fanatismos religiosos ou de anomia social.
Esse olhar de sobrevoo por um tema de tamanha complexidade se faz necessário para marcar o lugar que as instâncias ideais (Eu-ideal, Ideal do Eu, Supereu), forjadas pela teorização freudiana que, como normativas, ocupam na construção do arcabouço psicanalítico um lugar de instâncias (ora narcísicas, ora reguladoras) garantidoras de certo equilíbrio econômico e representacional para o psiquismo. Mas, também, instâncias que em certas leituras psicanalíticas assumem o risco de sua reificação, incorrendo desse modo na falácia de colocá-las no lugar transcendental que procuraria restaurar nostalgicamente (através de conceitos ou palavras dos mestres) instâncias totalizantes como o Estado ou a Igreja, suportes institucionais de uma ética hoje colocada em outros alicerces.
Assim, como as instâncias ideais podem ser reificadas, corremos o risco de naturalizar a violência desenfreada, colocando-a como originária de um aspecto não dominado da natureza humana. Nunca é demais lembrar que Freud nos fala da violência pulsional e não instintiva, ou seja, estamos no campo da fronteira no qual se instaura o sujeito e não na ordem do biológico.
Mas não joguemos fora o bebê com a água do banho, já que aqui aparece uma noção central para a psicanálise, muito cara a Freud, com várias conotações: dominar (Bewältigen), dominação (Bamächtigung), pulsão de dominação (Bamächtigunstrieb). Nas palavras de Freud:
reconhecemos o aparelho mental como sendo, acima de tudo, um dispositivo destinado a dominar as excitações que de outra forma seriam sentidas como aflitivas e teriam efeitos patógenos. (Freud, 1989a/1914, p. 82)
de dominar as quantidades de estímulos que irrompem no aparelho psíquico... com a finalidade de serem conduzidos a sua tramitação. (Freud, 1989b/1920, p. 29)
A crueldade é perfeitamente natural no caráter infantil, já que a trava que faz a pulsão de dominação deter-se ante a dor do outro - a capacidade de compadecer-se - tem um desenvolvimento tardio. (Freud, 1989d/1905, p. 157)
A libido tem a função de tornar inócua a pulsão destruidora e o realiza desviando grande parte para fora... A pulsão é então chamada de pulsão de destruição, pulsão de domínio ou vontade de poder. (Freud, 1989c/1924, p. 169)
Seria interessante, porém nos afastaria um pouco do nosso caminho, aprofundar a discussão metapsicológica em torno das transformações que enriquecem a questão do domínio a partir da passagem para da teorização da pulsão em pulsões. Tornam-se marcantes dois extremos: um que alude à dominação da pulsão face ao traumático e outra implica um elemento mortífero que vai do sadismo ao desentroncamento pulsional e anobjetalidade.4 Essas duas perspectivas da pulsão vinculadas à noção de domínio permitir-nos-ão uma aproximação ao poder, segundo elemento da série desejo, poder, transgressão, até agora silenciado. Ao abordar a noção de poder, permitirão uma interrogação sobre as duas possibilidades de exercício do domínio: a) domínio da força pulsional e dos estímulos e b) exercício de domínio sobre o outro através do controle e do sadismo.
Classicamente, a noção de poder remetia ao domínio exercido pelo Estado ou soberano sobre seus súditos. Associado ao autoritarismo, trata-se da violência exercida sobre o outro, a censura. Também existe o poder do conhecimento, do saber, da sedução. Há uma hierarquia que, a partir dessas referências, se instaura. Com Vigiar e punir, Foucault (1975/2007) esboça um novo modelo de pensar o poder na modernidade em contraposição à época clássica: a) poder não se limita a confinar, reprimir ou constranger, é um princípio de incitação geradora; e b) o poder não é mais exercido apenas pelo Estado centralizador, mas pelo efeito de uma sociedade disciplinar,
que não se identifica com uma instituição nem com um aparelho porque precisamente é um tipo de poder, uma tecnologia, que atravessa todos os gêneros de aparelhos e instituições para ligá-los, prolongar, fazê-los convergir, fazê-los exercer-se de um novo modo. (Deleuze, 1986/2005, p. 42)
Deste modo, podemos nos perguntar sobre os efeitos subjetivos dessa modalidade de poder que penetra os interstícios dos vínculos. Se o poder se atualiza como potência geradora de afetação dos indivíduos, um novo paradigma pode estar em jogo e colocar em xeque nossa possibilidade de domínio, daquilo que irrompe pulsionalmente no aparelho psíquico. Assim, Freud e Melanie Klein nos mostraram aspectos diferentes do supereu, um ligado à angústia de castração e outro às angústias arcaicas depressivas e esquizoparanoides. Talvez uma aproximação aos aspectos intrusivos de uma cultura na qual as formas de poder aparecem mais difusas, mas nem por isso menos esmagadoras (consumo, narcisismos, controle, mecanismo de gozo etc.), e que produzem efeitos na construção dos ideais, das identificações. Uma nova moral para o supereu, através da qual a ética como campo de contato com a alteridade esteja comprometida.
Volto a Clarice:
Para que minha casa funcione exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da minha casa está o terreno, o chão onde minha casa pode ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. (Lispector, 1964, p. 252)
Para nós, analistas e cidadãos, o desfio não é pequeno, mergulhados que estamos nesta mesma cultura, na sociedade em que vivemos, e na clínica na qual trabalhamos, povoada de vítimas e justiceiros. Podemos nos fingir de sonsos como diz Clarice. Certas pressões convidam o analista hoje a uma prática adaptativa, dominar os excessos, os desejos, buscando uma ideia de felicidade artificial, no vértice oposto daquilo que Freud anunciava quando chegara aos Estados Unidos: "estou trazendo a peste". A cultura hoje espera que as práticas clínicas possam oferecer o pesticida.
Há tempos que alguns dos grandes pensadores da psicanálise vêm nos alertando sobre os limites da palavra e do simbólico: Ferenczi, Winnicott por uma vertente, Lacan e Bion por outras, assim como as interessantes propostas de Marty e sua escola.
Por outro lado, Green (2001), ao falar do duplo limite (dupla fronteira), focando nas fronteiras interior-exterior e Inc. Prcs.- Csc., coloca de modo indissociável o par pulsão-objeto. Essa proposição é solidária das noções de: holding para Winnicott, violência primária para Pierra Aulagnier, rêverie para Bion, implante do significante enigmático de Laplanche e desenvolvida por Bleichmar.
A psicanálise contemporânea cada vez mais foi ampliando e compreendendo o papel do objeto, do outro, como significativo na constituição da subjetividade e nos processos de simbolização. Embora haja diferenças no modo de compreender o lugar do outro nas diferentes teorizações, com consequências para o exercício da clínica, e seja indiscutível que a situação analítica é concebida como campo de forças intersubjetivas (Baranger). A noção de transferência-contratransferência, sem perder sua força, alarga seu sentido. Falamos no novo, na neogênese. Como corolário, o analista passa a ocupar um lugar não apenas de suporte transferencial, mas a sua presença e função enquanto objeto parece ser privilegiado em muitos momentos à dimensão interpretativa. Isto coloca a ética do analista como central, já que como objeto passa não apenas a metaforizar o objeto primário no horizonte da situação analítica. A dimensão ética está presente no fundamento da escuta analítica como elemento constitutivo indissociável da associação livre, a atenção flutuante e o modelo da abstinência como desenvolvidos por Freud.
No contexto de uma reflexão em torno do sentimento de culpa inconsciente como obstáculo ao avanço do processo analítico, diz Freud:
Em primeiro lugar depende da intensidade do sentimento de culpa, a que a terapia frequentemente não pode opor uma força contrária de igual magnitude. Talvez dependa de a pessoa do analista permitir que seja colocada, pelo doente no lugar de seu Ideal do Eu; e a isto se relaciona a tentação de desempenhar, ante o paciente, o papel de profeta, salvador de almas, redentor. Como as regras da análise se opõem resolutamente a essa utilização da personalidade médica, há que conceder que temos aí um novo limite à ação da psicanálise, que, afinal, deve proporcionar ao Eu do paciente a liberdade de decidir de uma ou de outra maneira, e não tornar impossíveis as relações patológicas. (Freud, 2001, pp. 62-63)
A liberdade do analisando testemunha para Freud a passagem da sugestão hipnótica para o modelo de análise da transferência e emerge como proposta ética fundamental. As novas descobertas e formulações em torno do lugar do analista a partir das ideias de holding, manejo, rêverie e dadas as transformações do lugar do analista que essas funções suscitam colocam novos desafios éticos, que devem dialogar com a tese freudiana acima apresentada. Dado que a pessoa e presença do mesmo contribuem na constituição do campo, derivamos a urgência de uma reflexão em torno da especificidade ética na clínica atual. Sustentar que a ética é uma invariante é ignorar essas importantes transformações e minimizar seu impacto, que favorece a discriminação e evita o pensamento, aliás fenômeno bastante característico de nossos tempos.
Em uma recente conferência na Sociedade Psicanalítica de Paris, César Botella nos fala sobre os impasses técnicos com o paciente-limite:
À diferença do neurótico que repete para não recordar a representação proibida, o paciente-limite repete porque sua memória não está constituída em forma de passado, em forma de lembrança de outro tempo: o presente é o prolongamento de um passado continuamente atual; repete porque a oca dimensão da memória constringe, porque esta é a única possibilidade de se sentir existindo. (Botella, 2011, p. 604)
A angústia do analista e do analisando se incrementa assim como a possibilidade de atuação, caso exista por parte do analista uma insistência do uso da modalidade de intervenção semelhante ao trabalho com os pacientes neuróticos.
Mergulhados no nosso fazer cotidiano, estamos sujeitos às quebras e aos atos justiceiros que denunciam essas formas de poder e intrusão (o analista-justiceiro, analista-salvador, analista-guru etc.), formas dissonantes da proposta freudiana e ainda pouco conhecidas e teorizadas na clínica e na vida institucional do psicanalista. Também nas nossas instituições, na formação de novos analistas (Tanis, 2005); em todos esses espaços se entrelaçam desejo, poder e transgressão muitas vezes travestidos de boas intenções destinadas ao "cuidado" dos analisantes ou membros filiados.
É necessária uma atenção redobrada no contexto clínico, transferência-contratransferência, também em diferentes modalidades de trabalho do analista: família, análise com crianças etc. Em todos os contextos cabe lembrar que nosso compromisso ético implica não transferir ao analisando nossas limitações de compreensão, contratransferências não resolvidas e nossos momentos de ignorância.
Mais uma vez, Clarice:
o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila, e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que não há nada a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobre tudo procurar não entender. (Lispector, 1964, 252)
Neste contexto, retomo as palavras de Clarice que tiraram seu sono e o meu, e que servem de epígrafe título para minha intervenção: "Porque quem entende desorganiza".
Referências
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Recebido em: 3/12/2013
Aceito em: 17/12/2013
Bernardo Tanis tanis@uol.com.br
1 Este trabalho foi originalmente apresentado no xxII Congresso de Psicanálise "Limites: prazer e realidade" (setembro de 2011). As interessantes discussões a que deu origem levaram a elaboração de um número temático especial da Revista Brasileira de Psicanálise, 46 (1) Ética e psicanálise.
2 Ver Joel Birman, A psicanálise e a crítica da modernidade, e Bernardo Tanis, editoriais dos números 46 (2) e (3) da Revista Brasileira de Psicanálise (2012)
3 Agradeço a Maíra Firer Tanis e Yudith Rosembaum pela indicação de leitura dessa crônica e pela viva discussão. Tomei conhecimento do trabalho de Rosenbaum (2010) após a redação deste trabalho, mas o acrescento na bibliografia como sugestão de leitura.
4 Remetemos o leitor a um interessante trabalho de Cardoso (2002), no qual essas ideias são sinalizadas e discutidas.