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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo dez. 2016

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Prefácio a "psicanálise do cafuné"

 

 

François Raveau

Neurologista e antropólogo que sucedeu Roger Bastide no Centro de Pesquisas sobre as Disfunções de Adaptação (Centre de l'EHESS), Paris

 

 

Propor ao leitor um texto publicado há 55 anos é um desafio perigoso. Submeter um texto à prova do tempo é correr o risco de invalidá-lo. O vocabulário sai de moda rapidamente em Ciências Sociais... As afetações da linguagem acadêmica são frequentemente tributárias de uma época, e as revelações de um momento, posteriormente, se revelam um truísmo.

Os cinco documentos reunidos sob o título de "Psicanálise do cafuné" e "Estudos de sociologia estética brasileira" nada têm a temer de uma experiência desse tipo. Roger Bastide sempre escolheu exprimir as noções complexas de forma simples, e a modéstia aparente de sua atitude, alimentada por uma erudição impressionante, mas não pedante nem opressiva, nos demonstra que é possível desafiar as barreiras temporais. Além das questões formais, temos aqui textos que trazem em si as promessas da obra de uma vida.

Situemos o momento de sua produção. Roger Bastide está no Brasil e é professor de Sociologia na Universidade de São Paulo há três anos. A derrocada da França em junho de 1940 o isola de seu país e seu retorno ao seio da Universidade francesa é incerto. De certa forma, ele é um exilado. Ele se volta para o Brasil, que ele descobre com paixão e rigor, aliando leitura erudita e observação ativa e intensa. Duas contribuições importantes o demonstram: Pintura e mística, em 1938, e La Sociologie brésilienne, em 1939. Em diversas revistas, ele expõe as etapas de suas descobertas, a partir de 1939, através de numerosos artigos. Em 1940, uma primeira versão de "Psicanálise do cafuné" é publicada na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo. Esse texto, ligeiramente modificado, será retomado em 1941 com os cinco ensaios que o acompanham aqui e, em 1959, na obra Sociologia do folclore brasileiro. Finalmente, uma última vez em 1954, sob um título desta vez ligeiramente diferente, "Psicologia do Cafuné", na revista francesa Psyché. Retomemos o que temos aqui: a versão de 1941, que tem como subtítulo "Estudos de sociologia estética brasileira". Essa obra de 75 páginas (na versão inicial) nos parece o fundamento e um prenúncio da obra futura de Roger Bastide. Desde a introdução, a ambição está explícita: com base na "originalidade das culturas, buscar produzir leis gerais". E, inversamente, utilizando exemplos brasileiros, "mostrar como essas leis universais" se inserem e funcionam no interior de uma cultura única. Aí está um alerta atual contra os gostos de hoje que revalorizam exclusivamente a monografia, em nome da pesquisa especificamente nacionalista que o retorno "à época das tribos" nos impõe. Um método se justifica pelo valor de seus resultados. Aqui estamos em companhia dessas invariantes cuja pesquisa vai se tornar uma das razões de ser da Antropologia social. Em seguida, Roger Bastide nos propõe alguns métodos da análise das produções culturais. De certa maneira, é um banco de ensaio. Primeiro, a apresentação de um mito, o do Aleijadinho. Em seguida, uma apropriação - mitos e lendas se inscrevem no âmbito do sociológico, pois se originam de representações coletivas -, um sobrevoo do oriente ao ocidente dos traços comuns, dos estereótipos dos quais ele é objeto e uma escolha, o artista, homem que escapa à condição humana. Retorno ao Brasil com uma breve apresentação desse personagem que paga por sua genialidade com uma extrema feiura, uma total repugnância; a sanção, a execração: retorno a Prometeu.

Apresentamos, aqui, um modo quase experimental de abordagem de uma cultura por um vetor, o mito; e um suporte, o do artista. Mas, se ele é maldito, como explicar a diversidade de sua produção? Neste caso, a introdução, pelo viés da mestiçagem brasileira, de uma contribuição ao estudo do papel do meio ambiente na criatividade e da importância inicial da imitação para chegar à criação original. Roger Bastide observa, então, que é no religioso que a resistência ao empréstimo será mais forte. Eis um primeiro indício, uma justificativa prévia de seu trabalho de tese sobre "As religiões africanas no Brasil". Pode-se ver nas reflexões sobre "O desafio" uma hesitação em abandonar a arte como meio privilegiado de estudo das confrontações de culturas, arte que tem "uma dupla finalidade sociológica... instrumento de comunicação social e meio de suavizar os costumes"? Existirá, ao longo da obra de Roger Bastide uma nostalgia desta via mais gloriosa de abordagem, até em seus últimos ensaios, como Le prochain et le lointain (O próximo e o distante) ou O sonho, o transe e a loucura, em 1970 e 1972. É na abordagem sociológica do barroco brasileiro, suporte arquitetural que "através das igrejas vai não somente exprimir as mudanças da vida social, mas também as transformações coletivas", que Roger Bastide vai nos fazer perceber que o sincretismo não é o desfecho obrigatório: "não basta que duas culturas ou duas formas de arte estejam em contato para que se estabeleça imediatamente uma troca de influências". Se a arte é aquilo pelo qual a forma se torna estilo, esse processo de mutação pode se tornar o fio condutor que, através desse "caos decorativo", vai nos introduzir no conhecimento das pluralidades brasileiras. Os ritos e as práticas, elementos reveladores dessa diversidade, são apreendidos pelo estudo da arquitetura. Aqui está uma abordagem original dessa sociologia de contados. Esse "barroco delira de febre" e não vai apenas exprimir "a sociedade, mas as sociedades dos grupos heterogêneos e rivais". Essa contribuição é a mais explorada, a referência extensiva (incitação a reler C. Lalo): adivinha-se, através do entusiasmo pelo belo, um convite a um enriquecimento por meio de uma abordagem atenta dos laços que tecem "os tipos de vida com os homens do país". É toda uma problemática das mestiçagens culturais que é esboçada aqui, em que o papel do artista e de suas obras é proposto como suporte para uma análise compreensiva das diversas dinâmicas em ação. Finalmente, o segundo grande tema da obra de Roger Bastide: as relações que a sociologia mantém com a psicanálise vão emergir na última contribuição. Não esqueçamos que a primeira edição de Sociologia e Psicanálise de 1950 (e sua segunda edição modificada em 1970-1974 no Brasil) conheceu com Sociologia das doenças mentais (publicado em 1965-1967 no Brasil) os maiores sucessos de livraria do autor (e o maior número de traduções). Mas esta preocupação é ainda mais antiga, já que Roger Bastide desde 1935 critica seriamente e "refuta" a sociologia religiosa de Freud e "sua fábula da horda primitiva do assassinato do pai e da descoberta do totemismo". Ele anuncia nesta obra "que não cabe mais à psicanálise decidir sobre uma nova sociologia... mas, ao contrário, o sociólogo é quem deve traçar os limites culturais nos quais os psicanalistas deverão situar sua pesquisa". Portanto, é preciso ver neste artigo uma tentativa de pôr um elemento da cultura brasileira - caçar os piolhos - na cama de Procusto da psicanálise. É uma pesquisa da contribuição da psicanálise para o conhecimento fora do campo da terapêutica como método de interpretação da existência. Neste aspecto, podemos pensar em uma aproximação com G. Bachelard (cuja Psicanálise do fogo foi publicada três anos antes, em 1938- 1994/2015 no Brasil), a quem se pode imputar certa responsabilidade, primeiro na escolha do título: Psicanálise do cafuné, que se tornará em 1954 Psychologie du cafuné, em seguida, na aceitação, pela preocupação operatória, do arsenal simbólico freudiano.

É ainda um convite a exceder a investigação psicológica, voltar à descrição etnológica dessas práticas, o que permite ao leitor atual, com as bases aqui lançadas, ir mais além, por exemplo, através da leitura de um artigo mais recente em "Pour la Science", de dezembro de 1995, sobre Le pou et la peinture holandaise du XVIIème siècle (O piolho e a pintura holandesa do século XVII), de P. P. Cabotin. Se Gérard Ter Borch, Pieter de Hooch, Gerritz von Brekelenkan concedem tanta importância a esta prática, é sem sombra de dúvida porque o inseto, assim como a libido, tinha certa pretensão de ser também, no nível do arquétipo, um elemento ativo participando tanto da natureza quanto da cultura... Diante do estudo complexo dos contatos de civilizações, Roger Bastide podia ainda escolher entre diversos métodos. Essas tentativas são uma espécie de inventário das tentações: abordagem estética da mestiçagem, ou abordagem psicológica (normal ou patológica) e utilização dos mitos? Ele escolherá o tratamento do sagrado e do religioso, oriundo dos contatos de civilizações, e a respeito do qual realizará uma parte importante de sua obra. A outra parte se voltará para aquilo que está anunciado aqui, a complementaridade indispensável entre uma psicologia das profundezas e uma sociologia na qual, antes de tudo, os fatos sociais devem ser coisas.

 

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