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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo dez. 2015
MANIFESTAÇÕES
Os fundamentos da tortura, uma fusão de violência e de sexualidade
The fundamentals of torture: a fusion between violence and sexuality
Los fundamentos de la tortura, una fusión de violencia y sexualidad
Au fondement de la torture, une fusion de violence et de sexualité
Jean-Claude Rolland
Membro da Association Psychanalytique de France. jean.claude.rolland@wanadoo.fr
RESUMO
É sempre, a posteriori, na situação de atendimento prestado à vítima, que se desvenda a dimensão sexual das agressões introduzidas na tortura. No caso de Tito de Alencar, que aqui revisitamos, os tratamentos que ele recebeu durante seu exílio na França revelaram o grau de dominação sexual ao qual o delegado Fleury o submeteu. Sem dúvida, a sexualidade, como demonstrou Freud, acompanha sempre a violência, sendo um ingrediente natural desta última, mas o ato de tortura sobredetermina essa relação. O próprio torturador não escapa desse processo. É sob seu efeito que sua conduta destrutiva se radicaliza. Ele rompe, dessa forma, com o fundamento do "estar junto", que condiciona a instauração do humano, e reduz sua vítima ao status de sub-homem.
Palavras-chave: sexualidade infantil, estar junto, passivação, orientação do sacrifício da pulsão, desamparo
ABSTRACT
When it comes to provide care to a victim of torture, it always takes a while to figure out the sexual aspect of the agressions (i.e., the sexual aspect is always unveiled a posteriori). In this paper, we revisit Tito de Alencar case. While Tito Alencar was exiled in France, he received therapeutic treatments in which it was revealed the level of sexual domination that sheriff Fleury imposed to him. As Freud demonstrated, there is no doubt that sexuality and violence always come together. Sexuality is a natural ingredient of violence, but the act of torturing overdetermines this relation. The torturer himself - or herself - does not stay out of this process. The torturer's destructive behavior becomes radical under this effect. Thus, he breaks with the aspect of "being together", which conditions the formation of the human subject, and relegates the victim to a subhuman status.
Keywords: infantile sexuality, being together, passivation, orientation of the instinctive sacrifice, abandonment
RESUMEN
Es siempre a posteriori, cuando se le presta asistencia a la víctima, que se desvenda la dimensión sexual de las agresiones utilizadas en la tortura. En el caso de Tito de Alencar, revisitado en este texto, los tratamientos que recibió durante su exilio en Francia revelaron el grado de dominación sexual al cual el comisario Fleury lo había sometido. La sexualidad, como demostró Freud, acompaña siempre a la violencia siendo un ingrediente natural de ésta última; pero el acto de tortura sobredetermina esa relación. El propio torturador no escapa de ese proceso. Sobre su efecto, su conducta destructiva se hace radical. Rompe con el fundamento de "estar con" que condiciona la instauración de lo humano, reduciendo su víctima al estatus de sub-hombre.
Palabras clave: sexualidad infantil, estar con, volver pasivo, orientación del sacrificio de la pulsión, desamparo
RÉSUMÉ
C'est toujours après coup dans la situation soignante accordée à la victime que se dévoile la dimension sexuelle des sévices engagés dans la torture. Dans le cas de Tito de Alencar qu'on revisite ici, les soins qu'il reçut pendant son exil en France révélèrent le degré d'assujettissement sexuel auquel le commissaire Fleury le soumit. Certes la sexualité ainsi que le montra Freud accompagne toujours la violence elle en est un ingrédient naturel mais l'acte tortionnaire surdéterminé ce rapport. Le tortionnaire lui même n'y échappe pas, c'est sous son effet que sa conduite destructrice se radicalise. Il rompt ainsi le fondement de l'être ensemble qui conditionne l'instauration de l'humain et réduit sa victime au statut de sous homme.
Mots clé: sexualité infantile, l'être ensemble, passivation, orientation sacrificielle de la pulsion, désaide
É no interior da prática psicoterápica envolvendo as vítimas da tortura ou de outros maus tratos que se coloca a questão da sexualidade na gênese das agressões sofridas. Em tais situações, a psicoterapia reatualiza o que o sujeito passou durante as provações da tortura com uma fidelidade mais viva do que a realidade. Aquilo que, em razão de sua intensidade ou de seu horror, foi além da capacidade de percepção da vítima e do que, portanto, ela não pôde se apropriar, ganha forma com a ajuda da repetição psicoterápica; da mesma forma que alguns aspectos ou rostos do torturador, forçosamente desconhecidos na situação original, se revelam nas representações que o paciente construirá de seu psicoterapeuta. A situação psicoterápica reproduz a situação de tortura, ampliando-a como faria um microscópio, e é a esse preço que ela pode resolver a alienação causada por esta última. Portanto, essa questão, especialmente escandalosa, se coloca a posteriori e com uma atualidade que, em grande parte, continua a escapar à percepção dos protagonistas da situação de atendimento. Neste trabalho, nós tentaremos compreender o porquê de tal resistência.
As agressões sexuais manifestas, geralmente grosseiras, são uma arma frequente dos torturadores, mesmo quando a motivação da tortura obedece a objetivos estritamente ideológicos ou políticos. A sexualidade, que normalmente serve à troca de prazer entre os homens, inverte-se facilmente em seu oposto, servindo, através da humilhação, à destruição do outro. No exemplo de Tito de Alencar, a partir do qual eu retomo esta reflexão,1 depoimentos precisos, numerosos e recorrentes da vítima nos demonstraram que a maior parte das violências físicas exercidas contra ele era acompanhada, por parte do torturador, de insultos de caráter sexual ou comentários que identificavam certa agressão a determinado ato sexual: assim, quando o delegado Fleury aplicava descargas elétricas na língua de sua vítima, ele dizia a Tito que "ele lhe administrava a comunhão, mas que sendo um 'padre homossexual', ele iria recebê-la como uma felação". Uma humilhação sexual tão diretamente infligida contribuiu à instauração de uma confusão mental.
Um uso tão grosseiro assim da sexualidade só pode acrescentar violência moral à violência física da tortura. Testemunho disso é a sideração irreversível em que foi atirado o espírito de Tito, imediatamente após essa provação, e o fato de que, a posteriori, sua razão ficou transtornada. Nas cadernetas descobertas depois de sua morte, esse homem demonstra seu declínio moral, sua indignidade, que ele relaciona à voz do torturador, invadindo e dominando seu espaço mental.
Portanto, observaremos que a violência verbal que se acrescenta à violência física, em razão de um determinado uso da sexualidade, encontra a violência "natural" da sexualidade, uma violência inerente ao movimento sexual, que normalmente não aparece, ou aparece muito pouco, na vida sexual comum, uma violência adormecida, mas que as circunstâncias particulares da tortura têm o poder de exumar e de inflamar. Em suas pesquisas sobre o papel da sexualidade (infantil) na etiologia das doenças mentais, Freud (1905) observa precocemente o enredamento entre violência e sexualidade, seja porque a violência (na invasão, por exemplo) é uma fonte secundária de excitação sexual, seja porque, como no masoquismo e no sadismo, a pulsão sexual inclui a violência em seu próprio conteúdo e que ela é uma figura de excitação.
Por essa razão, somos levados a nos perguntar se, mesmo quando não há, como em Tito, essa inflação da sexualidade, a violência física exercida pelo torturador não se acompanha necessariamente de uma sexualidade desse ato, e se a capacidade de dano dessa situação não é resultante, em primeiro lugar, desse desenvolvimento secundário, clandestino, de uma corrente sexual que ipso facto inscreve a vítima em uma degradação de natureza sexual. Mas o interesse desse dado, segundo o qual a sexualidade seria a companheira obrigatória da violência, explicaria, ainda, "a loucura" que tende a dominar o torturador, para a qual nossa atenção foi recentemente atraída: ao se introduzir na via da violência, o torturador não sabe que ele empenha sua própria participação erótica nessa situação. Como com o aprendiz de feiticeiro, as forças que ele invoca em pouco tempo o invadem.
Para acompanhar essa questão escandalosa da participação da sexualidade nos efeitos patológicos da tortura, é preciso, imperativamente, se lembrar de que muitas coisas se fazem contra a nossa vontade e, ainda, muitas coisas que até mesmo o homem mais rigoroso não está pronto a admitir. A noção de inconsciente deve ser deslocada dessas posturas científicas em que o senso comum a mantém e a neutraliza e deve ser aplicada amplamente às atividades humanas. O general que durante a Guerra Mundial não hesitava em sacrificar uma centena de homens para uma expedição que, quando a paz chega, parece inútil ou insignificante (como a tomada de uma granja, uma progressão de algumas centenas de metros no front) podia mesmo admitir que tantos heróis morressem no campo de honra, mas em nenhum caso ele pode tomar essa decisão pensando, ao mesmo tempo, que o soldado que ele enviava à carnificina era um homem, e que esse homem era seu igual, mortal como ele - que ele fazia parte do que os deuses, segundo Homero, definiam como "os seres de um dia". A guerra, como Tolstoi proclama com tanto ardor em Guerra e paz, só é possível porque aqueles que a iniciam esquecem o que é a morte e o que é uma vida. Só um grau de inconsciência permite ao general cometer esse mal feito que, eventualmente, a entrega de uma medalha transforma em um feito excepcional.
Na época em que cuidávamos de Tito de Alencar, alguns índices nos tinham alertado sobre o que nós já formulávamos como "a loucura" do torturador. Com certeza, nós nunca conhecemos esses torturadores, que são, fora de seu tempo de ação, pessoas pouco eloquentes, impenetráveis e inacessíveis. Esse fechamento à fala que eles manifestam assim faz, talvez, parte integrante desse exercício, como estabeleceram desde então Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles (2014). O que nós sabíamos deles se limitava aos traços que eles tinham deixado na memória - e na pessoa - de Tito, traços que são encabeçados pelas famosas "vozes" - isto é, as famosas alucinações auditivas - que invadiam seu espaço mental. Ele não as confessava, podíamos adivinhá-las pela postura que ele adotava no momento em que elas eram ativadas - um sinal clínico frequentemente observado entre os pacientes com delírio; aconteceu também que ele se abriu furtivamente a um dos frades dominicanos. Portanto, a voz era a de Fleury, o principal organizador da tortura de Tito, e os conteúdos se referiam às palavras ouvidas naquela situação, do tipo "você é um padre homossexual", "você traiu o Cristo e a Igreja", "você não deve comungar". E essas vozes comandavam de fato a conduta de Tito, que, alguns meses antes de se matar, fugia como um banido de sua comunidade, não entrava mais no convento, não ia mais à igreja, recusava-se a conversar com os frades ou com sua família.
Esse tipo de desorganização psíquica corresponde a uma regressão grave do funcionamento mental que reatualiza um grau do desenvolvimento em que, sob o efeito da emergência da sexualidade, a criança descobre o erro, a culpa e vê na autoridade parental o guardião impiedoso e cruel da inocência perdida; ele se sente observado em seus pensamentos, em seus atos secretos, e traduz essa situação opressiva em diálogos interiores em que vozes formulam as acusações na primeira ou na terceira pessoa: "ele tocou mais uma vez seu sexo", "você teve um pensamento sujo".2 Esse grau de desenvolvimento passa, na maioria das vezes, despercebido e desaparece muito rápido, graças à maturação do eu, que ganha independência pelo domínio de sua sexualidade, sob o efeito da educação e da ternura dos pais.
É possível que certas práticas religiosas tenham se originado nessa cultura arcaica do espírito. Como se pode constatar nos sacrifícios humanos entre os maias, cujos deuses exigiam que eles guerreassem, tendo em vista obter escravos. O pensamento religioso, sob a aparência de motivos de uma lógica impossível de vencer, poderia ainda rondar as práticas de tortura. Da mesma forma, mais recentemente como uma regressão cultural, com os genocidas, as discriminações racionais reatualizaram essas práticas. Para aquele que trata do outro como um homem inferior - que lhe impõe, por exemplo, o uso da "estrela amarela" -, é ele quem fica louco, perde o controle e a consciência de si mesmo. Os deuses enviam a loucura aos homens.
Assim, na época, nós só tínhamos formulado essas ideias pela metade, e foi ao ver o filme de Helvécio Ratton, Batismo de sangue,3 que ela se consolidou mais profundamente em nós e tomou corpo, ficou mais precisa. É possível que a semiótica da imagem, que privilegia a arte cinematográfica, esteja mais apta que a língua a representar esses estados profundos da vida psíquica, nos quais as representações de si e dos outros permanecem arcaicas, fantásticas e seguem um curso do qual não temos mais o domínio. O que me chocou nesse filme é a extrema excitação que demonstra a personagem de Fleury, o principal carrasco de Tito de Alencar. O ator que representa esse papel incarna, com um talento e uma precisão fora do comum, um homem empedernido de fanatismo, surdo e cego a tudo o que não diz respeito a seu projeto, com o olhar arregalado, enraivecido, exaltado, abatendo-se sobre sua vítima com uma aspereza radical e glacial. Os meios físicos dos quais ele se mune (as torturas propriamente ditas, enunciadas segundo diferentes técnicas) estão, é claro, à altura desse determinismo selvagem: sua violência não tem limite e sua intensidade não deixa à vítima nenhuma oportunidade para escapar; elas têm em si, portanto, um efeito patogênico considerável.
Mas o que quero ressaltar aqui é que o arrebatamento pulsional ao qual o torturador dá livre curso nele mesmo, que o subtrai a uma posição de humanidade e o faz desconhecer até a humanidade do supliciado (como o general nega a humanidade do soldado), esse arrebatamento pulsional, que poderia ser o próprio ponto central da tortura, é, em si, uma loucura, a loucura específica da tortura: o torturador rompe com o fundamento do "estar junto" que instaura o humano, ele transgride a "lei dos homens", faz da situação que o liga à sua vítima um espaço de pura desumanidade. Para a vítima, essa monstruosidade do torturador é uma visão do horror, uma visão fantástica, uma fonte de pavor, despojando-a de qualquer possibilidade de julgar, condenando-a a uma passividade radical, a uma "apassivação", dizem alguns analistas, que é, ela mesma, uma fonte nova e particularmente incontrolável de sexualidade.
Por quais procedimentos se despoja o próximo de sua dignidade humana, se faz dele um homem inferior? Essa face da tortura está oculta por outra, mais racional, que consiste em submetê-lo a uma violência superior à sua capacidade de resistência, para fazê-lo falar. Mas essas duas operações não são tão diferentes: a dignidade humana é indissociável da liberdade de expressão. O segredo é que a tortura adota, para garantir a integridade e a identidade do sujeito, a obstrução da língua. Ele representa a intimidade última do ser, e é isso que a tortura viola por intermédio da confissão. A língua é um aparelho extremamente complexo e frágil, um envelope, um casulo, ela é viva, ela respira. É o assassinato dessa vivacidade da língua que a tortura trama.
Formulei, no caso de Tito, a ideia de que a sujeição a seu torturador - como ele expõe após sua libertação, em seu delírio, por sua submissão às vozes - era uma sujeição sexual. Melhor dizendo: psicossexual, no sentido de que a interiorização, por seu espírito, da experiência da tortura tinha gravado na memória menos as agressões físicas, facilmente identificáveis e avaliáveis quanto a sua violência e seus efeitos destrutivos, do que a atmosfera emocional na qual elas ocorriam. A excitação que anima os gestos e as ordens de Fleury, sua obstinação, era como mensagens ocultas da paixão (negativa) do torturador por sua vítima, os sinais de uma vontade de ascendência que a vítima só podia interpretar; essa é a lei do espírito humano, como um desejo de posse, uma sedução erótica. O delírio em Tito revelou, em segundo plano, a realidade sexual da experiência, realidade imperceptível a olho nu, tanto para seus protagonistas como para as testemunhas. Aqueles só podem descrever e recensear os prejuízos sofridos, sem levar em conta o que compõe o essencial de sua carga psíquica, qual seja, a interpretação de tudo isso que foi inconscientemente dado in vivo.
A repetição da experiência em outro momento (pelo delírio), em outro lugar (pela reatualização da transferência), faz, sozinha, aparecer sua estrutura profunda, como a foto revela nas massas, formas e luzes, as densidades contrastadas das figuras e personagens, tais como elas se opuseram à travessia do raio luminoso e que o negativo fotográfico definitivamente fixou. A estrutura do mundo aqui e a estrutura da experiência psíquica ali não são dados diretamente acessíveis à observação; eles necessitam de desvios e de artifícios para serem apreensíveis pelo espírito; o delírio, a psicoterapia são esses artifícios, as técnicas próprias à psique, a seu conhecimento e a sua restauração.
Voltemos a essa lei do funcionamento psíquico, segundo a qual qualquer experiência por que passe o sujeito humano é objeto de uma interpretação sob a égide de uma força inerente à subjetividade. Essa força é, antes da língua, a sexualidade, na medida em que ela garante a manutenção da vida e assegura a primazia do prazer, isto é, ela institui a existência do sujeito como desejo. Essa interpretação não é necessariamente manifesta, nem expressa, e não está conceituada nas camadas profundas da mente. Nas circunstâncias de extrema brutalidade, às quais foi exposto Tito, a sideração psíquica rejeitou toda atividade de linguagem - forclusão -, qualquer nomeação das ações hostis, qualquer capacidade de julgamento. Mas o que a sexualidade vai operar, e que já é uma interpretação do real, é uma determinada reunião de traços percebidos, uma determinada regulamentação significante de suas relações e dos objetos que os comandam, reunião da qual as palavras e a gramática do discurso, a posteriori (o discurso do delírio, do tratamento), farão parte e que elas reproduzirão com uma fidelidade altamente preciosa para a mente em sua busca da história e de sua verdade.
De forma que, por sua vez, o que ele faz é, apenas, se submeter a essa exigência da linguagem de enunciar o inconsciente, quando se ouve no delírio de Tito a expressão de uma violenta paixão erótica, quando se descobre nas vozes que ele alucina a proclamação da posição eminente que a vítima atribui a seu autor, tanto quanto o lugar eminente que a vítima crê que seu autor lhe atribua. O delírio tornou-se toda a atividade sexual de Tito, o isolamento que ele opera até na morte é um isolamento amoroso, sempre mais exclusivo, que se estreita em torno do único objeto. Se essa situação não fosse tão trágica, pareceria barroca. E se o próprio clínico não se encontrasse diante de seu paciente, preso à mesma sideração que a da vítima diante do torturador, ele teria podido fazê-lo observar que agora era ele, o paciente, que concedia tanta importância a seu interlocutor! Mas cada um sente que essa interpretação pareceria de tamanha violência e insolência que ela é impossível de formular. Efetivamente não é o "dizer" aqui que seria violento, é o ato que ele designa: o ato torturador inclui a forclusão da fala.
Ora, justamente é imperativo para o psicanalista, se ele quer compreender um paciente assim e lhe abrir as vias da mudança, operar em seu pensamento esse retorno do trágico ao barroco, da infelicidade à vida sexual. Certamente é um escândalo para seu eu e o conjunto de suas instâncias ideais. Mas o analista deve, sobretudo, entender as palavras que ele recebe de seu paciente ou as palavras que ele se diz em seu discurso interior ao invés de escutar seu eu pusilânime. Em um trabalho sobre as etapas psicóticas (Rolland, 2010) - das quais estão bem próximas as sequelas psíquicas da tortura) -, citei esse diálogo de Binswanger com Freud a respeito de um paciente (do primeiro) oferecendo, para o Natal, um ataúde para sua filha acometida por uma doença mortal. Ali onde Binswanger só via a consequência da "distorção" de um espírito cruel, que não respeita a alteridade do outro, Freud lembrava a significação sexual e incestuosa do ataúde e da oferenda. É escandaloso pensar a sexualidade e a violência juntas, é esse escândalo que é importante que nós superemos.
Esse destino singular que a sexualidade expõe nos estados psicóticos ou nas sequelas da tortura convida a questionar novamente sobre essa noção e a se perguntar se estamos diante de uma força unívoca que só variaria em sua intensidade, ou se não estamos, sobretudo, diante de diferentes "estados" da sexualidade, variáveis quanto a seus afetos e seus objetivos. O aspecto que essa força ostenta na psicose é totalmente diferente daquele que as afecções neuróticas demonstram.4 Quanto mais essas últimas são orientadas para os objetos do mundo, para o prazer e a busca de uma satisfação positiva, mais a primeira parece não ter nenhum vínculo com o prazer (ela até mesmo evoluiria "aquém do princípio de prazer" para retomar a célebre fórmula freudiana). Ela se liga ao tormento, ao sacrifício de si mesmo, mantendo inexoravelmente, repetindo as situações traumáticas da infância. Aqueles leitores que estão familiarizados com a obra freudiana terão notado a evolução que, em seu lento e longo desenvolvimento, se manifesta quanto à representação da sexualidade infantil. Se no início da pesquisa ela aparece como uma fonte de prazer, de curiosidade e de vida, que só se aliena da censura que pesa sobre ela, à medida que se penetra nas camadas profundas da psique, em direção aos estados originais em que emergiram os primeiros afetos e representações, descobre-se um conteúdo mais indeciso e uma orientação de maior sacrifício dessa força pulsional, a tal ponto que Freud optou in fine pela concepção de uma dualidade pulsional com, de um lado, uma pulsão sexual e, de outro, uma pulsão de morte.
Além de sua verdade científica, que não se discutirá aqui, renderemos homenagens a essa conclusão, no que ela põe em evidência, com brilho, a proximidade da sensualidade e do sacrifício, do amor e da morte, do morto e do vivo. Uma proximidade muito esclarecedora para compreender os jogos de força que pesam com tanta intensidade nos protagonistas da situação de tortura, como nos estados psicóticos. Deve-se pensar que estes reatualizam, reativam os estados primeiros da vida psíquica, que pertencem em um momento da ontogênese em que o ser não acedeu à subjetividade, em que ele se inscreve confusamente em uma dualidade mãe/filho, por exemplo, que assegura sua sobrevivência precisamente contra a iminência da morte.
Em um dos textos mais iniciais que ele consagra à gênese do aparelho psíquico, Freud propõe uma metáfora que contém a origem de toda sua especulação metapsicológica posterior. Em razão de sua prematuridade (é o único ser vivo na natureza a passar por isso), a cria humana é incapaz de suprir ela mesma suas necessidades. Sua situação é, segundo Freud, a de Hilflosigkeit, que Jean Laplanche traduziu em francês pelo termo de desaide - aproximadamente desamparo, em português; ele só sobrevive graças aos cuidados de outro que o alimenta, designado por Freud pelo termo Nebenmensch. A palavra em alemão, pertence à língua ídiche, não tem equivalente em francês nem em português e só pode ser traduzido por perífrases como "o outro que socorre" ou "o próximo". Os editores das "Cartas a Flies" (Lettres à Flies) escolheram, seguindo Laplanche, "o ser humano próximo"; todas elas são de fato aceitáveis, já que é a partir da perspicácia da personagem em identificar as necessidades da criança e em lhe trazer as boas respostas (ação específica) que a cria humana encontrará o caminho da vida.5 Em minha opinião, é muito importante que Freud tenha evitado aqui as noções de mãe ou de pai, ainda que, de fato, se tratasse deles, porque o recurso a essa abstração permite colocar em primeiro plano a moral que preside essa postura, mais do que a paixão que está presente nela. Freud escreve que o reconhecimento das necessidades do ser "desamparado" é o primeiro gesto ético inventado pela humanidade e é a fonte de toda moral. Portanto, o Nebenmensch é aquele que experimenta a dependência absoluta do outro e não apenas não tira proveito dessa oportunidade para se fazer de sedutor ou de senhor, mas, ao contrário, o conduz à independência e à igualdade.
Esse desamparo, todavia, toma um sentido ainda mais profundo no caso de se considerar, nesse estado de dependência e de passividade, o investimento afetivo ilimitado que o pequeno ser faz do outro, investimento que se encontrará ainda no fundamento do vínculo erótico, do apego edipiano às figuras parentais. Faz parte da tarefa do outro que 'socorre' conter esse apego, cuidar para que ele não se torne sexual, não em demasia, não tão intensamente. Vê-se como essa metáfora pode nos esclarecer na compreensão da violência do torturador, em que justamente a operação realizada pelo carrasco visa a fazer sua vítima regressar a esse estado arcaico de desamparo, a restaurar a dependência do outro e a fazer dele o objeto absoluto de sua vontade e, desse modo, de seu desejo. O torturador encarnaria, assim, a figura exatamente oposta da do Nebenmensch. A situação de tortura seria o negativo radical do que Freud reconhece como a própria condição da vida e do desenvolvimento da mente. Uma consequência muito importante no plano da psicoterapia é tais estados decorrerem disso: até que ponto a reatualização na transferência dessa figura é suportável para o psicoterapeuta, ele que justamente se inscreve na tradição do Nebenmensch e obedece a uma ética do tratamento?
O recurso à tortura sempre encontra racionalizações políticas ou estratégicas que justificam o emprego de uma força suscetível de quebrar a força do oponente, que é considerado uma ameaça para a comunidade. Os adeptos desse método - que se consideram estrategistas - o defendem com arrogância. Eles não sabem que a chamada força física se duplicará necessariamente em uma força sexual que envolve tanto um como outro: um será destruído em seu corpo, o outro, em sua alma. Nos limites extremos do vínculo inter-humano, a barbárie ronda: infeliz daquele que abre as portas ao demônio! O que Charles Baudelaire formula assim: "Quanto à tortura, ela nasceu da parte infame do coração do homem, sedento de volúpias. Crueldade e volúpia, sensações semelhantes, como o extremo quente e o extremo frio" (1975, p. 683).
Referências
Baudelaire, C. (1975). Mon cur mis à nu. In C. Baudelaire, uvres complètes i , Pléiade . Paris: Gallimard. [ Links ]
Duarte-Plon, L., & Meireles, C. (2014). Um homem torturado, nos passos de frei Tito de Alencar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. [ Links ]
Freud, S. (1887-1904). Lettres à Wilhelm Fliess. Paris: PUF. [ Links ]
Freud, S. (1905). Trois essais sur la théorie sexuelle. Paris: Gallimard. [ Links ]
Rolland, J.-C. (2010). Figures de la protomélancolie. In J.-C. Rolland, Les yeux de l'âme (pp. 240-243). Paris: Gallimard. [ Links ]
Recebido em: 7/6/2015
Aceito em: 9/6/2015
Tradução de Marilei Jorge
1 Este trabalho segue as reflexões apresentadas em "Un homme torturé: Tito de Alencar", publicado na Nouvelle Revue de Psychanalyse (1986), e retomadas em L'amour de la haine, Folio Gallimard, 2001; depois em "Soigner, témoigner", em Langage et violence, Centre Primo Levi, 2013.
2 Essa etapa do desenvolvimento psíquico corresponde ao que Freud chamou de "a formação do ideal do eu": "A incitação em formar o ideal do eu, cuja consciência moral instituiu o guardião, se originava justamente na influência crítica dos pais, transmitida pelas vozes; com o passar do tempo, tinham vindo se juntar a isso os educadores, os professores e a tropa incontável e indeterminável de todas as pessoas do meio ambiente" (Freud, Para introduzir o narcisismo, OCP xii, pp. 238-239). Como se sabe, é sempre em nome de "seu" ideal que se bane, se tortura ou se persegue o outro.
3 Inspirado no livro de mesmo nome de frei Betto, Batismo de sangue, sob a direção de Helvécio Ratton, que estreou no Brasil em 2005.
4 Desenvolvi em maiores detalhes esse ponto em "Etats de la sexualité infantile". Libres Cahiers pour la Psychanalyse, 23, primavera de 2011, Transferts d'amour, Inpress.
5 "O organismo humano é inicialmente incapaz de levar à ação específica (a modificação do mundo exterior, a introdução de alimento, a proximidade do objeto sexual). Essa ação se produz por intermédio de uma ajuda externa, quando uma pessoa com experiência se torna atenta ao estado da criança em razão do não acesso que toma a via da modificação interna. Essa via adquire, assim, uma função secundária extremamente importante, a de se fazer compreender, e o desamparo inicial do ser humano é a fonte que origina todos os motivos morais" (Freud, 1987-1904, p. 626).