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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.90 São Paulo jun. 2016

 

DEPOIMENTOS DOS EDITORES

 

2005: Barone / Viñar

 

 

Leda Maria Codeço Barone

Membro associado da SBPSP. ledabarone@uol.com.br

 

 

 

Participar do corpo editorial do Jornal de Psicanálise foi experiência importante em minha vida pessoal e profissional: construí laços de amizade e aprendi muito com meus colegas de trabalho. Por quatro anos fiz parte do conselho enquanto Cecília Orsini foi editora e nos quatro anos seguintes, de 2005 a 2008, assumi o lugar de Editor, tendo nos dois últimos anos Alice Paes de Barros Arruda como coeditora.

Como editora dei continuidade ao trabalho desenvolvido por Cecília procurando fazer do Jornal um veículo arejado que pudesse contribuir para a formação do psicanalista e aumentar o alcance do diálogo de nossa instituição com a cultura de forma ampla. Nesse sentido, uma preocupação que sempre nos animou foi transitar por caminhos que sustentassem o trabalho do analista diante do homem no mundo contemporâneo.

Nosso Editorial contava com a participação entusiasmada dos queridos colegas Alexandre Horta e Silva, Ana Maria Loffredo, Ana Maria Vieira Rosenzvaig, Beatriz Helena Peres Stucchi, Iliana Horta Warchavchik e Marta Úrsula Lambrecht. Trabalhávamos com afinco e muita colaboração a cada número, desde a concepção do tema a ser desenvolvido até a entrega final do número a nossos leitores.

Nossas reuniões de trabalho eram ricas nas discussões, respeitosas nas diferenças e sempre muito pulsantes. A mim, o grupo editorial dava a impressão de trabalhar com paixão pelo ofício da escrita. Os encontros eram alegres, cordiais e produtivos. A cada número terminado nos reuníamos num jantar festivo regado a um bom vinho para comemorar o trabalho realizado e começar a pensar o número seguinte. Lembro com saudade e alegria.

Um fato que considero importante nesse período foi a retomada da periodicidade semestral de nosso Jornal. Produzimos 7 números assim organizados: 2005 volume 38 (69) com o tema Tornar-se analista: variâncias e invariâncias; 2006 volume 39 (70) e (71) cujos temas foram, respectivamente, Psicanálise: investigação e produção teórica, e Psicanálise: investigação e cura; em 2007 volume 40 (72) e (73) com os respectivos temas A família em (des)ordem e A arte da interpretação: diálogos com a Teoria dos Campos, este último com a coeditoria de Leda Herrmann. E em 2008 o volume 41 (74) e (75) cujos temas foram A análise do analista e Transferências.

Escolher um trabalho entre tantos de qualidade que editamos nesse período não é tarefa fácil. São muitos os trabalhos que gostaria de salientar, mesmo assim vou destacar dois pelos motivos que exporei.

O primeiro é a entrevista a Marcelo Viñar, que publicamos no volume 38 (69) de 2005. E o segundo é o artigo "Análise didática: uma história feita de críticas", de Fabio Herrmann, publicado no volume 41 (74) de 2008.

Tive o privilégio de entrevistar pessoalmente Viñar em seu consultório em Montevidéu. Foi uma conversa rica e agradável que durou cerca de duas horas. Impressionou-me sobremaneira o fato de a transcrição da gravação e o resultado final como foi publicada a entrevista ficarem tão próximos. Viñar falava calmamente, com clareza e organização notáveis de pensamento. Seu depoimento revela um analista original, inquieto com suas questões e liberal em suas propostas. Sobre o encontro analítico, nenhum dogmatismo; propõe ter o encontro entre analista e paciente a frescura de um encontro original. Sobre a teoria psicanalítica é enfático ao afirmar que psicanalisar não é aplicar teoria, mas partejar um saber do encontro analítico. Salienta que a criação do saber que se descobre na análise vem do paciente, e não da teoria.

Entre outras contribuições importantes da entrevista, ainda quero ressaltar a abertura para a cultura. Viñar nos convida a dialogar, ler, pensar junto com os historiadores da contemporaneidade que pensam o mundo de hoje e suas mudanças para que possamos questionar nossas noções mais básicas. E sobre a escrita do analista propõe que ela funciona como uma âncora capaz de dar sustentação à matéria errática da associação livre e atenção flutuante. A escrita reúne e dá forma ao informe: "é como um momento de calmaria para depois poder reatar essa vertigem que é sempre estar nessa atitude de associação livre".

O outro texto que destaco como merecedor de uma retomada é o clássico "Análise didática: uma história feita de críticas", de Fabio Herrmann. Trata-se de um trabalho de fôlego cujo teor crítico e irônico reforça sua atualidade. Nele, Herrmann faz importante revisão de trabalhos que tratam da análise didática ao longo da história da IPA que irão embasar suas reflexões. Reconhece que os diferentes textos apontam críticas muito pertinentes à análise didática. E, ao refletir sobre cada uma delas propõe, com certa ironia, que aquilo que se critica é exatamente aquilo que se pratica.

O texto de Herrmann, ainda de grande atualidade e coerente com a obra do autor, merece ser relido. Sua leitura servirá não somente para a ampliação do âmbito de nossas reflexões sobre o assunto, mas nos devolverá o prazer temperado pela pitada de humor caro também na obra de Freud.

 

Entrevista com Marcelo N. Viñar1 : Tornar-se analista2

No dia 15 de julho de 2005, em Montevidéu, Marcelo Viñar recebeu Leda Barone, editora deste Jornal, para uma entrevista sobre o tema: "Tornar-se analista; variâncias e invariâncias". Marcelo Viñar é conhecido entre nós pela liberdade e força de seu pensamento teórico e clínico, que transparecem tanto em seus escritos como em sua forma crítica de se posicionar diante de seu ofício. Entre seus trabalhos publicados destaca-se o livro: Psicoanalizar hoy. Problemas de articulación teórico clínica, publicado por Ediciones Trilce em 2002.

Leda Barone - Marcelo, gostaria, inicialmente, de agradecer sua gentileza de nos conceder esta entrevista para o Jornal de Psicanálise. Em seu livro Psicoanalizar hoy o senhor propõe: "A perícia de um psicanalista não consiste tanto em ter uma boa teoria, mas em sustentar, como parteiro, o itinerário de uma interrogação que sabe ou descobre algo sobre um fundo de incerteza e ignorância". Frente a esta postura, que também consideramos verdadeira, como educar o psicanalista? Que questões esta hipótese levanta para a formação do analista?

Marcelo Viñar - Depois de Freud, as orientações, as escolas e os autores em psicanálise são múltiplos. Fala-se de kleinianos, lacanianos, bionianos, winnicottianos. Parece-me que isso é uma maneira de desembaraçar-se do problema. Sou partidário da expressão de Lacan de que cada analista somente pode autorizar-se a si mesmo. Em francês, disse: L'analyste ne s'autorise que de Iui même. Ele não é um aplicador de teorias como um analista de sistema, e isso transforma o trabalho analítico em trabalho de descoberta, em trabalho com o inesperado, em uma tarefa educativa. Se a teoria precede o emergente na sessão, estamos num idealismo no qual aplicamos teorias. Minha afirmação no meu livro é uma reação contra este fato, ou seja, de que muitos materiais clínicos são como fotocópias, como decalques de verdades sabidas por autores famosos. Convertem os psicanalistas em catequistas.

Penso que há algo da singularidade de cada par analítico, há algo do privado de cada par analítico que deve levá-lo a empenhar-se em parir sua originalidade, sua singularidade tal como ocorre no par amoroso, como ocorre na díade mãe-filho, como ocorre com os enamorados. Pode-se dizer que o amor de um casal é o mesmo desde Adão e Eva. No entanto, todos os humanos, quando descobrimos o amor, o inventamos como se fosse a primeira vez. É a esta situação inédita e original, que se reproduz como uma descoberta, como uma emergência, como um ato inaugural - como a mãe que amamenta -, que Freud chama "a surpresa".

Nesse sentido, as teorias preestabelecidas podem ser orientadoras ou fundamentos do que se deve fazer. Creio que os regimes totalitários que se empenham em dizer o que é uma boa mãe, em que há, por obra da religião ou por obra da ideologia, um preceito que nos obriga a isso, cerceiam a liberdade humana e cerceiam a criatividade humana. Creio que o encontro do analista e paciente deve reproduzir a frescura de um encontro original. É Octavio Mannoni que em seu livro Descobertas do inconsciente (A outro cena) fala da análise original, desse movimento de assombro, desse movimento de descobertas que fixa a instalação de um diálogo analítico.

É na experiência da própria análise e na experiência da supervisão que algo desta originalidade terá que ser reaberto. Creio que é uma função do trabalho de supervisão (não do trabalho casual, ocasional, de um supervisor visitante, mas do trabalho ao longo do tempo, um mínimo de dois ou três anos e um máximo, infinito), no qual o analista contrasta com os colegas distintas experiências, que cada analista possa, ao final encarregar-se de seu próprio trabalho. Assim, a função do supervisor não deve ser a de ensinar, não deve ser a de doutrinar, mas, ao contrário, deve ajudar o analista em formação a ver seus pontos cegos, a ver seus bloqueios, a ver onde se obtura sua liberdade da escuta. É função também da supervisão fomentar esse momento de surpresa, de assombro, em que ele vai construindo um modo próprio de ajudar o outro.

A imagem do analista como um parteiro ou um cirurgião vai no sentido do que propõe a revolução freudiana, ou seja, no sentido do que Freud diz em suas correspondências: "Não somos nem médicos nem pastores". É uma báscula fundamental na experiência terapêutica porque o saber se desloca de um saber centrado no acadêmico a um saber centrado no paciente. Por isso no meu livro digo que a psicanálise se funda na fecundidade de um equívoco. O equívoco é que o paciente outorga ao analista uma ficção de saber total, como a criança pequena acredita na onisciência dos pais. E o analista acredita que, quando ajuda seu paciente, ajuda seu analisando a mergulhar por caminhos inesperados de suas associações livres. Quando propomos a regra áurea, a regra da associação livre, o que estamos propondo é algo impossível, para detectar onde está o obstáculo, onde a livre associação se freia, se obtura, e então, marcando, o analisando descobre veios inéditos, veios originais que o levam a saber de si mesmo, nessa exploração, coisas que não sabia antes da análise. Mas o saber sobre si mesmo, a capacidade de saber sobre si mesmo, é algo que o analista pode facilitar, mas não pode ensinar, senão o saber se converte em orientação pedagógica e o analista se converte em pedagogo ou em pastor de almas.

É muito difícil renunciar à própria ideologia. O analista deve estar muito atento ao que é seu e o que vem do paciente. Isso eu o devo à minha própria experiência de análise, e isso é fundamental. Em algum momento pude reconhecer - me distingo de meus analistas no aspecto de minha sensibilidade individual, também de meus gostos, de minha ideologia política, em distintas sensibilidades. Provavelmente absorvi, aprendi, senti nas atitudes dos meus analistas que eles não me doutrinavam. Parece-me que isto de não doutrinar, que está na origem mesma da psicanálise, é uma verdade sempre postulada, sempre traída, porque muitas vezes traímos o mandato de não doutrinar, e que deve ser repetido cada vez no contexto de cada época.

Tudo isso a respeito de sua primeira pergunta, sobre a noção de parteiro, que é uma metáfora para dizer que o saber, que a criação do saber, que se descobre na análise vem do paciente, e não da teoria psicanalítica.

Leda Barone - Nesse sentido, as características do próprio paciente são muito importantes.

Marcelo Viñar - E o resgate de sua originalidade e de sua singularidade.

Leda Barone - Há uma tendência atual para a IPA delegar aos Institutos de formação a decisão de regulamentar o número de sessões relativas à análise didática. Em nosso Instituto, ainda temos a obrigatoriedade de que o candidato faça quatro sessões semanais durante cinco anos e a exigência de que a análise didática seja realizada ao mesmo tempo que os seminários clínicos e teóricos, e a supervisão. O que o senhor pensa sobre isso e como isso se dá no Uruguai?

Marcelo Viñar - Esta pergunta tem uma longa história. A exigência de simultaneidade da análise pessoal, dos seminários teóricos e da supervisão vem do modelo Eitingon proposto nas primeiras décadas do movimento psicanalítico. Por este modelo entendia-se que a concomitância no tempo do tripé formativo dava a possibilidade de confrontar e contrastar a experiência, servindo assim para sustentar a formação - como um tripé ou um tamborete, que somente se sustenta de pé se tem seu apoio nos três pés ao mesmo tempo. Há um momento teórico, um momento da experiência, em que nós mesmos somos o objeto dessa experiência e há um aspecto da transmissão na supervisão. Esta simultaneidade do tripé não tem sido nunca questionada. Acredito que todos os modelos que conheço sustentam como desejável que a experiência de formação tenha essa concomitância e essa simultaneidade. Começar consigo mesmo na análise pessoal e, depois de certo tempo, iniciar a formação teórica e a experiência de supervisão. A interdependência desses três eixos faz com que se favoreçam mutuamente.

A intensidade da experiência analítica provavelmente está ligada à frequência. Freud trabalhava seis vezes por semana, num lugar onde se chegava à sua casa de bonde, onde o dia a dia era muito mais lento. Se Freud escolheu trabalhar seis vezes por semana, é porque existe um trabalho entre as sessões. Como na música, uma nota que se segue à seguinte, um acorde que se segue ao seguinte, é, às vezes, na melodia, no conjunto e na sequência, que se pode encontrar um ritmo, um movimento que não se encontra na experiência isolada de uma sessão. Em função disso, acredito que há uma certa insistência na frequência. Esta aspiração é legítima e denominou-se na IPA "alta frequência", o máximo possível.

Todos nós devemos ter desejado, em algum momento de nossas análises, fazer sete sessões semanais. São utopias que temos que conjugar com a vida real.

O crescimento da urbanização no século XX - São Paulo tem vinte milhões de habitantes, Londres tem quatorze mil etc. - não permite que se imponha a um cidadão uma análise como nos tempos de Freud.

As análises, que nos tempos de Freud duravam um ano, atualmente duram três, cinco, sete, onze ou 25, mas, digamos, na média, de cinco a dez anos. Não podemos impor isso a uma pessoa, já que, para fazer sua análise pessoal, temos que contar uma hora para ir, uma hora para analisar-se e uma hora para voltar. É um custo de energia e de monotonia que não é rentável. Não é verdade que more is better, que mais seja melhor. Requer-se, então, um certo ritmo, uma certa cadência, uma certa sequência.

Na IPA, nos últimos dez anos, foi considerado um pecado o fato de os grupos franceses e o grupo uruguaio reconhecerem três sessões. E certo grupo fundamentalista dos anglo-saxões estabeleceu uma espécie de verdade dicotômica, de verdade religiosa, de que mais de quatro sessões semanais era psicanálise e menos de quatro, psicoterapia psicanalítica. Essa simplificação é muito grosseira, é torpe, é insustentável. Há pacientes com os quais tenho conseguido estabelecer o ritmo e a qualidade de um trabalho analítico com duas ou três sessões semanais e outros pacientes com os quais não tenho podido. Então, no mundo de hoje, e confiando na perícia dos analistas, acredito que o setting, o dispositivo e a frequência não devem ser um dispositivo de confecção imposto por uma organização central, como uma bula do papa que vem do Vaticano, mas que cada cultura local deve avaliar o que é o desejável e o que é o possível. Nossa experiência no Uruguai é que as análises em que oscila a frequência - não pode ser menos do que três vezes na semana - há momentos, meses ou anos, de quatro sessões ou cinco e, regularmente por razões socioeconômicas, por razões de oscilações da vida (são candidatos jovens em formação que têm de ganhar a vida, que têm de fazer clínica, têm de trabalhar para ganhar a vida), não se pode impor esta frequência. Em si a formação já é muito exigente. A metade do tempo é para ir ao seminário, para ir à supervisão, para ir à sessão. Além do mais, estes candidatos têm de construir suas famílias. Pedir-lhes uma frequência de cinco vezes nos parece, na realidade, uma exigência desmedida e sem sentido.

Reconheço que a qualidade de um trabalho analítico muitas vezes é igual, ou melhor, com três vezes do que com cinco. Recomendamos que nos momentos de regressão, quando a temperatura transferencial assim o requeira, aumente-se a frequência ainda que sacrificando parte dos honorários do analista. Porém, a ideia básica ou o princípio básico é que a frequência não é o que determina a qualidade de um processo analítico, ela é um elemento entre muitos outros que possibilitam a criação de um clima transferencial que permite a elaboração da sequência de um processo. Até em momentos de emergência se tem podido diminuir para duas sessões semanais. A questão está dada pela flexibilidade e no confiar que a dupla analítica possa fixar, de acordo com o desejado e de acordo com o possível. Aqui, no possível não conta somente o dinheiro. Também pesa o tempo. Pesa a realidade socioeconômica do Terceiro Mundo, pesa o tamanho das cidades, o tempo que levam os transportes ao se deslocarem de um ponto a outro da cidade.

De modo que exigir cinco vezes, às vezes, é mais improdutivo e determina o estabelecimento de rituais regressivos infantilizantes, do que quando se dá a liberdade de criar um setting, um dispositivo flexível, em que o analista, a formação e o candidato o estabeleçam. Isto vale tanto para o analista quanto para as análises de formação e também para as análises terapêuticas, que coincidem em muito.

O que o analista tem de avaliar é a têmpera e a qualidade dessa análise para definir a frequência, e não determinar a frequência primeiro pensando que ela vai determinar a qualidade. Não se pode pôr a carroça na frente dos bois. O que se deve buscar é a construção de um espaço analítico, a construção da possibilidade de criar um espaço analítico dentro do qual a frequência é um ingrediente e um elemento a levar em conta.

Nos países anglo-saxões, Inglaterra e Europa do Norte, ainda continuam esperneando e querem retornar com um fundamentalismo, que acredito ser arcaico, aos moldes de "se não são quatro como mínimo, não há psicanálise". Parece-me uma acusação tosca. No Uruguai e em outros lugares onde há muita experiência de tratamento com três sessões semanais, percebe-se a mesma qualidade do produto, ou não menos qualidade que com uma frequência maior. Eleso fazem, não sei por quê, mas hão de ter seu fundamento.

Não se pode esquecer que em muitos países, como Inglaterra, parte da França, parte da Suécia, quem paga a análise não é o candidato, mas o seguro-saúde. Há um terceiro que paga, um terceiro estatal. Essa variável deve também ser estudada. É diferente quando é o próprio candidato, em um contrato bipessoal, que, com seu trabalho e seu suor, paga suas sessões, paga seu analista, de quando é um terceiro que intercede, que dá um direito, mas um direito no qual não há que suar nem trabalhar com o próprio empenho para pagar. O fato de pagar e o fato de negociar quanto se paga; a importância da agressão e da hostilidade que isso habilita e abre; e a hostilidade, a tensão e a violência que o dinheiro gera nos intercâmbios de uma consulta, tudo isso se perde quando há um terceiro que paga.

É por isso que a IPA pede aos Institutos a responsabilidade de garantir como eles monitoram e como são auditores da qualidade de seus egressos. É mostrando nos congressos, mostrando nos intercâmbios didáticos e na confrontação com o material (clínico) que podemos fazer e discutir ao infinito o que é uma boa análise e por que três é melhor que quatro ou quatro é melhor que três. Este é um problema que nunca será encerrado, que é interminável e para um debate indefinido. Importante é explorá-lo porque o que é certo hoje pode burocratizar-se dentro de cinco anos, porque não há verdade perpétua nisto. Não sabemos como vai ser o mundo dentro de vinte anos, se sabemos que o mundo de hoje e a moral do mundo de hoje, a sexualidade do mundo de hoje, não é a mesma que a do tempo de Freud, a moral vitoriana. E esta evolução da história social influi no trabalho analítico. O inconsciente é atemporal, porém se expressa através das mutações da história, e isto sempre deve ser trabalhado na provisoriedade, por não mais que três, quatro ou cinco anos; desejamos que devemos revisar isso a cada cinco anos, senão caducam e se burocratizam.

Leda Barone - Em seu artigo "Subjetividad y mutación civilizatoria" o senhor nos diz que o que mais inquieta o psicanalista de hoje é saber como caracterizar a subjetividade e os laços sociais de nosso tempo. Nele, o senhor se pergunta: a que podemos chamar organização subjetiva ou simplesmente sujeito humano neste mundo globalizado, vertiginoso, impredizível, retórico e ébrio de acontecimentos e novidades inesperadas, imprevisíveis, que apenas podemos chegar a enumerar e que estamos cada vez mais longe de poder metabolizar? Também, apoiando-se em Kristeva e Cabanne, o senhor afirma que há nexos mais ou menos estáveis entre cultura e psicopatologia. A partir dessas considerações, como o senhor pressupõe a formação do analista? Que aspectos devem ser privilegiados, o que deve permanecer e o que é acessório?

Marcelo Viñar - Não quero nisto ser preceptista, dogmático, e afirmar como se eu tivesse respostas claras. Creio que este seja um tema para reflexão constante, um tema aberto, um tema no qual devemos seguir pensando e investigando.

Para mim, em psicanálise, a reflexão e a investigação muitas vezes coincidem. O certo é que o mundo nas últimas décadas, todos os seres humanos o concebem, não é o mundo do meio do século XX, quando começamos nossa tarefa psicanalítica, muito menos o tempo da fundação da psicanálise e do estabelecimento dos pilares básicos da teoria freudiana. Os referentes sociais que organizam a mente, como a família, a função paterna, a função materna, o referente do trabalho remunerado, o referente da sociedade, a sexualidade, o referente da noção de norma, a noção de transgressão da norma, a relação entreo público e o privado, em trinta anos sofreram mudanças importantíssimas que levaram muitos autores e a mim mesmo a falar de mutação civilizatória. Então, ancorarmos nossos dogmas de função paterna, função materna tais como eram em 1920 ou 1950 nos conduz a um dogmatismo empobrecedor. Temos que pensar as novas realidades, o que entendemos hoje por sexualidade. Pode haver pontos de permanência e eternos, porém o sentido de fobia à defloração ou os ritos de iniciação sexual em minha geração, dos da terceira idade, e na geração atual são processos historicamente distintos. Creio que temos que dialogar, ler, pensar junto com historiadores da contemporaneidade, com historiadores da sensibilidade. Temos que ler todos os que pensam o mundo de hoje e suas mudanças. Não quero citar autores porque privilegiaria alguns, porém há uma plêiade, uma multidão de autores que assinalam a intensidade e a velocidade das mudanças. Para quê? Para questionar nossas noções mais básicas. Função paterna ou função simbólica ou função de corte e função materna e função de apoio ou de narcisação têm hoje uma flexibilidade que é distinta da família de antes. Todos os analistas, suponho, celebramos a mudança mais importante no século XX, a emancipação da mulher, como alguns a situam. Antes a família tradicional era a do homem poderoso, do homem que saía à luta e era o ganhador do pão. A mulher ficava na sua casa, educando as crianças. Essa figura de família tradicional está obsoleta, está mudada. Temos taxas de divórcio enormes, as famílias recompostas, tudo isto desorganizou a instituição familiar. Esta instituição milenar que é a família mudou. Isto, sem dúvida, incide em nossa prática e, sobretudo, quando falamos com os jovens, onde há um intervalo geracional, nossa primeira tarefa como psicanalistas é não levá-los violentamente a que pensem como nós e se adaptem a nossos registros, mas mudar a nós mesmos. Somos nós que temos que ver, no teatro, na literatura. no cinema, os novos registros. Quando vou com meus filhos ao cinema para assistir a um filme como Trainspotting, por exemplo, digo: "Que filme violento!". E meu filho me diz que não é violento. Ou coisas que vemos no teatro ou na televisão quando se levam à cena pública aspectos de recato e pudor que na família tradicional permaneciam na esfera privada. Tudo isto faz com que as noções de sexualidade, de prazer, de norma e de transgressão estejam completamente modificadas e, além de tudo, não há referenciais claros. Na minha geração havia um referencial claro, o discurso da religião, o discurso do Estado, e é verdade que isso capacita para a submissão, mas também capacita para a rebeldia. A gente sabe que há um referente ao qual se submeter ou ao qual se opor. O problema é que esses referentes de hoje perderam consistência, perderam unidade, são falhos, estão estourados, estão fragmentados, o que leva muitos a dizer: "Isto é uma desordem" e desejar um retorno restaurador. Acredito que não, que o que temos de fazer é um trabalho na intimidade do que no espaço público está estourado e fragmentado. Não devemos desistir e olhar para outro lado, mas ver como se constitui a subjetividade de nossos adolescentes em relação ao casal, em relação à sexualidade. Da mesma forma devemos tratar do que antes chamávamos a homossexualidade, que durante milênios ou durante séculos até a modernidade ocidental foi tratada como enfermidade e como delito, e hoje está validada e legitimada como uma escolha e é um atentado aos direitos individuais não reconhecê-la. Tudo isto muda nossa prática, muda nosso modo de dialogar, sobretudo quando há um intervalo de geração entre analista e analisando. Eu quando analiso, quando trabalho com adolescentes, gasto a maior parte de energia em entender seu idioma, entender sua lógica, colocá-los em posição de instrutores e a mim em posição de aluno para ver suas lógicas de funcionamento, suas lealdades, seus critérios de lealdades, fidelidades, noção de adultério e noção de engano sexual na geração. No caso da sexual idade é claríssima a hipocrisia da moral vitoriana, em que se dizia que a mulher devia chegar virgem ao matrimônio. O mandato de virgindade era desobedecido, mas sempre na clandestinidade e no recato. Hoje, excetuando a Igreja e outros setores bem definidos, ninguém defende isso. O direito dos jovens a exercer sua sexualidade coloca novos paradoxos em que os jovens chegam a ter uma emancipação no âmbito sexual muito antes que no âmbito do sustento e do trabalho com rendimentos. Nós, primeiro, buscávamos uma maneira de sustento no trabalho, e então isso nos legitimava para formar um casal estável. Os jovens de hoje muitas vezes têm relações estáveis prolongadas, pelo menos nas camadas sociais da média e alta sociedade com as quais nós, analistas, trabalhamos. Acredito que em todas as camadas sociais isto é assim. Há todo um progresso com anticoncepcionais. Houve mudanças de mentalidade no sentido de uma legitimação da vida sexual ativa. Agora &eacut e; como um movimento pendular. Antes sabíamos quando uma mulher ou um homem estava amadurecido para iniciar sua vida sexual. Havia uma espécie de mandato tácito de amadurecer e postergar. Agora o mandato dos púberes com doze, treze ou quinze anos é que ser casto e virgem, em lugar de ser um orgulho, é uma vergonha.

O mandato grupal da geração é um mandato de defloração precoce e às vezes prematura. Isto parece ser uma conquista de liberdade, mas, às vezes, pode ser o contrário, uma perda de toda a poesia que há no descobrimento da vida erótica e da sexualidade, além das angústias, das inibições, além dos transtornos. Então estamos num mundo que nos solicita a nós, psicanalistas, e a que não devemos responder de um modo normativo, como se estivéssemos fazendo doutrinas, fazendo predicações, mas devemos ser curiosos, atentos para descobrir quais são os novos conflitos que estes novos tipos de comportamento suscitam. Como esta cultura impõe submissão e transgressões e lealdades distintas das rebeldias e das lealdades a que nos obrigavam em nossos tempos. Também está presente a vertigem do sucesso. A noção de acontecimento em nossas épocas de jovem tinha uma cadência; agora, as mudanças culturais e os produtos culturais são tão intensos e tão rápidos, que nos perguntamos que tipo de inscrição subjetiva permite esta vertigem do acontecer. Hoje concebo o espaço analítico como um espaço em que se deve promover uma dilação, um remanso, um tempo de calma como uma lentidão no qual se possa pensar com outra paz.

Às vezes, com a vertigem, estão também os preconceitos. Os jovens de hoje, em vez de se inscrever simbolicamente e com palavras, fazem inscrições na pele. Eles inscrevem-se com tatuagens ou com piercing para tornar inesquecíveis os fatos que por serem tão fugazes podem se tornar triviais e anódinos. Ao passo que, para nós, os marcos que se constituem numa história pessoal - o momento da defloração, o momento do descobrimento do amor - podem ter uma inscrição mais estabelecida, mais sólida.

Mais do que de um modo normativo, de predicadores, deveríamos ser exploradores, atentos e interessados, e não preconceituosos, de nosso saber. É a atitude exploradora de Freud. Freud também era ignorante com as histéricas quando começou a trabalhar com elas. Bom, temos de reconhecer nossa ignorância sobre as novas formas de subjetividade e de vínculos sociais nas gerações de jovens e aprender um novo idioma. E isso, temos de fazê-lo no nível pessoal, temos de fazê-lo no nível grupal, e no nível coletivo, e vai nos levar a vida toda.

Leda Barone - A formação do analista dava-se, tradicionalmente, de forma exclusiva dentro dos Institutos vinculados à IPA. Lentamente isto se vem modificando, de início pelos diferentes grupos lacanianos e, em seguida, em outras instituições fora da IPA. Recentemente encontramos um número cada vez maior de pessoas que buscam sua formação em psicanálise nas universidades, em programas de mestrado e doutorado junto com supervisão, grupos de estudos e análise pessoal. Podemos ignorar estes fatos? Qual é a importância da universidade na formação do analista? Qual é a relação entre o Instituto e a universidade no Uruguai?

Marcelo Viñar - Bom. Onde se aprende? Aprendemos onde nos ensinam, mas às vezes aprendemos muito, não nas instituições educativas. Isto começa na escola. Quando vamos à escola também aprendemos na rua. Aprende-se também com amigos. Aprende-se nos momentos mais inesperados. Acredito que, embora haja instituições que se preocupem em organizar o processo de ensino-aprendizagem, aprender é um mecanismo perpetuamente aberto na mente humana, das reformulações do repertório de conduta, de atitudes e valores em contínua transformação. Que os Institutos que integramos se preocupem com sua excelência e sua qualidade, parece-me imprescindível.

Em cada lugar, a qualidade de formação no interior dos Institutos é muito diversa e muito difícil de avaliar. A psicanálise, para o bem ou para o mal, tem ganhado muita popularidade. Fala-se de psicanálise por toda parte, para o bem e para o mal. É muito difícil estabelecer os limites, uma vez que a psicanálise é um discurso da moda.

Há muitos países onde a psicanálise no âmbito universitário tem sido importante. Acredito que é um equívoco pensar que é a instituição que garante a qualidade de seus formandos. Na Índia há uma experiência com informáticos em que num lugar se programou a excelência com muito rigor enquanto em outro lugar não se programou tão bem e foi algo caótico. Quinze anos depois, no lugar caótico o resultado foi melhor que no lugar onde o rigor dos controles havia sido mais vigiado e mais sistematizado. Como disse José Bleger, há meio século, "alguém aprende não porque lhe ensinam, mas porque está em atitude de aprender". O dom de como e com quem se aprende, parece-me, não oferece nenhuma garantia que seja externa ao sujeito que está em formação. Na realidade, a responsabilidade sempre está no indivíduo, no candidato em formação. O restante é como uma loja, ou várias lojas ou mil lojas, onde podemos escolher a roupa mais elegante, a de melhor ou pior gosto. Então, eu confio muito em que haja lugares formais e lugares informais de formação e que isto seja alguma coisa mais para se orgulhar, e sem limites dogmáticos, sem brigas entre oficial e não-oficial, com alguma garantia para que não haja desvios. mas com certa desordem para habilitar-nos para a diversidade.

E sobretudo que não seja uma briga de instituição ou qual instituição é melhor que as outras porque senão cairíamos numa situação como as dos clubes de futebol: "Meu time é melhor". Porém, para que meu time seja bom, é preciso que haja muitos outros times que joguem bem futebol, e para que exista um bom futebol não é suficiente que exista um bom time, mas é preciso haver dez ou vinte times, bons times. Seja Corinthians, seja São Paulo ou Grêmio ou Botafogo, tem que haver muitos, distintos, para que no campo haja jogos onde se veja onde estão os bons e onde os não-bons. Acredito que a guerra de instituições já há tempos é uma guerra inútil, como todas as guerras, que distrai do fundamental, que é transmitir uma atitude de aprender aos estudantes, que é estimulá-los. Que possam ir a todas as igrejas, a todas as capelas, que aprendam o que é bom e que aprendam o que é ruim porque também aprender o ruim ajuda a discriminar. O trabalho de discernir o que é o bom e o que é o ruim tem que estar sempre no interior do sujeito, e não é a instituição que vai lhe dar a pureza porque não há instituições puras e instituições impuras.

As guerras de filiação são guerras para ocultar as próprias dificuldades, a própria ignorância, e não se deve colocar a guerra institucional em primeiro lugar. A nossa guerra é contra a drogadição, contra a psicose, contra o mal-estar neurótico, contra o habitar os hospitais, os serviços educativos, os serviços de saúde, é na ação, no campo da pesquisa. Penso que as guerras de doutrinas ou de capelas, na realidade, fazem mais dano do que favorecem. Acredito que a melhor forma seja tratar de que nosso time seja bom e haja muitos times adversários porque dos adversários aprende-se muito. Nisso, eu sou bem ecumênico, pouco eclesiástico de minha própria igreja, e, às vezes, aprendo mais das outras igrejas porque cada grupo gera seus próprios descobrimentos como gera também seus próprios pontos cegos, suas próprias estereotipias. Acredito, então, como diz Hannah Arendt: onde se ganha a qualidade humana é na diversidade. Às vezes são guerras de clientelas, ou seja, sendo o melhor, terei mais pacientes.

Nestes momentos as guerras teóricas são, às vezes, guerras de prestígio e guerras mercantis, guerras de clientela.

Leda Barone - E isso acaba não sendo útil para a formação.

Marcelo Viñar - Isso não é útil para a formação! A questão está em que o estudante possa escolher como e onde aprender e se dar o tempo para percorrer seu caminho.

Leda Barone - A Comissão de Pesquisa e Universidade de nossa instituição, coordenada por Fabio Herrmann, vem propondo a discussão nos seguintes termos: acrescentar às formas de pesquisa aceitas pela IPA - a pesquisa empírica e a pesquisa conceitual - a pesquisa com o método psicanalítico. Defende esta ideia com o seguinte argumento: "Numerosos analistas que trabalham com o método psicanalítico anotam seus casos, os discutem e escrevem textos. Dispomos de um volume de observações e de reflexões dificilmente superados por outras áreas do conhecimento. Parece mais prático ajudar os analistas a transformar seu material em pesquisa comunicável, que adaptá-los a outro gênero de pesquisas. Os melhores resultados na exploração da psique humana foram conseguidos com o método psicanalítico. Por que não reconhecê-lo como instrumento válido para a pesquisa e apoiar seu desenvolvimento? As pesquisas de Freud sobre a clínica e a cultura, assim como sua produção teórica, foram conduzidas com o método psicanalítico. Não parece razoável abrir mão de sua forma de pesquisa". Como o senhor vê esta questão? Como deve ser a pesquisa em psicanálise? De que maneira e a partir de que elementos se posiciona o analista como investigador? Qual a importância da pesquisa para a formação do analista?

Marcelo Viñar - Esta é a pergunta mais fácil de responder porque estou cem por cento de acordo. Houve uma consulta recente do comitê para o futuro da pesquisa que a IPA vai financiar, e tanto Fabio Herrmann, de São Paulo, como eu, do Uruguai, escrevemos, em termos parecidos ou diferentes, exatamente na linha que a senhora descreve em relação a esta pergunta. Eu subscrevo quase cem por cento o que vocês dizem. Poderia me deter aqui. Poderia dizer: "Estou cem por cento de acordo" e mais nada.

Somente para realçar, poderia acrescentar que Freud mesmo sustenta que é inconcebível que um ato psicanalítico não seja um ato de pesquisa. Disse: uma das credenciais de prestígio de nossa ciência - cito de memória, não sei se é textual -, um signo de excelência e de prestígio de nossa ciência, é o fato de que coincidam no mesmo gesto o ato de investigar e o ato terapêutico. Isto é o que Freud disse nos escritos técnicos de 1912. Faz cem anos, faz noventa anos que Freud o está dizendo. Que nós o digamos agora como uma reafirmação, como uma luta, é como esse espírito subversivo, revolucionário. O pensamento freudiano sempre pode ser traído, sempre pode ser esquecido, e sempre a especificidade da psicanálise está dada por seu método, como a senhora bem disse aqui.

O que define a psicanálise é a especificidade de seu método de busca, de meter-se no interstício do sabido para questioná-lo. É isso o originário da psicanálise, é isto o fundador do pensar psicanalítico, era isto o que sustentava Freud. Assim, quando a pesquisa em psicanálise se faz empírica, justamente esta coisa germinal é sufocada.

Não estou dizendo que sou contra a pesquisa empírica. Chamo-a, como ilustração, investigação epidemiológica, a qual é muito importante. A nós, servem os descobrimentos da antropologia, servem os descobrimentos das neurociências, servem os descobrimentos da sociologia, porque nós, como disciplina, somos uma ciência de interstício. Nós buscamos os discursos de saber que se constituem e nos introduzimos nos interstícios, em que esses discursos para se organizar deixam como zona desorganizada. Assim como quando arrumo minha casa e sempre há um lugar em desordem. Arrumamos toda a casa para que fique linda, mas sempre haverá esse canto do não explorado, do que não se sub-mete ao conhecimento logocêntrico que nossa ciência propõe. É ali onde a psicanálise pode dizer uma palavra original e distinta. Esse é o método psicanalítico de perceber o que da construção de um discurso racional, como pretendem a antropologia e a neurociência, o que escapa desse discurso racional e abre outro veio inexplorado. É ali que assoma o específico do método psicanalítico e ilumina. Por isso Leclaire afirmava que o psicanalista tem como vocação descobrir o que não foi dito sobre algo, o que permanece oculto, aquilo que permanece com uma face não visível. Fala-se que a cena fantasmática é uma outra cena, mas há que montar uma cena visível para que a outra cena se desenhe como sombra. Basicamente eu concordo com isto. Creio que nós, analistas, em relação à transmissão e à escritura, fazemos pesquisa quando tratamos de pensar um problema. Uma pesquisa empírica ou analítica pode ser de maior valor, de menor valor ou de valor nulo. Eu, que sou um clínico da psicanálise, por ser clínico, me considero um pesquisador. Não necessito buscar nada dessa sistematização no empírico ou conceituai para saber que, se estou disponível para sistematizar a busca de alguma coisa inédita e que me surpreenda, aí estou na atitude e num gesto de investigação. Assim, concordo cem por cento com esta formulação.

Leda Barone - Qual é a importância da escrita na educação e no desenvolvimento do psicanalista?

Marcelo Viñar - Escrever é difícil! Dizem-me que tenho facilidade para escrever e cada vez que o dizem me irrito, porque sei que escrever é difícil para todos. Um dos pilares da psicanálise é a livre associação e a atenção flutuante. Ou seja, é uma matéria muito fluida, muito errática. É como o ar, que está em toda parte, mas, quando tentamos pegá-lo com as mãos, não sabemos quando o agarramos. Penso que a escrita funciona ali como uma âncora, como o limite, como alguma coisa que pode dar um ponto, como um fio e uma agulha solta ao dar uma pontada. A escrita é como dar a pontada a tudo isto que está voando, errático, por todo lado. Ela reúne, dá forma ao informe. É como um momento de calmaria para depois poder reatar essa vertigem que é sempre estar em atitude de associação livre. É um momento de ancoragem, é um momento de pausa, como se no meio de um jogo ou no meio de uma batalha se fizesse um momento de repouso. Que implica ver onde estamos situados.

No Instituto de Psicanálise de apu, da Associação uruguaia, a experiência de escrever se cultiva continuamente e se consolida. Os estudantes desde o primeiro ano têm de escolher um ou dois seminários, fazer uma nota falando sobreo que escutaram, do que elegeram e trabalharam, tomá-lo e sistematizá-lo com palavras próprias. As anotações de seminários são obrigatórias creio que nos três primeiros anos.

Outra experiência é que para concluir uma supervisão, um trabalho de vários anos de supervisão, dois, três, quatro ou cinco anos de supervisão, pede-se o que se chama uma sessão comentada. Não necessariamente uma sessão, mas o estudante tem de descrever uma sequência clínica com um paciente onde fale do paciente, fale de si mesmo, do que ambos disseram, e tem de escrever por que disse o que disse, em que o fundamenta; tem de discutir seus acertos e seus erros.

O trabalho de sessão comentada é como um trabalho preparatório que vai tornando gradual o modo de graduar-se no Instituto, que é a apresentação do trabalho de aderente. Este é um trabalho escrito que se apresenta, seja diante de toda a instituição, seja num grupo reduzido que o avalia, e em que o artigo que o regulamenta é claro e eloquente. Diz: "O senhor tem de fazer um trabalho clínico onde mostre como trabalha como analista". É uma formulação muito simples e muito fácil de dizer, quase impossível de cumprir, porém que dá muita liberdade. O importante é ele mostrar como trabalha e justificar por que se trabalha desta maneira, como recorre às teorias, como as usa e como as esquece. Pede-se que diga por que escolheu este caminho e não outros.

Desde suas origens este grupo uruguaio foi ortodoxamente kleiniano. Depois vieram pessoas do pensamento francês: Leclaire, Mannoni, McDougall, André Green. É um grupo heterogêneo nas preferências de suas referências teóricas e há muitos de nós híbridos, que não nos reconhecemos nem como francófilos nem como anglófilos. Sempre digo que sou viñarista ou viñariano, não sou nem lacaniano nem kleiniano. Obviamente estes autores marcaram-me e muitos autores marcam meu perfil de psicanalista. Tenho muitos nomes de autores famosos e não famosos os quais considero meus mestres que deixaram seu imprinting, mas, como diz o Fausto de Goethe: "O que herdas, deves torná-lo teu para merecê-lo". Então isto de produzir a escrita como um momento de ordenamento desse estado segundo que é o estado de atenção flutuante e associação livre, parece-me um imperativo da formação. Acredito que se sofre muito e que muitas pessoas alegam dificuldade para escrever, mas ainda assim é um empenho. Agora eu o faço sempre, pelo menos algumas vezes me parece que é exigível, que é necessário como o momento de decantar o que no fluir das palavras fica muito no ar.

Leda Barone - Há outras questões sobre a formação do analista que o senhor gostaria de comentar?

Marcelo Viñar - A senhora sabe que estou ficando velho, e é claro que gostaria de comentar muitas coisas. A transmissão entre as gerações é uma delas, trabalhamos muito e sabemos pouco. É um tema que me interessa muito pelo pouco que sabemos. É estudado pelos antropólogos, pelos historiadores. O curioso da comunidade humana é como a comunidade humana herda e transforma. Cada geração é uma promessa de novidade. O pior que pode fazer uma geração é somente parecer-se à precedente. A outra coisa ruim é não se parecer em nada à precedente. Então, eu acredito que a transmissão humana é um caminho de continuidade e rupturas. Por alguma razão, a partir da noite da história, fala-se de conflitos intergeracionais. Bem-vindos sejam! Dá-me medo que no mundo de hoje não existam claros conflitos intergeracionais, que os adultos sejamos um pouco demagogos com os jovens, que estejamos em uma posição de reagir à gerontocracia de antes com atitudes juvenis.

Sobre a formação psicanalítica, como gerar ideais. Bom, eu transmito os ideais que me serviram. Não para que me imitem, não para que me considerem um modelo a imitar, mas porque, pondo-me como modelo, devo dar a meu interlocutor a oportunidade de parecer-se, de questionar, de discutir, mas que ele tenha um referencial claro para opor-se ou com o qual se assemelhar. Fiz-me analista, talvez, pelos enigmas em mim mesmo, porém, cada vez mais projetados nos demais, o que mais curiosidade me despertava era por que as pessoas sofriam, por que as pessoas choravam, por que as pessoas riam, por que as pessoas se amavam, por que as pessoas podiam ser boas ou cruéis. Essa curiosidade chamava-me mais a atenção do que saber como era o centro da terra - que também me interessa saber - ou como se constroem os edifícios. Ou seja, reconheço-me numa vocação precoce e parece-me que isto de que na transmissão se questione a vocação, se questione se queremos passar a vida escutando a queixa neurótica, escutando o padecimento psíquico e a dor humana, no final torna-se uma carga pesada, um calvário.

Questionar a vocação é algo que deve se fazer inclusive nos Institutos. O professor de cirurgia experimental - a senhora sabe que nos institutos de cirurgia experimental operam-se cachorros, gatos - dizia-me: "Uma coisa muito importante que aqui ensinamos é a descobrir não somente a vocação, mas também a não vocação". Muitas pessoas começam a operar cachorros e gatos e dão-se conta de que não é a tarefa que lhes interessa. Ainda que o ingresso nos Institutos seja tardio, temos que tender a que a formação do analista comece mais cedo. Estamos numa média de 45 anos e deveríamos baixá-la para 25 ou 30 anos para começar a formação. Nessa idade ainda se pode arrepender-se e optar por caminhos alternativos. Creio que a vocação, a escolha vocacional, para quem pode fazê-la é uma tarefa dura, e parece-me que a supervisão, a própria análise e algumas leituras e seminários podem servir para que o tema da vocação seja um tema na transmissão, a vocação psicanalítica. O outro comentário pessoal que quero fazer é que a psicanálise nasceu na modernidade e hoje estamos em outra época, na época pós-industrial ou pós-moderna. Um paradigma científico não éo mesmo até o ano 1950 e depois. O século XX mudou a noção de paradigma científico. Os paradigmas da modernidade buscam a verdade sobre o objeto, e a psicanálise buscava a verdade sobre o inconsciente. E não há verdades sobreo inconsciente. O que há são processos inconscientes. Então, como buscamos a verdade e buscamos aprofundar o saber sobre este objeto - o objeto que Freud legava-nos era o dos processos inconscientes, o da causalidade fantasmática -, somente líamos psicanálise e defendíamos a pureza de nosso método e a pureza de nosso objeto. Penso eu que hoje temos que dialogar com outras ciências do sujeito, com antropólogos, com politólogos. Há o fato de que o que antes se chamava ciências humanas - que eu prefiro chamar de ciências do sujeito, onde a linguagem, onde o falar, onde o pensamento humano é fundamental -, as ciências do sujeito, são sobre o discurso, não há referente extradiscursivo como tem a biologia, como tem a astronomia, como tem a matemática. Nossos referentes são intradiscursivos. Então, sem perder a especificidade de psicanalista, acredito ser necessário o diálogo com os que pensam a subjetividade a partir das ciências sociais - há muitos pensadores como Agambem, como Manuel Castells, como Sygmunt Bauman, como Paul Virilio, como Lyotard, que são interlocutores imprescindíveis como Eric Hobsbawm. Quisera eu que os Institutos de psicanálise tivessem algum espaço em que não somente se estudasse teoria psicanalítica, mas também a relação entre a teoria psicanalítica e a cultura contemporânea. São Paulo tem um pouco de tradição nisso por sua relação com artistas e com criadores. Em outros lugares da América e do mundo, os psicanalistas estão mais fechados nos hospitais, em problemas de saúde, estão metidos na psicopatologia da cultura. Eu, nisto, sou bem paulista, de abrir a psicanálise a outros pensadores da cultura, sem descuidar as relações com a medicina, com a psiquiatria. É muito ampla a zona de fronteira da psicanálise. Não podemos, sobretudo no mundo de hoje, continuar falando da repressão sexual. Que haja seminários e atividades interdisciplinares parece-me uma das novidades que nas duas últimas décadas se fazem cada vez mais urgentes e mais importantes. O pior que pode fazer um psicanalista é ler somente autores psicanalíticos.

Leda Barone - Literatura também.

Marcelo Viñar - Esses, como disse Freud, sempre sabem mais do que nós, caso sejam bons. Os bons escritores sempre descobrem as coisas antes e melhor do que nós, dizia Freud. Melhor ler bons escritores.

Leda Barone - Obrigada. Gostaria de acrescentar alguma coisa?

Marcelo Viñar - Haveria certamente de acrescentar muitíssimas, mas, como sou jovem, nós nos veremos dentro de dez anos e continuaremos acrescentando mais coisas. Sim, quero acrescentar que me sinto muito honrado. Tenho uma grande afinidade com o grupo paulista, que cada vez cresce mais.

Leda Barone - Nós também gostamos muito de suas contribuições e de seus textos.

Marcelo Viñar - Em poucos lugares sinto-me tão em casa como em São Paulo.

 

Tradução de Marta Úrsula Lambrecht Revisão de Leda Maria Codeço Barone
1 Doutor em Medicina. Psicanalista. Membro titular e analista didata da Associação Psicanalítica do Uruguai. Membro da Associação Psicanalítica Internacional.
2 Viñar, M. Psicoanalizar hoy. Problemas de articulación teórico clínica. Montevideo; Ediciones Trilce, 2002. quarta capa.         [ Links ]

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