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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo jun. 2014

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

Fazendo contato com fenômenos psicóticos e autísticos. Continente/contido e transformações autísticas

 

Making contact with psychotic and autistic phenomena. Container/contained and autistic transformations

 

Estableciendo contacto con fenómenos psicóticos e autísticos. Continente/contenido y transformaciones autísticas

 

 

Celia Fix Korbivcher

Membro efetivo, analista didata e analista de crianças da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP

 

 


RESUMO

A autora examina neste trabalho como o analista pode estabelecer contato com núcleos psicóticos e barreiras autísticas presentes em pacientes neuróticos. Ela recorre à teoria das transformações de Bion como um método de observação dos fenômenos mentais na sessão analítica com o intuito de facultar ao analista a discriminação de fenômenos contidos nos diferentes grupos de transformações propostos nessa teoria. Destaca as transformações projetivas e em alucinose pertencentes à área psicótica. Destaca também as transformações autísticas, próprias da área autística; sendo esta uma proposta da autora em trabalhos anteriores. Relata vinhetas clínicas de duas pacientes que operam prevalentemente com a parte não psicótica da personalidade, embora apresentem respectivamente núcleos psicóticos e autísticos com o intuito de ilustrar esses tipos de fenômenos e abrir a discussão quanto à possibilidade de estabelecer contato com tais pacientes.

Palavras-chave: núcleos psicóticos, barreiras autísticas, transformações autisticas


ABSTRACT

The author examines in this work the way the analyst can establish contact with psychotic nuclei and autistic barriers present in neurotic patients. She uses Bion's theory of transformations as a method of observation of mental phenomena in the analytic session in order to ease the discrimination by the analyst of phenomena contained in the different groups of transformations proposed in this theory. She highlights the projective transformations and transformations in hallucinosis belonging to the psychotic area. She also emphasises the autistic transformations typical of the autistic area, a proposal presented by her in previous works. She reports clinical vignettes of two patients who operate predominantly with the non-psychotic part of the personality, despite presenting respectively psychotic and autistic nuclei, with the intention of illustrating these types of phenomena and opening a discussion on the possibility of establishing contact with such patients.

Keywords: psychotic nuclei, autistic barriers, autistic transformations


RESUMEN

En este trabajo, la autora examina como el analista puede establecer contacto con núcleos psicóticos y barreras autistas presentes en pacientes neuróticos. Recurre a la teoría de las transformaciones de Bion como método de observación de los fenómenos mentales en la sesión analítica con la finalidad de permitirle al analista la diferenciación de los fenómenos contenidos en los distintos grupos de transformaciones propuestos en dicha teoría. Subraya las transformaciones proyectivas y en alucinosis pertenecientes al área psicótica. Además, resalta las transformaciones autistas propias del área autista, una propuesta de la autora presentada con anterioridad en otros trabajos. Por último, presenta dos viñetas clínicas de pacientes que operan de forma prevalente con la parte no psicótica de la personalidad aunque presenten, respectivamente, núcleos psicóticos y autistas, con la finalidad de ilustrar estos fenómenos y abrir la discusión en cuanto a la posibilidad de establecer contacto con dichos pacientes.

Palabras clave: núcleos psicóticos, barreras autistas, transformaciones autistas


 

 

Na guerra, o objetivo do inimigo é aterrorizar você para impedi-lo de pensar claramente. O seu objetivo, entretanto, é continuar a pensar com clareza apesar da situação ser adversa ou amedrontadora...
(Bion, 1987, p. 248)

Crianças autistas têm medo do buraco negro de não existência. Perder o senso de existência é de longe pior do que morrer. Na morte pelo menos um corpo é deixado. Na perda do senso de existir nada é deixado... A aniquilação é a pior ameaça de todas, porque isto significa a extinção do senso psíquico de existir.
(Tustin, 1990, p. 30)

 

Introdução

Bion compara o trabalho do psicanalista com pacientes psicóticos ao do arqueólogo em suas escavações. O arqueólogo, ao realizar suas escavações nas ruínas de cidades destruídas, descobre que, devido a um colapso e ao movimento de camadas de pedras, fragmentos e outros objetos de estágios mais primitivos se misturaram com cerâmicas e artefatos de estágios posteriores (Bion, 1962, citado por Tustin, 1992, p. 96).

O psicanalista em seu trabalho clínico, assim como o arqueólogo, descobre entre as manifestações mentais de seus pacientes fenômenos de diferentes estágios; desde os mais desenvolvidos até os mais primitivos e, nesses últimos, ainda aqueles de natureza primordial (Bion, 1979).

É importante que o analista possa identificar entre as manifestações primitivas do seu paciente os diferentes níveis de desenvolvimento mental que surgem a cada movimento na sessão; se o paciente está operando em níveis psicóticos, autísticos ou não integrados. As características dos fenômenos encontrados em cada um desses níveis são totalmente diferentes, requerendo da parte do analista uma abordagem específica para eles, caso contrário, o paciente não será alcançado.

Alguns pacientes, embora operem a maior parte do tempo com a parte neurótica da personalidade, apresentam certos núcleos psicóticos acentuados. Para evitarem o contato com a situação intolerável a que estão submetidos, eles, muitas vezes, substituem-na por outra situação criada pela sua mente, independente da sua existência real. O analista, diante desse tipo de configuração, não encontra um interlocutor com quem se comunicar.

Outros pacientes nos quais os níveis de dor mental é intolerável, apesar de também se comunicarem predominantemente com a sua parte neurótica da personalidade, conservam uma parte em que prevalecem certos núcleos impenetráveis, onde forma-se uma barreira autística, de modo a tornar inalcançável o acesso a determinados aspectos mentais seus. As análises desses pacientes são geralmente intermináveis, tornando-se cristalizadas, sem evolução.

O meu propósito neste trabalho é examinar como o analista pode estabelecer contato com núcleos psicóticos e barreiras autísticas de pacientes que operam predominantemente com a parte não psicótica da personalidade. O grau de primitivismo contido nas manifestações psicóticas e autísticas provoca forte impacto na mente do analista, o que lhe dificulta, muitas vezes, reconhecer o fenômeno em curso e manter o vértice analítico. Recorro à teoria das transformações (Bion, 1965/1983) como um método de observação dos fenômenos mentais na sessão analítica. Essa teoria faculta ao analista a discriminação dos diferentes tipos de transformações, entre elas as transformações projetivas e em alucinose pertencentes à área psicótica (Bion, 1965/1983); e as transformações autísticas (Korbivcher, 2001) próprias da área autística. Apresento vinhetas clínicas de Nina e Luisa. Ambas operam prevalentemente com a parte não psicótica da personalidade, embora apresentem respectivamente núcleos psicóticos e autísticos. Essas vinhetas visam ilustrar esses tipos de fenômenos e permitem abrir a discussão quanto à possibilidade de estabelecer contato com tais pacientes.

 

I. O fenômeno psicótico

Em 1957, Bion propôs a ideia da presença de partes psicóticas e não psicóticas da personalidade, ponto de partida para que outras partes da personalidade pudessem também ser destacadas, como é o caso da parte autística proposta por Tustin (1990, 1992). Em 1962, Bion introduziu a ideia de que o campo de trabalho do analista na sessão é o do aprender com a experiência emocional. Em 1965, em Transformações, Bion criou uma teoria de observação dos fenômenos mentais compartilhados pela dupla analítica na sessão analítica, destacando diferentes tipos de transformações: tranformações em movimento rígido, projetivas, em alucinose, em K, -K e em O. Nessa teoria, Bion expande o campo analítico do conhecer a realidade; K, para "ser", a realidade. Nesse âmbito o indivíduo se torna um só com a realidade, "sendo" a realidade ao invés de adquirir um conhecimento a seu respeito. As transformações em K (conhecimento), seriam apenas um meio para o indivíduo se aproximar de O, sendo que para Bion este é o principal interesse do trabalho analítico. A teoria de Transformações faculta ao analista a discriminação de diferentes tipos de fenômenos pertencentes às principais dimensões da mente: alucinar, conhecer e ser. Essa abordagem multidimensional da mente nos oferece a base para o desenvolvimento da ideia de outras transformações, as transformações autísticas (Korbivcher, 2001, 2005b), lado a lado com as transformações neuróticas (em movimento rígido) e as psicóticas (transformações projetivas e em alucinose) (Braga, 2009, comunicação pessoal).

Nas transformações projetivas, predomina o mecanismo de spliting e identificação projetiva, o que faz com que a mente projete no interior do objeto aquelas partes indesejáveis do self de modo a obter alívio diante da pressão exercida por esses estados. Nas transformações em alucinose, o paciente, diante da dor provocada pela situação a que está submetido, a transforma numa outra situação de sua criação, independente da sua existência real: "rivalidade, inveja, avidez, roubo, juntamente com o seu sentido de ser inocente, merecem consideração como invariantes sob alucinose" (p. 157).

Bion salienta também que, em qualquer grupo de transformação, o fenômeno da alucinose encontra-se presente, uma vez que considera ser esta uma função da mente e que a presença desse mecanismo em pacientes neuróticos é mais frequente do que supomos. Para o autor, o conceito de alucinose precisa ser ampliado para englobar um número de configurações que não são reconhecidas como pertencentes àquele conceito.

 

II. O fenômeno autístico

Winnicott, Bick, Meltzer, Tustin, entre outros autores, contribuíram com ideias valiosas que permitiram o acesso do psicanalista a áreas primordiais ainda anteriores à psicose, possibilitando abordá-las na análise, além de terem também facultado o trabalho analítico com crianças autistas.

Tustin (1986, 1990, 1992) nos esclarece que os fenômenos autísticos manifestam-se principalmente em indivíduos que apresentam uma sensibilidade extrema e uma autossensualidade exacerbada. Para esses indivíduos a consciência da separação corporal do objeto se deu de maneira abrupta, sem que tivessem meios para suportá-la. A separação é vivenciada como se partes do próprio corpo tivessem sido arrancadas, acarretando a experiência de aniquilamento, de buracos internos, de buracos negros. O indivíduo diante dessa situação se protege desse contato ameaçador com o objeto isolando-se no interior de uma "concha protetora", onde se mantém absorto com manobras autossensuais de modo a manter a vivência da continuidade corporal com o objeto e evitar situações insuportáveis de desamparo e de extrema vulnerabilidade. No âmbito autístico, a noção de objeto difere daquele da parte neurótica e psicótica da personalidade. Nele, não há a noção de objeto interno, nem externo, uma vez que a sua representação não se constitui no nível psíquico, como também as fantasias ligadas a ele. As relações ocorrem, como Tustin propõe, por meio de "objetos sensação", "objetos e formas autísticas".1

Partindo da teoria das transformações de Bion, propus em trabalhos anteriores como hipótese que os fenômenos autísticos, fenômenos dominados pelas sensações, fossem introduzidos nesta teoria entre os diferentes grupos de transformações, constituindo um novo grupo de transformações: as transformações autísticas (Korbivcher, 2001, 2010). As transformações autísticas, como as concebo, se desenvolvem num meio autístico, o que implica a ausência da noção de objeto. As relações entre eu e não-eu são dominadas por sensações, ocorrem através de objetos sensação, objetos e formas autísticas, sem representação na mente. Algumas das suas invariantes se relacionam à experiência de ausência de vida afetiva, de vazio afetivo e à presença de atividades autossensuais obtidas por meio de "objetos e formas autísticas". A proposta de transformações autísticas favorece ao analista identificar o fenômeno autístico em pacientes neuróticos e, talvez, assim alcançá-los. É importante, entretanto, lembrar que o acréscimo das transformações autísticas à teoria das transformações introduz nessa teoria um tipo de fenômeno de qualidade diversa daqueles presentes nela, permitindo que o campo de observação do analista na sessão passe a ser ampliado para uma área dominada por sensações, sem representação na mente.

As transformações autísticas pertencem a um universo organizado por leis específicas, diferentes daquelas da neurose e da psicose. Nas áreas neuróticas e psicóticas, de acordo com Bion (1959), os vínculos emocionais L, H e K e seus negativos perpassam qualquer relação, conectando os objetos. Na área autística, entretanto, não há noção de objeto interno nem externo, o que nos faz pensar que nesta prevalece a ausência de vínculos emocionais. É importante mencionar que a dimensão da mente à qual as transformações autísticas pertencem é a do "existir e não existir" e não K e -K conhecimento, como ocorre nos diferentes grupos de transformações propostos por Bion.

Vale a pena esclarecer algumas diferenças entre os fenômenos autísticos e os fenômenos presentes na teoria de Bion.

Os fenômenos autísticos pertencem a uma área próxima aos elementos beta. Suas características são semelhantes, mas entendo que haja uma diferença de qualidade entre eles. Como Bion definiu, elementos beta são aquelas impressões sensoriais que não foram transformadas pela ação da função alfa e não podem ser utilizadas para pensamento. São estímulos sensoriais não digeridos que são expelidos de modo a livrar o aparelho psíquico do excesso de tensão a que está submetido. Bion (1962/1991a) menciona a existência de uma barreira de contato composta de elementos beta, a tela beta, constituída por um acúmulo de elementos beta. A força dos elementos beta reunidos tem o poder de provocar emoções no analista, afetando a sua condição de pensamento e a sua potência analítica. Onde poderia se constituir a barreira de contato separando consciente e inconsciente, o que se observa é a destruição da mesma.2

O fenômeno autístico, por outro lado, é caracterizado pela sua natureza estática e por pertencer ao mundo inanimado. Assim como os elementos alfa e beta que, quando agrupados, constituem respectivamente a barreira de contato e a tela beta, também os elementos autísticos, ao serem agrupados, formam uma barreira; a barreira autística. O indivíduo busca proteção no interior dessa barreira, onde ele próprio, por meio de atividades autossensuais, gera o objeto, um objeto com características autísticas (Tustin, 1984, 1986). Diferentemente dos elementos beta, os elementos autísticos não têm a função de descarga ou de alívio, mas de proteção frente a situações de terror provocado pela ameaça de perda da noção de existir (Korbivcher, 2008).

 

III. A mente do analista e os fenômenos psicóticos e autísticos

O analista, assim como o seu paciente, é portador de uma mente entregue às vicissitudes próprias de qualquer ser humano. Sendo a sua mente o seu principal instrumento de trabalho, por que não imaginarmos que ele, analista, sujeito a uma vivência de forte pressão, não irá se servir de mecanismos semelhantes aos de seu paciente? Assim como o analisando, também o analista contém em sua mente partes primitivas, uma parte psicótica, áreas de não representação, uma parte autística da personalidade. Diante da pressão das situações autísticas sobre sua mente, o analista deve se haver com um estado de não existência formando-se um abismo entre ele e o paciente de tal maneira que cada um permaneça absorto em si mesmo sem que se estabeleça qualquer contato. Predomina sono, torpor no analista, ou ele pode até mesmo se entreter com atividades ligadas ao próprio corpo. Todas essas manobras o protegem da experiência a que está exposto. É frequente também o analista se envolver com o gozo pelo ato de falar, produzindo discursos longos desvinculados do paciente, discursos esses que visivelmente atendem mais às suas próprias necessidades do que às do paciente. É necessário salientar, entretanto, que essas reações por parte do analista não são necessariamente decorrência de identificação projetiva exitosa, mas da pressão provocada em sua mente pela força dos fenômenos primitivos presentes na relação analítica (Korbivcher, 2001, 2005a). O analista diante do desconhecido da situação a que está submetido, um estado sem emoção, pode também se agarrar às teorias numa tentativa de se ancorar em alguma referência e, com isso, atenuar o seu sentimento de desamparo, resultando num grande afastamento da experiência emocional em curso. Espera-se, porém, que o analista, diferentemente de seu paciente, através da sua intuição analiticamente treinada e de uma disciplina de auto-observação, possa tomar consciência do seu estado mental e resgatar a sua condição de pensamento, mesmo que seja para informar ao paciente sobre a sua ignorância em relação ao significado dessas vivências inacessíveis. Esta seria, a meu ver, uma rara oportunidade daquele paciente se sentir acompanhado por alguém.

 

IV. Material clínico

Nina, 17 anos, uma moça bonita e vistosa, de cabelos longos. Ao se encontrar comigo para a sua sessão, Nina parece estar sempre envolta em uma atmosfera de altivez, superioridade, intimidando-me diante de qualquer pequeno pretexto que surge. O clima é de tirania, de ameaça. Ela grita e faz acusações. Ela parece escutar apenas os sons que vêm de seu mundo interior e ignora o que vem de fora. A minha presença, muitas vezes, sequer é notada. Quando há um momento de encontro entre nós, rapidamente sou engolfada por suas atuações. Esse fato requer da minha parte um trabalho constante para conseguir criar um recuo e me manter pensando e não reagir às suas atuações.

Numa sessão, Nina avisou-me que não viria mais. Combinamos que teria ainda uns poucos encontros antes de interrompermos. Faltou na véspera da sessão que vou relatar. Ao chegar, Nina adentra a sala, como é de seu hábito, com um ar bastante enfezado, batendo os pés. Atira a bolsa na poltrona e se joga no divã. Levanta o encosto do divã, deixando-o na posição vertical, de modo a fazer com que fique uma espécie de parede, de barreira entre nós. Ela menciona a respeito do seu aborrecimento com um amigo que não a convidou para realizar um trabalho junto com ele. Chama a minha atenção que não faz qualquer menção sobre a sua decisão de interrompermos o trabalho e sobre a falta na véspera. Diz irritada: ele não me convidou porque eu não sou da "ilha de Caras". Indago sobre o que isto significa, e ela, com muito ódio, diz: é porque eu não ando de helicóptero. Eu lhe digo que eu não estou compreendendo sobre o que ela está falando. Ela então explode, grita, se irrita, agindo como se eu devesse saber. Fico desnorteada diante de tanta violência sem saber o que falar. Tento lhe comunicar sobre o seu ódio, sobre o terror por perceber que eu sou separada dela e que posso não saber sobre o que está falando, a não ser que ela me esclareça. Ela se exaspera. Enquanto isso, Nina se envolve com uma atividade na qual arranca com suas unhas pontudas - dedos indicador e polegar - a cutícula de cada um dos outros dedos. Parece ter a intenção de me afetar com essa atividade, a qual é entremeada por outra em que levanta a unha do polegar de uma das mãos com a unha do outro polegar, como se através de uma alavanca fosse arrancar a sua unha. Sinto um tremendo desconforto ao presenciar tal cena, o que faz com que eu, para poder continuar pensando, vire a minha cadeira de modo a não enxergar o que ela está fazendo. Depois de me acalmar, digo-lhe que lhe apavora perceber que somos separadas e que eu não posso saber exatamente o que está se passando, e que, diante dessa situação, ela explode, dando a impressão de que pedaços voam pelos ares, como está ocorrendo naquele momento. Ela diz: é claro; você é burra, você não entende!!!! Sinto-me novamente engolfada pela sua violência. Menciono que está repetindo hoje um episódio semelhante ao ocorrido na sessão anterior e como em tantas outras sessões. Acrescento que ela parece ter precisado se organizar na vida desse modo, talvez para não se sentir tão perdida e desesperada. Ela reage bufando e grita dizendo: tá vendo! Tá vendo! Não dá!!! Eu já sei, e daí? Você não me diz nada de novo!

Digo que ela se organizou como um gladiador que precisa meter medo nas pessoas, mostrar que é superior, poderosa e assim manter o controle da situação. Nesse momento ela parece me escutar e diz num tom mais depressivo que na verdade se sente mais para mendigo do que para gladiador. Seu estado mental parece se modificar e permitir a partir daí algum contato. Digo-lhe que acredito mesmo que se sinta como um mendigo, porque, como ela havia dito, ela não pertence à ilha de Caras como as outras pessoas...

Luisa, 20 anos, é estudante de odontologia. Ela tem um namorado e diversos amigos. É uma moça bonita, mas bastante apagada. O seu olhar é distante, inexpressivo, parecendo estar ausente ao contato. Ao encontrar-me com ela para a sessão que vou narrar, o seu semblante desvitalizado me chama a atenção. Luisa caminha vagarosamente na minha direção, entra na sala e se deita no divã. Permanece em silêncio por um longo período. Indago-lhe sobre o que ela estaria pensando e ela responde: nada! Depois de um longo silêncio, após uma nova tentativa minha de contato, ela diz: eu não preciso falar com você, não faz a menor diferença eu falar com você. Eu não tenho vontade de falar com você. Eu não noto um tom agressivo em sua comunicação, embora fosse difícil para mim naquele momento identificar o significado daquela sua comunicação. Ela se vira de modo a ficar com o rosto de frente para a parede e as costas para mim. Luisa se envolve com diversas atividades com o seu corpo. Passa a abrir e fechar sobre seu dedo indicador a fivela-piranha cheia de dentes pontudos observando atentamente aquela operação. Examina também os pelos do braço ou alguma pinta ali presente. Enrola um fio da sua roupa com os dedos e fica manipulando-o. Passa a mão sobre a parede. Ela parece estar totalmente alheia à situação. A minha participação diante dessa cena oscila entre movimentos nos quais tento me agarrar a teorias conhecidas que possam me orientar e outros em que me evado e me desligo. Penso em angústias de exclusão edípica, relaciono a atividade com a piranha e seus dentes pontudos, a fantasias sexuais sádicas. Penso em "vagina dentada", ligando ao fato de ela ser estudante de odontologia e de seu interesse por dentes. Quando me desligo, a minha mente vai para outros espaços, onde me envolvo com as minhas próprias questões, quase esquecendo da presença de Luisa na sala. Ao recobrar a minha posição, me dou conta de que, apesar dos meus esforços, Luisa se mostra indiferente a qualquer tentativa de aproximação, mantendo-se recolhida em seu mundo a maior parte do tempo. Por fim dou-me conta de que o seu isolamento decorre, possivelmente, do terror por não saber como estar comigo naquela situação, uma pessoa separada dela. Formulo a Luisa essa ideia e noto que ela me escuta com interesse. Ela parece sair daquele estado recolhido e passa a se comunicar comigo. Ela concorda com essa minha formulação e diz que fica mesmo aflita porque não sabe como estar comigo. A partir daí pudemos iniciar algum contato entre nós.

 

V. Comentários

Nina já chega para a sessão imersa em um estado de grande perturbação, aparentemente sem relação com os fatos em curso. Não podendo conter esse estado em sua mente; ela descarrega a sua tensão através de ações - joga a bolsa na poltrona, atira-se no divã. Menciona que o seu estado perturbado se liga ao fato de não ter sido incluída numa atividade e deduz que é porque não pertence à "ilha de Caras", o que a faz se sentir muito desvalida. Este parece ser um sentimento intolerável para a paciente. A analista, ao solicitar à paciente esclarecimento a respeito do que ela estaria falando, provoca uma ruptura em seu precário equilíbrio. A paciente reage explosivamente, descarregando sobre a mente da analista aquilo que não consegue conter em si. Ela parece intuir sobre o estado indiferenciado em que se encontra, necessitando construir concretamente uma barreira entre ela e a analista ao levantar o encosto do divã, de modo a proteger a analista de seus ataques. Predomina na sala um clima intenso de superioridade, de rivalidade, de triunfo em relação à analista, carcterístico de estados psicóticos - transformações projetivas e em alucinose. Esse tipo de manifestação e aquela com as unhas atingem fortemente a mente da analista, levando-a a evitar olhá-la, de modo a se proteger das suas próprias emoções e não descarregá-las sobre a paciente. A paciente instaura a maior parte do tempo na sessão um clima de medo, de terror - Tp (Transformações projetivas). A analista, em meio a essas vivências, menciona à paciente que este parece ser o modo com que ela teria se organizado na vida, aterrorizando o outro, para evitar o contato com a sua real condição, suas limitações, sua própria impotência. Essa formulação atinge Nina e, partir daí, ela é capaz de entrar em contato com o seu desamparo e se deprime. Ela, nesse momento, sai do estado de alucinose e responde: "estou mais para mendigo do que para gladiador" - transformações em K.

Luisa apresenta-se para a sessão imersa num estado desvitalizado. Dá as costas para a analista e se ausenta do contato. Permanece absorta em manobras autossensuais - dentes da piranha em seu dedo. O clima na sala é de ausência de emoção, sem vida. A analista se sente perdida na situação, procurando encontrar nas teorias algum significado para o que está presenciando. Tenta diversas direções; exclusão edípica, em fantasias sexuais, devido aos movimentos dos dentes da piranha sobre o seu dedo indicador, até que observa a indiferença da paciente a qualquer manifestação sua. Entende por fim que a paciente se encontra num estado encapsulado e que a atividade com a piranha seria uma manobra autística, através da qual a consciência da ausência do objeto é tampada pelo objeto autístico - a sensação dos dentes pontudos da piranha em seus dedos - entretendo assim uma vivência de continuidade com o mesmo - transformações autísticas. A analista menciona à paciente que o seu estado de recolhimento decorre de vivências de terror por não ter meios para estar com a analista. Essa formulação permite à paciente se sentir acompanhada e menos amedrontada diante da analista, uma pessoa separada.

 

VI. Alguns pontos para discussão

Ambas as pacientes operam predominantemente com a parte neurótica da personalidade, apresentando núcleos psicóticos e autísticos importantes. A experiência emocional da analista é intensa nas duas situações, embora a qualidade difira. Nos estados psicóticos - Nina - a atmosfera na sala de análise é intensa, é cheia de vida, há violência de emoções e muito movimento. Nos estados autísticos - Luisa - é diferente. A vivência é de vazio afetivo, sem vida, de ausência de emoções; é estática. A paciente se recolhe no interior de uma barreira autística como um meio de evitar estados de terror decorrentes do intenso desamparo e vulnerabilidade em que se encontra frente à consciência de separação. É importante notar que em ambas as situações predominam atividades corporais importantes. Na paciente em que prevalecem manifestações psicóticas - Nina -, essa atividade parece visar atingir a analista. Na paciente em que predominam estados autísticos - Luisa -, ela desconsidera a presença da analista na sala de análise, entretendo-se com manobras autossensuais.

Como vimos, o fenômeno autístico, embora guarde alguma semelhança com o da alucinose, é de natureza diversa. O paciente imerso em estados autísticos não inclui nem exclui a figura do analista na sessão, ele a ignora. Ele se recolhe, permanecendo envolto num mundo de sensações geradas em seu próprio corpo, de modo a entreter um estado de continuidade com o objeto. O paciente operando com transformações em alucinose transforma a figura do analista em uma outra figura criada por ele, independente da sua existência real. O paciente se sente superior ao analista, rivaliza com ele, permanecendo num mundo próprio de sua criação.

Resta ainda a pergunta: como o analista pode se comunicar com o seu paciente diante de transformações projetivas, transformações em alucinose e autísticas?

Diante de transformações projetivas, o analista impactado pela violência das projeções descarregadas pelo paciente deve tentar conter a situação em sua mente de modo a se manter pensando. Com a sua capacidade de rêverie e de função alfa, ele necessita transformar aquelas projeções em algum significado mais palatável, de modo a facultar ao paciente conter aqueles conteúdos indesejáveis em sua mente e não mais expeli-los.

Em relação às transformações em alucinose, o analista deve aguardar pacientemente até que surja uma oportunidade em que o paciente possa tomar consciência de que as experiências que ele está vivenciando são criações da sua própria mente e que não correspondem aos fatos reais. Essa consciência poderá propiciar ao paciente abandonar o estado de alucinose e entrar em contato com a realidade.

Diante de transformações autísticas, o analista necessita tentar penetrar a barreira autística introduzindo-se como um elemento vivo, de modo a se aproximar do mundo inanimado do paciente, conferindo-lhe vida psíquica. É preciso, entretanto, que a barreira autística tenha alguns pontos permeáveis e que haja um trânsito entre estados autísticos e não autísticos, estados em que a mente opera. Só assim o paciente poderá vir a ser alcançado pelo analista. Essa experiência poderá facilitar a experiência de separabilidade do paciente, permitindo que ele se movimente por seus estados mentais sem se sentir tão vulnerável e aterrorizado (Korbivcher, 2008).

Se a situação autística não for abordada durante uma análise, dificilmente o paciente irá desenvolver a noção de que ele tem uma existência psíquica separada do objeto e não será capaz de substituir aquele seu mundo inanimado

por uma situação viva. Experiências como as descritas com as características de Nina colocam o analista, como menciona Bion na epígrafe deste trabalho, "diante de alguém cujo objetivo é aterrorizar o analista para impedir-lhe de pensar claramente. O objetivo do analista, entretanto, é se manter pensando com clareza apesar da situação ser adversa ou assustadora". Com Luisa, por outro lado, se há algum objetivo é o de se proteger. Como Tustin menciona na segunda epígrafe deste trabalho: "uma das piores ameaças para o ser humano é a perda da noção de existir". Luisa, para se proteger, se isola em seu mundo de sensações, adquirindo por meio delas alguma noção de existência.

Pacientes como Luisa e Nina nos lançam frequentemente num universo desconhecido, sem encontrarmos referências precisas para nos guiarmos. Penso, entretanto, que esse fato pode nos estimular a desenvolvermos uma condição privilegiada para o trabalho analítico, nos solicitando a operarmos a maior parte do tempo com nossa capacidade negativa e com a "disciplina de ausência de memória e desejo" (Bion, 1967).

 

Referências

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Recebido em: 18/3/2014
Aceito em: 25/3/2014

 

 

Celia Fix Korbivcher celiafix@uol.com.br
1 Os objetos autísticos se caracterizam por experiências com objetos duros e pelo contato com bordas. A consciência da falta do objeto é tampada pelo objeto autístico, de maneira que os sentimentos de terror advindos da sua ausência sejam suprimidos. As formas autísticas consistem em experiências sensoriais que adquirem formas. São formas inteiramente particulares daquele indivíduo, não compartilhadas com outras pessoas. São experiências com objetos macios e com substâncias corporais sentidas como reconfortantes e calmantes. Essas formas adquirem uma função apaziguadora propiciando, por meio da sua sensação física, rudimentos da noção de limites, contendo em seu interior um espaço (Tustin, 1986, 1990, 1992).
2 Isto ocorre por uma inversão da função alfa, ou seja: aqueles elementos que constituem a barreira de contato se dispersam e se convertem em elementos alfa, elementos estes despojados de todas as características que os separam dos elementos beta; estes são os objetos bizarros.

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