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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.48 no.89 São Paulo dez. 2015
PSICANÁLISES POSSÍVEIS
Herança e transmissão na e da psicanálise1
Heritage and transmission in and of psychoanalysis
Herencia y transmisión en psicoanálisis
Héritage et transmission chez la psychanalyse
Tatiana Inglez-Mazzarella
Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, no qual é integrante do Grupo de Estudos e Transmissão de Psicanálise (GTEP) e professora do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. timazza@uol.com.br
RESUMO
O presente artigo pretende discutir a importância da história do movimento psicanalítico na transmissão da psicanálise e na formação de analistas. O eixo condutor da discussão é a transmissão psíquica entre gerações, uma vez que o trabalho de apropriação da herança requer um posicionamento em relação à história. O artigo foca a relação entre Freud e seus primeiros discípulos para pensar seus efeitos na formação de analistas.
Palavras-chave: herança, transmissão, transferência, transmissão psíquica geracional, formação do analista
ABSTRACT
This paper aims to discuss the importance of the history of the psychoanalytic movement in the transmission of Psychoanalysis and psychoanalytic training. The core of this discussion is the psychic transmission between generations, since the work of appropriating the legacy requires taking a position on the history. The author focus on the relationship between Freud and his earliest followers in order to think about its effects on the training of psychoanalysts.
Keywords: legacy, heritage, transmission, transference, generational psychic transmission, psychoanalytic training
RESUMEN
Este artículo analiza la importancia de la historia del movimiento psicoanalítico en la transmisión del psicoanálisis y en la formación de analistas. El hilo conductor de la discusión es la transmisión psíquica entre generaciones, ya que el trabajo de apropiación de lo heredado requiere un posicionamiento en relación con la historia. El artículo se centra en la relación entre Freud y sus primeros seguidores para pensar sus efectos en la formación de analistas.
Palabras clave: herencia, transmisión, transferencia, transmisión psíquica generacional, formación del analista
RÉSUMÉ
Le présent article se propose à discuter l'importance de l'histoire du mouvement psychanalytique dans la transmission de la psychanalyse et dans la formation des analystes. L'axe conducteur de la discussion est la transmission psychique entre générations, une fois que le travail d'appropriation de l'héritage requiert un positionnement par rapport à l'histoire. L'article se fixe sur la relation entre Freud et ses premiers disciples, pour penser ses effets dans la formation des analystes.
Mots-clés: héritage, transmission, transfert, transmission psychique générationnel, formation de l'analyste
Há algum tempo tenho trabalhado com o tema da transmissão psíquica geracional. Falar deste tema implica destacar a importância da dimensão intersubjetiva, da presença e da ausência do Outro e de suas qualidades na constituição do sujeito. É também falar da história e da pré-história de cada pessoa em seu processo de singularização.
A constituição só se faz com base no transmitido, não parece haver dúvida sobre isso. Não é, contudo, só da positividade que se faz uma pessoa, há sempre uma porção de negatividade, algo que não foi dito, representado ou constituído. É, especialmente, nesta dimensão da transmissão em seu negativo que recai meu interesse.
Nessa citação que Freud faz de Goethe, "aquilo que herdaste de teus pais conquista-o para fazê-lo teu", está apontado um caminho constitutivo e constituinte de transformação da herança. A possibilidade de marcar uma diferença passa pelo pertencer a um grupo familiar e, ao mesmo tempo, fazer da herança genealógica algo pensado, transformado e simbolizado, ou seja, algo próprio. A herança pressupõe um trabalho de posicionamento em relação à história. Mas nem sempre este caminho pode ser trilhado, e, quando isto não ocorre, pode-se ficar submetido a uma herança que aliena, e isto faz com que se esteja em face de um errante, de algo que vagueia por meio das gerações em busca de inscrição ou de simbolização.
Esse campo mostrou-se para mim como um instrumento para o trabalho clínico. Mais recentemente, passei a interessar-me por outra faceta da questão da transmissão psíquica geracional, que me parece também um importante aspecto a ser considerado na formação do analista: a transmissão psíquica geracional na transmissão da psicanálise.
Bem, entre a escolha de um ofício e seu exercício, há a passagem pelo tripé postulado por Freud: a análise pessoal, a formação teórica e a supervisão. Temos aí os elementos organizadores da transmissão na psicanálise ou da psicanálise. Formação e transmissão, um binômio que fala da construção da possibilidade de escuta do sujeito do inconsciente. Mas como se faz a formação de um analista? Como se faz a transmissão em psicanálise? O que se transmite ao se transmitir psicanálise?
É aqui que começa a complexidade de nosso ofício. Desde a escolha de formação - atravessada pela própria experiência no divã - até a escolha de onde e como fazer, chegando ao delicado terreno da autorização.
Assim, o analista que se é diz das suas histórias de vida e de formação. Como escutamos diz algo acerca de como fomos escutados, mas não só. Ao pensarmos nas questões da transmissão psíquica geracional, articulada ao lugar destinado de um novo integrante, há muito a dizer a respeito da importância da história do movimento psicanalítico na transmissão da psicanálise e na formação do psicanalista.
O que elegi para este artigo é um pequeno recorte do vasto tema da herança e transmissão. Dados os limites, optei por concentrar-me em Freud e seus primeiros discípulos.
Nesse sentido, a fundação e a institucionalização da psicanálise pelo primeiro grupo de analistas em torno de Freud serão para Kaës
o palco, ... o lugar de tantas cenas de família, de cenas domésticas (que) só adquirirá todo esse relevo e densidade por vir a ser o espaço receptor das transferências de transferências não analisadas ou insuficientemente analisadas, principalmente das transferências grandiosas e persecutórias, rebentos destruidores da ilusão grupal. (1997, p. 28)
Para esse autor, é com esse material que se funda a instituição da psicanálise, e nem mesmo a descoberta e análise do complexo de Édipo no campo intrapsíquico dão conta de seus efeitos no espaço grupal dos primeiros analistas. Kaës destaca a "repetição das dilacerações e das feridas de origem" (p. 29). Há aqui uma referência à transmissão psíquica na geração dos analistas, uma transmissão do negativo, daquilo que não pode ser elaborado e apresenta-se na forma de sintoma nas gerações seguintes.
Roustang em seu livro Um destino tão funesto (1987) aponta para os vários movimentos transferenciais presentes na psicanálise: dívida, gratidão, doutrinação e rivalidade fraterna foram elementos intrincados de diversas maneiras ao longo do tempo. Podemos acompanhar o quanto a história do movimento psicanalítico é tecida com fios da mais arcaica história de cada um de seus protagonistas. Abre-se toda uma possibilidade interpretativa assentada na imbricação entre mestria e filiação, da qual, obviamente, a psicanálise não escapa.
Roustang faz ainda uma análise da relação de Freud com cada um de seus discípulos mais próximos com os quais rompeu, e assinala que a "ligação à pessoa de Freud, (o) pedido de reconhecimento privilegiado, (o) ciúme para com os outros, (os) conflitos pela herança estão presentes em cada um dos casos" (1987, p. 22). Assim, o reconhecimento da dívida, embora necessário, não é suficiente para dar conta das questões transferenciais na história do movimento.
Como tornar-se herdeiro de Freud no sentido que ele atribui à herança na citação de Goethe?2 Como fazer da dívida, uma dívida simbólica? Como fazer da herança de mais de cem anos de psicanálise algo próprio? Embora estas tenham sido questões de extrema relevância nos primórdios, especialmente talvez para a primeira geração de analistas, entendo que seguem pertinentes a todos aqueles que se embrenham pelos caminhos da psicanálise.
Há, para Roustang, uma contradição inerente à constituição das associações psicanalíticas: a "estabilidade e o bom funcionamento" das instituições iriam na contramão da descoberta freudiana, pois elas trariam em si, inevitavelmente, forças desagregadoras. Reunidos em torno de um mestre impelido a fazer discípulos, restaria a cada um deles uma briga de vida ou morte pelo reconhecimento enquanto herdeiro único, mesmo que para isso fosse preciso eliminar os rivais.
Pensar na história do movimento psicanalítico, ainda que em tempos nos quais assistimos a um enfraquecimento das escolas em torno de Grandes Mestres, parece-me frutífero enquanto oportunidade de formular questões acerca das transferências presentes na formação do analista, como nos fazemos herdeiros dessa história que nos antecede, mas que, sem dúvida, se faz presente nem que seja pela via do retorno do recalcado.
Ainda em relação à institucionalização da psicanálise, Kupermann em Transferências cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições (1996) aponta para o desejo de instituição de Freud, que visava à organização, o desenvolvimento e a difusão, além de, simultaneamente, à preservação de sua especificidade. Para ele, esse primeiro momento faz-se num registro teórico-clínico, que, a partir de 1920, é acrescido também de outro registro, a saber, o da autorização e da habilitação de sua prática, enquanto uma prática social.
A institucionalização buscava discriminar os limites do dentro e do fora do campo psicanalítico, o que é ou não é afinal psicanálise, ao "dar os contornos e as garantias ao corpo do saber teórico e da prática psicanalítica" (Kupermann, 1996, p. 20). A fundação da ipa está marcada por uma transferência geográfica, de Viena para Zurique, e outra, que aponta para uma primeira filiação: a eleição de Jung como o príncipe herdeiro, aquele que supostamente, segundo Freud, contribuiria para que a psicanálise fosse reconhecida como uma ciência universal.
A intenção de Freud, contudo, logo se vê frustrada pelas divergências das ideias junguianas com seu pensamento, que culminam em ruptura. Freud aponta para a postura resistencial que a psicanálise suscita também nos analistas. Kupermann (1996) chama a atenção para o lugar no qual Freud põe tanto Jung quanto Adler no texto "bomba" "A história do movimento psicanalítico", publicado em 1914: o de pacientes, sem o consentimento deles. Neste texto, Freud analisa as motivações inconscientes que teriam levado seus discípulos a se afastarem dele e da psicanálise. E aqui a tônica acaba recaindo apenas no infantil dos discípulos. Podemos acompanhar uma primeira questão acerca da transmissão postulada por Freud no que concerne à transmissão do legado psicanalítico: "em resumo, ambos são infantis, têm resistência à psicanálise e querem tomar o lugar que é de Freud" (p. 24).
Destaco ainda duas ideias apontadas no texto que me parecem de extrema importância para pensarmos na transmissão geracional no âmbito da transmissão da psicanálise, especialmente em seu aspecto infantil (afinal, por que a psicanálise estaria imune àquilo que a move?).
Com base na tradição encontrada em "A história do movimento psicanalítico", o confronto em psicanálise traz, até nossos dias, duas marcas: a primeira diz respeito ao tom beligerante e passional desse confronto, com o uso de "conhecimentos psicanalíticos" entre as armas de acusação mútua, caracterizando um abuso da psicanálise, uma análise "selvagem" praticada no interior do próprio meio psicanalítico; a segunda diz respeito ao próprio objetivo do confronto, a redefinição do que é e do que não é psicanálise, que, com a morte de Freud - aquele que sabia a psicanálise -, passará a ser a luta pelo status de herdeiro legítimo de seu legado (Kupermann, 1996, p. 25).
Freud destacava também que o ensino da psicanálise trazia dificuldades por sua própria natureza: dar-se por regulação pela transferência. Ou seja, ele já postulava que, se todo ensino em geral é atravessado pela transferência, o da psicanálise, em particular, não teria como escapar a esta questão. Parece-me que somos herdeiros dessas marcas iniciais e fundantes da transmissão na e da psicanálise.
Em relação à transferência, Roustang (1987) destaca o fato de que, quando algo dela se resolve para o analista, ele pode dizer em nome próprio, e não apenas sob a proteção e em referência ao mestre. Entendo que há aqui uma importante distinção entre herança, no sentido da transformação do legado em algo próprio, e a posição de discípulo numa relação assimétrica e alienante.3
O infantil na transmissão
Kupermann (1996) elenca três pontos assinalados por Freud como mobilizadores da resistência à psicanálise: "... a quebra de ilusões narcísicas, o questionamento dos mais elevados ideais sociais e as formulações sobre a sexualidade infantil ..." (p. 30). Para o pai da psicanálise, a manutenção da moralidade está diretamente ligada à proibição do pensamento, via proibição da crítica e da discussão. Freud denuncia, assim, a lógica da ilusão, lógica da qual nem mesmo a psicanálise está livre.
O que talvez ainda não estivesse em pauta era o quanto Freud, a psicanálise e seus escritos poderiam eles próprios ser utilizados como verdades absolutas inquestionáveis, "um texto sagrado" a ser seguido.
Kupermann (1996) segue, além disso, a trilha da transferência na institucionalização da psicanálise, desde a Sociedade Psicológica das Quartas-feiras, passando pela criação da ipa e do Comitê Secreto.
Os encontros das quartas-feiras eram marcados pela apresentação de um texto, um caso ou uma questão teórica. O grupo era composto por médicos, educadores e escritores e tinha como pilares do trabalho em conjunto a obrigatoriedade da fala, a autoexposição científica (os distúrbios neuróticos dos participantes) e a palavra final e decisiva de Freud. Gay, conforme Kupermann, destaca o fato de que o caráter competitivo e hostil, assim como a disputa por posições e ideias, foi o responsável pela dissolução da Sociedade.
Foi, contudo, a Sociedade Psicanalítica de Viena que formalizou o grupo que se reunia em torno de Freud; foi ela também a responsável pelos primeiros passos rumo à internacionalização da psicanálise.
Ferenczi propôs, durante o 2º Congresso de Psicanálise, em Nuremberg (1910), o projeto da Associação Psicanalítica Internacional - a ipa.
No projeto utópico da Associação, Ferenczi pretendia que a vigilância mútua dos analistas permitisse reunir as vantagens da organização familiar a um máximo de liberdade individual. A Associação deveria ser uma família em que o pai não detivesse uma autoridade dogmática e na qual reinasse uma atmosfera de confiança mútua, com o reconhecimento das capacidades de cada um, o controle da inveja e a divisão do trabalho (Kupermann, 1996, p. 51).
Há aqui uma referência direta ao paradigma da instituição como modelo familiar. Neste sentido, encontro os elementos para uma analogia entre a transmissão psíquica geracional e a transmissão geracional na transmissão da psicanálise. A questão do pai e da legitimidade dos herdeiros parece estar presente desde o projeto de Associação de Ferenczi.
Kupermann (1996) realça dois momentos nos quais Freud chama um movimento transferencial de retorno à sua posição de fundador e mestre da psicanálise. O primeiro seria a criação do Comitê Secreto em 1912 e o segundo, a publicação do texto "A história do movimento psicanalítico", em 1914.
A criação do Comitê está associada à criação de uma "velha guarda" de Freud diante de seus atritos com Jung. O comitê passa a exercer um poder paralelo ao da ipa, supervisionando seu andamento. Só é dissolvido quando a ipa padroniza e institucionaliza a formação psicanalítica. Assim, não há como negar que as questões da formação são muito caras desde os tempos freudianos.
"A história do movimento psicanalítico" em 1914 marca a reivindicação freudiana de saber da psicanálise diante das dissensões de Adler e Jung. Se, por um lado, assistimos a várias rupturas de Freud com seus discípulos ao longo da história, por outro, não há como deixar de notar o lugar que o fazer/tornar discípulo ocupou na psicanálise. Sobre isso, Roustang (1987) destaca o fato de que esta questão estaria intimamente associada à diferença entre teoria e delírio, ou seja, o que estaria em jogo seria o testemunho dado por outra pessoa de que não se está delirando.4
O autor insiste na diferença entre a teorização e a transmissão em psicanálise, que não se faz fora da transferência, aquilo de que prescindem as ciências em geral. Assim, estamos diante de um paradoxo, uma vez que as sociedades psicanalíticas estariam na contramão daquilo que visa uma análise ao seu final - a dissolução da transferência -, mas não há como deixar de estar em um espaço coletivo para não enlouquecer e para fazer possível a transmissão.
A transmissão psíquica geracional na transmissão da psicanálise
Figueira (1994) aponta para a existência de pontos cegos em qualquer teoria e destaca que, na difusão da psicanálise, deparamo-nos com um ponto cego acerca do não exame de questões de relevância, que deixam a psicanálise mais vulnerável.
Penso em incluir aí não só a difusão em seu sentido geral, mas também a transmissão da psicanálise no sentido da formação de novos analistas. O que se transmite ao se transmitir psicanálise? Quais são os pontos cegos dessa transmissão?
Para Roustang (1987), a análise de um texto como um mito ou um sonho possibilitaria ir ao encontro dos pontos cegos criados via transferência. Seria, então, o desfazimento da teoria como sintoma.
A psicanálise não pode ser separada da dimensão inconsciente, tanto de seu criador, quanto de todos os analistas. Esse saber está, desde sua origem, atrelado a um saber inconsciente; podemos acompanhar na obra freudiana o quanto os conceitos construídos estavam intimamente associados a momentos de compreensão de suas próprias questões inconscientes (A interpretação desonhos está recheada de exemplos disso).
Parece-me que incluir a transmissão psíquica geracional na transmissão da psicanálise abriria o campo para inclusão de mais um aspecto de relevância, pois, conforme argumenta Figueira:
Embora Freud tenha sido durante um longo período uma das figuras-chave da política institucional psicanalítica - tanto num nível local quanto internacional -, ele não nos forneceu, sistematicamente, uma concepção psicanalítica para a compreensão das instituições psicanalíticas, deixando toda a área da institucionalização (que abrange os conflitos com homens como Jung, Tausk, Karl Kraus etc.) aberta a uma porção de críticas desconcertantes ... O que estou sugerindo é que tais problemas se situam na fronteira da psicanálise, posto que não foram integrados à própria teorização psicanalítica. (Figueira, 1983, p. 374, citado em Figueira, 1994, p. 28)
Será que tais problemas situam-se na fronteira da psicanálise e as ciências sociais, como sugere o autor, ou será que poderíamos pensar no quanto é necessário, em termos da transmissão em psicanálise, incluir o infantil e as questões inter e transgeracionais?
Se tomarmos a ideia do recalcado e seu retorno na formação psicanalítica,5 que atualiza ela própria as questões inconscientes e da sexualidade na transferência, não seriam sem efeito para as gerações seguintes de analistas os suicídios, as errâncias, a loucura, as rupturas violentas na luta por legitimidade. Neste sentido, Mannoni argumenta que "é por causa do silêncio sobre as questões transferenciais que nunca houve uma sociedade de psicanálise que psicanalisasse as crises que a dividiram" (Mannoni, citada em Kupermann, 1996, p. 84).
Do ponto de vista de Balint, a disciplina exigida por Freud das novas gerações procurava evitar as dissensões por meio da renúncia dos discípulos de parte de sua autoconfiança e independência. O caminho para tanto consistiria na aceitação da autoridade com direito de instruir e repreender, via identificação com os iniciadores e suas ideias acerca da psicanálise (Balint, citado em Kupermann, 1996, p. 77).
Se aceitarmos a argumentação de Roustang (1987, p. 118) de que "a transmissibilidade da teoria analítica teria então como condição a liquidação da transferência, já que a descoberta, necessária à transmissibilidade, é sempre uma abolição da crença na qual se apoia a transferência", talvez seja possível pensar como na formação de um analista há uma passagem necessária, realizada primordialmente via sua análise pessoal, na perda de uma proteção imaginária vinda de algum outro e/ou de sua teoria. Uma passagem das paixões infantis em toda sua força de espelhamento e na crença no eu ideal para o encontro com uma solidão que permite a escuta. Uma posição que põe o saber produzido pela teoria psicanalítica a serviço de um não saber do analista, necessariamente presente a cada sessão, quando abre a porta e recebe seu analisando.
Nesse sentido, Kaës defende a ideia de que o movimento psicanalítico ganharia com a articulação entre as questões de formação do analista e as questões de grupo postas desde os primórdios. Para ele, "apostas psíquicas profundas, domínio, sedução, esteio narcísico, filiações imaginárias e projeções megalômanas" são próprias e sempre presentes nos grupos. Mais uma vez, poder-se-ia perguntar por que os grupos psicanalíticos não estariam expostos a questões tão humanas. Daí há algo do trabalho que talvez não se dê só individualmente por meio da análise, mas de um trabalho também coletivo de processamento das origens, algo que possa pôr em movimento as questões violentas e traumáticas ligadas ao grupo desde o início e que, segundo Kaës, seguem se atualizando nas gerações seguintes das instituições.
Atualização e apresentação de sintomas institucionais e até, por que não, individuais dos traços deixados na e pela história do movimento psicanalítico que insistem como repetição em nossa formação e em nossa clínica.
Será ingênuo ou pretensioso por demais pensar na inclusão dessas questões, no interior mesmo de nossa formação e análises intermináveis, como forma de arejar e vitalizar o pensar psicanálise para que não transformemos a teoria em dogma (cientificismo) ou em religião? Qual a possibilidade de construirmos conhecimento sem perder contato com o saber (sempre inconsciente) acerca de nosso ofício?
Entendo que pensar na transmissão psíquica no âmbito da transmissão da psicanálise contribui para que cada analista venha se haver com suas questões de filiação, podendo reconhecer em seu percurso suas transferências. Só ao apropriar-se da herança, ou seja, ao fazer-se ao mesmo tempo elo em uma cadeia com uma posição singular, é possível clinicar em nome próprio e pertencer a um grupo de maneira criativa.
Referências
Figueira, S. A. (1994). Freud e a difusão da psicanálise:estudos sobre a estrutura e o funcionamento do campo psicanalítico. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vols. 4 e 5, pp. 15-645). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900) [ Links ]
Freud, S. (1996). A história do movimento psicanalítico. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 15-73). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914) [ Links ]
Inglez-Mazzarella, T. (2006). Fazer-se herdeiro: a transmissão psíquica entre gerações. São Paulo: Escuta. [ Links ]
Kaës, R. (1997). O grupo e o sujeito do grupo: elementos para uma teoria psicanalítica do grupo. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Kaës, R. (2005). Os espaços psíquicos comuns e partilhados: transmissão e negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Kupermann, D. (1996). Transferências cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições. Rio de Janeiro: Revan. [ Links ]
Roustang, F. (1987). Um destino tão funesto. Rio de Janeiro: Taurus. [ Links ]
Recebido em: 6/10/2014
Aceito em: 11/11/2014
1 Texto original apresentado no evento "Formação e transmissão em psicanálise" no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo.
2 "Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu?"
3 "Se ele é discípulo, é fundamentalmente porque ele teme carregar o seu nome, falar em seu nome, pensar através dos seus fantasmas e sonhos, é o mesmo que fazer trapézio sem rede" (Roustang, 1987, p. 59).
4 "Como saber se sou sensato ainda ou se fiquei louco? Precisamente, tornando-me aluno e discípulo, e me mantendo indefinidamente nesta posição. Pois assim eu suspendo minhas palavras e meus escritos ao reconhecimento ou à desaprovação daquele que eu estabeleço como alguém que sabe que sabe o que diz e que me dirá se eu deliro ou não. Aquele em quem acredito é essencial e literalmente o meu garden-fou." (p. 59)
5 "... tanto na versão de Balint - trauma das antigas dissensões - quanto na de Safouan - assassinato do pai."