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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo jan./jun. 2018
DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA
A polêmica em torno da interpretação: a psicanálise, as humanidades e a formação do analista1
The controversy surrounding the interpretation: psychoanalysis, the humanities and the psychoanalist's training
La polémica en torno a la interpretación: el psicoanálisis, las humanidades y la formación del analista
La controverse entourant l'interprétation: la psychanalyse, les humanités et la formation de l'analyste
Marilsa TaffarelI; Alice Paes de Barros ArrudaII; Ana Maria Vieira RosenzvaigIII; Fernanda ColonneseIV; Iliana Horta WarchavchikV; Maria da Penha Zabani LanzoniVI; Mariangela de Oliveira Kamnitzer BraccoVII; Ymara Lúcia Camargo VitoloVIII
IMembro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Coordenadora do seminário. mtaffare@terra.com.br
IIMembro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. alicepba18@gmail.com
IIIMembro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. amrosenzvaig@terra.com.br
IVMembro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. fcolonne@uol.com.br
VMembro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. ilianaw@uol.com.br
VIMembro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. mpenhalanzoni1@gmail.com
VIIMembro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. mkb@bracco.com.br
VIIIMembro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. ylcvitolo@gmail.com
RESUMO
Desde os gregos a interpretação é o instrumento privilegiado de acesso ao estranho que desejo compreender. Tornada método no século XIX é ela que institui as ciências da cultura. Como situar a psicanálise no amplo debate que então se inaugurou? Consideramos esse estudo, que convocou grandes nomes no século xx, indispensável para o psicanalista em formação e sua clínica.
Palavras-chave: psicanálise, epistemologia, interpretação, formação, ciências humanas
ABSTRACT
Since the Greeks, interpretation is the privileged instrument to access the uncanny that we attempt to understand. Interpretation has become a method in the XIX century which made possible to create the Culture Sciences. The question is how to situate psychoanalysis in the broad debate that has been since then inaugurated. We consider this study, which had the contribution of some of 20th century's greatest names, essential to the psychoanalysts under training and their practice.
Keywords: psychoanalysis, epistemology, interpretation, training, human sciences
RESUMEN
Desde los griegos, la interpretación ha sido el instrumento privilegiado de acceso a lo ominoso que pide comprenderse. Como método, a partir del siglo XIX, ella instituye las ciencias de la cultura. Es decir: cómo, por lo tanto, podemos situar al psicoanálisis en el amplio debate que hace mucho fue inaugurado? Consideramos el estudio de esa cuestión, que convocó grandes nombres del siglo xx, indispensable para el psicoanalista y para su clinica.
Palabras clave: psicoanálisis, epistemología, interpretación, formación, ciencias humanas
RÉSUMÉ
Depuis les Grecs l'interprétation est l'instrument privilegié d'accès à l'étranger que nous souhaitons connaître. Au XIX siècle elle est devenue une méthode et va instituer les Sciences de la Culture. Comment situer la psychanalyse dans le large débat qui a été alors inauguré? À notre avis cette étude, qui a attiré des grands noms au xxème siècle, est indispensable pour le psychanalyst en formation et sa pratique.
Mots-clés: psychanalyse, épistémologie, interprétation, formation, sciences humaines
Há cerca de um ano e meio iniciamos um seminário teórico, que, na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), tem um caráter inovador: a abordagem direta de textos de epistemologia da psicanálise. O primeiro professor de nossa sociedade que insistiu de forma contínua, durante décadas, sobre a importância da abordagem epistemológica entre nós foi Isaias Melsohn. Porém, além da insistência com a importância desse objeto de estudo, é necessário tornar conhecida e assimilável a história das ideias, com suas continuidades, rupturas e complexidades envolvidas.
O propósito desse seminário é tornar acessível essa perspectiva de leitura de textos para acompanhar os debates que desde Freud se travam em torno de qual é o lugar da psicanálise no campo do conhecimento. Esta comunicação para o presente congresso surgiu do entusiasmo que se produziu em alguns membros efetivos e associados da SBPSP e de membros filiados de seu Instituto ao se iniciarem no estudo dos fundamentos epistemológicos sobre os quais se apoiam tanto a teoria psicanalítica quanto a sua prática.
O currículo teórico do Instituto da SBPSP abarca uma vasta grade de escolhas, com seminários obrigatórios de Freud, Melanie Klein e Bion e seminários eletivos da escolha dos candidatos em formação, que foram ampliados a partir da última reformulação de 1997. No entanto, o currículo carece de seminários que contemplem tanto a história do pensamento psicanalítico, quanto o estudo dos modelos, dos paradigmas, dos enunciados fundamentais tanto provenientes das ciências naturais quanto das ciências humanas sob os quais se construiu e continua a se construir a psicanálise.
A indagação sobre os fundamentos da psicanálise remonta ao início mesmo da elaboração por Freud das suas primeiras grandes obras. Citamos, como exemplo, a introdução da "Interpretação dos sonhos". Nela, deparamos com sua cuidadosa varredura e discussão da bibliografia sobre os sonhos que lhe antecede e seu empenho em sustentar o sonho como uma produção psíquica e como uma produção dotada de sentido, afastando as teorias que o situam como um fenômeno de ordem fisiológica, ou seja, que tentam entendê-lo com o modelo biológico.
Freud, no escrito de 1920 citado por Roudinesco mostra a necessidade do estudo de outras disciplinas no currículo da formação psicanalítica:
Na oportunidade [inauguração curso de Psicanálise em Universidade na Hungria em 10 de junho de 1920], Freud escreveu um artigo publicado diretamente em húngaro: "Deve-se ensinar psicanálise na universidade". Nele, inventariava todas as matérias necessárias ao currículo do estudante de psicanálise. Não só apontava a necessidade de o aluno conhecer bem a história das psicoterapias, a fim de compreender as razões objetivas da superioridade do método psicanalítico, como propunha um programa que envolvia literatura, filosofia, arte, mitologia, história das religiões e civilizações. Insistia com veemência em que, em hipótese alguma, a psicanálise devia limitar seu campo de aplicação às afecções patológicas. (2014, p. 218)
Entre muitas manifestações dessa preocupação recolhemos na obra de Ferenczi, em "Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade", a preocupação com a questão dos saberes vindos de vários domínios e como é importante ter um domínio sobre os fundamentos de nossa disciplina. Assim, numa certa passagem do artigo diz:
[aprendi] desde os bancos da escola, a considerar como princípio fundamental de todo trabalho científico a separação rigorosa entre os pontos de vista próprios às ciências naturais e os pertencentes às ciências do espírito. A inobservância dessas regras, no decorrer das minha especulações, era uma das razões que me impediam de publicar minha teoria. (Ferenczi, 1924/2011, p. 278)
Nessa citação, vemos Ferenczi se referir à divisão que no final do século XIX se fez no extenso campo do conhecimento: de um lado foram postas as ciências da natureza a química, a física e de outro as ciências do espírito ou ciências humanas. Dilthey, o filósofo autor dessa distinção, tinha como objetivo libertar do domínio das matemáticas aquelas que a partir dele se chamariam ciências do espírito. Essa divisão, embora posteriormente criticada, tornou-se fecunda pelo debate internacional que ela abriu. As ciências do espírito têm como método a compreensão hermenêutica, enquanto a física, a matemática têm a explicação.
Freud contudo não se atém a essa divisão: sem medo de usar os modelos da economia, da biologia nem dos estudos da linguagem, Freud os adota. Por exemplo, o modelo de conflito entre polos que se opõem, tão central para nós, vem da economia, oriundo da oposição entre pobres e ricos, entre classe dominante e classe dominada; Freud adotou da biologia o modelo de função, ou seja, a ideia de estímulo-resposta, evolução no tempo, busca de regularidade; adotou a análise genética, a ideia de desenvolvimento temporal, por exemplo, fases de desenvolvimento da libido; adotou da física toda a sua teoria energética; adotou da linguística a noção, também fundamental, de símbolo. Por outro lado, o surgimento da psicanálise foi de fundamental importância para a ruptura com a predominância de modelos que levavam a uma dualidade de tipo maniqueísta entre normal e patológico entendido como aberração , entre produções humanas com e sem sentido, entre civilizados e primitivos. Adota o modelo de análise estrutural, de sincronismo em vez de diacronismo, que se solidifica no início do século xx.
Marc-André Bouchard (1995), psicanalista canadense, ao se incluir nas discussões sobre os problemas epistemológicos e metodológicos que a psicanálise apresenta, chama atenção para a complexidade do tema. Considera que Freud nos legou uma ambivalência epistemológica. Baseando-se em textos de Ahumada (1994) e Laplanche (1991), que vão apresentar posições distintas sobre a questão da posição epistemológica da psicanálise, Bouchard afirma que o próprio Freud em "Construções em análise"(1937/1975), ao refletir e caracterizar o trabalho do analista, suporta, ao mesmo tempo, tanto um ponto de vista empirista, como um outro, hermenêutico e construtivista. Bouchard vai chamar atenção para o fato de ser o próprio Freud quem "falha" nesse momento em alertar seus leitores a respeito do imenso salto entre essas duas posições epistemológicas: descobrir e/ou construir, o que mais uma vez aponta para a importância, tensão e complexidade dessas questões para cada psicanalista.
O esforço de fundamentação da nossa disciplina se renova a cada proposta de releitura de Freud ou de ampliação/reformulação de conceitos psicanalíticos. Essas releituras que marcam o surgimento de novas escolas renovam o propósito de outorgar à psicanálise um lugar no campo científico. Grosso modo essa determinação continua a se expressar na incerteza entre tomar como fundamento as ciências empíricas do homem como a biologia e as ciências da natureza como a física e a matemática ou se postar ao lado das humanidades, tais como as ciências do símbolo ou a hermenêutica.
A última década do século passado foi extremamente fértil no que diz respeito ao debate quanto aos fundamentos da interpretação psicanalítica dentro do âmbito da IPA. De um lado os psicanalistas hermeneutas, de outro os seus críticos alinhados com a defesa da busca de fundamentos nas ciências da natureza. A intervenção de J. Laplanche que já vinha, desde meados da década de 1980, revendo essa questão por meio de seu texto "A interpretação entre determinismo e hermenêutica: re-enunciando o problema"(1991) engrossa o caldo da polêmica. Também Donald Spence, Merton M. Gill, Robert Steele, Daniel Gil se incluem com artigos e livros, nesse debate. Em 1994 aparece o artigo de Jorge Ahumada "O que é um fato clínico? A psicanálise clínica como método indutivo" no Livro Anual de Psicanálise. Em 1995, no The International Journal of Psycho-Analysis, Steiner polemiza com os psicanalistas da linha hermenêutica em seu artigo "Hermeneutics or hermes-mess". No ano 2000 Friedman publica, no Psychoanalytic Quarterly, o artigo "Modern hermeneutics and psychoanalysis". Também no ano 2000, no xxiii Congresso da Fepal foi organizado um importante debate entre o psicanalista nova-iorquino Roy Shafer e Jorge Ahumada: "Narrativa ou descrição: uma questão atual".
Citamos apenas algumas produções feitas nesse campo e que continuam a ressoar. Quase continuamente, nos debates e escritos psicanalíticos, essas questões ressurgem, deixando os psicanalistas não afeitos a tal domínio, como assinalamos, sem instrumental para uma profícua participação, ou seja, o debate fica restrito a pequenos círculos.
A epistemologia trata dos fundamentos em que se sustenta o conhecimento, suas bases, seu tipo de racionalidade.
O estudo da epistemologia da psicanálise pode cumprir dois propósitos. Primeiro: compreender a presença e predominância de uma ou outra ciência na constituição dos conceitos psicanalíticos e suas consequências em nossa prática. Segundo: nos ajudar a entender que não estamos na psicanálise de posse de um corpo de conhecimentos definitivo, estável, não isento de ambivalência.
Há ainda uma terceira razão: ter uma noção dos fundamentos das correntes da psicanálise confere mais solidez, mais segurança ao psicanalista em sua escolha do caminho a seguir em sua prática, lugar que ele privilegia acima de tudo. Ocorre que toda prática psicanalítica é investigativa e aberta para a cultura da instituição em que está inserido o psicanalista e para a cultura mais ampla, uma vez que não há um modo de acesso único ao homem. Novas compreensões, novas leituras de postulações de Freud anguladas por uma escolha epistemológica se formam ao logo do tempo. Um olhar atento e informado talvez possa evitar a dissolução do campo psicanalítico na filosofia, na linguística, na biologia, na literatura.
Referências
Ahumada, J. L. (1994). O que é um fato clínico? A psicanálise clínica como método indutivo. Livro Anual de Psicanálise, 10,3-47. [ Links ]
Bouchard, M.-A. (1995). The specificity of hermeneutics and psychoanalysis: leaps on the path from constructions recollection. International Journal of Psychoanalysis, 76,533-546. [ Links ]
Ferenzi, S. (2011). Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade. In S. Ferenczi, Ferenczi, Obras completas, psicanálise (Vol. 3, cap. 42, 2.ª ed.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1924) [ Links ]
Freud, S. (1975). Construções em análise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 23, pp. 289-308). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937) [ Links ]
Friedman, L. (2000). Modern hermeneutics and psychoanalysis. Psychoanalytic Quarterly, 69,225-262. [ Links ]
Laplanche, J. (1991). L'interprétation entre déterminisme et herméneutiques: une nouvelle position de la question. Revue Française de Psychanalyse, 55,1293-1317. [ Links ]
Roudinesco, E. (2014). Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Steiner, R. (1995). Hermeneutics or Hermes-mess. International Journal of Psychoanalysis, 76,435-445. [ Links ]
Recebido em: 12/6/2018
Aceito em: 19/6/2018
1 Trabalho apresentado no xxvi Congresso Brasileiro de Psicanálise, patrocinado pela FEBRAPSI de 1.º a 4 de novembro de 2017, na cidade de Fortaleza, CE.